Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B708
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ALUGUER DE AUTOMÓVEL SEM CONDUTOR
ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
REVELIA
CASAMENTO
DOCUMENTO ESCRITO
PROVEITO COMUM DO CASAL
Nº do Documento: SJ200703220007087
Data do Acordão: 03/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O regime legal específico da indústria de veículos automóveis sem condutor é inaplicável aos contratos de aluguer de longa duração de veículos automóveis, que são celebrados ao abrigo do princípio da liberdade negocial decorrente do artigo 405º do Código Civil, e regulados pelas normas daquele diploma que regem sobre o contrato de aluguer e pelas cláusulas neles insertas que não contendam com algum normativo de natureza imperativa.
2. O efeito cominatório próprio da revelia absoluta operante não ocorre quanto a factos para cuja prova a lei exija documento escrito, independentemente de a vontade das partes ser ou não eficaz para a produção do efeito jurídico que pela acção se pretende obter.
3. Seja qual for o tipo de acção em causa, o contrato de casamento só pode ser considerado provado desde que conste do processo a respectiva certidão ou boletim de registo.
4. A expressão no sentido de que o contrato de aluguer celebrado pelo réu marido tendo em vista o proveito comum do casal dos réus e o veículo foi utilizado em proveito comum e para benefício do casal dos ditos réus, pelo que a ré Carla é solidariamente responsável por estes débitos do réu José, seu marido, para com a autora não constitui vertente de facto susceptível de fundar a condenação do cônjuge do locatário com base no proveito comum do casal. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Empresa-A intentou, no dia 2 de Novembro de 2005, contra AA e BB, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação solidária a restituir-lhe o veículo automóvel com a matrícula nº RR, a pagar-lhe € 4.447,85 e juros à taxa legal, € 599,58 mensais desde 10 de Novembro de 2005 até à restituição daquela viatura, o que se liquidasse em execução de sentença relativamente à indemnização dos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento do contrato, e na sanção pecuniária compulsória diária crescente de € 50, € 100, € 150 até à entrega do veículo.
Como causa de pedir, invocou, relativamente a AA o incumprimento de um contrato de aluguer de longa duração relativo àquele veículo automóvel, e, quanto a BB, o proveito comum do casal constituído entre ambos.
Os réus, pessoalmente citados, não contestaram a acção, e, no dia 29 de Março de 2006, foi proferida a sentença, que absolveu a ré do pedido e condenou o réu nos termos pretendidos pela autora, salvo na sanção pecuniária compulsória.
Apelou a autora, e a Relação, por acórdão proferido no dia 31 de Outubro de 2006, negou provimento ao recurso.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- não estão em causa direitos indisponíveis, a vontade das partes é eficaz para a produção dos efeitos jurídicos pretendidos com a acção, pelo que não é necessária a junção da certidão de casamento dos recorridos;
- a certidão de casamento só é necessária para a sua prova nas acções de estado e não naquelas em que o casamento não represente o thema decidendum, desde que não haja disputa das partes sobre a sua existência;
- é legalmente admissível a prova do casamento dos recorridos por confissão, de harmonia com o disposto nos artigos 1º, n.º 1, alínea d), 4º e 211º do Código do Registo Civil e 784º do Código de Processo Civil;
- como os recorridos não contestaram a acção, não impugnando o facto de serem casados, o seu casamento deve ser considerado provado;
- provado que o contrato de aluguer foi celebrado pelo recorrido tendo em vista o proveito comum do casal constituído por ele e pela recorrida e que o veículo automóvel foi utilizado em proveito comum e para beneficio daquele casal, ela deve ser condenada solidariamente com ele;
- o acórdão recorrido violou os artigos 1691º, n.º 1, alínea c), do Código Civil e 463º, n.º 1, 484º n.º 1 e 784º do Código de Processo Civil.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. AA pretendeu adquirir o veículo automóvel da marca Skoda, modelo Fabia 1.4 Tdi Confort, com a matrícula nº RR, com o valor de € 14 604,80, e contactou para o efeito a sociedade Empresa-B.
