Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
75/08.4TBFAF.1.G3.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
EXPROPRIAÇÃO
FACTO ILÍCITO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA ATUALIDADE
DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - Quando a declaração de utilidade pública que está na base e é fundamento de uma expropriação não exista por ter sido declarada ilegal e haja condenação do apropriante a pagar indemnização pelo prejuízo sofrido com a violação do direito de propriedade esta indemnização calcula-se com base nos arts. 483 e ss. e 566 e ss. do CCivil e não com as normas do Código de Expropriações.

II - O momento a atender no cálculo da indemnização é ao mais recente que possa ser atendido pelo tribunal (art. 566 nº2 do CCivil) e não aquele em que o terreno foi ocupado uma vez que o facto consumado que constitui a ocupação, mesmo que esta se destine à construção de uma obra pública, afasta a aplicação do art. 23 nº1 do CE no qual a referência é a data da publicação da declaração de utilidade pública que no caso não existe.

III - Numa apropriação ilegal para construção de uma obra pública que tenha sido contruída nos terrenos apropriados o cálculo da indemnização deve valorar o valor da obra construído mesmo que o solo não seja apto á construção uma vez que nos termos do corpo do art. 25 nº1 do CE só no âmbito de um processo de expropriação é que se impõe atender à classificação do solo.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

Na ação de processo sumário com o nº 75/08.4TBFAF foi proferida sentença, que transitou em julgado, julgando improcedente o reconhecimento do direito de propriedade do autor AA e o direito à restituição das parcelas em que foi implantada a autoestrada A7 e condenando a ré EP - Estradas de Portugal, S.A. a pagar ao autor o valor que vier a ser liquidado em incidente de liquidação, pelo prejuízo sofrido com a violação do direito de propriedade relativamente aos prédios identificados nos autos mais julgando improcedente a reconvenção deduzida.

Os autores AA e esposa, BB, deduziram, então, incidente de liquidação de sentença, liquidando os valores do seguinte modo:

a) 15% sobre o valor do custo global médio da construção da autoestrada no troço Guimarães - Fafe, sublanço Calvos - Fafe;

b) No pagamento da quantia de 61.500,00 € a título de despesas forenses, acrescido das custas processuais suportadas pelos aqui Autores em todos os processos intentados por este motivo;

c) No pagamento da quantia de 1.000,00 € de danos morais para cada um dos autores;

d) No pagamento do montante que se vier a apurar em termos de desvalorização da parcela sobrante.

Alegaram que a ré se apoderou ilegalmente de quatro parcelas de terreno daqueles, as quais foram integradas na autoestrada e daí estar obrigada a indemnizá- los pelos danos decorrentes da violação do seu direito de propriedade. Os danos a indemnizar abrangem, em sede de danos patrimoniais, o pagamento da área de que se serviu ilegalmente a ré, a indemnização pelos efeitos negativos nas partes sobrantes daquelas parcelas de terreno, os encargos com as demandas que os autores foram obrigados a intentar, a indemnização pelos lucros cessantes e a compensação pelos danos morais sofridos com o desgaste que esta situação lhes tem causado. Quanto ao valor das parcelas de terreno, sustentam que a ocupação definitiva ocorreu em 06-05-2003, data em que foi lavrado o auto de posse administrativa por parte da ré, e o valor dessas parcelas é proporcional àquilo que nelas se pode construir, pelo que tendo nelas sido construída uma autoestrada, o valor dessas parcelas de terreno corresponde a 15% sobre o custo global da autoestrada nelas implantadas.

A Infraestruturas de Portugal, S.A., deduziu oposição à liquidação e os autores vieram concretizar os pedidos que formulam nas alíneas a) e d), do petitório inicial - € 190.605,00 € relativamente à alínea a) e 54.832,00 €, relativamente à alínea d).

Foi proferido despacho saneador que julgou a autora BB parte ilegítima na ação, prosseguindo a ação apenas entre o autor AA e a ré Infraestruturas de Portugal, SA. Foi realizada perícia singular e outra colegial.

Realizou-se julgamento e foi proferida sentença, liquidando a indemnização devida ao autor nos seguintes valores: - 141.069,72 € a título de danos patrimoniais; - 1.000,00 € a título de danos não patrimoniais; com custas na proporção do decaimento.

Inconformadas, ambas as partes interpuseram recurso de apelação que julgou improcedente o recurso deduzido pelo requerente e parcialmente procedente a apelação apresentada pela requerida, revogando a sentença recorrida na parte em que atribuiu ao requerente uma indemnização no valor de 1.000,00 € a título de danos não patrimoniais, da qual se absolve a requerida, confirmando no mais a sentença.

A requerida interpôs recurso de revista excecional, que foi admitida, concluindo que:

 “ Mostra-se necessário aquilatar em que medida a indemnização atribuída de acordo com os critérios seguidos no acórdão em crise (a qual renegou os princípios basilares que no Código das Expropriações determinam a fixação de uma indemnização, para atender à tese pugnada pelo autor de que as parcelas devem ser avaliadas não de acordo com o seu valor de mercado na altura da ocupação, mas sim de acordo com o valor do empreendimento rodoviário que nelas foi construído) se afastam de uma justa indemnização, correspondente ao valor de mercado no Código das Expropriações, e respeitam os princípios constitucionais da igualdade, justiça e proporcionalidade.

X. Juntamos dois acórdãos da Relação de Guimarães que decidiram de modo distinto àquele proferido nos presentes autos.

X. Enquanto nos presentes autos, foi decidido que as parcelas ocupadas e sobre as quais incidiu uma DUP que foi anulada, devem ser avaliadas de acordo com o empreendimento rodoviário que nelas foi construído, nestes dois acórdãos que agora se juntam, o entendimento adotado foi o de que a obra rodoviária não era uma circunstância de fato inerente à parcela expropriada e, por isso não devia ser atendida no cálculo da indemnização.

XI. No caso dos autos, o autor logrou anular a DUP da expropriação, por falta de desafetação prévia da REN, pelo que se extinguiu o processo judicial de expropriação litigiosa em curso.

