Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3948/21.5T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
CESSÃO DE QUOTA
CULPA
NÃO-CUMPRIMENTO
Apenso:
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- Quando uma parte celebra um negócio (contrato-promessa de cessão de quota) no pressuposto da verificação no futuro de uma dada circunstância (no caso, a obtenção dum financiamento bancário), determinante, para si, para a celebração do negócio (pois, de outro modo, não celebraria o negócio), tanto pode ter como certa tal circunstância e contratar sem qualquer reserva, como pode admitir a possibilidade de falhar tal circunstância e inserir (com o acordo da contraparte, já se vê) no negócio uma cláusula correspondente, por ex., uma cláusula condicional.

II- Na primeira hipótese, quando contrata sem a inclusão de qualquer cláusula/reserva, tanto pode acontecer que a contraparte saiba da existência da circunstância pressuposta (e que não se veio a verificar) como pode acontecer que a contraparte ignore de todo a circunstância erroneamente representada e/ou que a mesma fosse essencial para a decisão da outra parte se vincular contratualmente.

III- E caso a contraparte saiba da existência da circunstância pressuposta, caso o financiamento bancário não seja obtido, não estamos perante a ausência de culpa no não cumprimento do contrato-promessa de cessão de quota por parte do promitente cessionário, mas sim perante a alteração duma circunstância que fundou a decisão de contratar (e que foi considerada como vindo a verificar-se no futuro), podendo, caso se verifiquem os pressupostos de aplicação do art. 437.º do C. Civil – a) alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; b) afetar tal alteração anormal gravemente a manutenção do conteúdo contratual os princípios da boa fé e não estando a alteração abrangida pela álea própria do contrato – ocorrer a resolução ou modificação do negócio (ou seja, para ocorrer a resolução ou modificação do negócio, não basta que a circunstância pressuposta fosse conhecida da contraparte).

Decisão Texto Integral:

Processo 3948/21.5T8AVR.P1.S1

ACORDAM, NA 6ª SECÇÃO, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório

AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo que seja “proferida sentença condenatória que produza os efeitos da declaração negocial em falta pelo réu e que condene no pagamento da cláusula penal.”

Alegou que no âmbito do procedimento cautelar n.º 3535/20.... (que correu termos no Juízo de Comércio de Aveiro – Juiz ...) celebraram as partes transação, homologada por sentença, segundo a qual, no prazo de 75 dias a contar da homologação da transação, ocorrida em 17 de Março de 2021, o autor cederia ao réu a sua quota na sociedade comercial “E... Lda.”, pelo valor de 100.000,00€; ficando igualmente acordado que incumbia ao réu proceder à marcação da escritura pública e que, em caso de incumprimento, o R. se comprometia ao pagamento do montante indemnizatório de 50.000 € ao A.

Mais alegou que, apesar de ter interpelado o R., em Julho de 2021, informando-o do decurso dos 75 dias combinados, este não procedeu à marcação da escritura pública, nem efetuou o pagamento devido pelo incumprimento.

O réu apresentou contestação.

Alegou, em síntese, que não lhe é imputável o incumprimento, uma vez que, logo após a transação, encetou diligências junto do BPI e do Millenium BCP com vista a obter financiamento bancário para a aquisição da quota pelo preço acordado, o que – necessidade de obter financiamento bancário – ficou bem vincada no decurso da audiência de julgamento em que foi lavrada a transação; financiamento que não foi aprovado por questões de política comercial das duas referidas entidades (e por isso conclui que o incumprimento não lhe pode ser assacado, “uma vez que decorre de facto originado por terceiro”).

Mais invocou, caso se considere que se verifica uma situação de incumprimento, que a cláusula penal fixada em 50.000€ é manifestamente exagerada, por consubstanciar uma grave desproporção entre os danos potencialmente causados (que inexistem) e a indemnização prevista.

Dispensada a realização da audiência prévia, procedeu-se à elaboração de despacho saneador – em que foi declarada a regularidade da instância, estado em que se mantém – com fixação do objeto do litígio e temas da prova e admissão dos meios de prova requeridos pelas partes.

