Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A3965
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: GARCIA MARQUES
Nº do Documento: SJ200301280039651
Data do Acordão: 01/28/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 605/02
Data: 05/14/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
"A" - Gabinete Técnico de Contabilidade, Ldª intentou, em 22 de Abril de 1996, nos Juízos Cíveis da Comarca do Porto, a presente acção com processo comum e forma ordinária contra B - Companhia de Electrodomésticos, Ldª, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 2.053.314$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados sobre 1.556.100$00, desde 22-04-96 até efectivo e integral pagamento.
Alegou a Autora, em síntese, que, no exercício normal da sua actividade de contabilidade, fiscalidade e informática prestou à Ré serviços atinentes a essa sua actividade, que consistiram em executar todo o serviço de contabilidade, procedendo ao fecho das respectivas contas, bem como serviços de informática, serviços esses que eram pagos através de uma avença mensal, com referência a 13 meses por cada exercício e que, no ano de 1992, foi fixada no valor mensal de 20.000$00, em 1993, no de 50.000$00 e em 1994, no de 70.000$00, acrescida do pagamento de despesas ocasionadas com tal prestação de serviços. Mais refere que as avenças se venciam no último dia de cada um dos meses a que respeitavam e a 13ª, referente ao fecho de contas, vencia-se no dia 31/12 de cada ano. Alega, por último, que a Ré, no dia 6 de Julho de 1995, unilateralmente, pôs termo ao referido contrato, ficando em débito as avenças referentes ao ano de 1994, no montante de 910.000$00, acrescido de IVA, bem como as de Janeiro a Junho inclusive do ano de 1995, no montante de 420.000$00, acrescido de IVA, e as despesas decorrentes dos serviços de contabilidade e de informática por si prestados, no valor, respectivamente, de 139.200$00 e 42.435$00.
Contestando, a Ré invocou que a A. não efectuou nenhum trabalho para a ré, nem de informática, nem de contabilidade, relativo aos anos de 1994 e 1995, retendo indevidamente na sua posse todos os documentos de suporte e apoio das contas desde a cessação do contrato em final de 1993. Pede, assim, em reconvenção, a condenação da A. a restituir-lhe todos os documentos relativos à sua contabilidade que tem na sua posse e que não lhe pertencem, concluindo, a final, pela improcedência do peticionado pela A.
A A. respondeu pugnando pela procedência do seu pedido e pela improcedência da reconvenção, mantendo o peticionado, bem como os fundamentos alegados na petição inicial.
Proferido o despacho saneador e elaborados a especificação e o questionário, procedeu-se a julgamento com decisão da matéria de facto, sem reclamações, após o que, em 31-10-2001, foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção, pelo que condenou a Ré a pagar à A. a quantia de 181.635$00, com juros, tendo-a absolvido do mais pedido, e inteiramente procedente a reconvenção, pelo que condenou a A. a restituir à Ré os documentos a esta pertencentes e que tem na sua posse - cfr. fls. 181 a 186.
Inconformada, apelou a Autora, a pedir a revogação do decidido, alegando existir caso julgado anterior e invocando ainda contradição na apreciação da matéria de facto.
Todavia, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 14 de Maio de 2002, julgou improcedente a apelação, confirmando, em consequência, a decisão recorrida - fls. 240 a 244.
Continuando inconformada, traz a Autora a presente revista, oferecendo, ao alegar, no essencial, as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto do douto acórdão da Relação do Porto que negou provimento ao recurso de apelação interposto pela recorrente quanto à invocada excepção do caso julgado, uma vez que considera que nestes autos se verificam todos os pressupostos dessa excepção.
2. E, por força da excepção do caso julgado, deveria cumprir-se a decisão que transitou em primeiro lugar, ou seja, a decisão proferida no Procº 382/96 que correu termos pelo 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila do Conde;
3. As partes nas duas acções judiciais são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, o pedido numa e noutra acção visa obter o mesmo efeito jurídico e a causa de pedir numa e noutra acção procede do mesmo facto jurídico.