XII. Foi considerado existir uma impossibilidade de devolução das parcelas expropriadas, sendo necessário indemnizar o lesado pelos danos que sofreu com a apropriação.

XIII. Infelizmente não logramos conseguir mostrar aos venerandos desembargadores, a grave injustiça e violação grosseira do princípio da igualdade que advém de se avaliar o bem ocupado, não de acordo com as suas intrínsecas características e condicionantes, mas de acordo com a autoestrada que nele foi construída.

XIV. Considerando não ser possível a reconstituição natural, por força do denominado princípio da intangibilidade da obra pública, deve ser indemnizado o prejuízo sofrido com a violação do direito de propriedade relativamente aos prédios ocupados.

XV. Corretamente invoca o acórdão em crise, a teoria da diferença, a qual prescreve que em sede de fixação de indemnização correspondente a  danos patrimoniais, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.

XVI. Só que acaba por adotar um critério que não traduz a aplicação da teoria da diferença já que é considerada a obra rodoviária no cálculo do valor do prédio ocupado…

XVII. O raciocínio segue uma direção injusta, quando admite, tal como a sentença o tinha feito, que a o valor a indemnização a atribuir nos presente autos deverá ser calculado tendo em conta a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e não a data da ocupação das parcelas ou da inexistente publicação do ato expropriativo.

XVIII. Ora, tal pressuposto vai contrariar frontalmente a teoria da diferença antes invocada, a qual apenas seria salvaguardada se se atendesse à data da produção dos danos, mormente, a data da ocupação.

XIX. Só atendendo a essa data seria possível reconstituir com justiça o património do lesado, já que seriam atendidas as características materiais e as condicionantes jurídicas que sobre o bem impendiam e por isso se repercutiam no ser valor real e corrente, ou seja, no seu valor de mercado.

XX. Os critérios previstos no Código das Expropriações são uma expressão fidedigna da teoria da diferença atrás citada, já que procuram determinar o valor real e corrente do bem, ou seja, o seu valor de mercado.

XXI. E se esse valor for alcançado, será reposta a situação patrimonial do lesado, já que receberá o valor que receberia caso colocasse à venda o seu bem, quando dele foi desafetado.

XXII. A construção de uma autoestrada não é uma utilização económica normal, nem sequer possível, para um particular que possua um prédio.

XXIII. Pelo que atender à obra implantada para a determinação da indemnização a pagar, viola o princípio constitucional da Igualdade, não só na sua vertente interna (já que a indemnização alcançada é norteada por critérios que atribuem uma indemnização bem superior da que receberam os particulares que foram expropriados), como também na sua vertente externa (tal critério conduz a que seja atribuído um valor superior ao real e corrente do bem, beneficiando aquele particular face aos que não foram sujeitos à construção da mesma obra rodoviária e, por isso mesmo, não beneficiaram daquela mais-valia artificial.

XXIV. Mas também viola o Princípio constitucional da justa indemnização, nos termos em que deve corresponder ao valor real e corrente do bem, vulgo valor de mercado, pois, são ignoradas as condicionantes legais e regulamentares à construção.

XXV. Pelo que a decisão vertida no acórdão em crise é inconstitucional pela violação dos artigos 13.º e 62º da Constituição da República Portuguesa.

XXVI. Ocorre também uma manifesta deficiência de cálculo pois é “enxertado” um valor de construção da autoestrada em fórmulas de cálculo que estão previstas serem aplicadas em referência a um aproveitamento construtivo normal, ao alcance de qualquer particular e, por isso mesmo, determinador do valor de mercado do bem.

XXVII. No caso sub judice, não havendo DUP, colocou-se a questão de saber qual a data que deveria ser atendida para o cálculo do valor das parcelas de terreno.

XXVIII. Tendo a Relação infelizmente subscrito o entendimento de que o valor da indemnização deverá ser calculado tendo em conta a data mais recente a não a data da ocupação das parcelas.

XXIX. O valor alcançado por este critério é superior ao “valor real e corrente do bem”, não sendo a construção de uma autoestrada nem um aproveitamento económico normal, nem sequer o possível para qualquer particular.

XXX. Tal critério viola os Princípios constitucionais da Justa indemnização (previsto no artigo 62º), que prescreve que a expropriação por utilidade pública só pode ser efetuada mediante o pagamento de justa indemnização”, bem como o princípio constitucional da igualdade (previsto no artigo 13º), já que é adotado um critério que permite que o autor obtenha uma indemnização bem superior ao valor de mercado do seu bem.

XXXI. É um facto notório que a construção de uma autoestrada não é o aproveitamento económico normal de um solo agroflorestal que integra a REN – Reserva Ecológica Nacional.

XXXII. Além de a construção de uma autoestrada se encontrar fora do alcance de qualquer proprietário particular.

XXXIII. E o valor real e corrente do solo é naturalmente aquele que advinha do seu aproveitamento económico normal, nos termos de uma utilização económica normal, permitida ao seu proprietário pelas leis e regulamentos em vigor.

XXXIV. O artigo 23/2/a) do C.E. expressamente exclui do valor dos solos a mais-valia que advenha da obra pública que nele venha a ser implantada, expressando uma tentativa de excluir da avaliação do bem, fatores que possam afastar a justa indemnização do valor de mercado do bem.

XXXV. De acordo com o próprio perito do tribunal que elaborou a segunda avaliação, o critério de atender à autoestrada construída não é o mais justo, não correspondendo ao valor real e corrente do bem.

XXXVI. Atentemos ainda no facto de que após a implantação, o bem saiu do comércio jurídico e por isso mesmo, deixa de ter valor de mercado.

XXXVII. A lei das expropriações manda atender ao potencial efetivo e possível, o qual tem de ser aferido nos termos de “uma utilização normal” e a construção de uma via rodoviária, não é o aproveitamento normal de nenhum terreno.

XXXVIII. Mais do que isso, o Código manda retroagir ao momento ablativo da propriedade, devendo se ter em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data.