Procedeu-se à realização da audiência final, sendo proferida sentença que julgou totalmente improcedente a ação.

Inconformado, apresentou o A. recurso de apelação, recurso que, por Acórdão da Relação do Porto de 23/01/2023, foi julgado “parcialmente procedente, condenando-se o réu/apelado a pagar ao autor a quantia de 50. 000, 00 (cinquenta mil euros), mantendo no mais a sentença recorrida.”

Inconformado agora o R., interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que, repristinando o decidido na sentença da 1.ª Instância, julgue a ação totalmente improcedente.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

1. Constitui entendimento do Recorrente que a interpretação seguida viola além do mais o estatuído no artigo 799.º, n.º1 do Código Civil sendo assim, tal preceito, com tal interpretação inconstitucional.

2. O ora Recorrente ilidiu de forma cabal a culpa, o que fez além do mais de acordo com o preceituado nos artigos 342.º, n.º 2, 350.º, n.º 2, ambos do Código Civil, já que,

3. Como melhor decidido pelo Tribunal de 1.ª Instância “O réu não procedeu à marcação da escritura pública por não ter logrado obter financiamento bancário para obtenção da quantia de 100.000€. (facto 13 dos factos provados) parêntesis nosso ---14) A celebração da transação aludida em 1) ocorreu no pressuposto de que o réu teria de obter financiamento bancário para poder suportar a quantia mencionada.”, sendo que o Venerando Tribunal da Relação do Porto na sua douta decisão julgou improcedente “a impugnação do ponto 13) do elenco dos factos provados, que se mantém”;

4. Devendo consequentemente os dois pontos dos factos provados serem analisados de forma conjunta, o que de acordo com as regras da experiência, da normalidade do acontecer, impõe que seja ilidida a culpa do ora Recorrente.

5. Ora, ao ter decidido como decidiu o Venerando Tribunal da Relação do Porto violou e efetuou uma interpretação errada e consequentemente e indevida aplicação do disposto nos artigos 799.º, n.º 1, 342.º, n.º 2, 350.º, n.º 2, todos do Código Civil.

6. O ora Recorrente ilidiu a culpa;

7. Sendo que a sua obrigação era de meios e não de resultado;

8. Que constitui a única interpretação possível de acordo com os elementos constantes dos autos, o que acarreta que seja concedido provimento ao presente recurso. (…)”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Obtidos os vistos, mantendo-se a regularidade da instância, cumpra, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

Provaram-se os seguintes factos:

1) No âmbito do processo n.º 3535/20...., que correu termos no Juízo de Comércio de Aveiro – Juiz ..., a 17 de Março de 2021 foi proferida sentença homologatória da transação celebrada entre o aqui autor AA e o réu BB.

2) Da cláusula 1.ª da aludida transacção consta:

O requerente BB obriga-se a adquirir a quota social da empresa E..., Lda., com o NIPC ..., da qual é titular o requerido AA, pelo valor de €100.000,00 [cem mil euros].

3) Por sua vez, a cláusula 2.ª estipula:

O requerido AA e a esposa, CC, comprometem-se a ceder a referida quota nos termos supra indicados.

4) Nos termos da cláusula 3.ª:

A escritura pública ou documento particular autenticado [DPA] de cessão de quotas será realizada no prazo de 75 dias, a contar da presente data, em favor do requerente BB ou de quem este venha a indicar.

5) Acrescenta a cláusula 4.ª:

O requerente BB avisará, com 5 dias de antecedência, o requerido AA, do dia, hora e local da realização da referida escritura ou DPA, o que fará por intermédio dos respetivos mandatários identificados nos presentes autos.

6) Da cláusula 5.ª consta o seguinte:

Todo e qualquer documento que seja necessário assinar e/ou entregar pelo requerido AA e pela esposa CC, com vista à celebração do negócio, será solicitado/entregue através dos mandatários das partes.

7) Mais acordaram, sob a cláusula 6.ª:

O pagamento da quantia referida em I. será efetuado na data da outorga da escritura e, com a boa cobrança da respetiva importância, o requerido AA e a respetiva esposa nada mais podem exigir, seja a que título for a BB e/ou ao cessionário, bem como à sociedade E..., Lda.

