Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
252/14.9JACBR
Nº Convencional: 3º SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TRIBUNAL COLECTIVO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CULPA
ILICITUDE
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PENA ÚNICA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
Data do Acordão: 04/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL - JULGAMENTO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS.
DIREITO PENAL - FACTOS / FORMAS DO CRIME / CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL .
Doutrina:
- ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, EDUARDO MAIA COSTA, ANTÓNIO JORGE DE OLIVEIRA MENDES, ANTÓNIO PEREIRA MADEIRA e ANTÓNIO PIRES HENRIQUES DA GRAÇA, “Código de Processo Penal”, Comentado, 2014, Almedina, 1311.
- Comentário do Código Penal, 3.ª Edição, Actualizada, Universidade Católica Editora, Novembro de 2015, 680.
- HELOÍSA PINTO, A Sexualidade na Escola, Ed. Summus, S. Paulo, 1997, 46.
- INÊS FERREIRA LEITE, A Tutela Penal da Liberdade Sexual, 9.
- JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Actas de Revisão de 95, do "Código Penal", 246.
- JOSÉ MOURAZ LOPES e TIAGO CAIADO MILHEIRO, Crimes Sexuais, Análise Substantiva e Processual, Coimbra Editora, 140.
- TERESA PIZARRO BELEZA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 541-542; «O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal», Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, I Volume, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996, 169.
-JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, Parte Geral, Aequitas, Editorial Notícias, 227.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 379.º, N.º 2, 410.º, N.ºS 2 E 3, 411.º, N.º 5, 414.º, N.º 8, 417.º, N.º 2, 419.º, N.º 3, ALÍNEA C), 432.º, N.ºS 1, ALÍNEA C), 2.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 21.º, 22.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E B), 23.º, N.ºS 1 E 2, 30.º, N.º 2, 40.º, N.º 1, 54.º, N.º 1, 71.º, 73.º, 77.º, 153.º, N.º1, 155.º, N.º 1, ALÍNEA A), 171.º, N.ºS 1, E 2,
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 07-10-2009, PROCESSO N.º 611/07.3GFLLE.S1.
- DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 41/10.0GCAZ.P2.S1.
- DE 12-07-2012, PROCESSO N.º 2/09.IPAETZ.S1.
- DE 12-09-2012, PROCESSO N.º 2745/09.0TDLSB-L1.S1.
- DE 12-09-2012, PROCESSO N.º 605/09.4PBMTA.L1.S1.
- DE 10-10-2012, PROCESSO N.º 617/08.5PALGS.E2.S1.
- DE 22-01-2013, PROCESSO N.º 182/10.3TAVPV.L1.S1.
- DE 14-03-2013, PROCESSO N.º 294/10.3JAPRT.P1.S2.
- DE 13-04-2013, PROCESSO N.º 700/01.8JFLSB.C1.S1.
- DE 22-05-2013, PROCESSO N.º 93/09.5TAABT.E1.S1.
- DE 26-02-2014, PROCESSO N.º 29/03.3GACNF.S1.
- DE 21-01-2015, PROCESSO N.º 12/09.9GDODM.S1.
- DE 25-11-2015, PROCESSO N.º 455/13.3PLSNT.L1.S1.
Sumário :
I - O arguido foi condenado pelo tribunal colectivo pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de 5 crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1 e 21.º do CP, cada um deles na pena de 4 anos e 6 meses de prisão; 1 crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, n.º 1, als. a) e b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, 54.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do CP, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão e um crime de ameaça agravada, na forma continuada, p. e p. pelos art. 3.º, n.º 2, 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), todos do CP, na pena de 10 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 9 anos de prisão.
II - Tendo sido aplicada pelo tribunal colectivo no acórdão recorrido a pena única de 9 anos de prisão, e visando o recurso interposto exclusivamente o reexame de matéria de direito, pertence ao STJ a competência para conhecer do recurso, em conformidade com o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP.
III - É entendimento maioritário neste STJ que, em recurso directo, compete ao STJ, reunidos os demais pressupostos previstos no art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, apreciar as questões relativas a crimes punidos com penas iguais ou inferiores a 5 anos de prisão englobadas numa pena conjunta superior a 5 anos de prisão, quando elas sejam impugnadas.
IV - São prementes e muito elevadas as razões de prevenção geral que se fazem especialmente sentir no crime de abuso sexual de crianças, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão - a autodeterminação sexual de crianças - e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, maxime, nos últimos anos, em que estas questões passaram a assumir muito maior visibilidade, justificando uma resposta punitiva firme, sendo ainda de ter em conta os danos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas.
V - Ponderando o muito acentuado o grau de ilicitude da actuação do arguido, salientando-se os concretos actos praticados em duas menores de 13 e 11 anos de idade - cópula completa com ejaculação -, em conjugação com o facto de não se ter apurado que o arguido usasse preservativo para além da rapidez com que arguido passa de meros contactos escritos através do facebook, com palavras de enamoramento sem conotações sexuais, a uma prática desta natureza, prolongando-se os actos praticados de Junho de 2014 a Novembro do mesmo ano; a culpa (o arguido agiu com dolo, que se apresenta na sua forma mais grave - dolo directo), as fortes razões de prevenção especial atenta a personalidade do arguido e a forma como actuou, na procura da satisfação dos seus instintos sexuais, com absoluta indiferença e insensibilidade pela idade das ofendidas e pelos valores que a lei protege com a incriminação destes actos, têm-se por adequadas e proporcionais as penas de 4 anos e 6 meses de prisão fixadas na decisão recorrida para cada um dos crimes de abuso sexual de crianças cometido.
VI - Na determinação da pena única de concurso de crimes, a pena de conjunto repousa numa valoração da totalidade dos factos, que fornece a ilicitude global, sendo decisiva para essa avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos e se eles representam, também, uma manifestação da personalidade, na vertente de uma mera pluriocasionalidade, de um trajecto de vida puramente ocasional e não enraizado, ou, ao invés, uma carreira criminosa.
VII - Valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a conexão entre eles, bem como a sua relacionação com a personalidade do arguido, que se revelou desconforme aos valores sociais reinantes, tendo em conta a moldura do concurso vai de 4 anos e 6 meses de prisão a 23 anos de prisão, é de concluir por um elevado grau de demérito da conduta do recorrente, se considera ajustada a pena única de 9 anos de prisão fixada na 1.ª instância, por satisfazer os interesses de prevenção geral e especial, e as necessidades de punição que aqui se fazem particularmente sentir.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO

1. AA foi julgado em processo comum, supra referenciado, pelo Tribunal Colectivo na Comarca de .... – Instância Central e condenado, por acórdão proferido em 16 de Outubro de 2015:

Pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de:

- cinco crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, cada um deles na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;

- um crime de coacção agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.º 1, alíneas a) e b), 23.º, n.os 1 e 2, 73.º, 54º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão;

- um crime de ameaça agravada, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, 153.º, n.º1 e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi o recorrente condenado na pena única de 9 anos de prisão.

