Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P548
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
Nº do Documento: SJ200604270005485
Data do Acordão: 04/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Sumário : I – Integra um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. p. arts. 172.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, a conduta de quem, entre finais do ano de 2000 e meados de 2004, por diversas vezes, introduziu o pénis erecto na vagina da filha, nascida em 1988.
II – No caso, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade situar-se-á (no quadro de uma pena abstracta de 4 a 13,33 anos de prisão) próximo [8 anos] do meio da moldura penal abstracta. Mas «abaixo dessa medida (óptima) da pena de prevenção, outras haverá que a comunidade entenderá ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade da norma. O «limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral» coincidirá, pois, em concreto, com «o absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral sob a forma de defesa da ordem jurídica». E, no caso, esse limite mínimo rondará os 6 anos de prisão.
III – De qualquer modo, «os limites de pena assim definida (pela necessidade de protecção de bens jurídicos) não podem ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, que só pode intervir numa posição subordinada à prevenção geral». E, no caso (de alguma «carência de socialização», pois que, o arguido «é oriundo dum agregado familiar muito numeroso, tendo vivenciado precocemente uma situação familiar desestruturada, tanto no plano afectivo e relacional, como a nível socio-económico; os progenitores separaram-se quando o arguido tinha 12 anos, iniciando-se aí um período de institucionalizações sucessivas, caracterizado pela quase ausência de contactos com a figura materna e por acolhimentos temporários junto do pai, [...] pessoa violenta e pouco afectiva»), a consideração das concretas exigências de prevenção especial no quadro da moldura penal de prevenção («aferindo-se o desvalor do facto pelas [aqui, ténues] exigências individuais e concretas de socialização do agente»: «Em termos profissionais, o arguido desenvolveu o seu percurso na área da construção civil, tendo permanecido na mesma empresa cerca de 14 anos; durante o período em que viveu no agregado familiar, trabalhou com regularidade, preocupando-se com o bem-estar material da família; actualmente, encontra-se a residir no agregado de uma irmã, na sequência da obrigação de permanência na habitação, fiscalizada por vigilância electrónica») haverá de ater o quantum exacto da pena ao limite mínimo [6 anos] da moldura de prevenção.
IV – Só que a moldura penal de prevenção, assim encontrada «não tem que coincidir necessariamente com a pena da culpa», se bem que «normalmente, não haja conflito entre a pena que satisfaz aquelas exigências de prevenção e a pena de culpa», constituindo esta «o papel de limite que lhe cabe no direito penal preventivo».
V – E, no caso, não poderia abstrair-se (para, enfim, se fixar a pena em 5 anos e 6 meses de prisão) de que:
- o arguido, agora com 43 anos de idade, desde cedo revelou «dificuldades de aprendizagem» e daí que, «as suas competências escolares e sócio-profissionais sejam reduzidas, não tendo (sequer) completado o primeiro ciclo do ensino básico», nem «concluído a formação profissional de electricista»,
- a sua experiência afectiva e sexual mais significativa ocorreu quando tinha 24 anos, na sequência de um relacionamento de namoro que culminou na união do casal motivada em grande parte pela gravidez da companheira»,
- o núcleo familiar constituído pelo arguido, esposa e filhas é caracterizado por um grande isolamento face ao exterior, (...) o que impossibilitou a aferição de outros modelos familiares»,
- «o espaço habitacional onde a família viveu é exíguo, caracterizando-se pelas ténues fronteiras físicas, dificultando o desenvolvimento da noção de intimidade e dos limites individuais»,
- «fez o seu desenvolvimento psicossexual num contexto de privação emocional, com um interiorização negativa das figuras parentais, as quais foram pouco protectores e mal tratantes»,
- «Ao longo do seu percurso pessoal, a presença de figuras femininas é praticamente inexistente num universo dominante masculino, o que não permitiu o estabelecimento de relações com o sexo oposto, que pudessem reparar a má imagem materna»,
- «Evidencia dificuldades no estabelecimento de limites corporais e psicológicos, num contexto de falta de intimidade nas relações intra-familiares agudizadas pelo isolamento social e relacional deste agregado»,
- «A [sua] sexualidade aparece assim desinvestida de afectos, sendo uma manifestação dos seus conflitos internos e de uma agressividade mal gerida».
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. OS FACTOS - Arguido/recorrente: AA (1)


