Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4490/15.9T8BRG-G.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: TESTAMENTO
ANULABILIDADE
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
EXCLUSÃO DE CLÁUSULA
LIMITES DA CONDENAÇÃO
PRINCÍPIO DO PEDIDO
PODERES DE COGNIÇÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

O tribunal, não pode, nos termos do artigo 609º n. 1 do Código de Processo Civil, declarar a anulação de todas as cláusulas do testamento, quando apenas foi pedida a anulabilidade da “disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens.”

Decisão Texto Integral:

Processo: 4490/15.9T8BRG-G


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça ( 6ª secção)


I – Relatório


AA intentou a presente ação para alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais relativamente a BB e CC, nascidos a ........2005, pedindo que os jovens lhe fossem entregues e que o progenitor fosse obrigado a comparticipar nas despesas daqueles.


Para tanto alegou, em síntese, que a mãe dos menores, a cuja guarda e cuidados os menores foram confiados na sequência do divórcio do casamento que havia celebrado com o Requerido, progenitor daqueles, faleceu quando vivia em união de facto com o Requerente e constituiu-o tutor dos mesmos e administrador dos respetivos bens, por via de disposição testamentária. Tem uma relação de afeto com os menores.


O pai alegou, em síntese, que o Requerente se move apenas com motivação patrimonial e que o Requerentes, independentemente da situação patrimonial dos menores, os acolherá.


Corre em paralelo à presente ação, processo de promoção e proteção.


Em 01.03.2022, foi proferido despacho, transitado, que decidiu que “ Requerente não é tutor.”


Em 02.11.2022, o Ministério Público veio formular requerimento em que defende que deve a “disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens que compõem a herança da falecida mãe dos jovens ser declarada anulada nos termos do disposto no art.º 2199.º do Código Civil”.


Em 03.11.2022, o Requerente veio desistir dos pedidos formulados nos autos, afirmando não estar em condições físicas e psicológicas para garantir o interesse dos jovens.


Em 04.11.2022, foi proferido o seguinte despacho: “Considerando o requerido pelo Ministério Público, atinente à questão da administração de bens dos menores e considerando o objeto dos presentes autos - o exercício das responsabilidades parentais em todo o seu espectro - julga-se ser de admitir o requerimento deduzido - cfr. artigos 3.º, al. c) e al. a), 12.º e 27.º do RGPTC.


Tendo em conta a proficuidade de produção conjunta de prova e concatenando com a necessidade de fazer atuar o princípio do contraditório determina-se que seja o requerente e o requerido notificados para, querendo, se pronunciar quanto ao requerido e, na mesma oportunidade, deduzirem requerimento probatório.”


Em 15.11.2022, o Requerente apresentou requerimento na sequência deste convite, em que defendeu que a testadora dispunha de todas as suas faculdades, encontrava-se capaz de entender o sentido das suas declarações e detinha o exercício da sua vontade aquando da feitura do testamento.


Teve lugar a audiência de discussão e julgamento a qual decorreu com a observância do pertinente formalismo legal.


De seguida foi proferida sentença que decidiu:


“1. Declarar anulado o testamento datado de 24.8.2021 onde consta que DD declarou:


a. Nomear tutor aos filhos BB e CC, AA;


b. Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, EE destes e a irmã mais velha daqueles, FF.


c. Atribuir a administração dos bens dos menores a AA.


d. Constituir, a favor de AA o usufruto da sua casa de morada de família, sita na travessa ...


e. Excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos menores e a sua irmã mais velha e o companheiro desta.


2. Ordenar que AA apresente, no prazo de 10 dias:


a. Relação completa dos bens dos menores (bens imóveis, bens móveis sujeitos a registo, bens móveis, aplicações financeiras, contas bancárias, seguros financeiros, etc).


b. Especifique todos os atos de gestão ordinária ou extraordinária que fez em relação a cada um dos bens que constituem o património;


c. Apresente extratos bancários de todas as contas e aplicações financeiras, relativamente a todo o período de administração;


d. Apresente relação de rendas que haja recebido, ainda que as mesmas não sejam tituladas por contrato formal;


3. Condenar AA nas custas do processo.”

*

. O Requerente AA apelou e por acórdão proferido em 19.12.2023, foi decidido o seguinte:


“julga-se a apelação parcialmente procedente e em consequência revoga-se a decisão recorrida na parte em que declarou anuladas as cláusulas do testamento outorgado por GG em 24 de agosto de 2021 que não diziam respeito à administração dos bens,


mantendo-se todo o demais decidido: a homologação da desistência do pedido, a anulação da cláusula 2ª do testamento relativa à administração dos bens e as determinações ao Recorrente apresentar e especificar os elementos ali enunciados, bem como a sua condenação nas custas da ação.”


Os Requeridos BB e CC interpuseram recurso de revista e apresentaram as seguintes conclusões, que se transcrevem:


“1 - Interpuseram os Recorrentes o presente recurso, por entenderem que a douta decisão da primeira instância decidiu correta e muito justificadamente a questão em apreço, decorrendo a sua revogação parcial pelo Douto Acórdão recorrido, salvo o devido respeito, de uma interpretação errada dos comandos legais aplicáveis à matéria de facto assente nos autos.