2. Inconformado, interpôs o arguido o presente recurso, rematando a respectiva motivação com as conclusões que se transcrevem:

«CONCLUSÕES:

1.
Conforme se descortina do requerimento de interposição de recurso, a presente peça revela a insatisfação do recorrente com a assunção jurídica, mormente no que concerne à determinação das penas parcelares e, em último caso, única, e respectiva fundamentação, eleita pelo tribunal a quo.
2.
Na verdade, entende o recorrente que a determinação da pena concreta alcançada na decisão proferida pelo tribunal a quo, salvo melhor entendimento, não se encontra adequada ao caso concreto.
3.
O arguido, aqui recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, nos seguintes crimes, tendo-lhe sido aplicadas as seguintes penas:
- cinco crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171º nºs 1 e 2 do CP, cada um deles na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
- um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º nº 1 al a) e b), 23º nºs 1 e 2, 73º, 154º nº 1 al a), do CP, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão;
- um crime de ameaça agravada, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 30º nº 2, 153 nº 1 e 155º nº 1 al a) do CP, na  pena de 10 meses de prisão;
Em cúmulo jurídico, o arguido, aqui recorrente foi condenado na pena única de 9 anos de prisão.
4.
Entende o recorrente que, a aplicação de 4 anos e 6 meses de prisão, ao arguido, por referência a cada um dos crimes de abuso sexual de criança, a quem foi condenado, não espelha, com exactidão o que resultou dos factos dados como provados. Tais penas, parcelares, mostram-se excessivas, desproporcionais e desadequadas.
5.
As finalidades das penas vêm indicadas no nº 1 do art. 40º do C. Penal: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. São, pois, finalidades relativas de prevenção, geral e especial, que justificam a intervenção do sistema penal e conferem fundamento e sentido às suas reacções específicas.
5.
Com o recurso à prevenção especial pretende dar-se resposta às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade (cfr. Ac. do STJ, supra citado).
6.
Não obstante o grau da ilicitude do facto, que se afigura elevado, considerando, designadamente a idade das ofendidas que contavam apenas com 13 anos de idade, quando o arguido começou a praticar com elas os actos sexuais que resultaram apurados, cremos que a dinâmica em que tais actos ocorreram, deverão ser tidos em consideração, merecendo os mesmos uma ponderação diversa daquela que o tribunal a quo atendeu.
7.
Na verdade, tal como resulta dos factos provados, os cinco crimes de abuso sexual de criança, perpetrados pelo arguido, tendo sido praticado sobre duas criança, ocorreram num espaço de tempo curto, sendo certo que com uma das ofendidas o arguido esteve uma vez e não mais.
8.
Não obstante a gravidade do crime, afigura-se que a fixação da pena acima do limite mínimo de 3 anos de prisão, vai para além do que resulta dos critérios legais, mormente porque, cremos que as exigências de prevenção especial do arguido, sem qualquer antecedente que denuncie uma inclinação para o interesse, sexual, com crianças, não justificam a aplicação de penas, parcelares, tão severas.
10. [[1]]
De igual modo as exigências de prevenção geral não reclamam uma pena de prisão com essa duração. Não obstante se tratar de crimes bastantes graves, não se poderá olvidar que o próprio legislador já tomou em consideração exigências de prevenção geral ao definir a moldura penal.
11.
Certo é que, como se disse, os factos apontados ao arguido acarretam certa proximidade temporal, e não foram praticados durante anos, sendo certo que a ausência de qualquer historial do arguido em práticas sexuais com crianças, não poderá fundamentar, nunca, um juízo de prognose desfavorável ao arguido quanto a essa temática.
12.
Note-se, não se podendo olvidar, que modo de execução dos factos e as circunstâncias que os qualificam, sendo censuráveis para com o arguido, terão, com o máximo de objectividade possível, de ser atendidos.
13.
Na verdade, e como resultam dos factos provados, mormente no que diz respeito ao factos ocorridos de Setembro a Novembro, no envolvimento que o arguido manteve com a ofendida BB, constata-se que, em nenhuma das ocorrências, o arguido se deslocou ao encontro da ofendida, tendo sido, precisamente, o contrário a ocorrer.
14.
Nos três momentos em que o arguido esteve junto da ofendida, foi a ofendida que se deslocou para junto do arguido, tendo apanhado dois autocarros para ir ao seu encontro, o que ocorreu por três vezes diferentes, em semanas diferentes.
15.
A verdade é que, a ofendida BB sempre se deslocou a casa, ao encontro, do recorrente, sem que o arguido contribuísse para que isso ocorresse.
16.
Ora, a resolução criminosa do recorrente foi, deste modo, facilitada por uma situação exterior ou exógena a ele mesmo.
17.
Não foi o próprio recorrente que criou as condições que lhe permitiram concretizar os seus propósitos, designadamente, perseguindo, assediando e ameaçando a ofendida, sendo certo que nem sequer resultou da sentença que o arguido tivesse conhecimento da residência da ofendida para que a pudesse encontrar, se o quisesse.
18.
Se é certo que a censurabilidade na prática dos crimes apontados ao arguido é elevada, não se pode correr o – elevadíssimo – risco desconsiderar as condicionantes, externas ao recorrente que, inevitavelmente, foram facilitadoras, e essenciais, para que os encontros entre o recorrente e ofendida se repetissem.
19.
Se a censurabilidade dos crimes de abuso sexual praticados sobre crianças, menores de 14 anos, é elevado, não se pode desconsiderar as condicionantes que o recorrente não propiciou.
20.
Do que se mencionou, denota-se, sim, uma diminuição sensível da culpa do recorrente pois a ocasião favorável à prática dos crimes, no que à ofendida BB diz respeito, repete-se sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao recorrente e não quando ele activamente a provoca.
21.
Nos casos apreciados, a verdade é que, o arguido deixou-se arrastar pelo facto de a ofendida aparecer na casa dele criando uma oportunidade que, concretamente analisado, diminuiu a sua censurabilidade. Na verdade, não foi ele quem criou ou fomentou as oportunidades.
22.
Assim, do quadro factual apurado indicia a ocorrência de um circunstancialismo exterior capaz de facilitar ou propiciar a repetição dos comportamentos delituosos do arguido, tornando cada vez menos exigível a opção por conduta diversa, o que, de alguma maneira, diminuiu consideravelmente a culpa daquele.
23.
Por tudo o exposto, considera-se que, de facto, em relação a cada crime de abuso sexual de menores de crianças, cuja moldura penal prevista no art. 171 nº 2 do CP é de 3 a 10 anos de prisão, considera-se razoável, e justo, que a pena concreta seja fixada no mínimo legal de 3 anos de prisão.
24.
Dentro da moldura do concurso que resulta das penas parcelares a que o arguido foi condenado pelos 7 crimes que praticou, valorando, no seu conjunto e interconexão, os factos e a personalidade do arguido, considera-se adequada a pena púnica de 5 anos de prisão [em substituição da pena única de 9 anos de prisão fixada pelo tribunal de 1.ª instância].»