2. Como AA não se dispusesse ou não pudesse pagar a pronto o preço do referido veículo, solicitou a Empresa-B que lhe possibilitasse o aluguer do mesmo por um período de sessenta meses, com a colaboração ou intervenção da autora para tal.
3. Na sequência do que lhe foi solicitado por Empresa-B, em nome do referido AA, a autora adquiriu o referido veículo automóvel a fim de o alugar ao último.
4. Representantes da autora, por um lado, e AA, por outro, declararam por escrito, no dia 30 de Maio de 2001:
- a primeira dar de aluguer ao último o veículo automóvel com a matrícula nº RR, durante 60 meses;
- ser mensal a periodicidade dos sessenta alugueres, inicialmente no montante de 58 138$ cada, incluindo o prémio do seguro de vida e o imposto sobre o valor acrescentado à taxa de 17%, e, posteriormente, após Maio de 2002, do montante de € 294,89 cada, incluindo aquele imposto à taxa então de 19% e, finalmente, após Junho de 2005, no montante de € 299,79 cada, incluindo o aludido imposto, à taxa de 21%;
- dever a importância de cada um dos referidos alugueres mensais ser paga à primeira pelo último até ao dia dez do mês a que respeitasse, por meio de transferência bancária;
- implicar a falta de pagamento de qualquer dos ditos alugueres a possibilidade de resolução do contrato pela primeira, tornada efectiva após comunicação fundamentada em tal sentido, feita pela primeira ao último;
- ficar o último obrigado a restituir à primeira o dito veículo, fazendo esta seus os alugueres até então pagos, e devendo ele pagar os alugueres em mora, o valor dos danos que o veículo apresentasse, e, ainda, uma indemnização para fazer face aos prejuízos resultantes da desvalorização do veículo e do próprio incumprimento do contrato, não inferior a cinquenta por cento do valor total dos alugueres acordados.
5. O referido preço mensal do aluguer de 58 138$ - ao presente € 289,99 - após Maio de 2002, de € 294,89, e após Junho de 2005, de 299,79, que correspondia a 49 127$ - ao presente € 245,04 - de aluguer propriamente dito, mais 8.352$00 - ao presente € 41,66 - à taxa de 17%, a partir de Junho de 2002, € 46,56 à taxa de 19%, a partir de Julho de 2005, € 51,46 de imposto sobre o valor acrescentado à taxa de 21%, mais 659$00 - ao presente € 3,29 - do prémio do seguro de vida.
6. AA recebeu o veículo automóvel mencionado sob 1 após a outorga referida sob 4, e passou a utilizá-lo.
7. AA não entregou à autora os alugueres a partir do 39º, inclusive, que se venceu no dia 10 de Setembro de 2004, nem os vencidos até à data da resolução do contrato, designadamente o 40º - vencido em 10 de Outubro de 2004 – o 41º - vencido em 10 de Novembro de 2004 -, o 42º - vencido em 10 de Dezembro de 2004 – o 43º - vencido em 10 de Janeiro de 2005 – o 44º - vencido em 10 de Fevereiro de 2005 – o 45º - vencido em 10 de Março de 2005- o 46º -vencido em 10 de Abril de 2005 – o 47º - vencido em 10 de Maio de 2005 - o 48º - vencido em 10 de Junho de 2005 - o 49º - vencido em 10 de Julho de 2005 – o 50º - vencido em 10 de Agosto de 2005 – o 51º - vencido em 10 de Setembro de 2005 - no total correspondente a € 3.848,27, incluindo os prémios do seguro de vida, o imposto sobre o valor acrescentado à taxa de 19% quanto aos alugueres vencidos entre 10 de Setembro de 2004 e 10 de Junho de 2005 e à taxa de 21% quanto aos restantes.