2 - A deixa do usufruto foi completamente acessória em relação à única pretensão da testadora e que era a de proteger os seus filhos, sabendo que morreria brevemente.


3 - Nestas circunstâncias, essa deixa testamentária teria de ser anulada, por a persistência da mesma, em face das demonstradas intenções da falecida mãe dos Recorrentes e do que quedava das disposições testamentárias, ser completamente ilegal, pois se limitava a conferir ao Recorrido um injustificado e ilegal benefício, em detrimento dos Recorrentes e completamente em violação da vontade última da testadora ao fazer o testamento e que era a de proteger os seus filhos.


4 - Tal disposição testamentária da deixa do usufruto da casa de morada de família dos Recorrentes ao Recorrido, conforme dispõe o artigo 2186º, trata-se de uma disposição nula, pois da interpretação do testamento resulta que foi essencialmente determinada por um fim contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, ou seja, todas as aludidas circunstâncias em que tal testamento foi feito, tiveram como único objectivo o de favorecer patrimonialmente o Recorrido.


5 - Seria, de resto, algo singular que se, por exemplo, a falecida mãe dos Recorrentes tivesse apenas instituído a tutoria em relação a estes, a mesma pudesse ser anulada, como o foi, por acto unilateral do progenitor sobrevivo e este tribunal não se pudesse pronunciar sobre uma disposição testamentária completamente dependente daquela.


6 – Aliás, afigura-se-nos o descrito contexto em que a mãe dos Recorrentes outorgou tal testamento, reconhecível no tipo de factos que motivaram a douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 23-06-2016, Processo 1579/14.5TBVNG.P1.S1, in ITIJ


7 - Em todo o caso e o que nos parece decisivo para que o tribunal “a quo” tenha proferido a decisão ora impugnada, é que o vício que inquinou a vontade da testadora, profusa e detalhadamente exposto na douta decisão da primeira instância, traduzido na sua incapacidade para se aperceber da natureza e conteúdo do acto que estava a praticar é, em si, determinante da invalidade do próprio testamento e não de qualquer disposição em concreto.


8 - A este respeito, sempre se poderá dizer que a revogação de todo o testamento era a única decisão lógica, sobretudo se se tiver em consideração ter sido a deixa do usufruto meramente instrumental das demais disposições, principalmente da tutoria e da administração dos bens dos Recorrentes pelo Recorrido.


9 – A decisão do tribunal da primeira instância estriba-se ainda no disposto no artigo 986º-2 do Código de Processo Civil, bem como no disposto no 987.º do mesmo diploma, sendo certo que, conforme se decidiu no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-02-2015, Processo 607/06.2TBCNT.C1.S1, in ITIJ: “(..) Não constitui violação do princípio do dispositivo nem excesso de pronúncia, o facto de, tendo os autores pedido apenas o reconhecimento do direito (…), não podendo o juiz condenar nem em quantidade superior, nem em objeto diverso do mesmo, tal não dispensa um esforço suplementar que permita apreender, materialmente, o âmbito objetivo do pedido que foi formulado na ação (…)”..


10 – Ainda será de convocar, a este respeito, o disposto no artigo 292º do Código Civil (“A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.”), por ser certo, conforme repetidamente acima se afirmou e igualmente se faz profusa menção na douta decisão em crise, que a falecida mãe dos Recorrentes, com tal disposição de última vontade, pretendeu apenas acautelar o futuro dos Recorrentes e não beneficiar quem quer que fosse, designadamente o Recorrido.


11 - Aliás, a própria possibilidade da revogação da tutoria pelo progenitor de que, como se disse, a falecida mãe dos Recorrentes não foi informada, tornava as demais disposições testamentárias completamente irrelevantes à luz da mencionada vontade da


testadora, principalmente a deixa do usufruto, do que se a testadora tivesse sido informada, a levaria a procurar outro veículo legal de expressão dessa sua vontade última, não se deixando enredar na citada teia que lhe montaram.


12 - Donde, se nos afigurar ter o Douto Acórdão recorrido, salvo o devido respeito, ter interpretado erradamente os comandos legais aplicáveis ao caso em apreço.


13 – Deste modo, ao revogar parcialmente a douta decisão da primeira instância, houve-se o Venerando Tribunal “a quo” com violação, além do mais, do disposto nos artigos 289º, 292º, 2186º e 2199º, do Código Civil e artigos 608º-2, 986º-2 e 987º, do Código de Processo Civil.”


A final pede que se revogue o acórdão recorrido e se mantenha o decidido na primeira instância, concluindo-se assim, igualmente, pela integral revogação do testamento da mãe dos Recorrentes.


Não foram apresentadas contra-alegações.


II .Fundamentação


A questão a decidir é a de saber se não havia fundamento legal para o acórdão recorrido ter revogado a sentença da 1ª instância na parte em que declarou anuladas as cláusulas do testamento outorgado por GG em 24 de agosto de 2021 que não diziam respeito à administração dos bens.


Factos julgados provados e não provados nas instâncias, com as alterações introduzidas pelo acórdão recorrido no ponto 8).