3. O Ministério Público na 1.ª Instância respondeu ao recurso, dizendo:

«O arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, dos seguintes crimes e nas penas abaixo indicadas:
- cinco crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, cada um deles na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
- um crime de coacção agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, n.º 1, als. a) e b), 23º, n.ºs 1 e 2, 73º,154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão;
- um crime de ameaça agravada, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30º, n.º2, 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico das sobreditas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 9 (nove) anos de prisão.
O arguido, inconformado, veio interpor recurso de tal decisão, formulando vinte e quatro conclusões – que aqui se dão por integralmente reproduzidas – e pugnando, em síntese, pela redução das penas parcelares aplicadas a cada um dos crimes de abuso sexual de menor para o mínimo legal (3 anos) e pela redução da pena única para cinco anos.


II
No que respeita à medida das penas parcelares aplicadas, há que considerar, antes de mais, as respectivas molduras: o crime de abuso sexual de crianças, previsto no artigo 171º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos; o crime de coacção agravada sob a forma tentada, previsto nos artigos 22º, n.º 1, als. a) e b), 23º, n.ºs 1 e 2, 73º, 154º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, é punido com pena de prisão de 1 mês a 3 anos e 5 meses; e o crime de ameaça agravada, previsto nos artigos 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a), do Código Penal, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
Ora, como muito bem se refere no douto acórdão recorrido, são elevadas as exigências de prevenção geral, pois os abusos sexuais de menores provocam, sem dúvida, um sentimento de repulsa na comunidade, sobretudo devido à idade das vítimas e pelo facto de terem sido violadas normas que visam proteger o livre desenvolvimento da sua personalidade.
Mas são também prementes as exigências de prevenção especial no caso em apreço, face «às condições pessoais e de vida do arguido (das quais resulta um trajecto de vida desestruturado em termos sociocomunitários, sem retaguarda familiar, e a ausência de um projecto de vida devidamente estruturado, emergindo o consumo de álcool, a dependência de produtos estupefacientes e a adopção de um estilo de vida promíscuo com importantes factores de risco); o facto de já ter sido condenado pela prática de um crime contra as pessoas (o crime de violência doméstica), numa pena de prisão suspensa na sua execução; e a sua personalidade, revelada pela gravidade dos factos praticados e pela postura assumida perante os mesmos, não traduzindo arrependimento (chegando, aliás, a gabar-se das suas façanhas sexuais em sede de primeiro interrogatório judicial) – tudo o que é revelador da não interiorização do desvalor da sua conduta. Em face disso, e pela forma como o arguido aborda o tema da sexualidade e pela forma como actuou, ficou o Tribunal convencido de que o mesmo padece de um problema nesta área da vida, apresentando mesmo perfil de “predador sexual”.»
        Permitimo-nos ainda transcrever de seguida outro excerto do segmento do acórdão recorrido que versa também sobre a escolha e determinação da medida da pena, face à clareza da exposição que, aliás, é bastante pormenorizada e completa e que se nos afigura ser inatacável, com todo respeito por diferente opinião.
         «É elevado o grau de ilicitude, salientando-se:
- quanto aos crimes de abuso sexual, os concretos actos praticados – cópula completa com ejaculação -, em conjugação com o facto de não se ter apurado que o arguido usasse preservativo, para além da rapidez com que arguido passa de meros contactos escritos através do facebook, com palavras de enamoramento sem conotações sexuais, a uma prática desta natureza;
- quanto ao crime de coacção, para além do superior valor dos bens ameaçadas, o objectivo visado, qual seja encobrir a prática do crime de abuso sexual, tendo-se ainda presente a idade da ofendida, por isso naturalmente mais frágil e vulnerável que uma pessoa adulta;
- quanto ao crime de ameaça, para além do modo de execução (fazendo-se o arguido passar por uma terceira pessoa, que ora o elogia, ora ameaça a ofendida; e usando artifícios para escamotear a autoria das mensagens), a reiteração e persistência da actuação, tendo-se ainda presente a idade da ofendida, por isso naturalmente mais frágil e vulnerável que uma pessoa adulta.
         Inexistem factores a ponderar em favor do arguido.
         Em desfavor do arguido milita, para além do facto de ter atuado com dolo directo – que se reputa de intenso -, a sua postura perante os factos, tal como as suas condições pessoais e de vida, onde residem ponderosos factores de risco. Pondera-se, ainda, a condenação de que já foi objecto.
        A culpa é ponderosa, enquanto reflexo da ilicitude dos factos praticados, relativizada contudo pelo facto de o arguido, que contou com um processo de desenvolvimento num ambiente familiar disfuncional, com a ausência de modelos positivos de referência, não contar com qualquer supervisão – da família ou do Estado - desde os 15/16 anos.»
        É, pois, incontornável a gravidade dos factos praticados, não podendo deixar de pesar em desfavor do arguido o elevado grau de ilicitude da sua conduta e o dolo intenso com que o mesmo actuou. Vejam-se as infracções cometidas pelo arguido, a sua motivação, bem como o respectivo modo de execução e as consequências que daí resultaram.