8) Fizeram as partes constar na cláusula 7.ª:

Em caso de incumprimento do estabelecido supra, por facto imputável por qualquer uma das partes, a que incumprir terá que proceder ao pagamento à outra parte [não faltosa], da quantia de € 50.000,00.

9) A 20/04/2021, através do endereço ..., o réu remeteu a DD, gerente do Balcão do Banco BPI em ..., a seguinte comunicação:

“ No seguimento da vossa conversa telefónica, entrei em contacto com o nosso gabinete de contabilidade para tirar dúvidas, foi-me informado que o bem tem que passar para nome da “E..., LDA”, fazer escritura, para poder ser feita nova penhora sobre o mesmo à nova identidade que venha a fazer o financiamento, é feita a cedência de cotas por um dos sócios, não tem qualquer pagamento de impostos.

Conforme chamei atenção no e-mail anterior tenho um prazo dado pelo tribunal para concretizar o negócio, assim sendo agradeço que o banco BPI me informe por escrito se concede o financiamento desta operação ou não, já trabalho á bastantes anos com o banco BPI, tanto a nível particular como com as empresas (E..., LDA) e (P..., LDA.), até à data penso que não tem nada apontar, sempre cumprimos com as nossas obrigações, esperava outra atenção da vossa parte, obrigado. “

10) Em resposta ao descrito em 9), por email remetido para ... a 29/04/2021, por DD, gerente do Balcão do Banco BPI em ..., foi comunicada a seguinte informação: “Bom dia Sr. BB, Conforme falamos telefonicamente, informo que o financiamento que solicitou, não foi aprovado.

11) Por email remetido para ... a 20/05/2021, por EE, funcionária da Sucursal de ... do Millennium BCP, foi comunicada a seguinte informação:

“ Conforme conversa telefónica, vimos por este meio informar que não se encontram reunidas as condições para avançar com o financiamento solicitado para a empresa E..., Lda. “

12) Por carta registada com aviso de receção, datada de 24/06/2021 e entregue a 28/06/2021, o autor, através da sua mandatária, comunicou ao réu o seguinte:

“ Venho pelo presente comunicar que se encontra em situação de incumprimento o transacionado em sentença homologatória no âmbito do processo 3535/20.....

Assim é, uma vez que já decorreu o prazo estipulado para a formalização da Cessão de Quotas, estabelecido por acordo em 75 dias a contar da data de celebração da transação.

Até ao dia de hoje, nunca o M/Constituinte foi informado por V.ª Ex.ª relativamente a qualquer data para a celebração da cessão de quotas ou da existência de um motivo plausível e que justifique a situação de inércia.

Deste modo, vem-se exigir a V.ª Ex.ª o cumprimento da Cláusula Penal estabelecida no ponto VII., da transação celebrada, que se cumpre no pagamento da quantia de 50.000,00€ (cinquenta mil euros). Caso o mencionado valor não seja pago no prazo de 10 dias, avançar-se-á com procedimento executivo. “

13) O réu não procedeu à marcação da escritura pública por não ter logrado obter financiamento bancário para obtenção da quantia de 100.000€.

14) O Réu outorgou na transação aludida em 1) na convicção de que conseguiria obter, no prazo ali estabelecido, financiamento bancário para poder suportar o pagamento do preço acordado.

*

III – Fundamentação de Direito

O A., como se transcreveu no início do relatório, veio pedir que seja “proferida sentença condenatória que produza os efeitos da declaração negocial em falta pelo réu e que o condene no pagamento da cláusula penal”; em consonância com o que havia afirmado no último artigo da PI, em que disse pretender, com a presente ação, “o pagamento do valor devido a título de cláusula penal bem como a condenação do transacionado”, entendendo-se por “transacionado” o que consta da transação celebrada no âmbito do processo n.º 3535/20.... (que correu termos no Juízo de Comércio de Aveiro – Juiz ...).