8. AA não entregou à autora o valor mensal do dobro de cada aluguer vencido desde a data da resolução do contrato até 2 de Novembro de 2005, ou seja, o equivalente a € 599,58, no total de € 4.447,85.
9. O contrato de aluguer celebrado pelo réu marido tendo em vista o proveito comum do casal dos réus e o veículo foi utilizado em proveito comum e para benefício do casal dos ditos réus, pelo que a ré BB é solidariamente responsável por estes débitos do réu AA, seu marido, para com a autora.
III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida deve ou não ser condenada solidariamente com o recorrido, no confronto com a recorrente, nos termos em que aquele o foi.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre o recorrido e a recorrente;
- o casamento é ou não susceptível de prova por confissão ficta?
- a estrutura da expressão constante de II 9 e a sua consequência jurídica;
- deve ou não a recorrida ser considerada vinculada perante a recorrente identicamente ao recorrido?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise da natureza do contrato celebrado entre o recorrido e a recorrente.
No tribunal da 1ª instância, foi o referido contrato qualificado como sendo de aluguer de veículo automóvel sem condutor, a que se reporta o Decreto-Lei nº 364/86, de 23 de Outubro, qualificação que a Relação aceitou.
Este Tribunal, no recurso de revista, não está vinculado à qualificação jurídica do referido contrato operada nas instâncias, pelo que vamos empreendê-la com base nos factos assentes (artigo 729º, nº 1, do Código de Processo Civil).
No módulo negocial mencionado sob II 1 a 4, no que concerne ao veículo automóvel com a matrícula nº RR, Empresa-B figura como vendedora dele à recorrente e esta como locadora do mesmo no confronto do recorrido.
Trata-se de dois contratos objectivamente conexionados, embora com sujeitos não coincidentes, e cada um com o escopo específico, surgindo o de compra e venda como instrumental do aluguer (artigos 874º, 1022º e 1023º do Código Civil).
Com efeito, no módulo contratual mencionado sob II 4, a recorrente figura como locadora e o recorrido como locatário, do que decorre, prima facie, estar-se perante um contrato de locação de execução duradoura celebrado entre a primeira e o último.
As declarações negociais em que o referido contrato se consubstancia não configuram o contrato de locação financeira a que se reporta o Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho - alterado pelo Decreto-Lei nº 285/2001, de 3 de Novembro – além do mais, por virtude de não haver sido convencionado o direito potestativo de o recorrido, findo o contrato de locação, adquirir o direito de propriedade sobre o veículo automóvel em causa.
O que releva essencialmente no caso vertente são as declarações negociais dos representantes da recorrente em nome desta e do recorrido, por via das quais eles convencionaram no sentido de a primeira ceder ao último, por determinado prazo, por via de determinada retribuição mensal, o gozo do mencionado veículo automóvel.
E dessas declarações negociais o que decorre é que estamos perante um contrato de aluguer de veículo automóvel de longa duração (artigos 1022º e 1023º do Código Civil).
Tem sido controvertida a determinação do regime legal deste tipo de contratos; mas ele há-de ser, como é natural, o que resultar do teor das respectivas declarações negociais e das normas jurídicas que as comportem.
O regime específico do exercício da indústria de veículos automóveis sem condutor, que consta no Decreto-Lei nº 354/86, de 23 de Outubro - alterado pelos Decretos-Leis nºs 373/90, de 27 de Novembro, e 44/92, de 31 de Março – versa essencialmente sobre os requisitos da concessão, transmissão e da cassação do alvará de exploração, tipo de veículos automóveis que podem ser objecto dessa indústria, condições do seu licenciamento, conteúdo dos contratos respectivos e responsabilidade derivada da prática de contra-ordenações.
Conforme resulta das suas normas, o referido diploma visa satisfazer necessidades transitórias ligadas às actividades turísticas ou empresariais por via de celebração de contratos de aluguer de veículos automóveis de curto prazo, tradicionalmente designados por aluguer de veículos automóveis sem condutor.