XXXIX. Obviamente que a construção da obra rodoviária não alterou o valor de mercado que o bem teria antes da sua implantação.

XL. Pretender que o bem do autor seja avaliado de acordo com a estrada que  ele foi implantada, e que tal implica uma mais-valia, além de violar as normas legais citadas, viola o Princípio da Igualdade, já que se estaria a atribuir a este particular um valor indemnizatório superior aos dos restantes que viram os seus imóveis ser avaliados de acordo com o seu valor de mercado.

XLI. Mas, tal tese roça o absurdo, pois o valor de mercado do bem, após integrar o domínio público, torna-se nulo, já que tal bem torna-se inegociável e inapropriável.

XLII. Em suma, se se atender à tese vertida no acórdão em crise, se atendermos à obra rodoviária nele implantada, o valor a que tem direito é zero, já que o seu bem agora vale zero.

XLIII. Não podem os proprietários de bens que foram afetados pela construção de uma obra rodoviária receber uma indemnização calculada segundo critérios diferentes dos que foram aplicados aos restantes, ou seria violado o princípio da igualdade.

XLIV. A potencialidade possível do terreno não é a que deriva da obra, mas sim a que o terreno possuía antes da ocupação.

XLV. Que mais não seja, tem sempre de aplicar-se por analogia as normas constantes do Código das Expropriações, devendo os peritos abstrair-se da obra implantada e classificar e avaliar o terreno de acordo com a sua potencialidade efetiva ou possível, atendendo às limitações legais de então, previstas no PDM, bem como às naturais, resultantes das características, morfologia, dimensão, configuração, etc do terreno.

XLVI. Sendo certo que o valor de mercado dos bens não é imutável e, por isso, mesmo que a sua potencialidade se mantenha ao longo do tempo, é essencial fixar a data a que deve se reportar a avaliação.

XLVII. Julgamos que deve ser feita uma aplicação analógica do artigo 23.º do C.E. e fixar a data da avaliação na data da ablação da propriedade.

XLVIII. Segundo o Código das Expropriações, o bem é avaliado à data em que ficou limitado o direito de propriedade que sobre ele incide.

XLIX. No caso sub judice, por maioria de razão, o bem deve ser avaliado conforme a data em que foi ocupado para a construção da obra rodoviária, já que, não havendo DUP, foi nessa data que o proprietário sofreu restrições ao exercício do seu direito de propriedade.

L. O facto de a DUP original ter sido anulada por falta da desafetação prévia dos solos da RAN e REN, o que levou e ser necessário a publicação de nova DUP, posterior ao início dos trabalhos rodoviários, não altera as características e potencialidade que o bem detinha antes da ocupação, pelo que entendemos que a data relevante é a da ocupação.

LI. De acordo com o Plano Municipal de Ordenamento do Território (PMOT) em vigor à data da ocupação - Plano Diretor Municipal de Fafe – que regulamenta o uso, ocupação e transformação do solo, as parcelas ocupadas integram-se em - Área de Reserva Ecológica Nacional (REN), tal como é descrito nas respetivas VAPRM).

LII. Não faz sentido que as parcelas objeto de expropriação/ocupação sejam avaliadas em função do que lá foi construído, como seja o viaduto da autoestrada, taludes, etc.

LIII. Este critério é uma completa aberração, não tendo qualquer semelhança com os métodos de avaliação imobiliária de bens imóveis, que são utilizados habitualmente pelos peritos.

LIV. A avaliação deve atender às reais caraterísticas das parcelas e aproveitamento económico possível por parte do particular.

LV. O facto de a DUP ter sido anulada pelo TAF ..., pela falta de desafetação dos terrenos da RAN e REN, à data, não significa que os mesmos, após a sua desafetação, adquiram capacidade diferente da que detinham, na mesma data.

LVI. O objeto da expropriação é a construção de uma obra rodoviária de interesse público de cariz regional e nacional.

LVII. Por tal motivo foi obtida a desafetação dos terrenos da RAN e da REN, dado o seu interesse publico.

LVIII. A doutrina e jurisprudência ao longo de muitos anos discutiram a questão de saber qual o critério que deve ser usado para calcular o justo valor pela desapropriação de um bem e chegaram à conclusão de que deve ser o critério do valor de mercado, ou seja, deve ser pago o valor real e corrente do bem.

LIX. Sendo esse o critério consagrado no Código das Expropriações no seu artigo 23.º/1.

LX. O cálculo do valor da indemnização deve atender à data da produção do dano, ou seja, a data da ocupação do terreno e considerar as circunstâncias de fato e condicionantes legais e regulamentares que sobre ele incidam, abstraindo-se da obra rodoviária construída, a qual não influi no seu valor de mercado nem no alcance do dano patrimonial sofrido.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve a apresente revista ser julgada procedente, e em consequência, ser revogado o acórdão em crise, com as respetivas consequências legais, sendo uniformizada a jurisprudência no sentido exposto. Assim decidindo, farão V. Exas a habitual JUSTIÇA.”

O requerente contra alegou defendendo os critérios e o valor da indemnização fixada na decisão recorrida e conclui pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

… …

Fundamentação 

Está provada a seguinte matéria de facto:

1 - No processo n.º 75/08.4TBFAF foram julgados provados os seguintes factos:

a. Encontra-se registado a favor do A. AA a aquisição dos seguintes prédios:

i. prédio denominado C... e Leiras de ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo 130 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º 696/20071002.

ii. Prédio rústico denominado Leira ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo 131 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º 697/20071002.

b. Por despacho do Sr. Secretário de Estado das Obras Públicas n.º 17.818-G/2002 de 23/7/2002, publicado no DR, II série, de 9/8/2002, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação dos terrenos destinados à construção da obra designada “Concessão Norte (AENOR) A7 – IC5 – Lanço Guimarães – Fafe – Sublanço Calvos – Fafe.

c. Entre essas parcelas abrangidas pela DUP conta-se a n.º 152, 153, 155 e 156 do mapa anexo, da pertença do A.