Factos provados:


1. CC e BB, ambos nascidos a ........2005, são filhos de EE e de DD.


2. Por decisão de 12.7.2017 e de 3.5.2016 foi fixado o regime do exercício das responsabilidades parentais relativamente a BB e a CC, tendo estes ficado a residir com a progenitora, as questões de particular importância sido atribuídos a ambos os progenitores; mais foi fixado um regime de contactos e prevista a pensão de alimentos.


3.DD faleceu a 26.8.2021.


4. Em setembro de 2021 é dada notícia nos autos de promoção proteção, pela Segurança Social, do falecimento da progenitora e que foi o progenitor impedido de estar com os jovens por HH e um indivíduo, de identidade desconhecida, à data.


5. Avaliada a situação, foi constatado que os jovens estavam a viver na casa onde sempre moraram e estavam acompanhados de HH e de AA.


6. DD, através de testamento datado de 4.7.2016 declarou:


a. Nomear tutora dos jovens BB e CC, II.


b. Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, EE destes.


c. Atribuir a administração dos bens dos menores a II.


7.DD, através de testamento datado de 8.2.2018 declarou:


a. Nomear tutores aos filhos BB e CC, JJ e KK;


b. Excluir da administração de todos os bens dos menores o pai, EE destes e a irmã mais velha daqueles, FF.


c. Atribuir a administração dos bens dos menores a JJ e KK.


d. Constituir, a favor de JJ e KK o usufruto da sua casa de morada de família, sita na travessa ...


e. Legar a seus pais LL e MM o direito de uso e habitação daquela casa de morada de família, devendo os cuidados ser prestados por HH.


f. Excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos menores e a sua irmã mais velha e o companheiro desta.


8. Existe documento intitulado de testamento datado de 24.8.2021 onde consta que DD declarou:


a. Nomear tutor aos filhos BB e CC, AA;


b. Excluir da administração de todos os bens deixados ou doados aos seus filhos pela testadora ou pelos seus pais, avós maternos, o pai, EE destes e a irmã mais velha daqueles, FF.


c. Atribuir a administração de todos os bens deixados ou doados aos seus filhos pela testadora ou pelos seus pais, avós maternos a AA.


d. Constituir, a favor de AA o usufruto da sua casa de morada de família, sita na travessa ...


e. Excluir do direito de visita na referida casa, o pai dos menores e a sua irmã mais velha e o companheiro desta.


9. Por referência ao documento intitulado de testamento datado de 24.8.2021 não foi explicitado, a DD, pela Sr.ª Notária, o alcance e consequências de constituição do usufruto.


10. No dia ........2021(22 dias antes de falecer) DD permutou com AA um prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial por uma fração autónoma destinada a habitação.


11.A 30.9.2021 os imóveis referidos em 10. foram avaliados em € 295.000,00 e € 50.000,00, respetivamente.


12. Por acordo datado de 27.9.2021, em virtude do falecimento da progenitora dos jovens, foram aplicadas, as medidas de proteção de apoio junto dos pais, na pessoa do pai e de confiança a pessoa idónea a executar na pessoa de HH, considerando que os jovens se manteriam na casa em que sempre viveram, mas que o usufruto foi constituído, por morte da progenitora a favor de AA.


13.Nesse mesmo acordo, AA comprometeu-se a deixar de residir na casa onde os jovens moravam com a mãe.


14.HH e AA retiraram o seu acordo à aplicação da medida de confiança a pessoa idónea.


15.Nas últimas semanas de vida de DD eram NN e HH quem acompanhavam a falecida mãe dos jovens.


16. Sendo HH quem levava a DD ao médico e o transporte feito por AA..


17. Desde pelo menos ..., que a falecida mãe do BB e da CC sofria de carcinoma da mama direita com mestatização óssea e hepática.


18.Foi sujeita a quimioterapia.


19.Foi sujeita mastectomia a ........2016.


20. Fez radioterapia a ........2016.


21.Em ... de 2017 foi-lhe diagnosticada uma metastização óssea disseminada.


22.Em ... de 2018 foi diagnosticada a progressão da metastização óssea.


23. Fez radioterapia paliativa.


24.Em ... de 2020 voltam a ser evidentes inúmeros focos a nível ósseo, no esqueleto axial e apendicular.


25. Fez quimioterapia.


26. Em ... de 2020 foi diagnosticada a progressão da metastização óssea e hepática.


27. Fez quimioterapia.


28. Em ... de 2021 a falecida progenitora dos jovens é internada em virtude da progressão de metastização óssea e hepática.


29. Fez quimioterapia.


30. Nesta data, em ... de 2021, diagnosticam lesões cervicais em decorrência das metástases.


31.Fez radioterapia paliativa.


32.Em ... de ... de 2021 é diagnosticada amnésia à falecida progenitora.


33.Em ... de ... de 2021 a DD é internada de urgência com diarreia, quadro de desorientação e agravamento do estado geral desde há 4 dias àquela data.


34. Muito confusa.


35.Teve alta a ... de ... de 2021 com “…discreta melhoria do quadro de desorientação.. ” mas com “…agravamento da disfunção hepática e renal”.