Assim, pela sua estrutura literal e fim, o referido regime legal não comporta o contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel celebrado entre o recorrente e a recorrida, que aqui está em análise.
Do que se trata, na realidade, é de um contrato de aluguer celebrado pelas partes no quadro da sua liberdade negocial, à luz do disposto no artigo 405º do Código Civil, regulado pelas normas do Código Civil que regem sobre o contrato de aluguer e pelas cláusulas nele insertas que não contendam com algum normativo de natureza imperativa.
Dele resultaram, para a recorrente a obrigação de entrega do mencionado veículo automóvel ao recorrido, e para este a obrigação de entrega àquela do montante de cada uma das prestações de aluguer.
No que concerne à responsabilidade civil decorrente do incumprimento do referido contrato regem o que as partes convencionaram a esse propósito, as normas especiais concernentes ao contrato de aluguer e as gerais que versam sobre a matéria, designadamente os artigos 406º, nº 1, 432º, nº 1, 562º, 563º, nº 1, 564º, 566º, 799º, nº 1, 762º, 798º, 799º, 800º e 810º a 812º do Código Civil.

2.
Atentemos agora sobre se o casamento é ou não susceptível de prova por confissão ficta.
Nas instâncias foi entendido em sentido negativo, e, porque as partes não juntaram a certidão ou o boletim de casamento dos recorridos emitidos pela Conservatória do Registo Civil, não podia BB ser condenada no confronto da recorrente.
A recorrente discorda desse entendimento sob a argumentação, baseada em decisão jurisprudencial, de a acção versar sobre direitos disponíveis, e, por isso, ser admissível a prova do casamento dos recorridos por confissão, que ocorreu dado não haverem deduzido contestação.
Atentemos no que resulta da lei que nos cumpre aplicar no caso veiculado pelo recurso, tendo em conta que os recorridos, regularmente citados para contestar uma acção cuja causa de pedir assenta essencialmente na responsabilidade civil contratual, a não contestaram.
Uma das excepções ao efeito cominatório da revelia é a de a lei exigir documento escrito para a prova de determinado facto (artigos 463º, nº 1, e 485º, alínea d), do Código de Processo Civil).
Exigindo a lei, como forma da declaração negocial, o documento escrito, este não pode ser substituído por meio de prova diverso (artigo 364º, nº 1, do Código Civil).
E se a lei apenas exigir documento escrito para a prova da declaração negocial, ele só pode ser substituído por confissão expressa judicial ou extrajudicial, neste último caso desde que a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório (artigo 364º, nº 2, do Código Civil
No caso especial em apreciação, do que se trata é do contrato de casamento, que é obrigatoriamente sujeito a registo civil e só pode ser provado por certidão ou por boletim, um e outro emitidos pela Conservatória do Registo Civil que tenha elaborado o respectivo assento (artigos 1º, nº 1, alínea d), 4º e 211º do Código do Registo Civil).
Em consequência, se algum facto constitutivo do direito do autor, por força da lei, dever ser provado por documento escrito, a confissão ficta a que se reporta o artigo 484º, nº 1, do Código de Processo Civil não pode operar.
Paralelamente, quando se trate de direitos indisponíveis, como é o caso dos que são objecto de acções de estado, também a referida confissão ficta não pode relevar (artigo 485º, alínea c), do Código de Processo Civil).
A lei não autonomiza, no quadro das excepções ao efeito cominatório da revelia, o caso de o documento escrito ser legalmente exigido para a prova de determinados factos e a situação de se tratar de direitos indisponíveis, como é o caso das acções de estado.
Ademais, a lei não distingue, a propósito da excepção ao efeito cominatório da revelia derivada da exigência legal para a prova de determinado facto de documento escrito, e não se vislumbram razões de sistema que imponham a distinção, tanto mais que, no que concerne a acções de estado, a lei prevê expressamente idêntica excepção.