4. Tanto no Procº 382/96 como no Procº 436/96, os sujeitos processuais são os mesmos, existindo apenas a inversão da posição processual de uma para outra acção, mas que em nada altera a mesma identidade processual das partes sob o ponto de vista da qualidade jurídica;
5. O pedido numa e noutra acção visa obter o mesmo efeito jurídico, ou seja, no processo de recuperação, a recorrente pretende obter o reconhecimento e aprovação do seu crédito pelo gestor e pela assembleia de credores no âmbito da medida aprovada, a qual é sujeita a posterior homologação judicial; Na acção ordinária, a recorrente pretende o reconhecimento do valor desse crédito e consequente condenação da devedora no seu pagamento;
6. A causa de pedir numa e noutra acção procede do mesmo facto jurídico, ou seja, radica na existência de um contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes e por estas consensualmente aceite;
7. Face à tríplice identidade prevista no artigo 498º do CPC, foram proferidas duas decisões contraditórias, o que originou dois casos julgados contraditórios, pelo que nos termos do disposto no artigo 675º do mesmo Código, deverá prevalecer a decisão que passou em julgado em primeiro lugar, ou seja, a sentença proferida no Procº 382/96, por força da qual a recorrente tem direito a receber a quantia de Esc. 656.414$00 em cinco prestações anuais, iguais e sucessivas;
8. O acórdão recorrido fez incorrecta aplicação das normas legais aplicáveis, com consequente violação da lei: (1º) a homologação judicial da deliberação da assembleia de credores que aprove uma medida de recuperação depende apenas da observância das normas legais aplicáveis; (2º) a deliberação da assembleia de credores, logo que homologada por sentença transitada em julgado, vincula tanto os credores votantes, como os que não votaram, como os que votaram contra; (3º) tal deliberação da assembleia de credores constitui título executivo, extinguindo-se quanto aos credores participantes no processo especial de recuperação o título que anteriormente detinham;
9. Os credores participantes no Procº 382/96, caso da recorrente, uma vez insatisfeitos e cessada a medida de gestão controlada, não podem exigir o seu crédito original por inteiro em desrespeito da deliberação tomada na assembleia de credores;
10. Ao invés do mencionado no acórdão recorrido, a homologação judicial da medida de recuperação aprovada na assembleia de credores homologa necessariamente cada um dos créditos reclamados e aprovados nesse processo, pois, se assim não fosse, nenhuma eficácia teria tal deliberação para os credores participantes nesse processo;
11. Ao invés do que consta no acórdão recorrido, a medida de gestão a que foi submetida a recorrida não cessou por incumprimento do plano, mas cessou pelo decurso do prazo de dois anos, mantendo-se válidas e eficazes as medidas adoptadas pela assembleia de credores e as providências de carácter duradouro, caso do plano de pagamento dos credores comuns, como a recorrente;
12. O acórdão recorrido deverá, pois, ser revogado, por o mesmo violar os artigos 56º, nº 2, 94º, 102º, 115º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, aplicável ao Procº 382/96 e artigos 497º, 498º e 675º do CPC.
Termos em que deve o acórdão recorrido ser substituído por outro que julgue provada e procedente a excepção do caso julgado, com a consequente observância do decidido na sentença proferida em primeiro lugar, ou seja, a sentença proferida no processo especial de recuperação de empresa, pelo qual o crédito da recorrente foi reconhecido por Esc. 2.188.048$00, com a obrigação da recorrida pagar apenas à recorrente a quantia de Esc. 656.414$00 em cinco prestações anuais, iguais e sucessivas.

A Recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado - fls 264 a 273.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II

Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do C.P.C.), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas - e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso -, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras - artigo 660º, nº 2, também do C.P.C.
Em face do exposto, a (única) questão suscitada na presente revista é a que consiste em saber se há caso julgado formado no processo de recuperação de empresa que, com o nº 382/96, correu termos pelo 2º Juízo Cível do Tribunal de Vila do Conde.
III
São os seguintes os factos dados como assentes:
1. A A. tem por objecto, entre outros, o comércio de produtos e a prestação de serviços de contabilidade, fiscalidade e informática - al. A) da especificação.
2. A R., por sua vez, dedica-se principalmente ao fabrico de electrodomésticos - al. B).
3. No exercício da sua actividade, e no início de Fev./92, a A. contratou com a R., mediante retribuição, executar-lhe todo o serviço de contabilidade, procedendo ao fecho das respectivas contas, prestando-lhe também serviços de informática - al. C).
4. A retribuição consistia no pagamento de uma avença mensal, com referência a 13 meses por cada exercício - al. D).
5. No ano de 1992, a avença foi fixada em 20.000$00 e, em 1993, no montante de 50.000$00 - al. E).
6. As avenças venciam-se no último dia de cada um dos meses a que respeitavam e a 13ª, referente ao fecho das contas, vencia-se no dia 31/12 de cada ano - al. F).
7. A A. mantém na sua posse documentos de suporte e apoio das contas da R. e a esta pertencentes - al. G).
8. Ao quantitativo das avenças acrescia o montante variável das despesas ocasionadas com a prestação dos respectivos serviços - al. H).