36. Veio a falecer a ... de ... de 2021, no Hospital ....


37. À data do falecimento padecia de, para além do problema oncológico:


a. - Ansiedade; b.- Nervosismo; c.- Tensão; d.- Depressão; e.- Distúrbio do sono; f.- Estado de ansiedade; g.- Cefaleia; h.- Perturbação depressiva; i.- Prurido.


38. Desde ... de ... de 2012 que padecia de alterações de memória.


39. Já em ... de ... de 2014 foi-lhe diagnosticada desorientação temporal e lentificação, ficando baralhada em locais públicos.


40. Tomava medicação específica para dormir e para as dores.


41.Em ... de ... de 2021 foi internada no Hospital ... tendo sido diagnosticado que estava “…em últimas horas de vida”.


42. Tendo sido medicada com morfina.


43.Conjugando o estado de saúde de DD e as poucas horas que distam entre a feitura do testamento e a morte, a mesma estava em estado tal que não entendeu o sentido da sua declaração e não tinha o exercício da sua vontade.


44. DD era doente terminal, vinha de sucessivos internamentos com diagnósticos de desorientação, amnésia e toma de medicação ansiolítica e para as dores, incluindo morfina.


Não se provou que:


45. NN mantivesse uma relação de união de facto ou de namoro com DD.


De Direito


A sentença da 1ª instância declarou inválido o testamento outorgado por GG em 24 de agosto de 2021, no essencial, com a seguinte fundamentação:


“ (…) Este Tribunal já decidiu - a 01.3.2022 - por decisão transitada em julgado, que a disposição testamentária do referido documento a constituir tutor AA não era válida e concluiu que AA não é, nem nunca foi tutor de BB e de CC.


Importa, agora, face ao peticionado pelo Ministério Público, apurar da capacidade da testadora e da liberdade da sua pessoa.


Neste sentido, é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória - cfr. art.º 2199.º do Código Civil.


São duas as ordens de razão para decretar a anulação de um testamento:


1. A incapacidade de entender o sentido da sua declaração; e


2. O não ter o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.


O regime legal em causa abrange, não apenas as situações de incapacidade transitória ou acidental, como também as situações de incapacidade permanente - sem que, com ou sem recurso ao regime do maior acompanhado, tenham sido estabelecidos limites à capacidade de testar.


A questão da não existência do livre exercício da vontade por qualquer causa prende-se, já não a uma incapacidade propriamente dita de entendimento, mas sim a uma incapacidade volitiva, uma impossibilidade de decidir de forma diferente.


“A primeira destas regras específicas, constante do artigo 2199.°, refere-se à incapacidade, tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa e dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada. A disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiências psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.


E por conseguinte o mesmo tipo de deficiência psicológica que o artigo 257º considera em relação aos atos entre vivos em geral.


(…)


A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199º, assenta pelo contrário na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.”


Podemos, pois, afirmar que não detém o livre exercício da vontade de testar todo aquele que, por qualquer causa exógena relevante, esteja condicionado na sua capacidade volitiva, nomeadamente aqueles que se encontrem numa posição de vulnerabilidade.

1. Da incapacidade.


Decorre da matéria assente e provada que DD faleceu a ........2021 existindo documento intitulado de testamento, datado de 24.8.2021, onde consta que DD declarou:


(…)


Desde pelo menos ... de 2015, que a falecida mãe do BB e da CC sofria de Carcinoma da mama direita com mestatização óssea e hepática.


(…)


Desde ... de ... de 2012 que padecia de alterações de memória.


Já em ... de ... de 2014 foi-lhe diagnosticada desorientação temporal e lentificação, ficando baralhada em locais públicos.


Tomava medicação específica para dormir e para as dores.


Em ... de ... de 2021 foi internada no Hospital ... tendo sido diagnosticado que estava “…em últimas horas de vida”.


Tendo sido medicada com morfina.


Conjugando o estado de saúde de DD e as poucas horas que distam entre a feitura do testamento e a morte, a mesma estava em estado tal que não entendeu o sentido da sua declaração e não tinha o exercício da sua vontade, sendo DD doente terminal que vinha de sucessivos internamentos com diagnósticos de desorientação, amnésia e toma de medicação ansiolítica e para as dores, incluindo morfina.


Daqui decorre que a mãe de CC e BB, claramente, não estava capaz de entender - questionando o Tribunal se estaria capaz, sequer, de verbalizar fosse o que fosse - não só o que se declarou como tendo sido a sua vontade como também o alcance de tal.


Aliás, decorre à saciedade e cristalinamente da matéria dada como assente e provada e da respetiva fundamentação que para além da inegável incapacidade física para tal, a DD não foi explicado o sentido e alcance daquilo que são reputadas como sendo as suas declarações.


No que à questão física concerne, e em suma, estamos perante:


- Doença oncológica prolongada no tempo;


- Metástases espalhadas pelo corpo;


- Debilidade física, dependendo de terceiros;


- Toma de medicação com afectação da capacidade de raciocínio;


- Diagnóstico de estar nas últimas horas de vida;


- Dispneia (falta de ar) que implica limitação do raciocínio.