O arguido é pai de BB, nascida a 22 de Setembro de 1988. Desde data situada entre o final do ano de 2000 e o início do ano de 2001, contava BB 12 anos, o arguido começou a manter com ela relações sexuais de cópula completa, introduzindo-lhe o pénis erecto na vagina. Tal prática sexual verificou-se na residência do agregado, sita na altura no .., Casa ...., em Talaíde, quando o arguido ficava sozinho em casa com a filha. Para esse efeito, aproveitava-se da circunstância de a mulher chegar mais tarde do trabalho ou sair para trabalhar durante os sábados. Tais relações sexuais, mantidas entre o arguido e a filha ocorreram durante o período compreendido entre finais do ano de 2000 e 2002, naquele local, tendo-se repetido, no seu total, não mais de dez vezes. Em 2002/2003, o agregado familiar mudou a sua residência para o Bairro de ..., Rua das ...., em Porto Salvo. Na nova residência e durante os anos de 2003/2004 (até final em Junho deste último ano), o arguido voltou a manter relações sexuais com a filha, penetrando-lhe a vagina com o pénis. Tal relacionamento acontecia na sala, em especial em cima dum sofá-cama aí existente, e nos quartos. O arguido chegou, nessas situações, a beijar a vulva da filha. Pediu-lhe, ainda, que lhe beijasse o pénis, o que ela recusou. Tal relacionamento sexual era ordenado pelo arguido à filha, que retirava, sob as indicações do pai, a roupa da cintura para baixo. O arguido, que nunca usou preservativo, retirava o pénis, antes de ejacular, do corpo da filha. Por vezes, o arguido, para poder estar sozinho com a filha, levava a filha mais nova, Patrícia, a casa de uma tia ou mandava-a fazer umas compras. No dia 12 de Junho de 2004, após ter regressado duma festa de casamento, o arguido deitou-se no sofá da sala e aí manteve relações sexuais com a sua filha BB, penetrando-lhe a vagina com o pénis. Veio a adormecer nesse sofá, ainda na companhia da filha, tendo vindo a ser surpreendido pela mulher, quando ainda ostentava o pénis fora dos calções que trajava. Em determinada ocasião da primeira metade do ano de 2004, o arguido AA dirigiu a BB a expressão: “Logo à noite quero delirar contigo”. Noutro momento, dentro desse período temporal, o arguido referiu à filha que, se dormisse com ele, deixava-a namorar com outros à vontade. Afirmou-lhe ainda que já não gostava da mãe; gostava era dela e que queria fugir com ela. Quando iniciou relacionamento sexual com o pai, esta ainda não tinha estabelecido qualquer outro relacionamento sexual. Por diversas vezes, o arguido entrou na casa de banho quando BB aí se encontrava desnudada, pretendendo observá-la nessa situação. Da mesma forma entrou por diversas vezes no quarto de dormir desta, quando ela aí se encontrava a mudar de roupa. Bem sabia o arguido que sua filha BB apenas lhe permitia o relacionamento sexual que aquele procurava e concretizava em virtude da sua ascendência e autoridade parental, bem como da sua superioridade física.
O arguido adquiriu e detinha em seu poder, no interior da residência, uma pistola semi-automática, marca Tanfoglio, modelo GT28, originalmente de calibre 8 mm e destinada a deflagrar munições de alarme, posteriormente adaptada a disparar munições com projéctil, de calibre 6,35 mm Browning, sem número de série visível, à qual foram apostas as inscrições: “Star – Made in Spain Cal. 6,35”. Tal arma foi-lhe apreendida em 12 de Julho de 2004. O arguido não possuía licença de uso e porte de arma. Bem sabia o arguido que este seu comportamento era proibido e punido pela lei.
Não tem antecedentes criminais. É oriundo dum agregado familiar muito numeroso, tendo vivenciado precocemente uma situação familiar desestruturada, tanto no plano afectivo e relacional como a nível sócio-económico. Os progenitores separaram-se quando o arguido tinha doze anos, iniciando-se aí um período de institucionalizações sucessivas, caracterizado pela quase ausência de contactos com a figura materna e por acolhimentos temporários junto do pai, que o arguido percepciona como uma pessoa violenta e pouco afectiva. As competências escolares e sócio-profissionais do arguido são reduzidas, não tendo completado o primeiro ciclo do ensino básico, alegando dificuldades de aprendizagem. Também não concluiu a formação profissional de electricista, área em que esteve integrado nas várias instituições que frequentou. No período de serviço militar obrigatório há a referir a sua deserção. A sua experiência afectiva e sexual mais significativa ocorreu quando tinha 24 anos, na sequência de um relacionamento de namoro que culminou na união do casal motivada em grande parte pela gravidez da companheira. O núcleo familiar constituído pelo arguido, esposa e filhas é caracterizado por um grande isolamento face ao exterior, nomeadamente aos contactos com outros familiares, o que impossibilitou a aferição de outros modelos familiares. O espaço habitacional onde a família viveu é exíguo, caracterizando-se pelas ténues fronteiras físicas, que dificulta o desenvolvimento da noção de intimidade e dos limites individuais. O arguido encontra-se a residir há meses no agregado de uma irmã, na sequência da obrigação de permanência na habitação, fiscalizada por vigilância electrónica. Em termos profissionais, o arguido desenvolveu o seu percurso na área da construção civil, tendo permanecido na mesma empresa cerca de catorze anos. Durante o período em que viveu no agregado familiar, o arguido trabalhou com regularidade, preocupando-se com o bem-estar material da família.

2. A CONDENAÇÃO

Com base nestes factos, o tribunal colectivo do 3º Juízo Criminal de Oeiras (2), em 08Jul05, condenou AA (-05Set62), como autor de um crime de abuso sexual de crianças agravado (art. 172º, nº 1 e 2, e 177º, nº 1, alínea a), do Cód. Penal), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, e de um crime de detenção ilegal de arma (art. 6º, nº 1, da Lei nº 22/97, de 27Jun, com a redacção introduzida pela Lei nº 98/2001 de 25Ago), pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 2,00:

Nos termos do art. 172º, nº 1, do CP, “Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”. Acrescenta o nº 2, desta mesma disposição legal: “Se agente tiver cópula, coito anal ou oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos”. Dispõe, por seu turno, o art. 177º, nº 1, alínea a), do Cod. Penal: “As penas previstas nos art.s 163º a 165º e 167º a 176º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima (...) for ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente, ou se encontrar sob a sua tutela ou curatela”. Ora, o arguido, sendo pai da ofendida, manteve com esta relações sexuais de cópula completa, introduzindo o seu pénis erecto no interior da vagina daquela. Noutras ocasiões, o arguido chegou a beijar a vagina da filha, pedindo-lhe para que a mesma beijasse o seu pénis, o que ela recusou. Tais práticas sexuais ocorreram durante o período que mediou entre finais de 2000/inícios de 2001 até Junho de 2004. Ou seja, o relacionamento sexual referido ocorreu numa altura em que BB contava apenas 12 anos de idade, tendo-se prolongado até aos seus 15 anos de idade. É, portanto, evidente, o preenchimento de todos os elementos do tipo legal de crime em referência, por parte do arguido, sendo absolutamente irrelevante um hipotético consentimento da ofendida quanto a essas mesmas práticas. Conforme se escreve no acórdão da Relação de Lisboa de 28 de Maio de 1997, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXII, tomo 3º, ps. 148 a 150: “Em todos os ilícitos se pune a prática de actos sexuais contra a vontade daquele que os sofre, daqueles que, em razão da enfermidade, inexperiência, dependência hierárquica carecem de capacidade para avaliarem o sentido crítico do acto de consentimento ou entrega sexual. É o caso das crianças, relativamente às quais o legislador presume “juris et de jure” a falta de vontade, a ausência de consentimento, pois que ainda manifesto é irrelevante. Combate-se a sua natural impreparação para aquela necessária avaliação. A prática de actos sexuais nas suas pessoas é perturbadora e, por isso, se persegue aquela“. Há, pois, que concluir, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos, que o arguido cometeu, o ilícito penal que lhe é imputado. A respectiva moldura penal abstracta fixa-se entre um mínimo de 4 anos e um máximo de 13 anos e 4 meses. A determinação da pena concreta, nos termos do art. 71º do Cód. Penal de 1995, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, geral e especial. Na sua articulação, seguimos a lição de Figueiredo Dias, in «Consequências jurídicas do crime», ps. 227 e ss., que podemos enunciar do seguinte modo: Atendendo à necessidade de tutela do bem jurídico e de estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, entendemos que a prevenção geral positiva fornece uma «moldura de prevenção», dentro da qual actuam razões de prevenção especial de socialização, que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Contudo, esta nunca poderá ultrapassar a culpa do agente, por imposição do princípio constitucional da culpa, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Quanto ao cometimento do crime de detenção ilegal de arma, entende o tribunal dar preferência à aplicação de pena não privativa da liberdade, em conformidade com o disposto no art. 70º, do CP. Em termos de medida concreta de pena a aplicar ao arguido haverá que ponderar no seguinte circunstancialismo, em conformidade com o critério estabelecido no art. 71º do CP: a) O dolo directo e muito intenso do agente; b) O grau elevado de ilicitude dos factos, expresso na concreta actuação desenvolvida pelo arguido relativamente à ofendida, sua filha, o que fez reiteradamente, durante anos a fio, exclusivamente com o objectivo de satisfazer a sua lascívia; c) A necessidade de forte prevenção geral deste tipo de condutas, que, pelas suas características peculiares, gera profunda repulsa na comunidade em geral, uma vez que atenta gravemente contra direitos fundamentais e personalíssimos da pessoa humana e, em especial, dos seres mais indefesos e desprotegidos, as crianças; d) As condições sócio-económicas, familiares e pessoais do arguido, bem como o seu percurso de vida: e) A inexistência de antecedentes criminais por parte do arguido.


3. OS RECURSOS PARA A RELAÇÃO

3.1. Em 25Jul05, o MP (3) recorreu à Relação, pedindo «a elevação [da pena] ao ponto médio da baliza prisional encontrada».

Apurada uma actividade delituosa agravada, de cariz sexual, reiterada, de pai para filha, subsumida nos art.s 172.1 e 2 e 177.1.a), do C.P., nunca assumida em audiência, esfumando-se assim qualquer esboço de arrependimento, deveria o tribunal fundamentar a escolha da pena (art. 71.3 do CP), mas, ao aplicar uma pena de 4a e 6m (perante uma moldura cifrada entre 4a e 13a e 4m), não inventariando circunstâncias para tão inusitada "generosidade" (art. 71 ° do C.P.), demitiu-se do dever de fazer corresponder a sanção à medida da culpa do agente e postergou as exigências de prevenção, "fulminando", irreparavelmente, as finalidades da punição (art. 40°, do C.P.). Exarando circunstâncias intensamente desfavoráveis ao arguido, porém, inexplicavelmente, menosprezou-as ao eleger um "quantum" prisional deficitário, dir-se-á simbólico, equivalente àquele a que corresponderia um só acto (das dezenas apurados) do mesmo jaez! Duma assentada violou as normas dos art.s 40°, 1, do C.P. e 710, 1, 2 e 3, do C.P., quebrando o "silogismo prisional" que deve emergir entre factos, circunstâncias e punição, donde que se pugne pela "rectificação penal", relançando a lógica escamoteada pelo acórdão analisado.

3.2. E, em 25Jul05, também o arguido recorreu à Relação, pedindo, por seu turno, a absolvição ou, pelo menos, a atenuação especial da pena:

O acórdão recorrido contém todos os vícios enumerados no art. 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), do CPP, como acima ficou demonstrado. O acórdão recorrido considerou o depoimento da ofendida BB como “claro, pormenorizado, coerente, lógico e perfeitamente credível, não tendo suscitado quaisquer dúvidas quanto à sua autenticidade”, apesar de ter apresentado três versões dos factos completamente diferentes e contraditórias entre si, ou seja, a primeira versão descrita na carta de fls. 11 sem sexo explícito, outra no depoimento prestado na Polícia Judiciária de fls. 15 a 19, denunciando agressão física e violência nas relações sexuais, e uma terceira prestada em audiência de julgamento, que pode considerar-se de meio termo. O tribunal colectivo deu como provado que no dia 12 de Junho de 2004 o arguido “deitou-se no sofá e aí manteve relações sexuais com a sua filha BB, penetrando o pénis erecto no interior da vagina daquela. Veio a adormecer nesse sofá, ainda na companhia da sua filha BB, tendo vindo a ser surpreendido pela esposa, CC, quando ostentava o seu pénis fora dos calções que trajava”. Porém, os exames periciais constantes de fls. 217 a 219 não comprovam a existência de quaisquer vestígios de acto sexual da ofendida BB com o arguido AA, inclusive na camisa e cuecas que a mesma trazia vestidas (nas colchas (1 e 2), nas camisas de noite (4 e 5) e no par de cuecas (6) não se detectaram vestígios de sangue ou sémen). É absolutamente irrelevante o facto de pai e filha terem dormido no sofá e o arguido ostentar o seu pénis fora dos calções que trajava, sic, já que ambos dormiam de costas voltadas um para o outro, sendo normal que o pénis do arguido estivesse de fora dos calções. Os vestígios de sémen detectados no lençol (3) e no colchão (7) poderão pertencer ao arguido AA, mas ficou provado (ver declarações do arguido e de CC) que o casal dormia frequentemente naquele sofá e algumas vezes ali mantivera relações sexuais. Perante as contradições e incoerência dos depoimentos dos intervenientes supra referidos, particularmente da ofendida BB, e a inexistência de prova pericial das relações entre o arguido AA e sua filha BB, quando seria forçoso que as mesmas existissem, tendo em conta os factos provados, impõe-se, contrariamente, a absolvição do arguido. De qualquer modo, existem condições objectivas e subjectivas para a atenuação especial da pena e suspensão da sua execução, pelas razões de facto e de direito supra referidas. Com efeito, ficou demonstrado o elevado sentido de responsabilidade, e grande empenhamento do arguido em relação ao bem-estar da família e educação das filhas, sendo este muito estimado e considerado no seu meio familiar, social e profissional. Sem ignorar os problemas descritos no relatório social, aconselhando uma intervenção terapêutica na área da sexualidade. O acórdão recorrido violou, pelos motivos expostos, os art.s 172º, nº 1 e 2 e 177º, nº 1 alínea a) do C. Penal, bem como os art.s 40º, 50º e 71º do C. Penal.

3.3. A Relação de Lisboa (4), em, 06Dez05, negou provimento ao recurso do arguido e provimento ao do MP, condenando o arguido, pelo crime de abuso sexual agravado de menor, «na pena de 6 anos e 6 meses de prisão»:

A decisão não se mostra afectada pelos vícios de erro notório na apreciação da prova, da insuficiência da matéria de facto para a decisão proferida e de contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão que o recorrente invoca. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida e não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto (Ac. do S.T.J. de 13/2/91, AJ., ano n.° 15116, proc. 41567). "Para se verificar esse fundamento é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito" (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 111, p. 325). E tal insuficiência tem de existir internamente, no âmbito da decisão. É o que decorre do próprio do art.º 410°, n.°2 CPP ao referir que os vícios nele enumerados terão de resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos que lhe sejam estranhos. Existe insuficiência para a decisão quando o tribunal não investigou na totalidade, podendo tê-lo feito, quando a partir dos factos apurados não é legalmente admissível extrair as ilações que o tribunal "a quo" extraiu, mas não está definitivamente excluída a possibilidade de as tirar, havendo necessidade de melhor averiguação dos factos com esse objectivo. Erro notório na apreciação da prova é aquele que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta Simas Santos e Leal Henriques, Anotado, 1, 554) e traduz uma desconformidade do facto apurado com a prova. Verifica-se este erro "quando se constata erro de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, o que deve ser desmontado a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (STJ 17/12/97, BMJ 472, 407). Também a sustentada contradição insanável que o recorrente parece encontrar na decisão recorrida se reporta à alegada contradição entre os meios de prova produzidos e a factualidade apurada o que não é susceptível de configurar o invocado vício que pressupõe a existência de uma contradição interna da fundamentação ou entre esta e a decisão, o que não se verifica no caso nem o recorrente é capaz de integrar com a sua argumentação. Não se esqueça também que os vícios do art. 410°, n.°2 CPP serão os que resultarem do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos a ela estranhos. Ora da leitura da decisão, não resulta que esta contenha algum erro, contradição ou insuficiência de facto que seja manifesto para o comum dos cidadão, mesmo se analisada à luz da experiência comum e sem recurso a elementos a ela estranhos, como seja a análise dos meios de prova. O que o recorrente pretende a este propósito é demonstrar a sua discordância acerca da forma como o tribunal valorou as provas e fixou a matéria de facto ou acerca do seu enquadramento legal, o que não é confundível com os alegados vícios, constatáveis da referida forma. Questões diversas serão também as relativas à apreciação da prova globalmente produzida em audiência, com reflexo na definição da matéria de facto dada como provada e não provada. No campo da apreciação das provas, é livre a forma como o tribunal atinge a sua convicção. Trata-se de emanação do princípio que vigora no nosso sistema processual penal, o princípio da livre apreciação da prova ou da livre convicção, consagrado no art. 127° do C.P.P., de acordo com o qual e, ressalvados os casos em que a lei dispuser diferentemente, " a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente". A apreciação livre da prova não pode ser confundida com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio. É a liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da "liberdade para a objectividade” (RMP, 19°,40). Também a este propósito, salienta Figueiredo Dias ("Direito Processual Penal 1, 202) " a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material - , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo". É na audiência de julgamento que tal princípio assume especial relevo, tendo, porém, que ser sempre motivada e fundamentada a forma como foi adquirida certa convicção, impondo-se ao julgador o dever de dar a conhecer o seu suporte racional, o que resulta do art. 374.2 CPP. A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso. Outro princípio geral da prova é o princípio "in dubio pro reo”, segundo o qual, perante a existência de factos incertos e perante uma dúvida irremovível e razoável, deverá o tribunal, na decisão acerca da apreciação e valoração das provas e determinação dos factos provados, favorecer o arguido. O local ideal para apreciar valorativa e criticamente as provas é, por excelência, a audiência de julgamento em que o julgador dispõe das melhores condições para apreciar, mormente em sede de prova testemunhal, a forma como são prestados os depoimentos, para analisar todas as questões relevantes e susceptíveis de serem ponderadas, de acarear os depoimentos contraditórios para, de um modo geral, criar a convicção necessária à fixação dos factos. A imediação é condição fundamental de aquisição da verdade processual. Assim, não é de estranhar que o processo de avaliação da prova feita pelo tribunal de recurso possa ser diferente do alcançado pelo tribunal "a quo" sem que essa avaliação envolva alguma crítica à forma com este tribunal ponderou a prova produzida. Porém, nesta fase e, colocada em crise a forma como o tribunal adquiriu a sua convicção, apenas nos é permitido reanalisar as provas produzidas pelo tribunal a quo, se bem que este reexame parta sempre, necessariamente, de uma análise desinserida das possibilidades que a imediação proporciona. Reavaliada a prova produzida e transcrita a partir das gravações realizadas em audiência não se vê qualquer razão para discordar da forma como o tribunal formou a sua convicção. As provas que serviram de suporte a tal convicção foram legalmente produzidas e criteriosa e detalhadamente ponderadas, conforme se teve oportunidade de assinalar a propósito da análise da motivação da decisão, dentro das regras da livre convicção do julgador que enunciou as razões dessa ponderação. A decisão recorrida fundamenta a convicção que formou a partir da apreciação global e conjugada de vários meios de prova. Efectivamente, a uma avaliação parcial da prova e feita a partir da visão interessada e sectorizada do recorrente haverá que opor a ponderação do tribunal, feita de forma objectiva e racional e assente fundamentalmente na versão dos acontecimentos descrita pela ofendida, fixando um núcleo essencial de factos que, haverá que assinalar, ao referir o relacionamento sexual entre ela e o pai, se mostra no essencial confirmada por este, nas declarações prestadas aquando do seu interrogatório judicial. De todo o modo, não foi apenas com base nas declarações da ofendida que o tribunal formou a sua convicção nem a versão dela serviu inteiramente esse objectivo, uma vez que o tribunal não se convenceu da veracidade da totalidade da sua versão, embora certamente tenha dado especial relevo a tais declarações em que alicerçou essencialmente a sua convicção o que, aliás, resulta da motivação da sentença que atribui ao seu depoimento a serenidade, segurança, credibilidade, detalhe, lógica e coerência necessárias à atribuição dessa importância na formação da sua convicção. Avaliou igualmente o tribunal a versão trazida pelo recorrente ao julgamento, como inverosímil e incredível, mormente pela contradição do seu teor com as declarações que prestara anteriormente perante o JIC e com a demais prova analisada de forma conjugada e global, o que inclui não só as referidas declarações da menor mas também a versão da mãe desta que fornece aspectos pontuais e contextuais que permitem dar consistência à versão dada como provada, por representarem o ligante circunstancial, referente ao estado de nervosismo em que a menor andava, a sua análise do comportamento do marido que entrava frequentemente na casa de banho e no quarto quando a filha se vestia e ao episódio em que encontrou o marido a dormir, no sofá, ao lado da filha com o pénis fora dos calções - que o recorrente, na motivação, acha ser um acontecimento normal - situações que são consentâneas com o relacionamento sexual entre pai e filha e que a menor só lhe veio a relatar, confirmando as suas suspeitas, ao colocar a carta referida nos autos à mãe. A forma como a menor narra os factos na carta, não inteiramente coincidente como a narrada em audiência, demonstram pretender desculpabilizar-se por eles perante a mãe, o que é compreensível perante os sentimentos de culpa que situações como a descrita normalmente fazem nascer nas crianças e adolescentes. A apreciação da prova impõe a sua análise conjunta e crítica pois é dela e da sua avaliação á luz das regras da experiência que se extrai objectivamente o sentido da prova. Como tal, todas as razões para as críticas que o recorrente dirige à ponderação feita pelo tribunal são manifestamente improcedentes, porque assentes numa análise isolada e desgarrada de cada um dos meios de prova que, como se tal não bastasse, avaliam de forma meramente parcial e subjectiva e nem sempre coincidente com a realidade processual, o que o tribunal de recurso não deve secundar sob pena de atraiçoar as regras da apreciação da prova. Ao contrário, a decisão aprecia a prova produzida por forma a dar como provados os factos referidos fazendo apelo ao encadeamento de factos apurados a partir dos vários meios de prova produzidos, nomeadamente a partir das declarações e depoimentos prestados e que analisou criticamente da forma referida e, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade das coisas, estabeleceu devidamente as presunções judiciais que é lícito ao julgador formular. A apreciação global desses depoimentos, de forma conjugada com os demais elementos probatórios, não permite retirar as conclusões que o recorrente retira nem permite pôr em causa a forma como o tribunal apreciou - livre mas justificadamente - a prova. E a reavaliação feita por este tribunal acerca dos meios de prova produzidos, quer através da transcrição dos depoimentos produzidos juntos aos autos, quer dos demais meios de prova obtidos e da forma como foram apreciados e valorados, não permite que seja posta em crise a decisão proferida em sede da fixação da matéria de facto dada como provada, nomeadamente a impugnada pelos recorrentes. Pelo contrário, a reapreciação que aqui se faz da avaliação que o tribunal recorrido fez da prova produzida em audiência, então com as vantagens inerentes à imediação, oralidade e contraditório, nomeadamente das partes dos depoimentos e declarações em que os recorrentes apoiam a sua discordância, apenas permitam confirmar a decisão recorrida já que não resulta de tal reapreciação qualquer razão para infirmar as conclusões a que o tribunal recorrido chegou em matéria de prova. Não logrou o recorrente encontrar qualquer motivo que pudesse configurar uma considerável diminuição da ilicitude ou da culpa que justificasse o recurso à atenuação especial da pena. Apela o recorrente à necessidade de uma intervenção terapêutica na área da sexualidade perante os problemas descritos no relatório social que aconselham. Consciencializado que está dessa necessidade poderá o recorrente a ela recorrer por sua iniciativa. Porém, perante a moldura penal aplicável para o crime de abuso sexual de criança agravado - 4 a 13 anos e 4 meses de prisão - e o quadro de circunstâncias apuradas nomeadamente as referentes ao elevado grau de ilicitude e de culpa, constituindo a medida desta a medida mínima da pena, por definição da necessidade de intervenção no caso do direito penal, é igualmente manifesta a improcedência do seu pedido de aplicação de uma pena mais benévola. Manifesta é também a improcedência do pedido de suspensão de execução da pena que pressuporia a aplicação de uma pena igual ou inferior a 3 anos de prisão (art. 50° CP). Considera o M° P° que a pena aplicada foi excessiva e injustificadamente benévola, dentro da referida moldura penal situada entre 4 anos e 13 anos e 4 meses de prisão, aplicável ao crime de abuso sexual de criança agravado. A decisão recorrida com vista à determinação da medida concreta da pena ponderou: Em termos de medida concreta de pena a aplicar ao arguido haverá que ponderar no seguinte circunstancialismo, em conformidade com o critério estabelecido no art. 71º do CP: a) O dolo directo e muito intenso do agente; b) O grau elevado de ilicitude dos factos, expresso na concreta actuação desenvolvida pelo arguido relativamente à ofendida, sua filha, o que fez reiteradamente, durante anos a fio, exclusivamente com o objectivo de satisfazer a sua lascívia; c) A necessidade de forte prevenção geral deste tipo de condutas, que, pelas suas características peculiares, gera profunda repulsa na comunidade em geral, uma vez que atenta gravemente contra direitos fundamentais e pessoalíssimos da pessoa humana e, em especial, dos seres mais indefesos e desprotegidos, as crianças; d) As condições sócio-económicas, familiares e pessoais do arguido, bem como o seu percurso de vida; e) A inexistência de antecedentes criminais por parte do arguido. Da transcrita fundamentação, que se mostra bastante sintética e em determinada medida pouco concretizada perante as circunstâncias em que assenta, dir-se-á que a sentença recorrida deu prevalência ao quadro de circunstâncias atenuantes nomeadamente à ausência de antecedentes criminais e às condições sócio económicas, familiares e pessoais do arguido, bem como ao seu percurso de vida que se mostra espelhado na factualidade fixada com base no relatório social efectuado e que terá influenciado a actuação do arguido, ele próprio afectado precocemente por uma vivência familiar desestruturada, tanto no plano afectivo e relacional como a nível sócio-económico. Porém, reflectindo o grau de culpa a medida mínima da pena conforme resulta dos princípios gerais (art.° 40° CP) será da avaliação da medida daquela que se deverá partir para a fixação desta. E o grau de culpa do arguido é relativamente intenso, mesmo considerando a existência de alguns factores de cariz atenuativo, relativos a um menor grau de sensibilidade para os valores que violou em função do percurso familiar que teve na infância e juventude. De todo o modo, tal relevo encontra já expressão no quadro do tipo legal agravado que já considera o facto de o arguido ser pai da menor. Porém, resulta uma maior intensidade do facto de o arguido com ela conviver familiarmente, exercendo de facto os poderes/deveres correspondentes. E acentua-se, no caso, pela idade da ofendida no início do trato sexual mantido entre pai e filha (12 anos), pelo tempo em que o mesmo decorreu (entre os 12 e os quase 16 anos da menor) e pela sua reiteração, o que aumenta o grau de exigência de o arguido ter mantido outra conduta por forma a respeitar os interesses protegidos pela norma, mormente por se tratar de alguém que deveria especialmente proteger e pela forma como actuou, atenta a natureza dos actos sexuais que praticou com a menor, não tendo assumido tal conduta em audiência nem demonstrado qualquer arrependimento. Todos os apontados factores, não esquecendo ainda as tão elevadas exigências de prevenção, aconselham a imposição de uma pena mais grave do que a aplicada pelo tribunal "a quo", por a mesma não se mostrar suficiente para garantir as finalidades da punição, devendo fixar-se a pena concreta em 6 anos e 6 meses, pena que revela ter já a necessária medida para garantir as expectativas da comunidade na dissuasão da prática de crimes como o dos autos e prevenir a perigosidade concreta, sem ultrapassar a concreta medida da culpa. Pelo exposto, acordam os juízes em negar provimento ao recurso do arguido e dar provimento ao recurso do M° P°, condenando o arguido AA na pena de 6 anos e 6 meses de prisão.


4. O recurso para o supremo

4.1. Ainda inconformado, o arguido (5) – notificado em 13Dez (c/r de 7) - recorreu em 27Dez05 ao Supremo (6), limitou-se a pedir – invocando «jurisprudência recente» (RC 02Abr03 e STJ 08Mai03)- a fixação da pena «nos limites mínimos da respectiva moldura penal»:

Neste acórdão e como em tantos outros relativos a crimes de natureza sexual são frágeis as provas. Também as penas aplicadas ultimamente pelos tribunais portugueses tem sido severas, e o presente caso não foge a essa tendência. A jurisprudência mais recente tem-se preocupado com os aspectos patológicos e doentios destes comportamentos, como, in casu, do arguido AA. Com efeito, em acórdão da RC (1044/03), «Tendo em atenção de que toda a actividade sexual é compulsiva, porque o prazer sexual não se satisfaz num único acto sexual mas a própria prática sexual estimula a sua continuidade, o facto de o pedófilo agir compulsivamente para satisfação sexual com crianças, não é um comportamento que se distinga dos demais comportamentos sexuais; a questão está em o pedófilo ou abusador de crianças orientou voluntária e consciente (pelas mais variadas razões) a sua satisfação sexual para actos libidinosos com crianças; o sexo é intelectualizado, é querido, é procurado e até estimulado, como em qualquer outra situação, dita normal». E, em acórdão do STJ, que «contém ensinamentos que deverão aproveitar ao arguido AA», aludiu-se à «complexidade de quem, sendo imputável, é, contudo, incapaz de uma conceptualização mais exigente sobre valores morais reclamados por uma convivência social, tidos como elementos básicos do nosso meio cultural, e pressupostos no homem comum, com limitações de carácter intelectivo». Aí, «o recorrente, não obstante demonstrar, ao longo da vida, capacidades para cumprir as exigências que se lhe depararam de integração social, a elas respondendo adequadamente (escolaridade, integração no mundo do trabalho, casamento, paternidade), é portador de traços estruturais de personalidade e de uma experiência de vida susceptíveis de relevar, no caso, ao nível do juízo de censura ético jurídica. Com efeito, a imaturidade impulsivo/afectiva aliada a uma infância marcada pela violência paterna, é de molde a criar tensões favoráveis à expressão de violência, que se evidencia no relacionamento conjugal, e de que o crime em causa é também, afinal, expressão. Só neste limitado e estrito âmbito é que a personalidade do recorrente poderá ser considerada para efeitos de uma ligeira atenuação do juízo de censura (...); com efeito, se é certo que não ter antecedentes criminais é afinal o dever de todo o cidadão, e por isso essa ausência não é, verdadeiramente, algo que, em geral, deva merecer qualquer tipo de «prémio», o certo é que ela assume algum relevo atenuativo quando enquadrada no conjunto da conduta do arguido, sobretudo quando tratando-se afinal da primeira «escorregadela», ela se verifica já numa vivência de um homem de meia idade, como é o caso do arguido ora recorrente, (...) perto de perfazer os 45 anos. Essa circunstância, assim enquadrada, leva a que se considere que para uma primeira condenação, para mais em prisão efectiva, se tenha por desnecessária, para os fins visados com a sua aplicação, uma duração tão acentuada como a decidida no acórdão recorrido, de resto esmeradamente fundamentado e desenvolvido. Termos em que, concedendo parcial provimento ao recurso, revogam em parte o acórdão recorrido e reduzem a 4 anos de prisão a pena aplicada ao arguido». Em conclusão, a pena a aplicar ao arguido AA deve situar-se nos limites mínimos da respectiva moldura penal.

4.2. O MP (7), na sua resposta de 20Jan06, reputou «justa e adequada a pena aplicada».


5. BREVÍSSIMA APRECIAÇÃO

5.1. Se, como é sabido, «a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva», vindo a ser «definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências e prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização», será «o próprio conceito de prevenção geral (protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção e no reforço da validade da norma jurídica violada») que justifica «que se fale de uma moldura de prevenção», pois que a prevenção, tendencialmente «proporcional à gravidade do facto ilícito», «não pode ser alcançada numa medida exacta» (8) : «Uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade», «a satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite [máximo] definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas, que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade»

5.2. No caso (em que a da moldura penal abstracta do crime é de 4 a 13,33 anos de prisão), o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade – ou seja, a medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade e no reforço da norma jurídica afectada pela conduta do arguido – situar-se-ia próximo [8 anos] do meio da moldura penal (ante o facto de o arguido ter mantido relações sexuais de cópula, com a própria filha menor, entre os 12 e os 16 anos desta).

5.3. Mas «abaixo dessa medida (óptima) da pena de prevenção, outras haverá – até ao “limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas” - que a comunidade ainda entenderá suficientes para proteger as suas expectativas na validade da norma». O «limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral» coincidirá, pois, em concreto, com «o absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral sob a forma de defesa da ordem jurídica» (e não, necessariamente, com «o limiar mínimo da moldura penal abstracta»). E, no caso, esse limite mínimo (da moldura de prevenção) rondaria os 6 anos de prisão.

5.4. De qualquer modo, «os limites de pena assim definida (pela necessidade de protecção de bens jurídicos) não poderão ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, que só pode intervir numa posição subordinada à prevenção geral». Daí que, revelando o arguido, apesar de «não ter antecedentes criminais», alguma «carência de socialização» («É oriundo dum agregado familiar muito numeroso, tendo vivenciado precocemente uma situação familiar desestruturada, tanto no plano afectivo e relacional como a nível sócio-económico; os progenitores separaram-se quando o arguido tinha doze anos, iniciando-se aí um período de institucionalizações sucessivas, caracterizado pela quase ausência de contactos com a figura materna e por acolhimentos temporários junto do pai, [...] pessoa violenta e pouco afectiva»), a consideração das concretas exigências de prevenção especial no quadro da moldura penal de prevenção («aferindo-se o desvalor do facto pelas [aqui, ténues] (9) exigências individuais e concretas de socialização do agente»: «Em termos profissionais, o arguido desenvolveu o seu percurso na área da construção civil, tendo permanecido na mesma empresa cerca de catorze anos; durante o período em que viveu no agregado familiar, trabalhou com regularidade, preocupando-se com o bem-estar material da família; actualmente, encontra-se a residir no agregado de uma irmã, na sequência da obrigação de permanência na habitação, fiscalizada por vigilância electrónica») haveria de ater o quantum exacto ao limite mínimo [6 anos] da moldura de prevenção ( 10).

5.5. Contudo, a moldura penal de prevenção assim encontrada (delimitada, na base, pelo patamar «6 anos de prisão» e, no topo, pelo patamar «8 anos») «não tem que coincidir necessariamente com a pena da culpa», se bem que «normalmente, não haja conflito entre a pena que satisfaz aquelas exigências de prevenção e a pena da culpa». O que, bem entendido, «não significa, de modo algum, que a satisfação de ambas as exigências venham de caminhar necessariamente a par e que não haja, portanto, quaisquer conflitos entre a pena necessária para satisfazer as exigências de prevenção geral positiva e a adequada à culpa». Com efeito, tais «conflitos» poderão «verificar-se, num modelo de medida da pena em que esta seja efectivamente medida pela prevenção, sempre que o ponto óptimo de tutela de bens jurídicos se situe acima daquilo que a adequação à culpa permite».

5.6. E é exactamente nesses casos que «a culpa será chamada a desempenhar o papel de limite que lhe cabe no direito penal preventivo». Por isso se perguntará, no caso, se será de se chamar a culpa «a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas e, portanto, das considerações de prevenção especial agora em jogo», na medida em que «verdadeiras situações de conflito entre a pena necessária para satisfazer as exigências de prevenção especial e a pena adequada à culpa se verificarão sempre que a realização no ponto óptimo das exigências de prevenção geral coloque maiores exigências de pena do que a culpa e, assim, também haja conflito entre a pena necessária à satisfação daquelas exigências e a pena da culpa». E assim porque, sendo indiferente “saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa”, “é o limite máximo de pena adequado à culpa que, de uma ou de outra forma, não pode ser ultrapassado” (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, §§ 301 e ss.).

5.7. Ora, neste contexto, não poderá abstrair-se de que:

a) O arguido – agora com quase 43 anos de idade – desde cedo revelou «dificuldades de aprendizagem» e, daí, que «as suas competências escolares e sócio-profissionais sejam reduzidas, não tendo (sequer) completado o primeiro ciclo do ensino básico» nem «concluído a formação profissional de electricista, área em que esteve integrado nas várias instituições que frequentou»;
b) «A sua experiência afectiva e sexual mais significativa ocorreu quando tinha 24 anos, na sequência de um relacionamento de namoro que culminou na união do casal motivada em grande parte pela gravidez da companheira;
c) «O núcleo familiar constituído pelo arguido, esposa e filhas é caracterizado por um grande isolamento face ao exterior, nomeadamente aos contactos com outros familiares, o que impossibilitou a aferição de outros modelos familiares»;
d) «O espaço habitacional onde a família viveu é exíguo, caracterizando-se pelas ténues fronteiras físicas, que dificulta o desenvolvimento da noção de intimidade e dos limites individuais»;
e) «Fez o seu desenvolvimento psico-sexual num contexto de privação emocional, com um interiorização negativa das figuras parentais, as quais foram pouco protectoras e mal-tratantes» (cfr. relatório social de fls. 380 e ss., 2.º volume);
f) «Ao longo do seu percurso pessoal, a presença de figuras femininas é praticamente inexistente num universo dominante masculino, o que não permitiu o estabelecimento de relações privilegiadas com o sexo oposto, que pudessem reparar a má imagem materna» (idem);
g) «Evidencia dificuldade no estabelecimento de limites corporais e psicológicos, num contexto de falta de intimidade nas relações intra-familiares agudizadas pelo isolamento social e relacional deste agregado» (idem);
h) «A [sua] sexualidade aparece assim desinvestida de afectos, sendo uma manifestação dos seus conflitos internos e de uma agressividade mal gerida» (idem).

5.8. Daí, pois, que o seu grau de culpa (mitigado, ao tempo, pela influência negativa de todos estes factores) sugira uma pena algo inferior à «necessária à satisfação das exigências preventivas» (de ressocialização) e, mesmo, aquém da moldura de prevenção geral e de defesa comunitária: «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (art. 40.2 do CP).

5.9. Donde, enfim, que se mostre mais ajustada (que a de 4,5 anos de prisão sugerida pela 1.ª instância e que a de 6,5 anos de prisão proposta pela Relação) uma pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.


6. Decisão

Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em audiência para julgar – no âmbito do processo 445/04.7JDLSB do 3.º Juízo Criminal de Oeiras - o recurso, de 27Dez05, do cidadão AA,

a) Reduz para 5,5 (cinco anos e meio) de prisão a pena correspondente ao seu crime de abuso sexual de crianças agravado;
b) E condena-o nas custas do recurso, com 5 (cinco) UC de taxa de justiça e 2 (duas) UC de procuradoria.


Lisboa, 27 de Abril de 2006
Carmona da Mota - relator
Pereira Madeira
Simas Santos
Santos Carvalho
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(1) Sob «obrigação de permanência na habitação» desde 15Set04: «24 horas por dias em casa» de uma irmã (fls. 519 e 582).
(2) Juízes Luís Espírito Santo, Amélia Ameixoeira e Rui Xavier Lobo.
(3) Proc. Moreira da Silva.
(4) Desembargadores Filomena Lima, Ana Sebastião, Simões de Carvalho e Pulido Garcia.
(5) Adv. Álvaro de Carvalho.
(6)Onde, só em 27Mar06, pagou a taxa de justiça de interposição.
(7) P-G Adj. Fátima Barata.
(8) Anabela Miranda Rodrigues, O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena, RDCC 12-2, Abr/Jun02.
(9) Se bem que se «afigure fundamental a sujeição do arguido a uma intervenção terapêutica na área da sexualidade, sem o que poderá estar comprometida a qualidade relacional com os outros» (cfr. relatório social de fls. 380 e ss.).
(10) «Nestas circunstâncias, compreende-se que à medida das necessidades assim determinadas corresponda um quantum exacto de pena: o desvalor do facto é agora valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização, que, sendo inexistentes, desencadearão, sucessivamente, o funcionamento das necessidades de intimidação e de segurança individuais»