Para além disso, o arguido, quando confrontado com os factos que lhe são imputados não manifestou qualquer arrependimento e revelou que não interiorizou minimamente o desvalor da sua conduta. A acrescer a tudo isto, os seus antecedentes criminais por crime cometido contra as pessoas (violência doméstica) e ainda o facto de o mesmo não ter qualquer projecto de vida em conformidade com as regras de vida em sociedade.
         Assim, a personalidade do arguido, o dolo intenso com que actuou e os seus antecedentes criminais revelam que as necessidades de prevenção especial e de ressocialização são elevadas. São também prementes as exigências de prevenção geral, havendo que restaurar a confiança da sociedade na validade e eficácia das normas violadas, as quais protegem bens jurídicos que a comunidade consagrou como valiosos.   
Afigura-se-nos, pois, face ao grau de ilicitude e de culpa evidenciado, e às fortes exigências de prevenção especial e geral que no caso se verificam, que as penas parcelares se mostram ajustadas aos critérios legais.
         Quanto à medida da pena única.
Os critérios de definição da pena única – factos e personalidade – reconduzem-se, em síntese, aos critérios gerais de que a lei faz depender a determinação de cada pena concreta.
         Ora, no caso em apreço, a pena única a fixar tinha e tem como limite máximo 25 anos de prisão e como limite mínimo 4 anos e 6 meses de prisão.
Assim, ponderando o conjunto dos factos e a personalidade do arguido, a pena única que lhe foi aplicada pelo Tribunal a quo – 9 (nove) anos de prisão – não poderá ser considerada excessiva.
Com efeito, o Tribunal a quo ponderou com equilíbrio todas as circunstâncias do art. 71º do Código Penal, tendo em conta, designadamente as exigências de prevenção geral e especial, o grau de ilicitude dos factos e de culpa do arguido, o modo de execução dos crimes e a gravidade das suas consequências, bem como a intensidade do dolo, a motivação do arguido, a sua conduta anterior e posterior à data da prática dos factos e ainda as suas condições pessoais e situação económica.
Foram também observadas as regras da punição do concurso de crimes, em obediência ao disposto pelo art. 77º do Código Penal.
Mostram-se, pois, adequadas as penas parcelares, bem como a pena única imposta ao arguido, conforme resulta da exaustiva, minuciosa, clara e muito bem elaborada fundamentação do acórdão recorrido.
         Bem andou, pois, em nosso entendimento, o Tribunal a quo, não merecendo por isso o douto acórdão recorrido qualquer censura ou reparo.»

Concluindo pela manutenção na íntegra da decisão recorrida, negando-se provimento ao recurso.

            4. A Ex.ma Procuradora-Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer cujo teor se transcreve:


«1 – AA foi julgado pelo tribunal colectivo da comarca de ..., Instância Central, Sec. criminal que, por Acórdão de 16.10.2015, o condenou nos seguintes termos:
       “Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de:
                  - cinco crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171°, n.os 1 e 2, do Código Penal, cada um deles na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
                   - um crime de coacção agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22°, n° 1, als. a) e b), 23°, nºs 1 e 2, 73°,154°, n° 1 e 155°, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão;
                - um crime de ameaça agravada, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30°, n° 2, 153°, n° 1 e 155°, n° 1, al. a), todos do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão.
                Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 9 anos de prisão.”.
        
2 – Inconformado, interpôs recurso para este Venerando Tribunal, em tempo e com legitimidade.
               O MP respondeu também tempestivamente.
               O recurso foi admitido com o efeito e modo de subida devidos.
           2.1. O arguido recorrente discorda, fundamentalmente, das penas de prisão parcelares aplicadas por cada um dos 5 crimes de abuso sexual de criança que, em seu entender se mostram excessivas, desadequadas e desproporcionais, considerando a matéria de facto dada como provada.
2.2. O MP respondeu, pugnando pela manutenção do julgado, porquanto a decisão recorrida não merece censura, aplicou bem o direito, tendo em conta os factos fixados, a gravidade dos ilícitos praticados, a intensidade da ilicitude, o elevado grau de culpa com que actuou o arguido e as necessidades prementes de uma prevenção geral positiva que se impõem neste tipo de crimes, bem como as exigências da prevenção especial.

3 - Questão prévia – Da (in)competência do STJ.
 3.1. Consabidamente, são as conclusões de recurso que delimitam o seu âmbito.
Da leitura das conclusões apresentadas pelo recorrente resulta clara e inquestionavelmente que o arguido discute tão só as penas parcelares de prisão aplicadas a cada um dos 5 crimes de abuso sexual de criança (conls. 1ª, 4ª a 23ª).
A cada um dos cinco crimes de abuso sexual de criança por si praticado, a decisão ora recorrida condenou-o, por cada um deles, na pena de prisão de 4 anos e 6 meses de prisão.
O arguido defende que, por cada um deles não deverá ser aplicada pena superior a três anos, porquanto, “do quadro factual apurado indicia a ocorrência de um circunstancialismo exterior capaz de facilitar ou propiciar a repetição dos comportamentos delituosos do arguido (…)” – concl. 22ª -.
Só indirectamente, por força do eventual provimento do recurso nesta parte, defende, como consequência, a aplicação de uma pena única de 5 anos de prisão (concl. 24ª).
3.2. Dispõe o art. 432º, nº 1, al. c), do CPP, que há recurso para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito.
Acórdão final que tanto se refere à decisão final que aplica a cada um dos crimes cometidos pena de prisão parcelar, como a que aplica a pena única de prisão, em resultado da realização de cúmulo jurídico.
Ora, o arguido foi condenado, por cada um dos crimes de abuso sexual de criança, em pena de prisão inferior a 5 anos.
A pena única de 9 anos aplicada ao arguido só é questionada em função da pretendida baixa das penas parcelares de 4 anos e 6 meses de prisão aplicadas a cada um dos crimes de abuso sexual de criança.
Consequentemente,
O Supremo Tribunal de Justiça é incompetente para decidir do presente recurso, cabendo ao Tribunal da Relação conhecer do fundo das questões colocadas.

4 – Do mérito da causa.
      Na mera hipótese de raciocínio de assim se não entender, o recurso do arguido não merece provimento.
     Dando aqui por reproduzida, com a devida vénia, a resposta proficiente do MP, apenas se me oferece sublinhar a matéria de facto dada como provada, que rejeita completamente toda a reconstrução desculpabilizante da sua actuação que o arguido levou às conclusões de recurso. 
      O arguido tinha, à data da prática dos factos, cerca de 25 anos.
      As menores ofendidas, cerca de 13 anos de idade, idades essas do perfeito conhecimento do arguido.
       O arguido agiu de modo livre, deliberado e conscientemente, com o propósito reiterado e concretizado de satisfazer as suas intenções libidinosas, actuando de todas estas vezes de forma a ter com as 2 crianças actos de natureza sexual, sabendo que quer a CC quer a BB tinham idades inferiores a 14 anos, facto a que foi indiferente, querendo praticar actos com as mesmas (facto nº 31), dado como provado.
       O arguido não confessou os factos tal como resultaram provados, nem mostrou arrependimento (cfr. fls. 615 e 616).
       A fundamentação de direito “Quanto aos crimes de abuso sexual de crianças”, constante do acórdão recorrido traduz uma ponderação reflectiva cuidada e meticulosa, suficientemente esclarecedora e estruturante da decisão tomada, que não merece censura.
       A moldura penal do crime de abuso sexual de crianças, agravado pelas cópulas completas mantidas com as menores CC e BB, é de 3 a 10 anos. A pena de 4 anos e 6 meses de prisão aplicada por cada um dos 5 crimes cometidos pelo ora recorrente posiciona-se perto do limite mínimo da pena aplicável.
      O cúmulo jurídico efectuado reflecte os comandos expressos nos arts. 40º, 71º e 77º do C.P.
      A decisão recorrida não merece censura.