d. Por Acórdão de 5/2/2004, proferido no recurso n.º 1918/02-11, o Supremo Tribunal Administrativo declarou nulo o ato identificado em 2. (aqui identificado como ponto b.) – cf. fls. 21 e ss. cujo teor se dá por reproduzido.

e. Foi proferido o despacho n.º 16836/2008, do Secretário de Estão Adjunto, das Obras Públicas e das Comunicações, datado de 28/05/2008 e publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 110, de 09/06/2008, que, considerando a necessidade de retificar os elementos identificativos das parcelas de terreno n.º 152, 153, 155 e 156, declarou “a retificação da declaração de utilidade pública referida, de acordo com as correções agora introduzidas, conforme mapa de expropriações, cuja publicação se promove em anexo, mantendo-se todos os atos até ao momento praticados “ – cf fls. 294, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

f. A R. Estradas de Portugal. S.A. tomou posse administrativa das parcelas id, em 3. (aqui identificadas no ponto c) no dia seis de maio de 2003.

g. As parcelas foram incorporadas na autoestrada A 7, a qual se encontra concluída.

2 - Foi proferida decisão, transitada em julgado que, além do mais, julgou improcedente o reconhecimento do direito de propriedade do A. AA e o direito à restituição das parcelas em que foi implantada a autoestrada, mas condenou a Ré EP Estradas de Portugal, S.A. a pagar ao A., em incidente de liquidação, pelo prejuízo sofrido da violação do direito de propriedade dos prédios id. nos autos.

3 - Os prédios 130 e 131 foram ocupadas parcialmente com a construção da autoestrada, tendo sido destacadas as parcelas 152, 153, 155 e 156 que ocupam uma área total de 6387m2.

4 - O prédio rústico 130 tinha uma área de 6900m2, tendo ficado com uma área sobrante de 935m2 (tendo sido ocupado em 86,45% da sua área).

5 - O prédio rústico 131 tinha uma área de 11000m2, tendo sido ocupado em 0,15% da sua área.

6 - As parcelas e os prédios de que se destacam têm serviço de caminho público pavimentado a betuminoso e rede de distribuição de energia elétrica de baixa tensão.

7 - A rede de telefone dista cerca de 100m das parcelas.

8 - Os prédios estavam incluídos na área de reserva agrícola nacional na data de 06/05/2003.

9 - A parcela 156 localiza-se junto a uma linha de água “Rio ...”.

10 - O custo integral do Lanço Guimarães-Fafe sublanço Calvos-Fafe foi de € 864.309.000,00 para a totalidade da concessão numa extensão de 179km.

11 - O custo por m2 da construção é de 172,45 euros por m2.

12 - O valor médio da portagem cobrada por m2 é de € 10,26.

13 - O valor do solo para outros fins é de € 6,00 o m2.

14 - O valor do solo para construção é de 21,56m2

15 - O autor sentiu-se incomodado com a ocupação das suas parcelas de terreno.

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver na presente Revista, delimitado pela recorrente importa em saber se à liquidação da indemnização determinada se aplicam as regras do Código de Expropriações ou não.

… …

Observamos nos autos que a  requerida Infraestruturas de Portugal, S.A. na oposição à liquidação sustentou que se encontra a correr termos sob o nº 242/14...., Secção Cível, J..., da Instância Local ..., um processo de expropriação, para contabilização dos prejuízos causados aos autores pela expropriação e que, para além desta ação, encontra-se a correr termos uma outra no proc. nº 252/08...., do TAF ..., onde se discute o prejuízo causado pela ocupação das parcelas de terreno antes da emanação de uma DUP válida e legítima, desde a data da efetiva ocupação das parcelas de terreno até à entrada em vigor da DUP. Porém, tendo sido proferido nos autos despacho que decretou a suspensão da instância até à decisão a proferir no processo n.º 242/14...., essa decisão foi revogada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães que determinou o prosseguimento da liquidação.

Assim, na necessária compreensão do objeto da presente liquidação não há que distinguir entre o que seria indemnizado se as parcelas discutidas tivessem sido expropriadas através de um procedimento administrativo válido e regular (ou sequer saber se o vieram a ser posteriormente, ou se existe algum processo em que se discuta o valor da indemnização a atribuir por alguma eventual expropriação). O que cumpre realizar nestes autos é a fixação do valor indemnizatório correspondente ao autor por ter sido subtraído ilegalmente dos prédios identificados e do modo e na extensão em que o foi. Neste âmbito é imperioso ter presente que na ação que deu causa a esta liquidação, sendo os pedidos formulados pelo autor os de reconhecimento do direito de propriedade dessas parcelas; a sua restituição e o pagamento de indemnização, apenas foi julgado procedente o de indemnização a liquidar, referente ao prejuízo sofrido com a violação do direito de propriedade relativamente aos prédios identificados. Esta enunciação da procedência da ação faz perceber e ter presente para memória futura que não se decidiu que o autor tivesse direito ao reconhecimento do direito de propriedade e à restituição dos bens apropriados porque a circunstância de tais bens terem sido afetados à construção de uma obra pública (a autoestrada) é causa legítima para não serem devolvidos ao autor nem reconhecido o direito de propriedade deste sobre aquelas parcelas. Trata-se de uma construção normativa que com interesse para a decisão a proferir na presente revista adverte para que se tenha, aqui, como âmbito da indemnização a liquidar o prejuízo sofrido com a violação do direito de propriedade relativamente aos prédios identificados, sendo esse prejuízo - nos termos deixados inscritos no dispositivo da ação e não delimitados temporalmente até qualquer data – isto é,  tudo o que reporta a ter sido o autor privado da sua propriedade desde o momento em que o foi até ao mais recente que possa tomar-se em consideração.

Quanto ao critério da indemnização a controvérsia reside em primeiro lugar na questão de saber qual o regime jurídico aplicável ao cálculo da indemnização a atribuir ao requerente, enquanto proprietário das parcelas ocupadas pela requerida perante a ausência de um processo expropriativo válido, mais concretamente, se devem ser observadas as regras do Código das Expropriações ou as regras gerais da indemnização do CCivil.