9. As despesas decorrentes dos serviços que a A. prestou à R. importam em 139.200$00, já com IVA incluído, conforme resulta de fls. 8 a 11 - resposta ao artº 4º do questionário.
10. E os serviços de informática em 42.435$00, já com IVA incluído, conforme resulta de fls. 12 e 13 - resp. ao artº 5º.
11. As despesas referidas em H) só seriam pagas à A. caso a caso e depois de devidamente justificadas - resp. ao artº 6º.
12. A A. não efectuou para a R. nenhum trabalho de contabilidade relativo aos anos de 94/95 - resp. ao artº 8º.
Acresce, relativamente à matéria que constitui o objecto da presente revista, isto é, quanto à questão do caso julgado, que resulta provado, a partir dos documentos adiante enumerados, o seguinte:
- A aqui Ré requereu no Tribunal de Vila do Conde Processo Especial de Recuperação de Empresa que ali correu termos pelo 2º Juízo Cível sob o nº 382/96 - certidão de fls. 164 e ss;
- O gestor judicial nomeado relacionou, entre outros, o crédito reclamado (fls. 205 a 207) pela aqui A., no montante de 2.188.048$00, como por si reconhecido e sem impugnação (fls. 165), com os mesmos fundamentos do aqui pedido;
- Em 21 de Maio de 1997 e com a presença da aqui A. realizou-se a assembleia provisória de credores que, por unanimidade, aprovou aquela relação provisória de créditos - fls. 166/167;
- Em 26 de Novembro de 1997 realizou-se a assembleia definitiva que, também por unanimidade dos credores presentes e representando 81,29%, aprovou a medida de gestão controlada por dois anos, prorrogável (fls. 157 a 170) proposta pelo gestor oficial (fls. 157 e ss.) com incidência no passivo, alteração do capital social, eleição de nova gerência e de uma comissão de fiscalização;
- Nos termos desta medida - e no que aqui interessa - os credores comuns seriam pagos de 30% do valor do seu crédito de capital em cinco prestações anuais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no fim do décimo segundo mês após o termo do período de gestão controlada, sempre com sujeição à cláusula de regresso de melhor fortuna;
- Em 4 de Janeiro de 1998 foi homologada esta deliberação da assembleia de credores (fls. 171) e, em 8 de Fevereiro de 2000, foi declarada cessada a gestão controlada, sem prejuízo do disposto no artº 115º, nº 1 e 95º, nº 2, do CPEREF, aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril - fls. 173.
IV
1 - A excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (Zweimal) (1) .
Ou seja, a excepção de caso julgado tem por fim obstar a que o órgão jurisdicional da acção subsequente seja colocado perante a situação de contradizer ou de repetir a decisão transitada (artigo 497º, nº 2, do CPC).
É através da tríplice identidade a que se refere o nº 1 do artigo 498º do mesmo Código - de sujeitos, do pedido e da causa de pedir - que se define a extensão do caso julgado (2) .
Por outras palavras: a excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, a qual se verifica quando são idênticos, nas duas acções, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir, coados estes elementos pelo objectivo de se evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, tudo como resulta do disposto nos artigos 497º e 498º do CPC (3 ) .
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico - artigo 498º, nº 3.
Para haver identidade de pedidos tem que ser o mesmo o direito subjectivo cujo reconhecimento e (ou) protecção se pede, independentemente da sua expressão quantitativa (4) .
Ora, será que essa tríplice identidade que caracteriza a identidade de causas, integrante da litispendência e do caso julgado (artigos 497º e 498º) se verifica na situação ora em presença?
2 - Diga-se, desde já, que, contrariamente ao entendimento perfilhado pela recorrente, não ocorre no caso sub judice a excepção do caso julgado, desde logo, por não haver, nas duas acções identidade de pedido e de causa de pedir.
Para melhor fundamentar a asserção acabada de produzir, justificar-se-á que, com a brevidade imposta pela economia da questão em apreço, se aprofunde a análise acerca da natureza e características do processo especial de recuperação da empresa.
2.1. - Prescreve o artigo 1º do CPEREF, aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, diploma a que pertencerão os normativos que se indiquem sem menção da origem, o seguinte:
1. Toda a empresa em situação de insolvência pode ser objecto de uma ou mais providências de recuperação ou ser declarada em regime de falência.
2. Só deve ser decretada a falência da empresa insolvente quando ela se mostre economicamente inviável ou se não considere possível, em face das circunstâncias, a sua recuperação financeira.