5 - Pelo exposto, emite-se parecer no sentido da: 
→  incompetência deste Venerando Tribunal de Justiça para decidir do presente recurso, considerando as penas parcelares de 4 anos e 6 meses de prisão aplicadas por cada um dos cinco crimes de abuso sexual de criança, que o arguido contesta, e o disposto no nº 1, al. c), do art. 432º, do CPP,
→ caso assim se não entenda, não provimento do recurso interposto pelo arguido.»

5. Foi cumprido o artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada tendo sido dito.

6. Não tendo sido requerida audiência, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), ambos do Código de Processo Penal.

7. Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Competência do Supremo Tribunal de Justiça

1.1. Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do mesmo diploma – o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação apresentadas pelo recorrente nas quais sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido.

No caso presente, o recorrente questiona as penas de 4 anos e 6 meses de prisão fixadas por cada um dos cinco crimes de abuso sexual de crianças em que foi condenado.

Mas, logo na conclusão 1.ª do recurso, expressa a sua «insatisfação (…) com a assunção jurídica, mormente no que concerne à determinação das penas parcelares e, em último caso, única, e respectiva fundamentação, eleita pelo tribunal a quo», entendendo que «a aplicação de 4 anos e 6 meses de prisão, ao arguido, por referência a cada um dos crimes de abuso sexual de criança, a quem foi condenado, não espelha, com exactidão o que resultou dos factos dados como provados. Tais penas, parcelares, mostram-se excessivas, desproporcionais e desadequadas» (conclusão 4.ª).

E, rematando as conclusões:
«23.
Por tudo o exposto, considera-se que, de facto, em relação a cada crime de abuso sexual de menores de crianças, cuja moldura penal prevista no art. 171 nº 2 do CP é de 3 a 10 anos de prisão, considera-se razoável, e justo, que a pena concreta seja fixada no mínimo legal de 3 anos de prisão.
24.
Dentro da moldura do concurso que resulta das penas parcelares a que o arguido foi condenado pelos 7 crimes que praticou, valorando, no seu conjunto e inter conexão, os factos e a personalidade do arguido, considera-se adequada a pena púnica de 5 anos de prisão [em substituição da pena única de 9 anos de prisão fixada pelo tribunal de 1.ª instância].»

1.2. Suscita a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta a questão da incompetência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer deste recurso, por considerar que «[d]a leitura das conclusões apresentadas pelo recorrente resulta clara e inquestionavelmente que o arguido discute tão só as penas parcelares de prisão aplicadas a cada um dos 5 crimes de abuso sexual de criança (conls. 1ª, 4ª a 23ª)», defendendo o arguido que por cada um desses crimes «não deverá ser aplicada pena superior a três anos, porquanto».

Ora, considera aquela Magistrada:

«Só por força do eventual provimento do recurso nesta parte, defende, como consequência, a aplicação de uma pena única de 5 anos de prisão (concl. 24ª)», e que,

«A pena única de 9 anos aplicada ao arguido só é questionada em função da pretendida baixa das penas parcelares de 4 anos e 6 meses de prisão aplicadas a cada um dos crimes de abuso sexual de criança».

Dispondo o artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, doravante CPP, «que há recurso para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito», tendo o arguido sido condenado, por cada um dos crimes de abuso sexual de criança, em pena de prisão inferior a 5 anos, conclui que:

«O Supremo Tribunal de Justiça é incompetente para decidir do presente recurso, cabendo ao Tribunal da Relação conhecer do fundo das questões colocadas».

1.3. Começando por conhecer da questão suscitada pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta, já que prévia, visto que a obter deferimento precludirá o conhecimento do recurso interposto pelo arguido, dir-se-á, acompanhando o acórdão de 25 de Novembro de 2015, proferido no processo n.º 455/13.3PLSNT.L1.S1 – 3.ª Secção[2], relatado pelo agora relator, que:

O artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, doravante CPP, dispõe que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça «De acórdãos proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente matéria de facto».

Por sua vez, o n.º 2 do mesmo preceito estabelece que nos casos previstos na alínea c), que se vem de transcrever, «não é admissível recurso prévio para a Relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º».

No caso em apreço, o recurso é interposto de decisão condenatória proferida pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito».

Na verdade, o recorrente impugna as penas aplicadas por cada um dos cinco crimes de abuso sexual de crianças, de 4 anos e 6 meses de prisão, sustentando que elas não deverão exceder os 3 anos de prisão.

Como se retira da motivação e das conclusões do recurso, o recorrente não questiona a matéria de facto apurada pelo Tribunal Colectivo mas sim o direito aplicado, concretamente os aspectos jurídicos que se prendem com a punição por cada um dos referidos crimes e os critérios que foram utilizados na aplicação das respectivas penas parcelares, mas também com fixação da pena conjunta.

No objecto do recurso e seu alcance concreto está também compreendida a pena conjunta aplicada ao arguido, em cúmulo jurídico das penas parcelares fixadas. Das conclusões do recurso, retira-se que o mesmo não está limitado ou restringido à matéria referente às penas parcelares impostas ao arguido, abrangendo igualmente a matéria que se prende com a pena única. O recorrente considera, conforme afirma, «adequada a pena púnica de 5 anos de prisão [em substituição da pena única de 9 anos de prisão fixada pelo tribunal de 1.ª instância]»

O recurso teria, aliás, necessariamente de compreender também a matéria relativa à determinação da pena conjunta.

Como refere PEREIRA MADEIRA, «[a] limitação do recurso, corolário da disponibilidade do direito de recorrer, parte sempre de um pressuposto básico: a possibilidade de autonomização da parte recorrida relativamente à sobrante decisão, por forma a que seja possível uma apreciação e uma decisão também autónomas relativamente ao restante decidido» [3].

Pois, importa acentuar, a confecção da pena conjunta resultante do cúmulo jurídico é realizada dentro da moldura penal modelada pelas penas parcelares. Noutra formulação, a pena conjunta engloba as penas parcelares, forma-se à custa delas.

Como se considera no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de Julho de 2012 (Proc. n.º 2/09.IPAETZ.S1)[4]:
«No caso de concurso de infracções temos, assim, dois momentos de definição de pena com sujeição a critérios diferentes: a definição das penas parcelares que modelam a moldura penal dentro da qual será aplicada a pena conjunta resultante do cúmulo jurídico e, posteriormente, a definição da pena conjunta dentro dos limites propostos por aquela. A primeira daquelas operações, concretização das penas parcelares constitui um prius, um pressuposto; um antecedente lógico do segundo momento pois que, como refere o mesmo Mestre, a formação da pena conjunta opera no quadro de uma combinação de penas parcelares que não perdem a sua natureza de fundamento da pena de concurso.»