O supra, conjugado com o já referido em sede de fundamentação da matéria de facto autoriza que o Tribunal conclua que DD não estava capaz de entender o que estava a fazer e as suas consequências.


A tal acresce que não foi comunicado, pela Sr.ª Notária, a DD quais as consequências da constituição do usufruto sobre a sua casa de morada de família, nomeadamente que tal implicaria que em vida de AA, e na prática, este dispusesse do uso, gozo e fruição da casa, sem ter sequer, que permitir a permanência de BB e CC na casa.


Concluindo, em toda a linha, verifica-se que a mãe de BB e CC, DD, estava incapacitada de entender o que consta como que tivessem sido as suas declarações.

2. Da falta de livre exercício da vontade.


Resulta dos factos provados que no dia ........2021(22 dias antes de falecer) DD permutou com AA um prédio urbano destinado a armazém e atividade industrial por uma fração autónoma destinada a habitação.


A 30.9.2021 os imóveis referidos foram avaliados em € 295.000,00 e € 50.000,00, respetivamente.


Nas últimas semanas de vida de DD eram NN e HH quem acompanhava a falecida mãe dos jovens.


Sendo HH quem levava a DD ao médico e o transporte era feito por AA.


Importa ainda atentar que o denominado testamento a favor de AA tem data de 24.8.2021.


Esta factualidade releva pois é, também ela, fundamento de anulação.


«O medo de incorrer no desagrado de outrem, a quem se deve respeito ou gratidão, não constitui obviamente coação moral (art. 255.º, n.º 3, in fine), porque não há da parte do reverenciado qualquer ameaça ou intimidação. Todavia, quando o temor reverencial se processar relativamente à figura do beneficiário e assumir tais proporções que seja essencial ou determinante da feitura da disposição testamentária, já nos parece possível a anulabilidade por via do erro sobre as qualidades da pessoa do beneficiário, que vimos supra, ou por força da 2.ª parte do art. 2199.º Este enfraquecimento da vontade, esta incapacidade natural de querer testar pode resultar de doença (...), de temor reverencial (...) ou de circunstâncias externas que não constituam coação mas que retirem o livre exercício da vontade ao testador.» .


No caso em concreto é este exato circunstancialismo que permite ao Tribunal concluir que, também por esta via, o testamento é anulável.


Na verdade apurou-se que nas semanas antecedentes à morte da mãe de BB e CC, AA e HH foram os adultos que em permanência estiveram junte da DD.


A tal acresce o facto de nos dias anteriores à data da morte aqueles mesmos AA e HH terem isolado DD das suas companhias habituais, nomeadamente, dos beneficiários do testamento que DD havia feito em 2018 e com quem havia falado recentemente renovando a sua vontade de estes beneficiários irem assumir a seu cuidado BB e CC.


No entanto, de repente, DD faz uma permuta catastrófica em termos patrimoniais - troca um pavilhão de € 295.000,00 por um apartamento de € 50.000,00 com AA - e quando já só AA e HH estão consigo, foi levada(?) às portas da morte, sem se poder mexer, a alterar um anterior testamento, beneficiando AA e cuja testemunha foi HH…para vir, DD, a falecer poucas horas depois…na companhia de AA e HH e dos filhos menores.


Quanto mais não seja, é mais do que óbvio, que DD se sentiu pressionada para fazer o testamento, em favor daqueles que a isolaram e que eram os auto-determinados seus cuidadores, os quais tiveram o cuidado de afastar quem pudesse exercer influência ou esclarecimento em sentido dissonante daquilo que, claramente, foi sua pretensão.


E assim sendo, o testamento, todo ele, é anulado, o que se decreta em conformidade”.


O acórdão recorrido revogou parcialmente a sentença, não por razões de ordem substantiva, até por ter julgado improcedente o recurso da decisão da matéria de facto, mas por ter considerado que a sentença recorrida padecia da nulidade de condenação em objeto diverso do pedido, em violação do artigo 615º n.º 1 al. e) do CPC.


Apresentando, no essencial, a seguinte fundamentação:


“Do exposto, conclui-se que o tribunal para decidir da alteração da regulação das responsabilidades parentais podia apreciar da validade do testamento e que face à ampliação do âmbito da ação admitido pelo Tribunal sem oposição do Recorrente, podia conhecer da anulabilidade da cláusula relativamente à administração dos bens e que por isso não foi apreciada qualquer questão que o juiz não podia examinar. (…)


No que toca à cláusula relativa à administração dos bens (como vimos supra, não de todos os bens, mas dos deixados e doados pela testadora e seus antecessores), visto que esta foi objeto de pedido específico, admitido sem oposição, não temos dúvida que passou a enformar o objeto do processo, tendo, o tribunal que pronunciar-se sobre o mesmo depois de tal admissão.


(…)


Será que a anulação de todo o testamento não extravasa o pedido de anulação de uma das suas disposições testamentárias?


Nas suas doutíssimas alegações, o Ministério Público explica que o requerido sabia que o fundamento de direito em que o Ministério Público alicerçava a sua pretensão era o disposto no art.º 2199.º do C.Civil e, como tal, a ter provimento levaria à anulação do testamento.