Conforme resulta do nº 2, acabado de transcrever - e tal como é reafirmado depois no artigo 5º -, são dois os requisitos da recuperação de empresas: a viabilidade económica e a superabilidade da sua ruptura financeira. Se algum deles falhar, a empresa deve falir.
Mandado prosseguir o processo como de recuperação de empresa (artigo 25º), é, além do mais, designado o gestor judicial, nomeada a comissão de credores convocada a assembleia de credores (artigo 28º, alíneas a), b) e d)), ficando imediatamente suspensas todas as execuções instauradas contra o devedor e todas as diligências de acções executivas que atinjam o seu património, suspensão que se mantém até à ocorrência dos factos enunciados no nº 2 do artigo 29º
Atento o disposto pelo artigo 103º, nº 2, durante o período de gestão controlada - medida de recuperação aprovada in casu -, mantém-se o regime de suspensão previsto no artigo 29º.
Atente-se no facto de que a lei apenas impõe a suspensão das execuções e diligências executivas que atinjam o património da empresa recuperanda e não também das acções declarativas, como é o caso da presente. O que inculca que nada obsta à declaração de um crédito sobre a empresa, ainda que reclamado e aprovado no processo de recuperação, embora não possa executá-lo por montante superior ao aí aprovado, atento o disposto nos artigos 94º e 102º.
2.2. - Todo o credor da empresa que pretenda intervir na assembleia de credores tem de reclamar o seu crédito, salvo se ele constar na relação junta com a petição inicial deduzida pelo devedor ou se pertencer ao próprio autor da acção.
Todavia, a falta de reclamação do seu crédito por parte de um credor que pretenda intervir na assembleia de credores não extingue nem afecta o crédito, apenas o impedindo de participar na assembleia, com as consequências daí resultantes.
Na verdade, o procedimento subsequente destina-se somente a apurar quem tem assento na assembleia definitiva de credores e não a determinar a efectiva existência do crédito. Atento o disposto pelo nº 8 do artigo 48º, "a aprovação dos créditos (...) só produz efeitos relativamente à constituição definitiva da assembleia de credores" (5) .
É também significativo o facto de que a decisão do juiz que conheça das reclamações contra as deliberações da assembleia que aprovem (ou não) os créditos "só produz efeitos relativamente à constituição definitiva da assembleia de credores e dela não cabe recurso" - cfr. também, além do artigo 48º, nº 8, o nº 3 do artigo 49º.
Acresce que a decisão acerca da natureza do crédito também só produz efeitos no processo de recuperação. Como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda, "o facto de serem havidos como comuns créditos com garantia - reclamados ou não com essa natureza - não os faz perder o privilégio que lhes assiste, pois o processo de recuperação não é o lugar nem o meio próprio para decidir, com carácter definitivo essa questão. Do mesmo modo, e por idênticas razões, se o crédito for comum, de nada lhe serve se aprovado como crédito garantido" (6) .
Como bem se refere no acórdão recorrido, a assembleia definitiva constituída pelos titulares dos créditos aprovados ou atendidos nas reclamações (artigo 52º, nº 2), tem por escopo fundamental deliberar acerca das medidas de recuperação que hão-de ser aplicadas à empresa. Tal deliberação está sujeita a homologação judicial, mas tal homologação "depende apenas da observância das normas legais aplicáveis, dela cabendo recurso somente para o tribunal da Relação" - artigo 56º, nº 2.
Ou seja, por um lado, a intervenção do juiz não pode envolver nenhum juízo de valor sobre a oportunidade da solução aprovada pelos credores, limitando-se a controlar a observância das disposições legais aplicáveis.
Por outro lado, tendo presente o princípio segundo o qual "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador (...) soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" (artigo 9º, nº 3, do C.C.) e tendo em atenção a significação correspondente ao advérbio "somente", não é possível deixar de concluir que o recurso da decisão que tiver homologado a deliberação da medida recuperatória é interposto unicamente, exclusivamente para o Tribunal da Relação. Assim sendo, são excluídos outros recursos para outros Tribunais, designadamente, para este Supremo Tribunal de Justiça (7) .
3. - Munidos dos elementos acabados de recensear - os que, em face da economia da presente revista se revelam mais relevantes para a decisão -, cumpre concluir que, entre a acção especial de recuperação de empresa a que foi sujeita a Ré/Recorrida e a presente acção declarativa inexiste a tríplice identidade exigida pelo artigo 498º do CPC.