Daí que, segundo o mesmo acórdão:
«Maximizando tal entendimento pode-se dizer que se pode recorrer da pena conjunta sem colocar em causa as penas parcelares, mas o contrário já não acontece, ou seja, alterada a pena, ou as penas parcelares, necessariamente que está afectado o quadro dentro do qual foi encontrada a pena conjunta que, por tal forma, terá de ser, necessariamente, sindicada.»

Em face do exposto, tendo sido aplicada pelo Tribunal Colectivo no acórdão recorrido a pena única de 9 anos de prisão, e visando o recurso interposto exclusivamente o reexame de matéria de direito, consideramos que pertence ao Supremo Tribunal de Justiça a competência para conhecer do recurso, em conformidade com o disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, improcedendo a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.

1.4. Ainda relacionada com o exercício da competência deste Supremo Tribunal neste recurso, está a questão da cognoscibilidade das penas parcelares aplicadas ao arguido, inferiores a cinco anos de prisão, inferiores, portanto, ao patamar de recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça supra definido.

A questão, que tem sido apreciada e decidida em termos nem sempre convergentes neste Supremo Tribunal, pode formular-se da seguinte forma, conforme acórdão de 21 de Janeiro de 2015, proferido no processo n.º 12/09.9GDODM.S1:
«saber se em situação em que um arguido tenha sido condenado numa mesma decisão em várias penas de prisão, todas elas, ou algumas, em medidas iguais ou inferiores a 5 anos, e apenas alguma ou algumas daquelas e a pena única ultrapassando aquele limite, o Supremo, sabido que terá óbvia competência para conhecer de penas parcelares superiores a 5 anos de prisão, bem como da pena conjunta, tem ou não competência para apreciar também as penas parcelares, mesmo que aplicadas em medida inferior àquele patamar, erigido em condição de cognoscibilidade».

O citado acórdão regista extensa e detalhada informação sobre as orientações perfilhadas neste Supremo Tribunal, dando conta da que, em termos largamente maioritários, tem prevalecido: a ampla recorribilidade, competindo ao Supremo Tribunal de Justiça, reunidos os demais pressupostos previstos no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, já enunciados, apreciar as questões relativas a crimes punidos com penas iguais ou inferiores a cinco anos de prisão englobadas numa pena conjunta superior a cinco anos de prisão.

Convocando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 26 de Fevereiro de 2014 (Proc. n.º 29/03.3GACNF.S1 – 3.ª Secção), dir-se-á que «a lei adjectiva penal, ao atribuir competência ao Supremo Tribunal de Justiça para conhecer recurso de acórdão final proferido pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que aplique pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente a matéria de direito (alínea c) do n.º 1 do artigo 432º), obviamente pressupõe que o Supremo Tribunal, nos casos de condenação em pena conjunta, conheça de todas as penas singulares que integram aquela, sob pena de o condenado ver precludido o direito a, pelo menos, um grau de recurso no que àquelas penas concerne, direito que a Constituição da República lhe garante (n.º 1 do artigo 32º)».

Tem sido este o entendimento que vem sendo assumido pela 3ª secção criminal deste Supremo Tribunal. Como se refere no acórdão de 13 de Abril de 2013, proferido no Processo n.º 700/01.8JFLSB.C1.S1:
«1. No caso de o recurso ser dirigido directamente ao STJ, visando o conhecimento em termos de direito, de uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão, bem como de penas parcelares inferiores a tal limite inscrito no art. 432.º, al. c), do CPP, entende-se que ocorre um “alargamento” da competência do STJ à apreciação das penas parcelares. 2. Esta posição está em coerente coordenação com a natureza e finalidades processuais do recuso directo para o STJ, bem como com o princípio do conhecimento unitário do recurso, que supõe que a instância competente para decidir parte das questões (no caso, a pena parcelar superior a 5 anos e a pena única), assume a competência para conhecer todas as questões de que depende o exercício da competência da instância superior, ou seja, no caso, a medida das penas parcelares e da pena única». 

Já no acórdão deste Supremo Tribunal, de 7 de Outubro de 2009 (proc. n.º 611/07.3GFLLE.S1), se justificava esse «alargamento» da competência do Supremo Tribunal de Justiça nos seguintes termos:
 «O “alargamento” da competência do STJ à apreciação das penas parcelares (não superiores a 5 anos de prisão) nada tem de incongruente, pois se trata de questão exclusivamente de direito, compreendida (isto é, integrada) na questão mais geral da fixação da pena conjunta, a qual, nos termos do art. 77º do CP, deve considerar globalmente os factos e a personalidade do agente.
Sendo certo que o STJ só deve ser convocado para as causas de maior relevância, não deve ignorar-se (o intérprete também não deve fazê-lo) que o STJ tem um importante papel regulador e orientador (e garantista) da jurisprudência, um papel de “referência” para os tribunais judiciais, que não se compadece com uma excessiva parcimónia da sua intervenção processual.
Sendo o STJ o tribunal vocacionado, por excelência, para “dizer o direito”, havendo dúvidas quanto à sua competência, quando se tratar de recurso exclusivamente de direito, essas dúvidas deverão ser resolvidas no sentido da sua competência.
Interpreta-se, pois, a al. c) do nº 1 do art. 432º do CPP como atribuindo competência ao STJ para, em recurso de uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão, apreciar também as penas parcelares integrantes daquela pena conjunta não superiores a essa medida, quando elas sejam impugnadas.
Assim se cumprirá o “desígnio” do legislador (celeridade), sem prejuízo, antes pelo contrário, das garantias processuais.»

Numa outra perspectiva, mas assumindo-se a mesma orientação, cumpre mencionar o acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Dezembro de 2011, proferido no processo n.º 41/10.0GCAZ.P2.S1, onde se concluiu que:
«(…) em caso de recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão que tenha aplicado penas parcelares em medida inferior ou igual a cinco anos e pena conjunta a ultrapassar esse limite, visando-se apenas o reexame de matéria de direito, o conhecimento do objecto do recurso abrange as medidas das penas parcelares, por ser essa a solução que compense a falta de possibilidade de recurso para a Relação.

Sabido que por força do n.º 2 do artigo 432.º, visando-se apenas reapreciação de matéria de direito, não é possível recurso prévio para a Relação, a não cognição de tais penas redundaria na denegação de um único grau de recurso, contrariando a garantia de defesa estabelecida a partir da quarta revisão constitucional - Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro - com a introdução na parte final do n.º 1 do artigo 32.º da locução “incluindo o recurso”, abrangendo nas garantias de defesa o direito ao recurso, correspondendo a densificação do direito à protecção judicial efectiva e significando que o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição.»  