Perante tal posição do A., as Instâncias consideraram que o A. pediu quer a execução específica do contrato-promessa constante do conteúdo da transação quer o pagamento da cláusula penal de € 50.000,00 prevista para o incumprimento de tal contrato-promessa.

E analisando o que foi considerado ser a dupla pretensão do A.:

Estiveram as Instâncias de acordo em qualificar o negócio jurídico vertido na transação (reproduzida nos 8 primeiros pontos dos factos provados) como um contrato-promessa (bilateral) de cessão da quota-social, obrigando-se, por um lado, o promitente-cessionário, BB (o aqui R.) a emitir (no prazo estabelecido) a declaração de vontade correspondente à compra/aquisição daquela quota social, pagando em contrapartida o preço acordado de € 100.000,00; e obrigando-se, por outro lado, o AA (e aqui A.) a emitir, nessa mesma ocasião, a declaração de vontade correspondente à alienação da mesma quota social que detinha na sociedade comercial identificada, concretizando assim o negócio definitivo/prometido; e

Assim como estiveram as Instâncias de acordo em, face à cláusula penal de € 50.000,00 prevista para o incumprimento de tal contrato-promessa de cessão de quota e atento o sentido da presunção estabelecida no art. 830.º/2 do Cód. (para a hipótese, como é o caso, de estar “fixada uma pena para o caso de não cumprimento da promessa”), não ilidida por qualquer alegação e/ou prova por parte do A., considerar afastada a execução específica de tal contrato-promessa (bilateral) de cessão da quota-social e decretar a improcedência da pretendida execução específica do contrato-promessa celebrado entre as partes.

Situando-se a divergência das Instâncias no pedido respeitante ao pagamento da cláusula penal de € 50.000,00 – negando-o a 1.ª Instância e concedendo-o a Relação.

Era aqui – mais exata e rigorosamente, na qualificação de tal cláusula penal – que se situava o ponto nevrálgico do litígio, tendo as Instâncias chegado a desfechos opostos por no seu percurso e raciocínio jurídicos haverem qualificado diferentemente a cláusula penal em causa.

A 1.ª Instância terá perspetivado a cláusula penal em causa como uma cláusula de fixação antecipada do montante da indemnização e, nesta linha de raciocínio, considerou que a simples mora não configura a situação para que a mesma foi prevista, pelo que, não tendo o autor convertido a situação de mora do réu em incumprimento definitivo (por ausência de interpelação admonitória - artigo 808.º/1 do Cód. Civil), ficou a faltar o pressuposto imprescindível (incumprimento definitivo) à aplicação da cláusula penal prevista no contrato-promessa.

A Relação, louvando-se no ensinamento do Prof. Pinto Monteiro (in Cláusula Penal e Indemnização, pag. 601 e ss.) e no abandono do conceito unitário da cláusula penal, qualificou a cláusula penal em causa – dentre as 3 espécies admissíveis (indemnizatória, exclusivamente compulsivo-sancionatória e “em sentido estrito”) – como “cláusula penal propriamente dita ou em sentido estrito”.

A tal propósito, observou-se no Acórdão recorrido:

“(…)

Nesta cláusula, como assinala ainda Pinto Monteiro, op. cit., pág. 609, cuja lição aqui se segue de perto, “ … a pena visa compelir o devedor ao cumprimento – nisto se distingue da pena como liquidação do dano e se aproxima da pena estritamente compulsória. Todavia, ao contrário da última, a pena substitui a indemnização, quer dizer, não acresce a esta nem à execução específica da prestação – o que a aproxima da cláusula penal como indemnização pré- determinada. Numa palavra, em sentido estrito, a cláusula penal visa compelir o devedor ao cumprimento, ao mesmo tempo que leva à satisfação do interesse do credor. “ (sublinhado nosso)

Como assim, atenta “ … esta ligação entre a finalidade coercitiva e a satisfação do credor “, este último está impedido, por isso, de exigir a pena e o cumprimento (específico) ou a respetiva indemnização nos termos gerais.

