Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
810/14.1TAVR-A.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
POSSE
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PROMITENTE-COMPRADOR
ANIMUS POSSIDENDI
CONSENTIMENTO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 05/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITOS REAIS / POSSE.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 1251.º, 1268.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 17/04/2007, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Os embargos de terceiro só podem, hoje, ser deduzidos com um de dois fundamentos: o exercício da posse ou a titularidade de direito incompatível com a execução em curso.

II - A concessão ao possuidor do meio de defesa referido em I assenta na presunção de titularidade do direito nos termos do qual possui (arts. 1251.º e 1268.º, n.º 1, ambos do CC), pelo que, alegando-se o exercício do direito de propriedade, tal é evidentemente incompatível com a invocação de que o embargado é o proprietário do bem possuído.

III - O promitente adquirente pode ser havido como possuidor em nome próprio conquanto, além da entrega da coisa, pratique, em nome próprio, atos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa com o intuito de o exercer.

IV - Afirmando a própria embargante que a sua ocupação do imóvel era feita com o consentimento da embargada é de concluir que não teve intenção de se arrogar, através dos atos materiais que praticava, a qualidade de proprietária do imóvel – antes reconhecendo que esses atos ocorriam quando e enquanto aquela era proprietária –, faltando-lhe o necessário animus, motivo pelo qual os embargos foram bem rejeitados.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 2015.01.22, na Comarca de Aveiro – Instância Central – 1ª Secção Cível, AA, SA, por apenso aos autos e um procedimento cautelar que a Caixa BB - Instituição Financeira de Crédito, SA move contra CC – Aluguer e Comércio de Automóveis SA, deduziu os presentes embargos de terceiro, pedindo que fosse reinvestida na posse do imóvel que integrava o estabelecimento comercial da embargada CC.


Alegou

em resumo, que

 - em 7 de Fevereiro de 2014, celebrou com o administrador de insolvência da referida sociedade CC um contrato-promessa, através do qual prometeu comprar o estabelecimento comercial da insolvente, pelo preço de € 365.000,00, procedendo ao pagamento de um sinal correspondente a 20% do preço, vindo a embargante, desde a data da celebração do referido contrato, a explorar o dito estabelecimento, com todas as suas valências;

- no dia 22 de Dezembro de 2014, foi levada a efeito uma diligência de entrega judicial do identificado imóvel, diligência que foi executada sem que a embargante tivesse tido tempo para retirar os bens que aí se encontravam;

- na sequência de sucessivos despachos tendo em vista esclarecer a factualidade alegada na petição inicial, designadamente para apurar se a embargante era proprietária de bens móveis que se encontravam no interior das instalações em causa, veio a mesma informar que todo o equipamento aí existente foi adquirido pela sociedade CC, a qual posteriormente, celebrou com a embargante “a venda judicial” referida nos autos, com “adjudicação do estabelecimento e todos os bens que o compõem”.


Em 2015.06.09 e após tais esclarecimentos, foi proferida decisão, em que se rejeitou os embargos de terceiro deduzidos, com fundamento, designadamente, no facto de que a embargante não ser proprietária do estabelecimento, sendo, além disso, precária a posse em que eventualmente haja sido investida na sequência do contrato-promessa celebrado com o administrador da insolvência da CC.


A embargante apelou, sem êxito, pois a Relação do Porto, por acórdão de 201511.26, confirmou a decisão recorrida.


Novamente inconformada, a embargante deduziu revista excecional - que foi admitida pela formação a que alude o nº3 do artigo 672º do Código de Processo Civil - apresentando as respectivas alegações e conclusões.

A recorrida Caixa BB contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Cumpre decidir.


As questões


Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido

a única questão proposta para resolução consiste em saber se se verificam os pressupostos dos embargos de terceiro.


Os factos


São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias, para além do descrito no relatório introdutório:

1. Após anúncio do administrador da insolvência no processo nº 930/12.7T2AVR, publicitando a venda, por propostas em carta fechada, dos bens apreendidos à insolvente CC – Aluguer e Comércio de Automóveis, S.A., no dia 10 de Dezembro de 2013, pelas 16 horas e 30 minutos, procedeu-se à abertura da única proposta apresentada, sendo dela proponente AA, S.A., para compra dos dois lotes anunciados pelo valor de € 365.000,00 (trezentos e sessenta e cinco mil euros).

2. Aprovada, por maioria, pela Comissão de Credores, a proposta apresentada, a 07.02.2014 foi celebrado entre o Administrador da Insolvência nomeado no mencionado processo e a proponente AA, S.A. contrato-promessa de compra e venda pelo qual o primeiro prometeu vender à segunda ou a pessoa que esta venha a indicar, livre de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço de € 365.000,00, o estabelecimento da massa insolvente CC – Aluguer e Comércio de Automóveis, S.A.

3. Nos termos da cláusula quarta do referido contrato, a proponente, que entregou à vendedora, no ato da abertura da proposta, a quantia de € 73.000,00, correspondente a 20% do valor da compra, obriga-se ao pagamento do remanescente do preço no ato da escritura definitiva de compra e venda, que, de acordo com a cláusula quinta, deverá ser celebrada no prazo máximo de 120 dias a contar da celebração do contrato-promessa, incumbindo à promitente-compradora promover a sua marcação, devendo avisar o promitente-vendedor com uma antecedência mínima de dez dias.