Em face do exposto, considera-se que este Supremo Tribunal tem competência para proceder ao conhecimento de todo o recurso, quer relativamente à pena conjunta em que o recorrente foi condenado, quer em relação às questões que suscita quanto às penas parcelares, inferiores a cinco anos de prisão.

Assente a recorribilidade do acórdão recorrido, englobando a cognição das penas parcelares aplicadas ao recorrente, passando, pois, a conhecer o objecto do recurso.

Para tanto, importa conhecer previamente matéria de facto, que é a seguinte:

2. Matéria de Facto Provada:

«Discutida a causa, o Tribunal julga provados os seguintes factos:

1 – A menor CC nasceu em .... de 2001, por seu turno, e menor BB nasceu em ... de 2001.

2 – O arguido conheceu a menor CC através da rede social facebook, em data não concretamente apurada mas durante o mês de Junho de 2014, passando desde então a conversar ambos através de tal rede social, na qual o arguido se apresentava com o nick name de “Danny Dark”, sendo que nessas conversas a ofendida deixou bem expresso que a ofendida CC tinha apenas 13 anos de idade, do que o arguido ficou ciente.

3 – A ofendida CC disse ao arguido onde morava e combinou encontrar-se com ele na casa onde residia com a sua mãe.

4 – No dia 30 de Junho de 2014, cerca das 9h30m, o arguido, sabendo que a ofendida CC se encontrava sozinha em casa, deslocou-se até casa desta ofendida, sita na ..., ..., cuja porta esta lhe abriu tendo o arguido de imediato dado um beijo na boca da ofendida.

5 – Durante toda essa manhã, o arguido e a ofendida CC ficaram no sofá da cozinha, onde por diversas vezes se beijaram na boca e trocaram carícias, apalpando-se mutuamente nas zonas erógenas sobre a roupa que vestiam.

6 – Entre as 12h30 e as 13h30m, a ofendida CC saiu de casa e foi almoçar a casa de sua avó, permanecendo o arguido em sua casa. Quando a ofendida aí regressou, cerca das 13h30m, o arguido insistiu com ela para irem ambos até ao quarto.

7 - Apesar de inicialmente recusar irem para o quarto e chegar mesmo a verbalizar não querer manter relações sexuais com o arguido, a ofendida CC acabou por aceitar e foi buscar uma toalha de rosto que colocou sobre a sua cama, por prever que poderia sujar a cama uma vez que seria a primeira vez que iria ter relações sexuais, deitando-se sobre a mesma.

8 – De seguida, o arguido tirou a roupa da ofendida CC e despiu-se a si mesmo, ficando ambos nus.

9 – Depois, o arguido deitou-se sobre aquela ofendida e introduziu o seu pénis erecto na vagina da mesma, ali o mantendo em movimentos ritmados para cima e para baixo, até ejacular.

10 – Após o arguido sair de cima de si, a ofendida CC foi à casa de banho lavar-se e vestir-se, regressando ao quarto onde se deitou na sua cama ao lado do arguido, ficando ambos a ver um filme no computador.

11 - Durante o filme, o arguido deu a entender à ofendida CC que queria voltar a manter com ela relações sexuais e, apesar de aquela lhe ter dito que não queria, o arguido retirou a roupa da ofendida e retirou a sua própria roupa, introduzindo de seguida o seu pénis erecto na vagina da menor CC, aí o friccionando até ejacular.

12 – A menor CC foi lavar-se de novo e, quando regressou ao quarto junto do arguido este, em tom sério e assustador, ordenou-lhe que não contasse a ninguém o que se passara acrescentando, em jeito credível, que se dissesse alguma coisa a alguém o que se passara entre ambos ele voltaria e violaria a ofendida CC e a mãe e que destruiria a casa onde ambas viviam se aquela contasse alguma coisa a alguém.

13 – Entretanto, o arguido saiu à pressa da casa da ofendida CC, quando se apercebeu que a mãe desta entrava de carro na garagem da residência.

14 – A ofendida CC ficou muito assustada, acabando por pedir auxílio à sua mãe e a uns familiares, a quem contou tudo o que se passara por temer que o ofendido pudesse concretizar as suas ameaças.

15 - Igualmente através da rede social de facebook, em dia não concretamente apurado mas ocorrido no ano de 2013, o arguido enviou um “pedido de amizade” à ofendida DD, que aquela aceitou, passando a partir de então a conversarem ambos através daquela ferramenta da internet, e pouco tempo depois também através de telemóvel, cujos números forneceram um ao outro numa dessas conversações.

16 - A dada altura, o arguido mostrou-se interessado na ofendida DD, passando a verbalizar a sua vontade de se relacionar sexualmente com ela, o que aquela sempre declinou negando-se sempre a qualquer encontro pessoal que aquele insistia manter consigo.

17 - Entretanto, no dia 5 de Julho de 2014, através de mensagem sms do telemóvel, a menor CC, amiga da DD, confessou a esta última que mantinha uma relação de namoro com o aqui arguido, que ambas apelidavam de “Danny Dark”, pelo que a DD alertou aquela sua amiga dizendo-lhe que aquele indivíduo era perigoso e aconselhando-a a tomar cuidado com ele mais lhe contando que ele já tentara um relacionamento sexual consigo, ao que a menor CC lhe ripostou que aquele lhe contara que havia sido o contrário, que a menor DD é que estaria interessada nele e se “andaria a fazer a ele” sendo-lhe o arguido indiferente, pelo que a CC ainda acrescentou dizendo à sua amiga DD que se afastasse do seu namorado, tendo por isso ambas acabado por se zangar uma com a outra, deixando mesmo de se falar.

18 – Porque a menor CC contasse ao arguido o que falara com a menor ..., no dia 6 de Julho de 2014, o arguido, através do seu telemóvel nº ..., telefonou para o telemóvel da ofendida DD, com o nº ..., dizendo-lhe que lhe ligasse, o que aquela fez, altura em que o arguido a destratou e, entre outras coisas, lhe disse em tom sério e amedrontador que se a ofendida DD não o deixasse a si e à menor CC ele, arguido, iria atrás dela ou mandaria alguém para o fazer.

19 - No dia 14 de Julho de 2014, pelas 6h35m, o arguido, através dos mesmos números de telemóvel, enviou à ofendida DD uma mensagem escrita com o conteúdo “Ex uma merda t faxex merda para caralhu e ainda me eleminas du facee tax fodid kmg depoix duke k me me fixex t vais tr a paga deixa t andar”.