Digamos, como assinala o mesmo Autor, op. cit., pág. 611, à cláusula penal em sentido estrito é atribuída somente uma função coercitiva – de estímulo ou constrangimento ao cumprimento -, não uma função indemnizatória, “ … apesar de a pena acordada, caso o devedor não cumpra, constituir uma forma de satisfazer o interesse do credor, pelo que a indemnização (nos termos gerais) não será devida “, sendo certo, ainda, que o credor também não pode cumular a pena com o cumprimento específico da prestação em falta, na medida em que o seu interesse fica, por princípio, acautelado, como convencionado, apenas com a pena assim estabelecida.

No entanto, como refere ainda o mesmo A. Pinto Monteiro, op. cit., pág. 633, importa notar que, nesta hipótese de cláusula penal em sentido estrito, não sendo a pena uma liquidação antecipada do dano, a mesma destina-se apenas a reforçar a posição do credor e, portanto, é um benefício que o mesmo poderá livremente não utilizar, optando pela via normal da indemnização nos termos gerais ou, ainda, pela execução específica, se estas outras alternativas forem possíveis e servirem melhor os seus interesses. Certo é, todavia, repete-se, que optando, por sua conta e risco, o credor pela pena convencionada enquanto cláusula penal em sentido estrito, não a pode cumular com o cumprimento específico da prestação, nem, ainda, com a indemnização nos termos gerais.

Feitas estas breves considerações, no caso dos autos, na transação em apreço consta sob a cláusula 7ª o seguinte:

“ Em caso de incumprimento do estabelecido supra, por facto imputável a qualquer uma das partes, a que incumprir terá que proceder ao pagamento à outra parte (não faltosa) da quantia de € 50. 000, 00. “

(…) a cláusula penal prevista na citada cláusula 7ª da transação consubstancia uma cláusula penal em sentido estrito, segundo a classificação acima exposta, não assumindo, pois, segundo julgamos, o caracter indemnizatório que se lhe mostra atribuído na sentença.

Na verdade, segundo cremos, através da mesma as partes pretenderam, no uso da sua liberdade contratual, através do valor particularmente significativo da pena convencionada (correspondente a metade do preço da quota social que seria transaccionada no prometido contrato) e aplicável a qualquer parte incumpridora da promessa bilateral em apreço, em termos essenciais compelir, forçar, constranger a respetiva parte contrária a honrar o seu compromisso/obrigação, qual seja a de virem (ambos) a outorgar no contrato definitivo de transmissão da quota social em causa, seja o réu/apelado a comprar a dita quota, seja o autor/apelante (e esposa) a vender a dita quota.

(…)

Nesta matéria, segundo a melhor doutrina, o escopo visado pelas partes e, portanto, o sentido da cláusula … “ só poderá determinar-se comparando o valor da soma estabelecida com os danos previsíveis: mostrando-se adequada à reparação destes, tendo em conta as particularidades do caso concreto e os interesses em jogo, ela valerá como liquidação antecipada do dano; se, ao invés, essa soma exceder o valor máximo dos danos que era razoável prever, isso indiciará uma função compulsória, pelo que se tratará de uma cláusula penal propriamente dita ou em sentido estrito. “

Ora, tendo presente, no caso dos autos, o valor fixado na cláusula penal de € 50.000,00, considerando que esse valor corresponde a metade do valor do preço previsto pela quota a transmitir (o que tem de considerar-se, à partida, como um valor elevado) e, sobretudo, que não há a mais pequena indicação do valor dos danos que previsivelmente poderiam ocorrer em razão do incumprimento da promessa para qualquer uma das partes (sendo que, em caso de não celebração da promessa, ambos se manteriam como titulares das quotas sociais que já antes detinham na sociedade em causa) ou, ainda, que esses eventuais danos tenham sido sequer objeto de ponderação e ou avaliação pelos outorgantes, somos a concluir que a cláusula em apreço deve, segundo cremos e salvo melhor opinião, ser, à luz do critério acima exposto, qualificada como uma pena estritamente compulsória-sancionatória, ao invés de uma cláusula indemnizatória.