Naquela, é a empresa insolvente que, considerando reunir os requisitos para tal exigidos - viabilidade económica e superabilidade da sua deficiente situação financeira -, veio requerer em juízo a providência de recuperação adequada (artigo 5º), isto é, a medida que lhe permita manter-se em actividade.
Na presente acção comum é um credor que vem a pedir o pagamento do seu crédito por serviços prestados àquela empresa.
Termos em que cumpre reconhecer que não há, entre aquela acção especial e a aqui em recurso, identidade de pedido e de causa de pedir (8) .
Resulta do atrás exposto, em face do preceituado pelos artigos 48º, nº 8, e 49º, nº 3, que a aprovação do crédito reclamado - na acção especial de recuperação de empresa - apenas produz efeitos relativamente à constituição definitiva da assembleia de credores. O que se homologa é a deliberação da assembleia de credores que aprova certa medida de recuperação e não a aprovação de cada um dos créditos reclamados.
Daí que, no acórdão recorrido, se tenha escrito que enquanto na presente acção "pôde a A. produzir as provas que entendeu, a aprovação do crédito por si reclamado naquele processo especial não foi objecto de decisão judicial, se não de forma muito remota quando homologou a deliberação aprovada pela assembleia de credores".
A própria Autora pareceu conformar-se com o entendimento exposto, quando, aberta a audiência de julgamento, em 27 de Junho de 2001, já expirado o período de gestão controlada, pretendeu fazer a prova da totalidade do seu crédito (referente à matéria dos quesitos 1º a 5º), requerendo a junção aos autos de uma certidão emitida pelo 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila do Conde, referente ao processo nº 382/96 - cfr. fls. 174. Junção essa que foi admitida pela Mmª Juíza, "pese embora os documentos juntos não vinculem o Tribunal quanto à matéria vertida nos artigos constantes do questionário, mais concretamente quanto àquela que é indicada pela Autora para a junção de tais documentos, dependendo a sua prova daquilo que vier a ser produzido nesta audiência e segundo a convicção que com base nela o tribunal vier a formar (...)" - cfr. fls. 175.
Em face de quanto se disse, importa concluir, como no Tribunal a quo, que a aprovação do crédito da Autora na assembleia de credores no processo especial de recuperação de empresa não constitui caso julgado na acção de condenação que propôs contra a Ré.
Termos em que se nega a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas a cargo da Recorrente.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2003
Garcia Marques
Ferreira Ramos
Pinto Monteiro.
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(1) Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, "O objecto da sentença e o caso julgado material (O Estudo sobre a Funcionalidade Processual", in B.M.J., nº 325, págs. 49 e segs., maxime, págs. 175 e segs. e 200 e segs.
(2) Cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª edição, Coimbra Editora, págs. 708 e segs.
(3) Cfr. o acórdão do STJ de 03-07-1997, processo nº 359/96, 2ª Secção.
(4) Cfr. o acórdão do STJ de 14-01-1998, processo nº 860/97, 1ª Secção.
(5) Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, "Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado", 2ª edição, anotação ao artigo 44º, págs. 150 e 151.
(6) Cfr. loc.cit., pág. 161.
(7) Reportando-nos à citada norma do nº 2 do artigo 56º do CPEREF, poderá afirmar-se que se está em presença de uma norma especial que prevalece sobre as normas processuais gerais e comum, nomeadamente, as referentes ao processo sumário subsidiariamente aplicáveis por força do artigo 463º, nºs 1 e 3, do C.P.C.
Poderia mesmo dizer-se que uma diversa interpretação violaria o princípio segundo o qual "não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (...)" - artigo 9º, nº 2, do C.C.
É também este o entendimento expresso de Luís Carvalho Fernandes João Labareda, os quais, anotando o referido artigo 56º do CPEREF, escrevem que "independentemente do valor da causa, o Tribunal da Relação decidirá, em definitivo, conforme o estatuído na parte final do nº 2" - cfr. loc. cit., pág. 178.
(8) Ainda que, eventualmente, se pudesse falar de uma relação de prejudicialidade relativamente às acções em apreço - questão de que, por estranha ao objecto deste recurso, não cumpre cuidar -, não poderia extrair-se, como consequência, a verificação de qualquer das excepções da litispendência ou do caso julgado.
É que são diferentes os pressupostos em que assentam, por um lado, a relação de prejudicialidade e, por outro, as referidas excepções. Uma coisa, é uma "causa prejudicial" para os efeitos do artigo 279º, nº 1; outra, é uma "causa repetida", nos termos dos artigos 497º e 498º, todos do CPC.