4. Posteriormente à celebração do referido contrato-promessa, o imóvel onde estava instalado o estabelecimento comercial da sociedade insolvente foi judicialmente entregue à Caixa BB, proprietária do mesmo.


Os factos, o direito e o recurso


Na sentença proferida na 1ª instância julgaram-se os embargos improcedentes porque se entendeu que, baseando a embargante a sua pretensão apenas num contrato promessa celebrada com a massa insolvente da CC, não era a proprietária do imóvel prometido vender e apenas uma possuidora precária, sendo que a própria sociedade insolvente, com cuja massa havia sido celebrado o contrato promessa, nem sequer era a proprietária do imóvel.


No acórdão recorrido, concordando-se com o decidido na 1ª instância, acentuou-se que face aos factos dados como provados não se podia concluir que a embargante tivesse a posse do imóvel, na medida em que apesar de existir a “traditio”, inexistirem factos que demostrassem o “animus”, ou seja, que aquela “traditio” se exercia combinada com a intenção da embargante de se comportar como uma verdadeiro proprietária.


A recorrente embargante discorda, porque entende que tinha “a posse pacifica, pública e de boa fé desde a data da celebração do contrato promessa de compra e venda, sendo conhecedora do facto a Caixa BB – Instituição de Crédito SA, que deu o seu consentimento ao negócio (…)”.


Cremos que não tem razão e se decidiu bem.


Nos termos do disposto no nº1 do artigo 342º do Código de Processo Civil “se a penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular de quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.


Daqui resulta que os embargos de terceiro podem, hoje, ser deduzidos com um dois fundamentos: ou o terceiro alega e prova que é possuidor, beneficiando da presunção de titularidade do direito nos termos do qual possui; ou alega e prova ser titular do direito incompatível com a execução em curso.


No caso concreto em apreço, a embargante alegou ser possuidora do imóvel, na medida em que explorava o estabelecimento que nele funcionava, tendo sido “investida na posse” desde “a data da assinatura do contrato promessa” que havia outorgado com a massa falida da “CC”.

Ou seja, a embargante alegou que o modo de aquisição da posse que exercia sobre o imóvel assentava naquele contrato promessa e na subsequente exploração de um estabelecimento instalado no imóvel.


Está provado e a própria embargante reconhece, que a titular do direito de propriedade sobre o imóvel é a embargada Caixa BB.


A concessão deste meio ao possuidor sempre teve como razão ultima a presunção de titularidade do direito de fundo que a posse concede ao possuidor em nome próprio – cfr. artigos 1268º, nº1 e 1251º, ambos do Código Civil – sem prejuízo de a ele poderem também aceder certos possuidores em nome alheio, a quem a lei faculta os meios possessórios – o locatário, o parceiro pensador, o comodatário e o depositário.


O reconhecimento do direito de propriedade por parte da embargada Caixa BB é evidentemente incompatível com a alegada posse da embargante, pelo que os embargos por aqui e desde logo tinham que ser considerados improcedentes.


E mesmo tendo em consideração o contrato promessa invocado pela embargante a tal conclusão sempre teríamos que chegar.


Tem-se entendido que o promitente adquirente pode ser havido como possuidor em nome próprio.

Mas para isso, seria necessário que além da entrega da coisa, esse promitente praticasse atos materiais, em nome próprio, correspondentes ao exercício de direito em causa, no caso, o direito de propriedade.


Tal ocorre quando “obtido o corpus pela tradição a coberto daquela pressuposição de cumprimento do contrato definitivo na expetativa de que tal se verifique, pratica atos de posse com animus de estar a exercer o correspondente direito de propriedade em seu próprio nome, ou seja, intervindo sobre a coisa como se fosse sua” – acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2007.04.17 “in” www.dgsi.pt .


Um dos casos específicos apontados pela jurisprudência é o de ter havido pagamento da (quase) totalidade do preço conjugado com a prática de atos materiais e com a extensão temporal da situação.


Ora, no caso concreto em apreço, a própria embargante afirma que a ocupação que fazia do imóvel era feita com o “consentimento” da embargada Caixa BB – cfr. artigo 8º da petição inicial destes embargos.

Assim, manifestamente, temos que concluir que da sua parte não houve a intenção de se arrogar, através de atos materiais que praticava, proprietária do imóvel, antes reconheceu que esses atos ocorriam quando e enquanto aquela embargada era proprietária.


Faltando assim o “animus”, nunca a embargante poderia ser considerada possuidora do imóvel.


Ora, não tendo invocado ser proprietária deste, nem podendo ser considerada possuidora do mesmo, inexiste qualquer dos fundamentos acima enunciados como sustentação dos embargos, pelo que estes não podiam deixar de se rejeitados, como bem se decidiu nas instâncias.


Motivo pelo qual não merece qualquer censura o acórdão recorrido


A decisão


Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 12 de Maio de 2016


Oliveira Vasconcelos (Relator)

Fernando Bento

João Trindade