E por essa via concluiu que no âmbito deste processo a anulação de uma cláusula testamentaria por incapacidade acidental do testador implica lógica e racionalmente que todas as demais cláusulas também fosse anuladas, o que o Recorrente bem sabia.


Razões de justiça puramente material, sem atender à legalidade estrita podiam conduzir-nos a essa conclusão, por de facto, implicar a imediata aplicação de uma solução consentânea com a prova produzida (infra analisada) e da maior racionalidade: se uma cláusula do testamento é nula por o testador padecer de incapacidade acidental no momento em que foi produzida, o mesmo ocorre com as demais cláusulas do mesmo testamento, produzidas na mesma altura.


No entanto, não podemos, em consciência, alargar o âmbito do decisório para as demais cláusulas.


A matéria em discussão não está materialmente sujeita à livre conformação do juiz, valendo em sede de anulação de testamento a obediência do juiz à legalidade estrita (mas não cega). Com efeito, os interesses em jogo, quanto à validade das cláusulas testamentárias face à capacidade de querer e perceber do testador, são já os típicos interesses de um litígio judicial, de natureza essencialmente patrimonial (os interesses dos herdeiros) e em que se atende à necessidade de defesa da legalidade que a previsão da anulabilidade visou proteger: a observância da efetiva vontade do testador, a correspondência dos negócios jurídicos à realidade.


A anulabilidade, como sabemos, não pode, em regra, salvo disposição especial, ser conhecida oficiosamente e está sujeita a um prazo de arguição, tendo que ser arguida pelas pessoas em cujo interesse a lei estabelece (artigo 287º do Código Civil). É certo que o regime da nulidade e anulabilidade do testamento é especial, não só pela diferença dos prazos, mas essencialmente porque também a nulidade está sujeita a prazo de arguição (artigo 2308.º do Código Civil).


Logo, sem que a anulabilidade das demais cláusulas fosse arguida o juiz não as podia, face ao direito substantivo, conhecer dela oficiosamente. O que desde logo demonstra que a sua decretação sem pedido implica que a sentença se espraiou para objeto diverso do pedido (se bem que paralelo).


Deste modo, não obstante a causa de pedir se ter consubstanciado numa causa geral de anulabilidade - a incapacidade acidental da testadora, o que importa para definir o âmbito das questões a apreciar- porque só foi pedida a anulação de uma cláusula testamentária o juiz não podia oficiosamente anular as demais, condenando, pois, em objeto diferente do pedido.


Embora como bem salienta o Ministério Público a causa da anulação apurada ponha logicamente em causa todo o testamento, entendemos que o Tribunal não podia conhecer dessas consequências para além do que foi pedido sem violar frontalmente o princípio do dispositivo em matérias em que as partes interessadas são soberanas, como é a anulação ou não de um testamento.


Caso se entendesse que não era possível anular apenas uma parte do testamento, como também mencionam o Ministério Público nas suas marcantes alegações, a ação improcederia por a causa de pedir não conduzir ao efeito pedido: a anulação de uma só cláusula, mas essa é agora questão que não nos pode ocupar, saindo do âmbito das questões que cumpre efetivamente decidir.


Daqui se conclui que a sentença é nula na parte em que decidiu sobre a anulabilidade da totalidade do testamento, pronunciando-se sobre cláusulas que não foram objeto do pedido formulado pelo Ministério Público (constantes das alíneas a), d) e e) do ponto 1 do decisório).”


***


A presente ação de alteração da regulação das responsabilidades parentais é um processo tutelar cível ( artigo 3º alínea c) do Regime Geral do Processo Tutelar Cível ( RGPTC), aprovado pelo Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro.


Enquanto processo tutelar cível, tem a natureza de processo de jurisdição voluntária – artigos 3º alínea c) e 12º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.


Assim, está sujeito aos princípios assentes nos artigos 986º a 988º do Código de Processo Civil, que se resumem aos seguintes: a) predomínio do princípio do inquisitório (artigo 986.º, n.º 2), b) predomínio da equidade sobre a legalidade (artigo 987º) e c) livre modificabilidade das decisões ou providências (artigo 988º).


Na vertente do pedido, nos processos de jurisdição voluntária, o princípio do dispositivo está limitado e “o juiz não está adstrito ao pedido formulado, podendo afastar-se dele, na medida em que aquilo que lhe é exigido é a regulação do interesse fundamental em questão pela forma que seja mais conveniente e oportuna. “ ( cf. neste sentido Abrantes Geraldes e Paulo Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anotado vol. II, pág. 460).


O objeto na presente ação, em princípio, não devia ter extravasado o objeto tipificado do processo, relativo às responsabilidades parentais.


No entanto, na sequência de informações médicas e registos clínicos da progenitora juntos aos autos, a Ex.ma Procuradora do MP, em 02.11.2022, pediu que se declarasse anulada “a disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens, nos termos do disposto no art.º 2199.º do Código Civil”, o que foi admitido em 04.11.2022, com a concessão de prazo ao Requerente para se pronunciar sobre esta matéria e apresentar provas.