Como se escreveu na decisão de um caso em que ocorreu uma ocupação de parcelas de prédios rústicos ao abrigo de uma declaração de utilidade pública expropriativa, cuja irregularidade impediu a adjudicação do direito de propriedade à entidade expropriante, a questão verdadeiramente difícil de resolver seria a de dar resposta a uma eventual pretensão dos AA. centrada num pedido de reivindicação do direito de propriedade sobre as parcelas efetivamente ocupadas pelo R. e aplicadas para a construção de uma via pública, no confronto com o princípio da intangibilidade da obra pública. Seria nesta sede que convergiriam as principais dúvidas suscitadas na jurisprudência e na doutrina, divergindo a resposta entre a prevalência daquele direito ou a sua cedência face ao chamado princípio da intangibilidade da obra pública através do qual a nulidade da declaração de utilidade pública de um prédio, produzindo efeitos retroativos que se projetam em todo o processo de expropriação, sem exclusão sequer do despacho de adjudicação do direito de propriedade, não invalida os seus efeitos quando seja convocado o princípio geral da intangibilidade da obra pública – vd. acs. STJ de 7-11-2019 no proc. 2239/10.1TBOAZ.P1.S2 e o de 14-4-15 no proc. 100/10 in dgsi.pt e quanto ao desenvolvimento do princípio enunciado o ac. do STJ 5-2-15, 2125/10, indgsi.pt.

Descartada porém no caso presente a dificuldade de interpretação do princípio geral da intangibilidade da obra pública, porque apenas se disputa o critério e o valor da indemnização atribuir, deve sublinhar-se que nesse mesmo acórdão citado (o de 7-11-2019) se deixa indicação de que “em situações em que a entidade expropriante agiu de boa-fé ou com culpa leve, pode justificar-se que, em lugar da restituição do prédio ocupado, se atribua ao interessado uma indemnização correspondente ao seu valor expropriativo. A aplicação de tal princípio justificar-se-ia num caso em que, após ser judicialmente reconhecida a nulidade de uma declaração de utilidade pública de uma parcela predial para implantação de uma estação de serviço numa autoestrada, por motivo não imputável à expropriante, foi emitida nova declaração de utilidade pública e a parcela de terreno efetivamente destinada à construção daquela infraestrutura rodoviária”. Neste acórdão e para essa situação, faz-se ainda apelo à lição de Alves Correia segundo a qual, para casos de anulação da DUP, depois de ter sido realizada a obra a que a mesma se destinava, em lugar da destruição da obra e entrega do prédio ao particular, justifica-se “a atribuição de uma indemnização, com o que se chancelerá, na prática, uma apropriação irregular ou uma expropriação indireta” – In As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública p. 176 – acrescentando ainda em explicação que “o expropriado não conseguirá readquirir os seus bens, não obstante terem sido ilegalmente expropriados”, restando a concessão de uma indemnização correspondente à expropriação legal e eventualmente, para situações que o caso revele “uma indemnização complementar com base na prática do ato ilegal culposo da administração.

A invocação ou aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública apenas é viável em casos em que a apropriação de prédios por uma entidade pública, correspondente a expropriações de facto, é feita num quadro de ausência de culpa ou de culpa leve, seguida da realização de obras ou de investimentos na parcela do prédio ocupado.

Nessa eventualidade, em lugar da condenação na restituição do bem, admite-se que a entidade ocupante possa ser condenada no pagamento de uma indemnização ao proprietário” (pp. 195 e 201 e ss.).

Situando-se a presente liquidação no âmbito desta indemnização devida ao proprietário e que tem origem no facto de a ocupação e apropriação das parcelas por parte da ré ter ocorrido à revelia de um título que a justificasse, uma vez que o despacho Secretário de Estado das Obras Públicas que em 9/8/2002 declarou a utilidade pública foi declarado nulo por acórdão de 5/2/2004 do Supremo Tribunal Administrativo, entendemos, com o acórdão citado, que a situação de facto consumado em que se traduziu a ocupação das parcelas e a construção de uma via de circulação automóvel por parte da ré, não admite que se apliquem as regras do Cod. de Expropriações que regulam a determinação da indemnização expropriativa. Como aí se escreve  com verdadeiro critério axiomático-normativo “as regras previstas em tal diploma para o cálculo da indemnização devida por expropriação por utilidade pública têm subjacente a existência de um procedimento administrativo regular no qual os expropriados sejam confrontados com uma correta identificação das parcelas e no âmbito do qual possam defender os seus interesses que passam, além do mais, pela prolação de uma decisão arbitral, pela remessa do processo a Tribunal Judicial para efeitos de adjudicação à expropriante do direito de propriedade, depois de depositada a quantia arbitrada, com eventual exercício do direito de recurso dirigido ao mesmo Tribunal em cujo processo decisório se integra a realização de uma perícia e que culmina com a possibilidade de interposição de recurso de apelação da sentença que determine o quantitativo da indemnização.” A existência de falhas que afetaram o processo de expropriação refletindo-se negativamente na tutela dos direitos dos expropriados que, sem qualquer responsabilidade da sua parte, viram sobressaltado o seu direito de propriedade não pode ser desconsiderada com o argumento que ressuma das conclusões da recorrente e segundo o qual, nenhuma diferença, pelo menos significativa e relevante em termos de indemnização, existe entre uma expropriação legal e uma apropriação ilegal por falha de procedimentos legais porque,  afinal, sempre as referidas parcelas seriam subtraídas ao seu proprietário por lá ter sido construída uma obra pública autoestrada beneficiária do princípio antes enunciado da intangibilidade da obra pública.