Por conseguinte, neste pressuposto, mesmo tendo por indiscutível que a exigência de culpa do devedor é sempre um pressuposto constitutivo da aplicação de qualquer cláusula penal e, ainda, que a sua aplicação exige sempre uma situação de incumprimento lato sensu da prestação a cargo de cada uma das partes, a ideia ou sentido que nos inculca a cláusula em apreço é que, no caso dos autos, através da mesma, as partes (ambas) pretenderam apenas e só pressionar, constranger, através da ameaça de pagamento do significativo quantitativo da pena estabelecida, a respetiva parte contrária à outorga do contrato definitivo, sendo que se tal ameaça não viesse a surtir efeito, qualquer parte que se mantivesse fiel ao cumprimento poderia exigir, enquanto meio alternativo de satisfação do seu interesse no cumprimento tempestivo da promessa, o quantitativo da pena, mas não como indemnização ou como pré-definição ne varietur dessa indemnização futura, que não terá estado, segundo tudo o indica, presente na determinação do seu montante.

Neste sentido, como refere ainda A. Pinto Monteiro, op. cit., pág. 613, a cláusula penal em sentido estrito configura uma obrigação com faculdade alternativa do credor, pois que a prestação devida é só uma, sendo esta a única que o credor pode exigir - no caso dos autos, a celebração do prometido contrato de alienação/cedência de quota social no prazo estabelecido; todavia, ocorrendo o seu não cumprimento tempestivo imputável a alguma das partes, a parte fiel/credor estará legitimado, mercê do acordo prévio, a reclamar, uma vez verificado o dito incumprimento, em vez daquela prestação de facto (emissão da declaração de vontade correspondente ao negócio prometido), uma outra prestação, qual seja, a pena fixada consensualmente.

Ora, sendo assim, como julgamos, qualificada a cláusula penal em causa nos autos como uma cláusula penal em sentido estrito, isso significa nas palavras de Pinto Monteiro, op. cit., pág. 689, que “ … como a pena, nesta hipótese, não representa a indemnização, o disposto no art. 808º já não constitui obstáculo a que o credor a possa reclamar logo que o devedor se constitui em mora. A partir deste momento, o credor está legitimado a exigir, em alternativa à prestação inicial (celebração do prometido contrato), a prestação sancionatória previamente acordada, sem ter que provar a perda do interesse ao cumprimento ou que recorrer a uma interpelação admonitória com fixação de um prazo suplementar. “

Destarte, sendo indiscutido que o réu/apelado não cumpriu no prazo previsto consensualmente de 75 dias a partir da data da transação (17.03.2021) a sua obrigação de emitir a declaração de aquisição da quota social prometida, marcando, avisando o autor e a sua esposa da data, hora e local para a celebração da escritura e nela outorgando como adquirente e pagando o respetivo preço acordado, tal só pode significar, em nosso julgamento, que nesta parte deve proceder a pretensão do autor/apelante quanto ao pagamento pelo réu/apelado da pena convencionada de € 50.000,00. (…)”

A propósito de tudo isto, proficientemente expendido no Acórdão recorrido, nada – nem uma palavra sequer – é oposto na revista agora apresentada pelo R., o que impõe que se diga e saliente, como ponto de partida da apreciação do objeto da presente revista, que o essencial (o ponto nevrálgico de toda o litígio, como supra referimos) está já estabilizado nos autos, ou seja, está estabilizado quer a qualificação da cláusula penal como sendo uma cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita quer o funcionamento de tal cláusula penal a partir do momento em que o devedor (o aqui R./recorrente) se constituiu, como foi o caso, em mora (ou seja, que, para tal cláusula penal funcionar, não é exigível o incumprimento definitivo – a prévia conversão da mora em incumprimento definitivo, ex vi art. 808.º/1 do C. Civil).