O Requerente, ora Recorrido, aceitou o alargamento do âmbito do processo, tendo impugnado a alegação do MP e indicado prova.


Como se constata a presente ação de alteração das responsabilidades parentais teve uma tramitação sui generis e, após impulso do MP, passou a ter por objeto a validade de uma cláusula do testamento outorgado em ........2021 por DD, mãe dos menores.


Atenta a factualidade julgada provada em ambas as instâncias, é indiscutível estar comprovada a falta de capacidade da testadora, mãe dos menores, ora Recorrentes, no momento em que lavrou o testamento, para entender o sentido e alcance sentido das suas declarações.


Consequentemente como decidiu a sentença de 1ª instância, nessa parte, não revogada pelo acórdão recorrido, estão verificados os requisitos previstos no artigo 2199º do Código Civil, para a anulação do testamento.


Assim sendo, as conclusões 1ª a 3ª, 6ª a 8ª, 10ª e 11ª dos Recorrentes são irrelevantes, não está em causa, que se verificam os fundamentos de facto e de direito, para a anulação do testamento. Não foi, pois, violado o artigo 2199º do Código Civil.


Na conclusão 4ª, os Recorrentes sustentam ser o testamento nulo, nos termos do artigo 2186º do Código Civil, por ter sido determinado por um fim contrário à lei, ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes.


No entanto, esta questão não foi conhecida nem na sentença de 1ª instância, nem no acórdão recorrido e como é entendimento unânime da doutrina e jurisprudência, há muito consolidada as questões novas não podem ser apreciadas no recurso. Os recursos visam modificar decisões e não a criar soluções sobre matéria nova. ( cf. acórdão do S.T.J. de 6.2.87, B.M.J. n.º 364, pág. 719 e na doutrina Castro Mendes, “ Recursos”, 1980, pág. 27, Armindo Ribeiro Mendes, “ Recursos em Processo Civil”, 1992, págs.140 e 175 e Abrantes Geraldes “ Recursos no Novo Processo Civil, 2ª edição págs. 92 e 93 e acórdãos do STJ citados).


A única questão a decidir está em saber se o tribunal da 1ª instância ao declarar a invalidade do testamento na totalidade, estava a proferir condenação nula por violação do disposto nos artigos 609º n.º1 e 615º n.º 1 al. e) do CPC.


Na verdade o acórdão recorrido não obstante reconhecer não estar em causa a falta capacidade de querer e entender o sentido de qualquer declaração por parte da testadora, decidiu que o tribunal a quo não podia decidir sobre a totalidade de todo testamento, por tal não ter sido objeto do pedido.


Atento disposto nos artigos 3º n.º 1 e 5º n.º1 do CPC, que consagram o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância, são as partes, que circunscrevem o objeto do litígio e a sustentação fática das suas pretensões. Consequentemente a sentença tem de inserir-se no âmbito do pedido e da causa de pedir, não podendo o juiz condenar em quantidade ou objeto diverso do que se pedir.


O autor, ao concluir a sua petição, deve formular o pedido, indicando com precisão o que pretende do tribunal - que efeito jurídico quer obter com a ação” ( cf. Antunes Varela, em Manual de Processo Civil, edição de 1984, p. 233 e 234 ).


Ao autor incumbe formular e definir a pretensão. É um direito que lhe assiste mas, ao mesmo tempo, é um ónus que sobre si impende e cuja insatisfação - total ou parcial - contra si reverte.


Através do pedido o autor indica a providência requerida, circunscrevendo o objeto do processo, não cabendo ao juiz decidir se à situação real conviria uma providencia diversa ou com maior amplitude.


No caso apesar de a questão da verificação dos requisitos previstos no artigo 2199º do Código Civil, ter sido decidido num processo de jurisdição voluntária, como consta da fundamentação do acórdão recorrido, na matéria da anulação do testamento, o juiz está sujeito à legalidade estrita. Com efeito, os interesses em jogo, quanto à validade das cláusulas testamentárias face à capacidade de querer e perceber do testador, são já os típicos interesses de um litígio judicial, de natureza essencialmente patrimonial (os interesses dos herdeiros) e em que se atende à necessidade de defesa da legalidade que a previsão da anulabilidade visou proteger: a observância da efetiva vontade do testador, a correspondência dos negócios jurídicos à realidade.


Assim, quanto à questão da anulabilidade do testamento, o tribunal está sujeito ao princípio do dispositivo e, por isso, carece de fundamento imputar ao acórdão recorrido a violação dos artigos 986º n.º 2 e 987º do CPC.


Os Recorrentes invocam o acórdão do STJ de 11.02.2015, processo n.º 607/06.2TBCNT.C1.S1, relator Abrantes Geraldes, que tem o seguinte sumário: I. O princípio do dispositivo impede que o tribunal decida para além ou diversamente do que foi pedido, mas não obsta a que se profira decisão que se inscreva no âmbito da pretensão formulada. II. Pedindo os autores o reconhecimento de um muro que delimita os quintais dos dois prédios urbanos confinantes, não constitui excesso de pronúncia, nem fere o princípio do dispositivo a decisão judicial que com fundamento na presunção legal do artigo 1371º, n.º 2 do CC, reconhece que o muro é compropriedade de ambas as partes.”