Assim, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que, seja qual for o tipo de acção em causa, o contrato de casamento só pode ser considerado provado desde que conste do processo a respectiva certidão ou boletim de registo.
Isso significa, ao invés do que a recorrente alegou, que o contrato de casamento, não é susceptível de ser provado, seja por via de confissão real, seja por via de confissão ficta.
Com efeito, o efeito cominatório próprio da revelia absoluta operante não ocorre relativamente a factos para cuja prova a lei exija documento escrito, independentemente de a vontade das partes ser ou não eficaz para a produção do efeito jurídico que pela acção se pretende obter (artigo 485º, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil).

3.
Vejamos agora a estrutura da expressão constante de II 9 e a respectiva consequência jurídica.
A recorrente alegou dever considerar-se provado e relevante que o contrato de aluguer foi celebrado tendo em vista o proveito comum do casal constituído pelos recorridos e que o veículo automóvel foi utilizado em proveito comum e beneficio desse casal.
Expressou-se sob II 9, como se de factos constitutivos do direito da recorrente no confronto da recorrida se tratasse, por um lado, que o contrato de aluguer celebrado pelo réu marido teve em vista o proveito comum do casal dos réus e o veículo foi utilizado em proveito comum e para benefício daquele casal.
E, por outro, que a ré BB é solidariamente responsável por estes débitos do réu AA, seu marido, para com a autora.
A Relação afirmou que a mencionada expressão não era susceptível de confissão, por não ser integrada por factos, mas exclusivamente por conceitos conclusivos e de direito, e, com base nisso, anulou-a, invocando o disposto nos artigos 484º, nº 1 e 646º, nº 4, do Código de Processo Civil.
E acrescentou que o proveito comum não se confunde com o comportamento que é susceptível de o preencher, que exige um juízo de subsunção e de valoração por parte do tribunal.
Os direitos de que umas pessoas são titulares no confronto de outras têm a sua origem em factos jurídicos que os constituem, pelo que se elas deles se pretenderem valer em juízo têm, em regra, de os alegar e provar (artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
Assim, os direitos da titularidade das pessoas são individualizados através dos factos jurídicos que os originaram, ou seja, por via da respectiva causa de pedir.
Os factos materiais são, grosso modo, os eventos materiais e concretos, nomeadamente os comportamentos de acção ou de omissão das pessoas em geral; e os factos jurídicos os referidos factos materiais perspectivados à luz de normas e critérios de direito.
Os factos jurídicos são, assim, os acontecimentos da vida real conformados com as previsões normativas concedentes dos direitos cujo reconhecimento é pretendido pelas partes.
Dir-se-á, conforme consta no acórdão recorrido, que os factos jurídicos são pedaços do acontecer constante artificialmente recortados de harmonia com as pertinentes previsões normativas.
Impunha-se, por isso, que a recorrente indicasse, como fundamento do seu direito a exigir a condenação da recorrida, os pertinentes factos jurídicos - factos concretos juridicamente relevantes para o efeito – integrantes da respectiva causa de pedir (artigos 193º, nºs 1 e 2, 264º, nº 1, 467º, nº 1, alínea d) e 498º, nº 4, do Código de Processo Civil).
A lei exige que as partes cumpram o princípio da substanciação, que decorre, além do mais, do nº 4 do artigo 498º do Código de Processo Civil, o que não acontece se expressarem, como se tratasse da vertente fáctica da causa de pedir, afirmações de pendor puramente jurídico, meramente conclusiva ou envolvendo juízos de valor.
O que consta de II 9, extraído das declarações produzidas pela recorrente na petição inicial da acção, são, por um lado, conceitos jurídicos e, por outro conclusões jurídicas e juízos de valor.
O tribunal da primeira instância considerou assentes as referidas afirmações por virtude da revelia absoluta operante – ausência de contestação - em que os recorridos se constituíram, em quadro da sua consequência negativa do efeito cominatório.