Como foi entendido no Acórdão recorrido, a cláusula penal em causa destinou-se a compelir o devedor (no caso, o aqui R./recorrente) a cumprir, ao mesmo tempo que substitui a indemnização – o que a distingue dos casos em que a cláusula penal é uma pura sanção compulsória – sem, com isso, se sufragar a tese de que a finalidade compulsória se exerce através da indemnização, ou de que a quantia devida ao credor, em caso de incumprimento, o é a título de indemnização ou de indemnização sancionatória; ou seja, como foi entendido/decidido no Acórdão recorrido, a cláusula penal em causa substitui a indemnização, não lhe podendo acrescer nem uma qualquer indemnização nem a execução específica da prestação[1] (a cláusula penal em causa visa compelir o devedor ao cumprimento, ao mesmo tempo que leva à satisfação do interesse do credor), razão pela qual, não representando a cláusula penal uma indemnização, pode a mesma ser reclamada quando o devedor estiver, como é o caso do aqui R., constituído em mora.

Sendo neste ponto do percurso e raciocínio que se “encaixa” a divergência recursiva do R/recorrente, na medida em que vem sustentar, em síntese, que ilidiu a presunção de culpa do art. 799.º do C. Civil, ou seja, vem sustentar que resulta dos factos que não teve culpa na falta de cumprimento (na mora em que está constituído) do contrato-promessa de cessão de quota.

Invoca para tal o R/recorrente que está provado (facto 13) que “não procedeu à marcação da escritura pública por não ter logrado obter financiamento bancário para obtenção da quantia de 100.000€”; e que (facto 14) “a celebração da transação ocorreu no pressuposto de que o réu teria de obter financiamento bancário para poder suportar a quantia mencionada”, “o que de acordo com as regras da experiência, da normalidade do acontecer, impõe que se considere ilidida a sua culpa”.

Como é evidente, não tem razão.

O R/recorrente não terá tido culpa, admite-se, na não obtenção de financiamento bancário, porém, tal não equivale à ilisão da sua culpa (presumida pelo art. 799.º do C. Civil) na falta ao cumprimento do contrato-promessa de cessão de quota.

O que se invoca, não perdendo de vista que o facto 14 não tem sequer a redação que o R/recorrente lhe atribui – o facto 14 foi alterado no Acórdão recorrido e em vez de estar no mesmo provado que “a celebração da transação ocorreu no pressuposto de que o réu teria de obter financiamento bancário para poder suportar a quantia mencionada” está “apenas” provado que “o R. outorgou na transação na convicção de que conseguiria obter, no prazo ali estabelecido, financiamento bancário para poder suportar o pagamento do preço acordado” – convoca, aliás, um outro tipo de construção e enquadramento jurídicos.

O que o R./recorrente invoca, de precisar de obter financiamento bancário para cumprir o contrato-promessa de cessão de quota e de não o haver obtido, solicita, isso sim, a figura da pressuposição, ou seja, de haver celebrado o contrato-promessa de cessão de quota na convicção/pressuposto, que se veio a revelar errado, de que iria obter o financiamento bancário indispensável ao pagamento do preço acordado.

Mas, como ensinava Manuel de Andrade (Teoria Geral do Direito Civil, pág. 406/7), a pressuposição deficiente só é relevante quando for conhecida ou cognoscível para a outra parte no momento da conclusão do negócio e desde que esta, se lhe tivesse sido proposto o condicionamento do negócio à verificação da circunstância pressuposta, teria aceitado tal pretensão ou a deveria ter aceite segundo a boa fé.

E não consta dos factos (designadamente, do clausulado da transação) que o A. soubesse que o R. estava a celebrar o contrato-promessa de cessão de quota na convicção/pressuposto de que iria obter o financiamento bancário indispensável ao pagamento do preço acordado, ou seja, ainda que o R. haja representado erroneamente uma circunstância essencial para si (não ter dificuldade em obter financiamento bancário), o certo é que não está provado que tal circunstância haja sido representada por ambas as partes (que tal circunstância integrasse a chama base negocial subjetiva).

Quando uma parte está a celebrar um negócio no pressuposto da verificação no futuro de uma dada circunstância (no caso, a obtenção dum financiamento bancário), determinante, para si, para a celebração do negócio (pois, de outro modo, não celebraria o negócio), tanto pode ter como certa tal circunstância e contratar sem qualquer reserva, como pode admitir a possibilidade de falhar tal circunstância e inserir (com o acordo da contraparte, já se vê) no negócio uma cláusula correspondente, por ex., uma cláusula condicional.

E na primeira hipótese, quando se contrata sem a inclusão de qualquer cláusula/reserva, tanto pode acontecer que a contraparte saiba da existência da circunstância pressuposta (e que não se veio a verificar) como pode acontecer que a contraparte ignore de todo a circunstância erroneamente representada e/ou que a mesma fosse essencial para a decisão da outra parte se vincular contratualmente.

Em face dos factos provados, é nesta última a situação que se encontra o aqui A.: não resulta dos factos que o A. soubesse que o R. outorgou na transação na convicção de que conseguiria obter, no prazo ali estabelecido, financiamento bancário para poder suportar o pagamento do preço acordado (está provado que o R. outorgou em tal convicção, mas não que o A. o soubesse).

E ainda que o A. o soubesse, não estaríamos perante a invocada ausência de culpa do R. na falta de cumprimento do contrato-promessa de cessão de quota, mas sim perante a alteração duma circunstância que fundou a decisão de contratar (e que foi considerada como vindo a verificar-se no futuro), podendo, caso se verificassem os pressupostos de aplicação do art. 437.º do C. Civil – a) alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; b) afetar tal alteração anormal gravemente a manutenção do conteúdo contratual os princípios da boa fé e não estando a alteração abrangida pela álea própria do contrato – ocorrer a resolução ou modificação do negócio (ou seja, para ocorrer a resolução ou modificação do negócio, não bastaria sequer que a circunstância pressuposta pelo R. fosse como tal conhecida do A.).

Seja como for, o que aqui releva é que não está sequer provado que a circunstância erroneamente pressuposta pelo R. fosse conhecida ou cognoscível pelo A. e muito menos que, caso tivesse sido proposto ao A. o condicionamento do negócio à verificação da circunstância pressuposta, este teria aceitado tal pretensão ou a deveria ter aceite segundo a boa fé.

Enfim, a culpa do R. na falta ao cumprimento do contrato-promessa de cessão de quota reside e está em ter celebrado o negócio no pressuposto da verificação no futuro de uma dada circunstância (no caso, a obtenção de financiamento bancário) e não ter previsto a possibilidade de falhar tal circunstância, aceitando contratar/vincular-se sem qualquer reserva, em vez de inserir (com o acordo da contraparte[2]) no negócio uma cláusula que condicionava os efeitos do mesmo à obtenção de financiamento bancário.

Como se refere no Acórdão recorrido, “no mínimo, no caso dos autos, a culpa há-de ser entendida como imprevidência, precipitação ou errónea avaliação das condições económicas de que ele próprio dispunha para suportar o pagamento do preço, preço este que aceitou ter que efetuar para obter em seu favor a transmissão da quota social prometida vender e comprar. (…) não basta ao réu para excluir a sua culpa e afastar a dita presunção, demonstrar que fez, após a celebração da transação em apreço, diligências junto de entidades bancárias para obter o financiamento que o mesmo sabia ser indispensável para a concretização do negócio que aceitou celebrar. Ao invés, em tal circunstancialismo, sempre incumbia ao réu avaliar de forma séria e objetiva das suas condições para honrar a sua palavra na transação, não podendo o mesmo ignorar, enquanto cidadão medianamente cuidadoso e experiente, que as instituições financeiras não concedem todos os créditos/financiamentos que lhe são solicitados e que essa concessão depende do preenchimento de condições que só àquele que procura financiamento cumpre acautelar ou cumprir”.

É quanto basta para julgar a revista improcedente.

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IV - Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o Acórdão recorrido.

Custas, neste STJ, pelo R..

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Lisboa, 03/05/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ana Resende

Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC.

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Isto é, a qualificação da cláusula em causa impedia que o A. pedisse ao mesmo tempo, como fez, a execução específica do contrato-promessa constante do conteúdo da transação e o pagamento da cláusula penal de € 50.000,00 prevista para o incumprimento de tal contrato-promessa.
[2] Que não seria seguro que obtivesse, porém, tal seria um aspeto a “discutir” no âmbito da transação celebrada.