Como refere o citado acórdão, o princípio do dispositivo tem sido interpretado de forma menos rígida na jurisprudência, como são exemplo, o Assento n.º 4/95, publicado no DR de 17.05, ao admitir que numa ação em que seja deduzida uma pretensão fundada num contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada o réu seja condenado a restituir o que tenha recebido no âmbito desse contrato, por aplicação do art. 289º do CC, desde que do processo constem os factos suficientes e o AUJ nº 3/01, publicado no D.R., I Série-A, de 9-2, que firmou a jurisprudência segundo a qual numa ação de impugnação pauliana em que tenha sido erradamente formulado o pedido de declaração de nulidade ou de anulação do ato jurídico impugnado o juiz deve corrigir oficiosamente esse erro e declarar a ineficácia que emerge do direito substantivo.


O acórdão do STJ de 07.04.2016, processo n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1, relator Lopes do Rego, admite a correção de um deficiente enquadramento normativo do efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou requerente, convolando-se para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa.


No entanto, como já explicava Alberto dos Reis, no CPC Anotado, vol. V, pp. 67 e 68, com a sua habitual clareza o “juiz não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade os limites dos pedidos formulados pelas partes.”


Pode condenar em menos e numa medida menos radical, não pode é condenar em mais, nem em objeto diverso.


As partes dispõem do processo, como da relação jurídica material, o tribunal não pode ser instrumento de tutela de nenhum dos litigantes, no caso, do demandante e completar ou a alterar o pedido formulado.


Apesar de se aceitar que o princípio do dispositivo deve ser mitigado, o que continua a ser entendimento pacifico é a impossibilidade do juiz ultrapassar o limite resultante do pedido, mesmo no domínio das denominadas dívidas de valor ( cf. neste sentido o Assento 13/96 e o AUJ n.º 9/15).


Recaí sobre o autor o ónus de requer a ampliação do pedido primitivo, não o tendo requerido o tribunal não pode ultrapassar o pedido condenando em quantidade superior ou em objeto diverso do peticionado.


Ora, no caso, tendo o MP pedido a anulação da “disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens, nos termos do disposto no art.º 2199.º do Código Civil”, como decidiu o acórdão recorrido, não obstante a causa de pedir se ter consubstanciado numa causa geral de anulabilidade - a incapacidade acidental da testadora, o juiz não podia oficiosamente anular as demais.


Não é pela circunstância de no pedido apresentado pelo MP constar a referência ao artigo 2199º do Código Civil, que se pode interpretar o pedido, como abrangendo todas as cláusulas do testamento. O pedido formulado é claro e preciso , limita-se à anulação da “disposição testamentária a instituir o requerido administrador dos bens.”


De referir, que apenas a questão de saber se o Requerente AA da ação de alteração de responsabilidades parentais podia continuar a ser administrador dos bens deixados ou doados aos seus filhos pela testadora ou pelos seus pais, avós maternos, permitiu, nos termos do artigo 91º do Código de Processo Civil que nessa ação cujo objeto é a regulação das responsabilidades parentais se pudesse conhecer da anulação da disposição testamentária que o nomeava administrador.


Note-se que a anulação do testamento não é da competência dos Juízos de família e menores, por que não integrar a previsão de nenhuma das alíneas os artigos 122º e 123º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, nº 62/2013, que estabelecem a competência desses Juízos.


Os Recorrentes na conclusão 10ª invocam ainda o artigo 292º do Código Civil, defendendo que não se justifica a anulação parcial, por estar demonstrada a incapacidade da testadora mas como se referiu, no caso, não está em causa, que da factualidade provada havia fundamento para se julgar anulado o testamento na totalidade. De resto, como refere o acórdão recorrido caso se entendesse que não era legalmente admissível a anulação de uma só cláusula, o pedido formulado pelo MP teria de improceder.


No entanto, a questão a decidir neste recurso, reside no respeito pelo princípio do dispositivo e em ter a sentença da 1ª instância, violado o disposto no artigo 609º n.º 1 do CPC.


A proibição contida neste normativo, da sentença condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir, está formulada em rigorosa conformidade com o princípio do dispositivo, mas também para que não resulte violado o princípio do contraditório.


Como decidiu o acórdão recorrido, apenas foi cumprido o contraditório, quanto à pretensão do MP, de anular a disposição testamentária que nomeava o requerente da ação, como administrador, ficando, por isso, definido o objeto desse incidente.


Por isso, não podia o juiz alterar e ampliar o pedido do MP, em representação dos menores e declarar anulado todo o testamento, sob pena de violação não só do princípio do dispositivo, como também do princípio do contraditório.


Improcedem e são irrelevantes as conclusões dos Recorrentes.


III -Decisão


Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e confirma-se o acórdão recorrido.


Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 10.04.2024


Leonel Serôdio ( Relator)


Rui Gonçalves ( 1º adjunto)


Maria do Rosário Gonçalves (2ª adjunta)