Não cremos que uma situação de facto consumado, configurando um procedimento declarado judicialmente como ilegal, possa ser respaldada com a ideia de os fins legais justificarem os meios ilegais, sem diferença alguma de resultado entre uma expropriação legal e uma apropriação ilegal, mas que poderia ser legal caso eventualmente tivessem sido cumpridos os procedimentos administrativos necessários. O não ter havido DUP válida e legal desloca a ocupação das parcelas do domínio da expropriação para o da apropriação ilegal e é esta ilegalidade originária que releva para a definição das regras da indemnização, não podendo afirmar-se em contrário que a retificação da DUP inválida por outra reconfigure a situação para efeitos indemnizatórios como uma expropriação. Aliás, como na delimitação do objeto da presente liquidação deixámos referido, a fixação da indemnização a arbitrar não está delimitada, nem limitada, pela existência de qualquer processo de expropriação, de que a prova não dá conhecimento e que não pode por isso ser considerado. Se a ré não procedeu de forma válida e regular como podia e devia no processo expropriativo, tendo tal processo sido declarado nulo, a ocupação real das parcelas configura uma situação afetada pela ilicitude da conduta, na perspetiva da falta de apoio formal para a apropriação que na realidade resultou na ocupação e da utilização das parcelas para a passagem de uma via de comunicação.

Os elementos que dispomos para a decisão são os referentes a uma apropriação e não existe fundamento para serem aplicadas as regras do Cód. das Expropriações para efeitos de quantificação da indemnização devida ao autor, sendo plenamente justificado o recurso às regras gerais da responsabilidade civil extracontratual (arts. 483 e ss. e arts. 566º e ss. do CC) que determinam estabelecer, mediante a aplicação da teoria da diferença, o quantitativo correspondente aos danos emergentes e aos lucros cessantes. No entanto, adverte-se que a indemnização a fixar no caso dos autos por não decorrer das operações prevenidas no Cod. de Expropriações não significa que essas regras de cálculo não possam ser e auxiliares e indiciadoras para a fixação do montante a arbitrar, como sobressai na sentença.

É na apreciação do cálculo da diferença que se situa a discussão empreender e a recorrente argumenta que, não tendo as parcelas identificadas aptidão construtiva, a edificação da autoestrada sobre elas não pode servir como elemento de ponderação na indemnização. Sendo a construção (da autoestrada no caso) uma realidade que não poderia ser obtida pelo recorrido e que só a ordem pública poderia impor, essa construção e o seu valor é de todo estranha ao cálculo da indemnização que apenas poderá contar com os elementos definidores da indemnização em sede de expropriação onde releva a aptidão das parcelas ou seja a classificação dos solos. A recorrente protesta ainda que o raciocínio das instâncias “segue uma direção injusta, quando admite, tal como a sentença o tinha feito, que a o valor a indemnização a atribuir nos presente autos deverá ser calculado tendo em conta a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e não a data da ocupação das parcelas ou da inexistente publicação do ato expropriativo.

Ora, tal pressuposto vai contrariar frontalmente a teoria da diferença antes invocada, a qual apenas seria salvaguardada se se atendesse à data da produção dos danos, mormente, a data da ocupação.

Só atendendo a essa data seria possível reconstituir com justiça o património do lesado, já que seriam atendidas as características materiais e as condicionantes jurídicas que sobre o bem impendiam e por isso se repercutiam no ser valor real e corrente, ou seja, no seu valor de mercado.”

A recorrente sustenta ser irrelevante ter havido ou não uma DUP porque se estaria sempre no âmbito de uma expropriação, defendendo que por a obra não poder ser destruída, a ocupação, o ato de domínio de facto sobre as parcelas, seria sempre válido e apenas até esse momento o recorrido poderia obter eventualmente indemnização pelos danos que provasse ter sofrido relativamente ao não uso das parcelas para os fins que legalmente permitiam. Só atendendo a essa data seria possível reconstituir com justiça o património do lesado, já que seriam atendidas as características materiais e as condicionantes jurídicas que sobre o bem impendiam e por isso se repercutiam no ser valor real e corrente, ou seja, no seu valor de mercado. E defende ainda que os critérios previstos no Código das Expropriações são uma expressão fidedigna da teoria da diferença, já que procuram determinar o valor real e corrente do bem, ou seja, o seu valor de mercado, sendo esse valor alcançado através do valor que receberia caso colocasse à venda o seu bem, quando dele foi desafetado.

A lógica argumentativa destas conclusões radica na ideia, pragmática, mas não axiológica, de a Administração/Estado quando determine a realização de obras públicas que justifiquem a ablação do património dos particulares, indemniza apenas segundo as regras especiais do Código das Expropriações, mesmo que não cumpra os procedimentos legais exigíveis para configurar a apropriação de parcelas de imóveis como uma expropriação. No limite, defende que o Estado, neste domínio das expropriações, goza de uma presunção inilidível de cumprir a lei porque, se não a tiver cumprido antes da apropriação ter-se-á por cumprida depois, atendendo à natureza pública da obra. Não haveria diferença indemnizatória entre a prática de um ato lícito (a expropriação) e a de um ato ilícito (a apropriação ilegal) o que, aliás, tornaria a indemnização pela prática do ato ilícito absolutamente residual e até irrelevante face ao imponderável da determinação de uma obra que, como pública, se imporia sempre como legal e intocável .

Em análise a esta matéria, já se escreveu que “a apropriação ou ocupação de prédios alheios por entidades públicas pode apresentar-se sob vários gradientes que vão desde o desrespeito flagrante das regras sobre a expropriação por utilidade pública até situações em que a violação objetiva do direito de propriedade é resultado de comportamentos que se inscrevem na mera culpa ou na ausência de culpa (…) . Enfim, casos existem em que a violação objetiva do direito de propriedade é precedida ou acompanhada de uma aparência de legitimidade quanto à ocupação ou apropriação de prédio alheio que, no entanto, é infirmada pela análise mais cuidada dos respetivos contornos legais.” Ac. do STJ 5-2-15, 2125/10 citado. Todavia neste e nos outros acórdãos citados as implicações do princípio da intangibilidade da ordem pública foram sempre tomadas na perspetiva de, por a condenação na restituição do prédio livre e desocupado constituir um resultado manifestamente inadequado, por resultar gravemente afrontado o interesse de ordem pública, ser possível uma solução diversa daquela que resultaria da aplicação das regras exclusivamente extraídas do direito privado. E mesmo assim, a solução de prevalência administrativa foi sempre limitada a casos de comportamento que não ultrapassem subjetivamente os limites da culpa leve por parte entidade a favor de quem foi declarada a utilidade pública expropriativa e não já diretamente quanto à indemnização – vd. também o caso do Ac. do STJ de 24-6-08, 08A1929, www.dgsi.pt, em que apreciou um caso em que estava em causa unicamente o pedido de reivindicação de uma parcela ocupada por uma entidade pública.