O efeito cominatório não se reporta ao pedido – caso em que seria pleno, com a consequência de confissão de facto e de direito – mas tão só a factos, pelo que é semi-pleno (artigo 484º, nº 1, do Código de Processo Civil).
As afirmações que constam de II 9 não constituem expressão de factos jurídicos integrantes da previsões normativas concedentes do direito que a recorrente pretende fazer valer em juízo no confronto da recorrida.
Com efeito, até o próprio proveito comum do casal, tal como foi referido pela recorrente na petição inicial e consta de II 9, se traduz em conceito de direito, cuja relevância dependia de afirmação de factos susceptíveis de o integrar.
As referidas realidades de pendor jurídico não são, como é natural, susceptíveis de confissão real, prevista no artigo 352º do Código Civil, nem da confissão ficta a que se reporta o artigo 484º, nº 1, do Código Civil.
Por isso, a solução em relação a tais afirmações não pode deixar de ser, tal como foi considerado no acórdão recorrido, a de as considerar absolutamente ineficazes (artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil e 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil).

4.
Atentemos agora sobre se deve ou não considerar-se a recorrida vinculada perante a recorrente nos mesmos termos do recorrido.
Sendo os recorridos casados, pretendendo a recorrente responsabilizar a recorrida com fundamento em que o contrato de aluguer de longa duração do veículo automóvel em causa foi celebrado em proveito comum do casal, tinha necessariamente de articular e provar os factos integrantes da previsão normativa do artigo 1691º, nº 1, alínea c), do Código Civil.
Expressa, com efeito, o mencionado normativo serem da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal, e nos limites dos seus poderes de administração.
Assim, tinha a recorrente que articular e provar o destino concreto dado ao veículo automóvel objecto mediato do contrato de aluguer de longa duração, que os recorridos eram casados entre si em determinado regime de bens e que o recorrido era o cônjuge administrador (artigos 342º, nº 1, do Código Civil, e 264º, nº 1 e 467º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil).
Conforme resulta do acima exposto, nada disso foi concretamente alegado pela recorrente e, consequentemente, por ela provado.
Perante este quadro, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que a recorrida não pode ser condenada solidariamente com o recorrido, ou seja, improcede, nesta parte, a pretensão formulada pela recorrente.

5.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso, decorrente dos factos provados e da lei.
A recorrente e o recorrido celebraram um contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel – não um contrato de aluguer sem condutor - no quadro da sua liberdade negocial, ao abrigo do disposto no artigo 405º do Código Civil, regulado pelas normas do Código Civil que regem sobre o contrato de aluguer e pelas cláusulas nele insertas que não contendam com algum normativo de natureza imperativa.
O efeito cominatório próprio da revelia absoluta operante não ocorre relativamente a factos para cuja prova a lei exija documento escrito, independentemente de a vontade das partes ser ou não eficaz para a produção do efeito jurídico que pela acção se pretende obter (artigo 485º, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil).
Seja qual for o tipo de acção em causa, o contrato de casamento só pode ser considerado provado desde que conste do processo a respectiva certidão ou boletim de registo emitidos pela Conservatória do Registo Civil.
As afirmações constantes de II 9 não constituem expressão de factos jurídicos integrantes das previsões normativas concedentes do direito que a recorrente pretende fazer valer no confronto da recorrida, antes se consubstanciando em menções pendor jurídico, por isso insusceptíveis de relevante confissão real ou ficta, e, consequentemente, absolutamente ineficazes.
Como a recorrente não articulou, e, consequentemente, não provou o destino concreto dado ao veículo automóvel objecto mediato do contrato de aluguer de longa duração, nem provou o contrato de casamento sob determinado regime de bens porque não juntou o pertinente casamento, nem que o recorrido era o cônjuge administrador, não pode proceder a sua pretensão no confronto da recorrida.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas do recurso (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 22 de Março de 2007

Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís