Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
481/19.9T8LLE.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: SIMULAÇÃO
REQUISITOS
SOCIEDADE COMERCIAL
FRAUDE À LEI
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
NULIDADE DO CONTRATO
MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
PROVA VINCULADA
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
ACORDO
ARTICULADOS
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I - A autora, Massa Insolvente de AA, está vinculada ao ónus de impugnar os fundamentos da exceção perentória alegada pelo réu, na contestação, último articulado admissível, ónus que deve cumprir, sob pena de preclusão, na audiência prévia, se esta tiver lugar, ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final, nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do CPC.

II - Não tendo a autora impugnado os factos que fundamentam a exceção perentória de nulidade por simulação alegada pelo réu, quando notificada para tal pelo tribunal de 1.ª instância, aqueles factos devem considerar-se provados por acordo das partes, por aplicação dos artigos 587.º, n.º 1 e 574.º, ambos do Código de Processo Civil.

III - A determinação dos requisitos da simulação, designadamente da intenção dos contraentes e do intuito de enganar terceiros, é matéria de facto, cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias.

IV – Um negócio dissimulado, em que um sujeito contrata outro para servir de testa de ferro na constituição de uma sociedade comercial a troco de uma remuneração é um negócio celebrado com fraude à lei (artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil), ou contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes (artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. Massa Insolvente de AA propôs, no Juízo Local de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., contra BB, ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a condenação do último a pagar-lhe a quantia de € 42 384,42 e juros de mora vincendos à taxa anual legal.

Fundamentou esta pretensão no facto de, por contrato de assunção e pagamento de dívida que AA, declarado insolvente por sentença de 14 de março de 2013, celebrou, no dia 9 de setembro de 2013, com o réu, este se ter confessado devedor àquele da quantia de € 35 384,88, que se obrigou a pagar em prestações mensais e sucessivas de € 200,00, com início no dia 1 de junho de 2013, das quais o réu apenas pagou as relativas aos meses de julho e agosto de 2013, o que provocou o imediato vencimento de toda a dívida em outubro de 2013, encontrando-se vencidos juros de mora, à taxa de 4%, no valor de € 7 399,54.

2. O réu defendeu-se por exceção perentória alegando a nulidade, por simulação, do contrato, exceção que fundamentou no facto de ter decidido constituir uma sociedade dedicada à atividade de exploração de talhos, não o podendo fazer em nome próprio por ter pendente, no Tribunal Judicial do ... processo de insolvência, tendo contactado AA para, com a sua nora, CC, ser um dos únicos sócios da sociedade por quotas a constituir, N..., Lda.., plano na esteira do qual foram elaborados vários documentos, de entre os quais o Contrato de Assunção e Pagamento de Dívida, tendo os considerandos das alíneas C a F sido ali postos para emprestar verosimilhança ao negócio, sendo o considerando F) totalmente fantasioso, pois jamais possuiu qualquer imóvel no ..., traduzindo-se o negócio dissimulado na aceitação remunerada de um pedido, feito por si e aceite por AA e por CC, consistente na anuência daquele a ser o seu testa-de-ferro, dando o seu nome como sendo, supostamente, sócio de N..., Lda., mediante a retribuição mensal de € 200,00, valor que sempre pagou, as mais das vezes por transferência bancária para conta de familiar do falido, DD, não correspondendo as declarações constantes do contrato à vontade real dos contraentes, pretendendo as partes enganar terceiros – a administração pública e o Banco I.I. – Banco de Investimento Imobiliário, SA.

3. Por despacho proferido para a ata da audiência prévia, realizada no dia 21 de novembro de 2019, no Juízo Local de ... – na qual a autora não respondeu à exceção perentória da nulidade, por simulação, invocada pelo réu – julgou-se procedente a exceção dilatória da incompetência em razão do território daquele juízo e ordenou-se a remessa do processo para o Juízo Local Cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ....

4. Por despacho de 9 de janeiro de 2020 da Juíza de Direito do Juízo Local Cível de ..., com fundamento que na contestação apresentada é deduzida defesa por excepção, por razões de economia processual e de adequação formal, ordenou a notificação da autora para exercer desde já o contraditório quanto a tal matéria; a autora, porém, nada disse.

5. Dispensada a audiência prévia e realizada a audiência de discussão e julgamento, a sentença final da causa, com fundamento na matéria de facto dada como provada e como não provada, concluiu que o réu não logrou provar o alegado circunstancialismo subsumível à nulidade do negócio com fundamento em simulação - exceção perentória cuja prova, lhe competia, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil. Afirmou ainda a sentença que, com efeito, não se provou que as declarações constantes no documento n.º 1 junto com a petição inicial não correspondam à vontade real dos contraentes, não se provou que os contratantes fingiram a assunção do pagamento de uma dívida inexistente - do réu para com AA - e o compromisso na sua liquidação em prestações mensais de € 200,00, nem que, com a conduta protagonizada, plasmada no contrato, as partes outorgantes pretenderam enganar terceiros: a Administração Pública e o «Banco de Investimento Imobiliário, S.A.. Ao invés, provou-se – a tese do réu, por confissão – de que, em data não concretamente determinada, o réu decidiu constituir uma sociedade dedicada à atividade de exploração de talhos e contactou AA para ser um dos sócios dessa sociedade comercial a constituir, que veio a denominar-se «N..., Lda.» e mais se provou que o réu pediu a AA que este anuísse a ser o seu «testa-de-ferro» na sociedade, dando o seu nome como sendo supostamente sócio da «N..., Lda.», mediante o pagamento da importância de €200,00 mensais, o que este aceitou, que os € 200,00 mensais tinham por finalidade e razão de ser a compensação mensal dada pelo réu a AA pelo facto de este emprestar o seu nome para a constituição da nova sociedade comercial. Mais entendeu a sentença que se tem por assente que o réu não nega a existência desta dívida por si assumida para com AA, de pagamento de € 200,00 mensais, como contrapartida de este «emprestar o seu nome» para figurar como sócio fictício da sociedade «N..., Lda., pelo que a dívida é real, não foi fingida a assunção de uma dívida inexistente. A acresce que, mesmo na tese do réu, de simulação relativa, o negócio dissimulado não fica com a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado e porque o negócio dissimulado não é de natureza formal, pelo que, também por aqui, não se verifica a nulidade do negócio.

Assim, o tribunal de 1.ª instância julgou a ação procedente e condenou o réu a pagar à autora a importância de € 34.984,88, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal dos juros civis sucessivamente em vigor, atualmente fixada em 4%, contados da data de 31/10/2013 até efetivo e integral pagamento.

6. Inconformado, o réu apresentou recurso de apelação da sentença, tendo o acórdão recorrido decidido julgar o recurso procedente, revogar a sentença nele impugnada e absolver o réu, BB, do pedido.

7. Inconformada, veio a Autora interpor recurso de revista do acórdão da Relação. peticionando a sua revogação, formulando as seguintes conclusões:

«A - A vontade das partes era a de compensar AA por, a pedido do Réu/Recorrido, ser sócio da sociedade “N..., Lda.”, o que lhe estaria em vias de custar a propriedade do imóvel que detinha no ... por força de execução instaurada na sequência de preenchimento de livrança assinada por si como avalista da “N..., Lda.”.

B - O que claramente demonstra não existir qualquer contradição entre vontade real e declarada das partes;

C - Nem tendo existido qualquer intenção de enganar terceiros, o que aliás, não se entende como seria possível, uma vez que todos os elementos do acordo e da vontade das partes estavam plasmados no referido Doc 1 junto com a PI.

D - Pelo que, não estão preenchidos os requisitos da existência de simulação de negócio, nos termos do disposto no artigo 240, n.º 1 do Código Civil.

E - Esteve bem o Tribunal de Primeira Instância ao concluir nesse sentido.

F - Por outro lado, mesmo em caso de simulação relativa, o negócio subjacente, de compensação de AA, pelos prejuízos ou incómodos resultantes de ser “testa-de-ferro” do Réu/Recorrido na sociedade “N..., Lda.”, não tendo carácter formal, não pode ser prejudicado na sua validade pela nulidade do negócio simulado, devendo ter sido aplicado o artigo 241º do Código Civil.

G – Ao decidir como decidiu, o Douto Acórdão, violou a disposição do artigo 674º, n. 1 a) do Código de Processo Civil, nomeadamente, por violação da lei substantiva, consubstanciada em erro de aplicação das disposições do artigo 240º e 241º do Código Civil.

H – Devem as referidas normas ser aplicadas no sentido de que não existiu simulação de negócio, não estando cumpridos os requisitos cumulativos previstos no artigo 240 do Código Civil, ou, caso se entenda ter existido simulação, a nulidade do negócio simulado, não afeta a validade do negócio dissimulado.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá ser concedida a revista, revogando-se o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, decidindo-se que não existiu simulação de negócio, ou caso se entenda que existiu, tal nulidade não afeta a validade do negócio dissimulado, assim se fazendo

JUSTIÇA!»

8. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões do recurso que se delimita o seu objeto, as questões a decidir são as seguintes:

I – Nulidade, por simulação, do contrato de assunção e pagamento de dívida junto aos autos

II –Validade ou invalidade do negócio dissimulado.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

São dados como provados os seguintes factos, após o exercício pela Relação do seu poder de modificação da matéria de facto:

1) AA, nascido a.../01/1973, filho de EE e de FF, foi declarado insolvente por sentença proferida em 14/03/2017, transitada em julgado a 04/04/2017, pelo Juízo de Comércio de ..., Tribunal Judicial da Comarca de ...; faleceu no dia .../08/2018 (certidão do assento de nascimento a fls. 214 e ss).

2) O teor objectivo do documento n.º 1 junto com a petição inicial, intitulado «Contrato de assunção e pagamento de dívida», aqui dado por integralmente reproduzido, celebrado entre o réu BB (aí designado como 1.º outorgante) e AA (aí designado como 2.º outorgante), datado de 09/09/2013:





3) O réu BB, nascido a .../08/1948, foi declarado insolvente por sentença proferida em 29/04/2011, transitada em julgado a 01/06/2011, pelo extinto Tribunal Judicial do ...; o processo de insolvência foi encerrado por decisão de 24/10/2017, em virtude de realização de rateio final (certidão do assento de nascimento a fls. 167 e ss).

4) «N..., Lda.» foi uma sociedade comercial com o NIPC ...79, constituída a 29/12/1999, com o capital social de € 5.000,00 e sede na freguesia de ..., concelho de ..., distrito de ...; à data da constituição, tinha 2 sócios, cada um titular de uma quota de igual valor, € 2.500,00: AA e CC; obrigava-se com a assinatura de um gerente; o gerente designado, por deliberação de 01/02/2002, era GG; AA vendeu a sua quota a GG, facto inscrito no registo a 29/09/2006; a sociedade foi declarada insolvente por decisão proferida a 10/01/2012, transitada em julgado a 23/02/2012; o processo de insolvência foi encerrado por decisão de 28/04/2020, em virtude de realização de rateio final; a matrícula foi cancelada a 18/06/2020 (certidão de registo comercial a fls. 169 e ss).

5) AA, assim como CC e GG, deram o seu aval a uma livrança subscrita pela sociedade «N..., Lda.», aí representada pelo seu gerente GG, para garantia de uma operação de crédito em conta corrente no valor de € 50.000,00, livrança essa emitida a favor do «Banco BPI, S.A.» na data de 28/06/2006 e com vencimento a 10/01/2012, preenchida pelo valor de € 34.053,37 (cópia do título de crédito a fls. 134 e do pacto de preenchimento da livrança a fls. 135-136, integradas na certidão judicial extraída do processo executivo n.º 949/12.8... a fls. 130 e ss).

6) A.../03/2012, «Banco BPI, S.A.» instaurou acção executiva contra AA e CC, tendo a referida livrança como título executivo, que deu origem ao processo n.º 949/12.8..., do extinto ....º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ...; no requerimento executivo, a quantia exequenda foi computada em € 34.363,86, correspondente ao valor inscrito na livrança dada à execução, acrescido de juros de mora vencidos, tendo sido também reclamados juros vincendos até integral pagamento; no âmbito desse processo executivo, foi penhorada ao executado a fracção autónoma designada pela letra «C» do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º ...73, freguesia do ..., conforme auto de penhora lavrado com data de 06/09/2012; por escritura pública outorgada a .../03/2017, esse imóvel penhorado foi vendido ao «Banco de Investimento Imobiliário, S.A.», titular de hipoteca primeiramente registada, pelo preço de € 29.500,00, tendo o comprador sido dispensado de depósito do preço na qualidade de credor hipotecário; a execução foi declarada extinta, por decisão de Agente de Execução datada de 26/03/2019, com fundamento em inutilidade superveniente da lide, face à declaração de insolvência de ambos os executados (certidão judicial extraída do processo executivo n.º 949/12.8... a fls. 130 e ss, complementada com a versão integral da escritura de compra e venda do imóvel penhorado junta a fls. 203 e ss).

7) Mostra-se descrita na Conservatória do Registo Predial do ...a fracção autónoma designada pela letra «C» do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, descrito sob o n.º ...73, freguesia do ..., inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 2610 (certidão de registo predial a fls. 107 e ss.).

8) Sobre essa fracção autónoma mostrou-se inscrita no registo a aquisição, por compra, a favor de AA, solteiro, maior (apresentação n.º 35 de 15/09/2000); hipoteca voluntária a favor do «Banco de Investimento Imobiliário, S.A.», para garantia de empréstimo da quantia de 9.000.000,00 Escudos de capital, juro anual de 6,04%, cláusula penal de 4% e despesas, no montante máximo assegurado de 12.070.800,00 Escudos (apresentação n.º 36 de 15/09/2000); penhora a favor do «Banco BPI, S.A.» no âmbito do processo executivo n.º 949/12.8..., 3.º Juízo Cível, para garantia da quantia exequenda de €34.363,86 (apresentação de 06/09/2012); aquisição, por compra, a favor de «Banco de Investimento Imobiliário, S.A.» (apresentação de 31/03/2017, provisória por dúvidas, convertida em definitiva a 23/06/2017); declaração de insolvência de AA (apresentação de 19/02/2018, provisória por natureza, caducada a 08/03/2019); aquisição, por compra, a favor de ...» (apresentação de 14/05/2019) (certidão de registo predial a fls. 107 e ss).

9) Segundo informado pelo «Banco de Investimento Imobiliário, S.A.» a 16/07/2021, requerimento junto a fls. 196 e ss., esse Banco amortizou parte do valor em dívida por AA, no montante de € 29.500,00, aquando da adjudicação do imóvel sobre o qual tinha hipoteca registada, nos autos de execução n.º 949/12.8...; antes disso, não recebera qualquer valor para pagamento da importância em dívida do empréstimo concedido a AA (informação prestada a fls. 197).

10) Em data não concretamente determinada, o réu decidiu constituir uma sociedade dedicada à actividade de exploração de ... e contactou o Sr. AA para ser um dos sócios dessa sociedade comercial a constituir. (confissão).

11) Tal sociedade veio a denominar-se «N..., Lda.». (confissão).

12) O réu pediu ao Sr. AA que este anuísse a ser o seu «testa-de-ferro» na sociedade, dando o seu nome como sendo supostamente sócio da «N..., Lda.», mediante o pagamento da importância de € 200,00 mensais, o que este aceitou. (confissão).

13) Os € 200,00 mensais tinham por finalidade e razão de ser a compensação mensal dada pelo réu ao Sr. AA pelo facto de este emprestar o seu nome, permitindo a constituição da nova sociedade comercial. (confissão).

14) O Sr. AA nunca praticou qualquer acto de gestor da sociedade, limitou-se a assinar a documentação que o réu lhe apresentava para o efeito, desconhecendo a real situação financeira da sociedade. (confissão).

Factos aditados pelo Tribunal da Relação e que a sentença de 1.ª instância tinha considerado não provados:

1. Foi instaurado contra o réu um processo de insolvência no extinto Tribunal Judicial do ..., que o impedia de constituir sociedades em nome próprio.

2. O réu sempre pagou ao Sr. AA a importância de € 200,00 mensais referida nos factos provados, entre os meses de Setembro de 2013 e Dezembro de 2018, (…)

3. (…) as mais das vezes através de transferências bancárias feitas para a conta n.º ...97, titulada pelo familiar do falido AA, a Sr.ª D.ª HH.

4. No documento n.º 1 junto com a petição inicial, os contratantes fingiram a assunção do pagamento de uma dívida inexistente - do réu para com o insolvente AA - e o compromisso na sua liquidação em prestações mensais de € 200,00.

5. As declarações constantes no documento n.º 1 junto com a petição inicial não correspondem à vontade real dos contraentes.

6. Com a conduta protagonizada, plasmada no contrato, as partes outorgantes pretenderam enganar terceiros: a Administração Pública e o «Banco de Investimento Imobiliário, S.A.».

III – Fundamentação

1. Nestes autos, a questão decidida em sentido divergente, pelas instâncias, é a da verificação dos requisitos da simulação (artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil) no contrato ao qual as partes atribuíram a designação de “contrato de assunção e pagamento de dívida” celebrado entre o réu e o agora insolvente AA.

2. O tribunal de 1.º instância, considerando inverificados os requisitos da simulação, julgou a ação totalmente procedente e condenou o réu a pagar à autora a importância de € 34.984,88, acrescida de juros de mora, à taxa legal dos juros civis sucessivamente em vigor, atualmente fixada em 4%, contados da data de 31/10/2013, até efetivo e integral pagamento.

Nesta decisão, entendeu-se que “(…) cotejada a matéria de facto dada como provada e como não provada, conclui-se que o réu não logrou provar o alegado circunstancialismo subsumível à nulidade do negócio com fundamento em simulação - excepção peremptória cuja prova lhe competia, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.

Com efeito, não se provou que as declarações constantes no documento n.º 1 junto com a petição inicial não correspondam à vontade real dos contraentes. Não se provou que os contratantes fingiram a assunção do pagamento de uma dívida inexistente - do réu para com AA - e o compromisso na sua liquidação em prestações mensais de €200,00. Nem que, com a conduta protagonizada, plasmada no contrato, as partes outorgantes pretenderam enganar terceiros: a Administração Pública e o «Banco de Investimento Imobiliário, S.A.».

(…)

Acresce que, mesmo na tese do réu, de simulação relativa, o negócio dissimulado não fica com a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado; e porque o negócio dissimulado não é de natureza formal, a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, estando, pois, sujeita ao princípio da liberdade de forma (artigo 219.º do Código Civil).

3. Já o acórdão do Tribunal da Relação da Relação de Coimbra, após alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal de 1.ª instância, julgou procedente a apelação interposta pelo réu BB, e absolveu-o do pedido por considerar o negócio em que a autora baseou a sua pretensão padece de nulidade por simulação (artigo 240.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil). Considerou ainda que se tratava de uma simulação relativa (artigo 241.º, n.º 1, do Código Civil) e que sob o negócio simulado existiu um outro negócio que as partes quiseram realizar (negócio dissimulado), que declarou nulo por ser ofensivo dos bons costumes (artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil)

Foi a seguinte a fundamentação do acórdão recorrido:

«Como decorre da exposição anterior, mostram-se, assim, reunidos, no caso os requisitos do pactum simulationis: a divergência bilateral; o acordo entre o declarante – o apelante – para a produzir, e o declaratário – e o intuito de enganar terceiros.

A simulação é assim, além de objectiva e fraudulenta, relativa, dado que serviu para esconder um outro contrato oneroso – o contrato pelo qual AA se vinculou, mediante remuneração, a servir de testa-de-ferro do apelante na qualidade de sócio de uma sociedade comercial. Remuneração que o apelante satisfez, provocando, com esse acto de cumprimento, a extinção, ainda na esfera patrimonial de AA, do direito de crédito correspondente, pelo que tal crédito nem sequer integrou a respectiva massa insolvente.

E o caso não muda de figura caso se deva concluir pela nulidade do contrato dissimulado - nulidade que, nos termos gerais, é oficiosamente cognoscível e que, mesmo neste caso, adquiridos que sejam os indispensáveis factos materiais, determina, também oficiosamente, a vinculação da parte à obrigação de restituir o que tiver sido prestado - em razão da contrariedade aos bons costumes entendidos, enquanto cláusula geral de ilicitude, como as regras de conduta ou convivência comummente aceites em determinado tempo e lugar, reflectindo o conjunto de preceitos éticos ou morais que norteiam as pessoas e correcta, ou como os valores e princípios, com carácter moral e validade jurídica, reconhecidos ou assumidos pela comunidade, estabelecendo um mínio de exigências éticas de conduta ou convivência, no âmbito de uma sociedade decente (artºs 280, n.º 2, 286.º e 334.º do Código Civil, e Assento do STJ 4/95, DR, 1.ª Série, de 17 de Maio de 1995 = BMJ n.º 445, pág. 67)16.

Realmente, o contrato oneroso pelo qual uma parte se obriga, em colusão com a outra, para ludibriar terceiros, a servir de testa-de-ferro societário viola, nitidamente, a regra ética básica do honeste procedere pela qual as pessoas decentes se norteiam e, por essa via, os bons costumes. Simplesmente, a declaração de nulidade desse contrato não daria, no caso, lugar a uma relação de liquidação e à consequente restituição de tudo o que tiver sido prestado em execução do negócio declarado nulo deve, mas antes a uma relação de compensação, com o efeito extintivo correspondente».

4. Inconformada com a decisão do Tribunal da Relação, por entender que esta fez uma errada aplicação das normas legais aplicáveis, a autora da ação, Massa Insolvente de AA, veio apresentar o presente recurso de revista, sustentando que o negócio de assunção e pagamento de dívida não é simulado e que, ainda que o fosse, sempre existiria, sob o negócio simulado, um negócio real ou dissimulado, válido e vinculativo para as partes.

A questão de direito submetida a este Supremo Tribunal é, portanto, a de saber se o acórdão recorrido cometeu erro de aplicação da lei substantiva aplicável – as normas contidas nos artigos 240.º e 241.º do Código Civil – por ter decidido que o contrato de assunção e pagamento de dívida invocado pela autora se encontra ferido de nulidade por simulação, e que o negócio dissimulado também padece de nulidade.

5. A autora, agora recorrente, invocou, como causa petendi, um contrato, classificado pelas partes com o nomen juris de “contrato de assunção e pagamento de dívida”, por força do qual o réu declarou constituir-se devedor de AA pela quantia de € 35 384,83, que se vinculou a pagar em prestações mensais no valor de € 200,00.

A sentença impugnada qualificou o documento dos autos como um negócio jurídico unilateral de confissão de dívida previsto no artigo 458.º do Código Civil. Considerou, ainda, que o documento reuniu, para além do reconhecimento unilateral da dívida pelo réu, o acordo de vontades dos contraentes – neste segmento, sob a veste de contrato – no que tange à modalidade de pagamento da dívida nele reconhecida pelo réu, pois que, nos termos da sua Cláusula 2.ª, o réu se obrigou a liquidar tal valor em dívida em prestações mensais de €200,00, até perfazer aquele montante, podendo efetuar amortizações antecipadas.

O Tribunal da Relação não aceitou a qualificação de negócio jurídico unilateral, entendendo que estamos em presença, não de uma declaração de vontade unilateral de reconhecimento de dívida, mas de duas declarações negociais, como é característico do contrato.

Considera também o acórdão recorrido, que, tendo sido expressamente indicada pelas partes uma causa, ainda que o negócio fosse puramente unilateral, nunca lhe seria aplicável o regime de abstração processual fixado no artigo 458.º do Código Civil, classificando o contrato como um contrato de acertamento, destinado a prevenir futuros litígios entre as partes, do seguinte modo que aqui se deixa transcrito:

«Um acordo desta espécie poderá designar-se como transacção, desde que se alargue o âmbito deste tipo contratual legal. Parece, porém, preferível, denominá-lo de contrato de acertamento, contrato – que tem efeitos vinculativos para as partes como qualquer outro - através do qual as partes acordam em determinar a existência ou em fixar o conteúdo de uma situação jurídica duvidosa, mas não litigiosa. O objecto do contrato é uma situação jurídica de existência duvidosa; o seu fim é eliminar a incerteza e prevenir um litígio; o meio para se atingir esse fim não é específico, prescindindo das concessões recíprocas que o tipo legal da transacção necessariamente exige».

5.1. O reconhecimento de dívida implica a isenção ou a dispensa do credor de fazer a prova da relação fundamental, cuja existência, até prova em contrário, se presume. A doutrina tem entendido que o reconhecimento de dívida não se apresenta como um negócio jurídico unilateral constitutivo de obrigações, mas apenas como um negócio na base do qual se presume a existência de uma obrigação (cfr. Fernando Oliveira e Sá, “Anotação ao artigo 458.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 415).

Nesta situação peculiar, que a doutrina designa como de causalidade substancial e abstração processual (Francisco Pereira Coelho, “Causa Objectiva e Motivos Individuais no Negócio Jurídico”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume II, A Parte Geral do Código Civil e a Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 2006, p. 431), o credor que invoca o ato unilateral de reconhecimento está dispensado de invocar e provar a relação fundamental, que se presume; o devedor, pode, porém, fazê-lo, para contrariar a pretensão do credor, devendo, então, alegar e provar a insubsistência do crédito, por cumprimento, ou por prescrição, ou por invalidade da relação fundamental ou por outra razão que, no caso, possa ter esse efeito.

No caso vertente, não estamos perante um mero reconhecimento unilateral de dívida, acompanhado de um acordo de vontades quanto à modalidade de pagamento da dívida, já que o negócio jurídico formalizado no documento junto aos autos pela autora indica qual a sua causa e está assinado por dois declarantes, AA, que veio a ser declarado insolvente, como 2.º outorgante, e BB, como 1.º outorgante. Devem, pois, as declarações formalizadas no documento junto aos autos ser entendidas como um contrato inominado (artigo 405., n.º 1, do Código Civil) já que são bilaterais e dependentes entre si, revestindo-se de sinalagma.

6. O objeto da revista consiste em saber se o acórdão recorrido incorreu em errada aplicação da lei substantiva, por ter considerado que o contrato junto aos autos pela autora padece de nulidade por simulação (artigo 240.º do Código Civil).

A averiguação dos requisitos da simulação, nos termos do citado preceito, depende estritamente da matéria de facto provada e não provada.

Em face da matéria de facto apurada em primeira instância, não havia efetivamente fundamento para que o contrato invocado pela autora se devesse considerar nulo por simulação.

Contudo, o Tribunal da Relação, concluindo ter existido erro de julgamento da primeira instância no que se refere à decisão de facto, altera a factualidade provada, aditando-lhe factos novos, que tinham sido dados como não provados pelo tribunal de 1.ª instância.

«- O réu sempre pagou ao Sr. AA a importância de €200,00 mensais referida nos factos provados, entre os meses de Setembro de 2013 e Dezembro de 2018, (…)

- (…) as mais das vezes através de transferências bancárias feitas para a conta n.º ...97, titulada pela familiar do falido AA, a Sr.ª D.ª HH.

- No documento n.º 1 junto com a petição inicial, os contratantes fingiram a assunção do pagamento de uma dívida inexistente - do réu para com o insolvente AA - e o compromisso na sua liquidação em prestações mensais de €200,00.

- As declarações constantes no documento n.º 1 junto com a petição inicial não correspondem à vontade real dos contraentes.

- Com a conduta protagonizada, plasmada no contrato, as partes outorgantes pretenderam enganar terceiros: a Administração Pública e o «Banco de Investimento Imobiliário, S.A.».

A este propósito, o acórdão recorrido defendeu que “como a apelada não impugnou os factos relativos à exceção perentória da nulidade do contrato por simulação – ainda que meramente relativa – tais factos devem considerar-se provados por acordo das partes, acordo que, naturalmente, prevalece sobre decisão contrária do tribunal da audiência.”

Com base nesta alteração da decisão de facto, entendeu o Tribunal da Relação que o contrato de assunção de dívida invocado na ação se encontrava ferido de nulidade por simulação, por se mostrarem demonstrados os respetivos pressupostos legais: a divergência bilateral, o acordo entre declarante e o declaratário e o intuito de enganar terceiros.

O Supremo Tribunal de Justiça, ressalvados os casos previstos nos artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 3, todos do CPC, não pode apreciar matéria de facto, quando tal implique a possibilidade de interferir no juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como são os depoimentos testemunhais e documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais.

No caso vertente, a fixação da matéria de facto admitida pelo Tribunal da Relação, por acordo das partes, perante a falta de impugnação, pela autora, da exceção perentória de nulidade invocada pelo réu, encontra-se ainda incluída no núcleo dos poderes cognitivos atribuídos ao Supremo, por se tratar de uma questão de direito relacionada com o efeito cominatório da ausência de resposta da autora à exceção perentória invocada pelo réu no último articulado admissível, a contestação.

Coloca-se, pois, a questão de saber se, não tendo a autora apresentado qualquer resposta à exceção de nulidade por simulação invocada pelo réu, é aplicável o efeito cominatório previsto no artigo 574.º do CPC.

Compulsado o processo, constata-se que a autora não apresentou réplica, a fim de impugnar as exceções invocadas pelo réu. Todavia, no caso vertente, esta peça processual não seria admissível por não ter sido apresentada reconvenção pelo réu, nem estarmos perante uma ação de simples apreciação negativa.

A autora tem, contudo, a possibilidade de responder à exceção invocada pelo réu na contestação, nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do CPC, na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final, o que não logrou fazer. Mais: notificada a autora, por despacho de 9 de janeiro de 2020, pela juíza do tribunal de 1.ª instância, para exercer o contraditório quanto às exceções invocadas pelo réu, a autora nada disse.

Quanto aos efeitos da omissão da autora, a doutrina maioritária entende que estamos perante um ónus e não uma mera faculdade, de modo que a falta de resposta à matéria da exceção apresentada pelo réu na contestação, o último articulado admissível, terá como consequência a produção do efeito cominatório previsto no artigo 574.º do CPC (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Anotação ao artigo 3.º do CPC”, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 23), por tal ser a solução que mais promove o equilíbrio entre a posição processual de ambas as partes e por decorrer do estipulado no artigo 587.º, n.º 1, do CPC, que, remetendo para o artigo 574.º, prevê a admissão por acordo, não só para a falta de apresentação de réplica, mas também para a falta de impugnação dos novos factos alegados pelo réu, devendo entender-se aqui incluídos os factos em que o réu fundamenta as exceções no último articulado admissível (cfr. Helena Cabrita, A sentença cível, Almedina, Coimbra, 2019, p. 149). No mesmo sentido, tem entendido Teixeira de Sousa (in https://blogippc.blogspot.pt/2014/03/questoes.sobre-materia-da-prova-no-ncpc.html, disponível para consulta e consultado em 17-01-2024), que «O art. 3.º, n.º 4, nCPC dispõe que às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não se realizando esta, no início da audiência final. Este preceito regula a forma de a parte (normalmente o autor) exercer o seu direito ao contraditório quanto às excepções alegadas (normalmente pelo réu) e de aquela parte cumprir o ónus de impugnação dessas excepções. Acrescente-se que o facto de o legislador do nCPC – ou melhor, o legislador da AR que aprovou o nCPC – ter suprimido a réplica como articulado de resposta do autor às excepções alegadas pelo réu não significa a supressão do ónus do réu de impugnar aquelas excepções. Mudou – para pior, talvez se possa dizer – a forma como a resposta da contraparte à alegação da excepção pode ser realizada, mas permaneceu intacto o ónus de contestação da excepção por essa contraparte».

Outra corrente (cfr. Ana Luísa Loureiro e Paulo Ramos de Faria, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil - Vol. I, Almedina, Coimbra, 2014, p. 505 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Anotação ao artigo 587.º do CPC”, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Almedina, Coimbra, 2019, p. 610) entende que a falta de resposta do autor à exceção invocada pelo réu, quando não seja admissível réplica, não produz o efeito cominatório do artigo 574.º do CPC, estando em causa apenas uma mera faculdade de resposta e não um ónus.

Acerca da concorrência entre estas duas teses, opta este Supremo Tribunal pela tese que associa à falta de resposta do autor às exceções invocadas pelo réu na contestação o efeito cominatório do artigo 574.º do CPC, por remissão do artigo 587.º, n.º 1, do CPC, que se deve entender como abrangendo não só os factos novos alegados pelo réu, mas também as exceções.

Esta solução, com efeito, para além de ser a que decorre da letra da lei e da lógica do sistema, promove também a unidade do processo e o equilíbrio da posição processual das partes, uma vez que o réu sofre idêntico efeito cominatório se não impugnar, na contestação, os factos alegados pelo autor na petição inicial.

Assim, resta apenas concluir que a decisão de facto do Tribunal da Relação, relacionada com o apuramento da vontade real das partes e restantes requisitos da simulação, se encontra estabilizada e está, por isso, após a ponderação efetuada acerca do efeito cominatório associado à falta de resposta às exceções, subtraída ao conhecimento do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista.

Conforme se escreve no sumário dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22-02-2011 (processo n.º 1819/06.4TBMGR.C1.S1) e de 24-10-2019 (proc. n.º 56/14.9T8VNF.G1.S1),“A determinação da intenção dos contraentes, designadamente o intuito de enganar terceiros, é matéria de facto, cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias que podem utilizar prova por presunções, e não do Supremo Tribunal de Justiça, constituindo ónus de prova do demandante».

Com efeito, o acórdão recorrido deu como provado que os contratantes fingiram a assunção do pagamento de uma dívida inexistente – do réu para com o insolvente AA – e o compromisso na sua liquidação em prestações mensais de €200,00. Mais se entendeu como provado que as declarações constantes do aludido acordo de assunção de dívida não correspondiam à vontade real dos contraentes.

Os factos do presente caso, tal como fixados pelo acórdão recorrido, indicam que o contrato em que se baseia a pretensão da autora, «Contrato de assunção e pagamento de dívida» é um negócio simulado:

«4. No documento n.º 1 junto com a petição inicial, os contratantes fingiram a assunção do pagamento de uma dívida inexistente - do réu para com o insolvente AA - e o compromisso na sua liquidação em prestações mensais de € 200,00.

5. As declarações constantes no documento n.º 1 junto com a petição inicial não correspondem à vontade real dos contraentes.

6. Com a conduta protagonizada, plasmada no contrato, as partes outorgantes pretenderam enganar terceiros: a Administração Pública e o «Banco de Investimento Imobiliário, S.A.».

Nesta perspetiva, perante a factualidade dada como provada em segunda instância, não se vê que possa ser diferente a decisão em matéria de direito quanto à verificação dos requisitos da simulação relativamente ao «contrato de assunção de dívida e de pagamento», caindo a tese do tribunal de 1.ª instância.

O contrato junto aos autos, designado por contrato de assunção e pagamento de dívida, contém declarações que não correspondem à vontade das partes e a dívida reconhecida pelo réu nunca existiu, tendo visado este contrato enganar terceiros (factos aditados pelo Tribunal da Relação n.ºs 4, 5 e 6).

Ainda que esta factualidade tenha sido estabelecida com base num critério meramente formal – não impugnação pela autora da exceção perentória invocada pelo réu – este Supremo está vinculado à factualidade estabelecida.

Estão assim verificados os requisitos da simulação previstos no n.º 1 do artigo 240.º do Código Civil, que são os seguintes, conforme definição doutrinal (cfr. H. E. Hörster/Eva Sónia Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português, 2.ª edição totalmente revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, p. 592, n.º 897):

1.º - Uma divergência entre a declaração negocial e a vontade real dos contratantes (factos provados n.º 4 e n.º 5);

2.º - Um acordo entre o declarante e o declaratário a este respeito. A existência deste acordo (acordo simulatório) significa que ambos conhecem a divergência que é, assim, intencional (factos provados n.º 4 e n.º 5)

3.º - O intuito de enganar terceiros (facto provado n.º 6).

O contrato de assunção e pagamento de dívida padece, pois, de nulidade por simulação (artigo 240.º, n.º 2, do Código Civil), e não produz os efeitos jurídico-negociais que correspondem ao tipo de negócio aparentemente celebrado.

7. Todavia, as partes visaram com a celebração do negócio jurídico simulado, designado por contrato de assunção e pagamento de dívida, encobrir um outro negócio que realmente pretendiam, o negócio real ou dissimulado.

O negócio dissimulado está descrito nos factos n.º 10 a 14.

Como demonstra o facto n.º 10, em data concretamente não determinada, o réu decidiu constituir uma sociedade dedicada à exploração de talhos e contactou AA para ser sócio dessa sociedade, que veio a denominar-se N..., Lda. (facto n.º 11). O réu pediu a AA que anuísse a ser o seu testa de ferro na sociedade, dando o seu nome como sendo supostamente sócio da N..., Lda., mediante o pagamento de uma quantia de 200 euros por mês, o que AA aceitou (facto provado n.º 12), não tendo nunca este praticado qualquer ato de gestor da sociedade, limitando-se a assinar a documentação que o réu lhe apresentava para o efeito e desconhecendo a real situação financeira da sociedade (facto provado n.º 14). Os 200 euros mensais tinham apenas por finalidade a compensação mensal dada pelo réu ao senhor AA pelo facto de este emprestar o seu nome, permitindo a constituição da nova sociedade comercial (facto n.º 12).

Conforme resulta da factualidade aditada pelo acórdão recorrido houve pagamentos mensais feitos pelo 1.º outorgante (agora réu) ao 2.º, AA, entre os meses de setembro de 2013 e dezembro de 2018, a mais das vezes através de transferências bancárias feitas para a conta n.º ...97, titulada pela familiar do falido AA, a Sr.ª D.ª HH.

Estes pagamentos foram feitos para remunerar um serviço, que se considera fraudulento, de “testa de ferro”, em que AA assumia formalmente a posição de sócio de uma sociedade comercial, mas na verdade quem controlava a sociedade era o réu, cujo nome não aparecia como sócio nem como membro dos órgãos sociais ou gerente.

8. A factualidade provada corporiza, assim, a versão alegada pelo réu, segundo a qual o contrato de assunção de dívida junto aos autos serviu para esconder um outro contrato oneroso: o contrato pelo qual AA se vinculou, mediante remuneração, a servir de testa-de-ferro do agora réu na qualidade de sócio de uma sociedade comercial, a N..., Lda..

Estamos, assim, perante um caso de simulação relativa, conforme previsto no artigo 241.º, n.º 1, do Código Civil, que prescreve que “Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.”.

Na simulação absoluta as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum; por sua vez, na simulação relativa, as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico e, na realidade, querem um outro negócio de tipo ou conteúdo diverso.

Na simulação relativa, por força do disposto no n.º 1 do artigo 241.º do Código Civil, o negócio real ou dissimulado será objeto do tratamento que lhe caberia caso tivesse sido concluído sem dissimulação; plenamente válido e eficaz ou inválido, consoante as consequências que teriam lugar se tivesse sido abertamente concluído, o que deverá ser objeto de uma apreciação de carácter casuístico face à matéria de facto concretamente apurada.

Estando em causa, no caso concreto, uma simulação relativa, a nulidade do negócio que as partes fingiram celebrar não acarreta necessariamente a nulidade do negócio dissimulado.

A lei, quando afirma que a validade do negócio dissimulado não fica prejudicada pela nulidade do negócio simulado (artigo 241.º, n.º 1, in fine), pretende salvaguardar este negócio e pô-lo ao abrigo da simulação e da sua nulidade, a não ser que o próprio regime deste outro negócio, dissimulado, determine a sua invalidade (cfr. H.E. Hörster/Eva Sónia Moreira da Silva, ob. cit., p. 600-601, n.º 914)

9. Importa, pois, indagar acerca da validade ou invalidade do negócio dissimulado, ou seja, do negócio que as partes quiseram efetivamente celebrar.

A recorrente defende a validade do mesmo por se tratar de um negócio que não exige forma legal, não havendo lugar ao debate em torno da interpretação do n.º 2 do artigo 241.º do Código Civil quanto à exigência da forma legal para o negócio dissimulado.

Todavia, a validade formal do negócio dissimulado não o coloca ao abrigo das causas de invalidade substancial consagradas na ordem jurídica, designadamente das causas de invalidade relativas ao conteúdo do negócio e aos requisitos do objeto negocial (artigo 280.º e seguintes). Nem faria sentido que a ordem jurídica tratasse de forma mais favorável um negócio dissimulado do que um negócio jurídico celebrado abertamente, sem qualquer encobrimento.

10. Analisemos, então, o conteúdo do negócio dissimulado para concluir acerca da sua validade ou invalidade substantiva.

Vejamos:

A norma do artigo 280.º (Requisitos do objeto negocial) dispõe o seguinte:

1. É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.

2. É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.

Não estando em causa qualquer impossibilidade física ou legal, nem indeterminabilidade do objeto negocial, resta a questão de saber se o presente negócio dissimulado é contrário à lei, à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes.

São negócios contrários à lei aqueles que, sendo materialmente possíveis, contradizem normas legais imperativas ou de interesse e ordem pública.

Mota Pinto (in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 557) considera contrários à lei, “(...) não só os negócios que frontalmente a ofendem (negócios “contra legem”), mas também quando se constate, por interpretação, que a lei quis impedir, de todo em todo, um cero resultado, os negócios que procuram contornar uma proibição legal (...), tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei expressamente previu e proibiu (negócios em fraude à lei)” bem como os negócios que procuram contornar uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei expressamente previu (negócios em fraude à lei).

Entende o mesmo autor que o conceito de ordem pública (Mota Pinto, ob. cit., pp. 557-558), para o efeito de aferir da validade dos negócios jurídicos, se reporta a “(...) um conjunto de princípios fundamentais subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas”. Já o negócio ofensivo dos bons costumes abrange “o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento” (cfr. Mota Pinto, ob. cit., p. 559). No mesmo sentido, se pronuncia Carneiro da Frada, (Teoria da Confiança, p. 845), considerando os “bons costumes” como uma “cláusula de salvaguarda do mínimo ético-jurídico reclamado pelo Direito e exigível de todos os membros da comunidade”. Apesar do seu conteúdo elástico, a cláusula geral dos bons costumes, tem sido já discutida pela jurisprudência e pela doutrina no contexto da validade das cláusulas de não concorrência nos contratos de trabalho, do abuso do direito, da interferência de terceiros no cumprimento de contratos e da aquisição a non domino de má fé.

Ora, no caso concreto, estamos perante um negócio mediante o qual um sujeito acorda com outro, que um deles vai ocupar a posição de testa de ferro na constituição e na qualidade de sócio de uma sociedade comercial, sendo um sócio meramente formal, que na verdade não gere a sociedade, nem participa na tomada de decisões sobre ela, nem sabe nada sobre a situação financeira dessa sociedade, que fica entregue a outro sujeito que não é sócio, o agora réu, contra quem foi instaurado um processo de insolvência que o impedia de constituir sociedades em nome próprio.

Este negócio, por falta de transparência numa questão essencial para o bom funcionamento das sociedades comerciais e da economia, configura-se como um negócio celebrado com fraude à lei ou contrário à ordem pública e aos bons costumes porque visa um resultado reprovado pela ordem jurídica, lesivo para terceiros e contrário à boa ética negocial.

A correta identificação dos sócios de uma sociedade é importante para os agentes económicos e para o Estado, devendo, por isso, corresponder à verdade. Contornar este princípio, constituindo uma sociedade com sócios que, na realidade, não decidem a vida da sociedade, nem se interessam por ela ou participam nela, apenas cumprindo ordens de outro sujeito, que formal e juridicamente não é sócio (e provavelmente nem pode ser), nem gerente da sociedade ou membro dos seus órgãos, defrauda a lei e ofende a ordem pública e os bons costumes, nos termos do n.º 2 do artigo 280.º do Código Civil.

Assim, o negócio dissimulado está ferido de nulidade.

Conclui-se, pois, que a fundamentação de direito desenvolvida pelo Tribunal da Relação encontra respaldo na matéria de facto provada, que está definitivamente estabilizada no processo, nada havendo a censurar ao acórdão recorrido.

11. Mesmo que se aceitasse a tese da recorrente, segundo a qual não existia qualquer simulação no contrato junto aos autos, celebrado alegadamente para compensar AA dos prejuízos sofridos por ser sócio da sociedade N..., Lda., a pedido do agora réu, BB, compromisso que lhe teria custado a perda do direito de propriedade de um imóvel em processo executivo instaurado contra si enquanto avalista da sociedade N..., Lda., sempre se teria que entender que o contrato formalizado no documento junto aos autos, pela autora, seria nulo pelos mesmos motivos atrás expostos: violação do artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil.

Com efeito, tal contrato nunca deixaria de representar uma estratégia para iludir terceiros acerca de quem realmente domina uma sociedade, já que não é expectável que dois sujeitos (AA e CC) que constituem uma sociedade a pedido de outrem tenham verdadeiramente interesse na vida e gestão da sociedade, o que se revela prejudicial à economia e aos interesses de eventuais credores.

Não sendo válido o negócio, não surge qualquer direito de crédito na esfera jurídica do insolvente, AA, apreensível pela massa insolvente, em virtude da obrigação assumida pelo réu de remunerar aquele através do pagamento de uma prestação mensal de € 200,00.

A pretensão da recorrente, em qualquer caso, não poderia deixar de soçobrar.

12. A declaração de nulidade, por força do seu carácter retroativo (artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil) dá lugar a uma relação de liquidação: tudo o que tiver sido prestado em execução do negócio declarado nulo deve ser restituído, ou, se a restituição em espécie não for possível, o respetivo valor.

Quanto ao conteúdo desta obrigação de restituir por efeito da declaração de nulidade, teríamos uma situação, por aplicação do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, em que José Gonçalves (réu) teria de restituir o valor económico do “serviço de testa de ferro” prestado por AA, que seria entregue à massa insolvente, e teria direito a receber de AA os 200 euros mensais recebidos em dinheiro, entre setembro de 2013 e dezembro de 2018, conforme matéria de facto provada.

Ora, entende-se, tal como no acórdão recorrido, que a declaração de nulidade do negócio dissimulado nesta situação, em que a obrigação de restituir inclui o valor económico de serviços ou de factos, não dá lugar a uma liquidação e consequente restituição do que houver sido prestado em execução do contrato declarado nulo.

Sendo uma das prestações um serviço que não pode, em si mesmo, ser restituído, terá lugar, tão-só, uma relação de compensação entre a prestação (constituição de uma sociedade como testa de ferro de outrem) e a contra-prestação (remuneração pelo serviço prestado), com o efeito extintivo correspondente.

Pelo que, não se condena o réu a qualquer dever de restituição como consequência da declaração de nulidade do negócio.

13. Anexa-se sumário elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil:

I - A autora, Massa Insolvente de AA, está vinculada ao ónus de impugnar os fundamentos da exceção perentória alegada pelo réu, na contestação, último articulado admissível, ónus que deve cumprir, sob pena de preclusão, na audiência prévia, se esta tiver lugar, ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final, nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do CPC.

II - Não tendo a autora impugnado os factos que fundamentam a exceção perentória de nulidade por simulação alegada pelo réu, quando notificada para tal pelo tribunal de 1.ª instância, aqueles factos devem considerar-se provados por acordo das partes, por aplicação dos artigos 587.º, n.º 1 e 574.º, ambos do Código de Processo Civil.

III - A determinação dos requisitos da simulação, designadamente da intenção dos contraentes e do intuito de enganar terceiros, é matéria de facto, cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias.

IV – Um negócio dissimulado, em que um sujeito contrata outro para servir de testa de ferro na constituição de uma sociedade comercial a troco de uma remuneração é um negócio celebrado com fraude à lei (artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil), ou contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes (artigo 280.º, n.º 2, do Código Civil).

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se no Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas da revista pela recorrente.

Lisboa, 23 de janeiro de 2024

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Jorge Leal (1.º Adjunto)

Manuel Aguiar Pereira (2.º Adjunto)