Como antes dissemos, a ocupação real das parcelas viciada pela ilicitude da conduta, na perspetiva da falta de apoio formal para a apropriação retira fundamento à aplicação direta, imediata e exclusiva das regras do Cód. das Expropriações para efeitos de cálculo da indemnização devida ao lesado e justifica a aplicação das regras gerais da responsabilidade civil extracontratual (arts. 483º e ss. e arts. 566º e ss. do CC) sem que possa opor-se a este entendimento o princípio da intangibilidade da obra antes definido e que o mesmo imponha as regras do Cod. das Expropriações ou, sequer, a existência de uma culpa leve que eventualmente conduzisse à aplicação daquelas regras da expropriação, porque da decisão de onde provém a liquidação nenhuma referência se retira quanto a essa culpa. Estamos assim perante uma situação ilícita de apropriação ilegal, ocorrida num determinado momento, que impõe ao lesante o dever de indemnizar pelos danos resultantes da violação (art. 483 nº1 do CCivil) e cuja indemnização, fixada em dinheiro, tem por medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria na data se não existissem os danos (art. 566 nº2 do CCivil).

  Não podem predicar-se, como protesta a recorrente, violação dos Princípios constitucionais da Justa indemnização (previsto no artigo 62º), que prescreve que a expropriação por utilidade pública só pode ser efetuada mediante o pagamento de justa indemnização, nem o da igualdade (previsto no artigo 13º), que não permite que o autor obtenha uma indemnização bem superior à devida. E não estão em causa porque não há igualdade entre um caso em que se esteja no âmbito de um processo de expropriação com os procedimentos legais respeitados e um outro em que existe apenas uma apropriação ilegal sem origem num procedimento válido enquadrável num processo de expropriação e que só por ser realizada por órgãos do Estado tenha de ser entendido como legal. Por outro aspeto, a justa indemnização resulta da aplicação das normas que forem aplicáveis ao caso concreto e, decidindo-se serem essas normas as do arts. 483º e ss. e arts. 566º e ss. do CCivil o que importa é determinar como estas conformam os elementos obtidos pela prova. O princípio da intangibilidade da obra não corresponde assim a qualquer princípio de intangibilidade da responsabilidade, não arrastando para a consequência de, por não se poder destruir a obra e restituir o bem, ter de se indemnizar como se se estivesse no âmbito de um processo de expropriação, que não existe por falta de DUP. À eventual semelhança naturalística da apropriação ilegal com a expropriação, por em ambas serem realizadas para o mesmo fim (a construção da obra), corresponde uma diferença de tomo  normativo, não se podendo confundir a atividade da Administração/Estado quando cumpre a lei ou quando atua à revelia desse cumprimento e em situação que venha a ser declarada ilegal. Uma obra intangível por ser pública não se converte para todos os efeitos legais numa obra legal se não resultar de um processo legal e não determina que para efeitos de indemnização se possa/deva tomar como legal na perspetiva de não poder ser considerada em si mesma no valor da indemnização porque seria a única a poder ser edificada no terreno apropriado. Se numa situação comum a uma apropriação se segue o reconhecimento do direito do apropriado e a restituição do que lhe foi subtraído, sendo a obra pública, não podendo esta ser removida nem o espaço devolvido, daqui não se retira que ficando a obra de pé o seu valor de nada interesse ao cálculo da indemnização. Pensar assim é estar-se sempre a convocar como fundamento a presença e o contexto de uma expropriação quando tal não acontece.

Justifica-se assim que destinando-se a apropriação à finalidade de construção de uma obra pública, por não se estar no quadro normativo de um processo de expropriação, independentemente da intangibilidade da obra, a indemnização se calcule a partir das regras do CCivil sem restrição de conceito, tomando como referencial a teoria da diferença com a consequência de ter de se tomar em consideração para a medir, a data mais recente e também a obra que foi edificada sem possibilidade de ser removida (o seu valor). Pretender-se que a data mais recente da produção dos danos, na falta da declaração de utilidade pública, deve ser a da ocupação é ficcionar uma situação de legalidade que não existe e continua a não existir porque não existe expropriação, continuando isso sim a existir apropriação ilegal, que não desaparece por a obra ser pública – quando muito poder-se-ia questionar se a data a atender não deveria ser aquela em que eventualmente a situação teria passado a ser legal e teria passado a existir um processo de expropriação. No entanto, como já o referimos não existe nos autos qualquer prova de que tal tenha ocorrido e desse modo a indemnização  a liquidar diz respeito a todos os prejuízos sofridos com a apropriação e a data a atender deve ser a mais aquela em que foram proferidas as decisões em escrutínio.

Argumenta a recorrente que se as parcelas apropriadas ilegalmente não eram aptas à construção fica destituído de fundamento que a indemnização se faça considerando nela o valor de uma construção, que por ser pública seria a única que ali se poderia erigir, acrescentando ainda que em termos de mercado nunca o apropriado poderia contar com um valor que contivesse uma capacidade construtiva.

Em tese seria assim e é verdade que existe nas normas de cálculo da indemnização estabelecidas no Cod. das Expropriações, nomeadamente no art. 23, uma preocupação de respeito pela teoria da diferença fazendo reportar a data mais recente a que alude o art. 566 nº2 do CCivil ao momento da data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data. Todavia, não existindo declaração de utilidade pública, mesmo que pudéssemos aproximar o cálculo da apropriação ilegal para construção de obra púbica ao de uma expropriação par o mesmo fim, a delimitação da data mais recente a considerar nunca poderia ser a da declaração de utilidade pública por esta não existir, não valendo a natureza da obra para obviar a tal falta daquela declaração. Por outro lado, e no que é mais significativo na economia das conclusões da recorrente, entendemos que o cálculo da indemnização a realizar não está (não deve estar) limitado pela classificação dos solos prevista no art. 25 do Cod. das Expropriações porque, como enuncia o corpo do nº1 deste preceito, Para efeitos do cálculo da indemnização por expropriação, o solo classifica-se em (…)” e, como esclarecemos antes, não estamos no âmbito de uma expropriação o que retira a obrigação de atender a essa classificação. Acresce que independentemente da classificação do solo, é uma evidência que nas parcelas apropriadas foi realizada uma construção que não pode ser demolida revelando-se, em termos de consumação, que efetivamente naquele terreno, sendo ou não possível edificar, foi construída uma obra que não pode ser removida.

Se considerássemos a situação  em presença como uma expropriação de facto, ou uma expropriação ilegal que difere de uma expropriação legal apenas na possibilidade de o lesado poder reclamar do lesante uma indemnização por danos não patrimoniais referentes à ilicitude que o comportamento lesivo tenha causado no património daquele, então teríamos de concluir pela possibilidade de, para construção de obras públicas, poderem ser apropriados os terrenos necessários (ou desnecessários) à sua execução sem qualquer cumprimento dos procedimentos exigíveis para as expropriações. A aceitar-se tal entendimento, em termos indemnizatórios, ao ser sempre aplicado diretamente o Cod. das Expropriações não existiria diferença entre a expropriação e a apropriação, com a vantagem pragmática de se poupar o tempo que implicam a realização dos procedimentos legais e até com a processual de, numa ação de indemnização em apropriação ilegal/expropriação ilegal, haver a possibilidade de recurso de revista, o que por regra nos processos de expropriação não é permitido - art. 66 nº5 do Cod. das Expropriações. Ao argumento de ser uma aberração prática o terreno do autor não ser apto à construção e com o modelo indemnizatório das instâncias ser tomado como apto para esse fim, deve responder-se que esse argumento apenas valeria se se estivesse no âmbito de um processo de expropriação porque só neste caso é que essa classificação dos solos é normativamente relevável. O que as instâncias confirmaram foi, por esta ordem, que ocorreu uma apropriação ilegal e que nas parcelas apropriadas foi realizada uma construção que pela sua natureza não pode ser removida nem restituído ao apropriado o objeto que lhe foi subtraído. Assim, abordando o cálculo de indemnização na perspetiva daquilo que a realidade revela (um terreno de que o autor foi desapossado e no qual foi realizada uma obra por outrem) e não naquilo que ela poderia revelar (uma expropriação a que se aplicariam imperativamente as regras do C.E), as instâncias afastaram as regras da expropriação no que se refere à impossibilidade de se poder considerar a construção realizada por o terreno não ser apto à construção. A verdade é que na natureza e aptidão o solo apropriado ilegalmente revela que nele foi edificada uma obra em termos tão irremissíveis que, nem pode ser removida, nem o terreno apropriado devolvido, razão pela qual, nesta conformidade, é inteiramente justificado que a indemnização tenha considerado o valor da obra que,  não tendo sido construída no âmbito de uma expropriação, se encontra em perenidade nesse terreno.

Porque se entende que os critérios da indemnização fixada nas instâncias são os legais e porque a recorrente apenas se insurgiu contra esses critérios protestando em sua substituição os do CE, não se pronunciando sobre os concretos valores da indemnização fixada em 1ª instancia e mantida nos termos que o foi na decisão recorrida, isto é, nada tendo argumentado contra a circunstância de com os critérios adotados a indemnização ter sido fixada como o foi na decisão recorrida, nada há que apreciar neste âmbito, no sentido de não sendo aplicáveis as regras do CE se a indemnização deveria ser outra.

 … …

Quanto á inconstitucionalidade suscitada, a recorrente protesta que a decisão recorrida viola os Princípios constitucionais da Justa indemnização (previsto no artigo 62º), que prescreve que a expropriação por utilidade pública só pode ser efetuada mediante o pagamento de justa indemnização, bem como o princípio constitucional da igualdade (previsto no artigo 13º), já que é adotado um critério que permite que o autor obtenha uma indemnização bem superior ao valor de mercado do seu bem.

Como anteriormente referimos não se verificam as violações apontadas uma vez que a regra de cálculo indemnizatório em sede de expropriações não se pode reclamar como aplicável a um caso em que não exista uma expropriação mas uma apropriação ilegal sendo esta diferença que admite que a justa indemnização corresponda a um cálculo diferente num caso e noutro que, por não serem iguais, não afeta também o princípio da igualdade.


 Síntese conclusiva

- Quando a declaração de utilidade pública que está na base e é fundamento de uma expropriação não exista por ter sido declarada ilegal e haja condenação do apropriante a pagar indemnização pelo prejuízo sofrido com a violação do direito de propriedade esta indemnização calcula-se com base nos arts. 483 e ss. e 566 e ss. do CCivil e não com as normas do Código de Expropriações.

- O momento a atender no cálculo da indemnização é ao mais recente que possa ser atendido pelo tribunal (art. 566 nº2 do CCivil) e não aquele em que o terreno foi ocupado uma vez que o facto consumado que constitui a ocupação, mesmo que esta se destine à construção de uma obra pública, afasta a aplicação do art. 23 nº1 do CE no qual a referência é a data da publicação da declaração de utilidade pública que no caso não existe.

- Numa apropriação ilegal para construção de uma obra pública que tenha sido contruída nos terrenos apropriados o cálculo da indemnização deve valorar o valor da obra construído mesmo que o solo não seja apto á construção uma vez que nos termos do corpo do art. 25 nº1 do CE só no âmbito de um processo de expropriação é que se impõe atender à classificação do solo.

… …

 Decisão

Pelo exposto acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente a presente revista e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 25 de maio de 2023


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves

2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro José Maria Sousa Pinto