20 - Movido por esse mesmo intuito de amedrontar a ofendida DD e vendo que até então vinha tendo sucesso, até porque aquela não se queixara entretanto nem havia indícios que de algum modo pudesse ter dado conhecimento dessa situação a terceiros, nesse mesmo dia 14 de Julho, através do telemóvel com o nº ...., o arguido, fazendo-se então passar por uma outra pessoa que supostamente seria um seu amigo, mandou ainda à ofendida DD as seguintes mensagens escritas:

- pelas 15h51m: “Veras um dia destes”;

- pelas 15h58m: “Não te disseram que te ias dar mal puzest o meu amigo mal ta nu hospital a sofer vais te dar mal pah”;

- pelas 16h45: “Veras em breve vais ter uma surpreza ate apagas te o facee du meu amigo pq pq sabes que fizes te merda”;

- pelas 16h47m, “Mas pensas que nao sei quem es caralho o meu amigo espelicou bem as coisas so te digo 7olhos na rua pah avizo dado xau”.

21 – No dia 16 de Julho de 2014, o arguido, através deste mesmo telemóvel com o número ...., enviou à ofendida DD as seguintes mensagens escritas:

- pelas 6h56m. “Ah e so mais uma coisinha quandu te vir na rua nem que seija nu tempo da tua escola veras, o que te vai acontecer.. As tuas costas o meu amigo tentou se, matar e ta nu hospital, es uma vaca hordinaria sem respeito, por ninguem como nao consegues ser feliz, tambem nao queres que os outros, seijao es uma monte de merda sua, triste mata t pah mas e..”,

- pelas 8h05m: “Ja sei, tens amr a vida, o não”;

- pelas 8h15m: “Ai, nao entao isto e assim se queres viver a tua vida normalment sempre teres chatixes e para que nada te, contesa, atao ati como, a tua familia, nem ser robados, tens de passar uma, tar com meu tropa, se nao ja sabes es mais uma para, minha lista, negra”;

- pelas 8h19m : “Atao tu que tanto o conheces achas, que ele e maah, pessoa pah, tumara todos, neste mundo, ser como, ele agora, ele sim, tem e mto, conhecimento, marado e olha eu, sou um deles, gosto, mto matar, e roubar, esse, sim e a minha alegria pah”;

- pelas 8h21m: “Se tiver que, ser o, pior acerdita que sim metes te, com um passado, agora tens de fazer, o que eu quero e ponto”;

- pelas 8h23m: “Quero que teijao, juntos se ele, nao quizer, leva na, fuxinha, isto e jogo, e agora quem manda sou, eu atao, opois ai largo te, sim”;

- pelas 8h29m: “Agora a, escolha e tua, o jogo, ta a contrar”;

- pelas 8h30m: “Tens 48h para dessidires, nao 24h e milhor”;

- pelas 8h34m: “Opah pode ate nem, mudar nada, caralho mas, mando eu, e eu quero assim, e ponto final, e podes ter a, serteza de, que assim nao, es roubada, nem te faxo, vida negra, agora escolha, e tua e anda, que ta a contar caralho”;

- pelas 8h37m: “Tou te a dizer que tem de tar um dia juntos e ponto final mando eu e ele sabe, como sou, caralho, nem que tenha que lhe partir a boca, toda, e metelo outra, vez nu, hospital, mas tem, de aseitar e ponto, e 24h nao mais caralho para tares com ele”;

22 – Após várias mensagens de conteúdo mais irrelevante para estes autos, e porque a ofendida ... não mais lhe respondesse, no dia 18 de Julho de 2014, pelas 13h57m, através dos mesmos números de telefone acima referidos, o arguido enviou à ofendida DD uma última mensagem escrita a dizer “Olha nao, atendes tas a guzar, com estao merda, atao daqui amanha, depois diz que sao, maus chau ja ficas, mais uma para a minha, lista '@ adeus”

23 – Em data não concretamente apurada mas há cerca de 2 anos a esta parte, o arguido conheceu a ofendida BB através da internet, na rede social facebook, passando então a conversar frequentemente através dessa rede social e, mais tarde, através de telemóvel, sendo que desde o início desse relacionamento que o arguido ficou ciente da idade da menor BB, que nessa altura tinha apenas 11 anos de idade.

24 – Desde data não concretamente apurada mas ocorrida em finais de Julho ou inícios de Agosto de 2014, o arguido e ofendida BB iniciaram uma relação de namoro entre ambos, vindo a conhecer-se pessoalmente em dia igualmente não apurado mas durante o mês de Setembro de 2014, bem sabendo o arguido que a ofendida BB tinha então apenas 13 anos de idade.

25 – Em dia não concretamente apurado mas ocorrido numa quarta-feira do mês de Setembro de 2014, após as 12h40m, quando terminou as aulas, a ofendida BB apanhou o autocarro para ... e daqui para ..., onde o arguido se encontrou consigo, ficando em casa do arguido até quinta-feira.

26 – Durante esse período de tempo que permaneceu em casa do arguido, por diversas vezes a ofendida BB manteve com aquele relações sexuais de cópula completa, em casa daquele arguido em circunstâncias ainda não concretamente apuradas. Durante esse mesmo período de tempo por várias vezes o arguido beijou a ofendida BB na boca, apalpando-se mutuamente nas zonas erógenas, quer por cima da roupa quer quando ambos se encontravam despidos.

27 – No dia 8 de Outubro de 2014, a hora não apurada, a ofendida BB apanhou de novo o autocarro e foi ao encontro do arguido, permanecendo em casa daquele até sexta-feira, dia 9 de Outubro, aí voltando a manter com aquele arguido relações sexuais de cópula completa.

28 – Nesse dia 9 de Outubro, a hora não apurada, a ofendida BB e o arguido foram para a ..., passando esse fim de semana naquela cidade, em casa da testemunha ..., amigo do arguido, que foi quem os transportou a ambos de carro até àquela localidade, onde permaneceram até domingo, dia 11 de Outubro de 2014, à tarde, quando regressaram com o mesmo EE para casa do arguido, onde a menor BB permaneceu até segunda-feira.

29 – Durante esse período de tempo em que estiveram juntos, de 9 a 12 de Outubro, por diversas vezes o arguido manteve com a ofendida BB relações sexuais de cópula completa, inserindo sempre o seu pénis erecto na vagina daquela ofendida, na qual ejaculava, relações essas que tiveram lugar quer em casa do arguido quer na .... em casa do seu amigo.

30 – No dia 3 de Novembro de 2014, cerca das 7h00m, a ofendida BB saiu de casa de seus pais para ir para as aulas, porém, ao invés de se dirigir à escola que frequenta, a ofendida tomou o autocarro que a trouxe até ... e desta cidade apanhou um outro autocarro até ..., onde a aguardava o arguido que a levou uma vez mais para sua casa, onde ambos se mantiveram até que ali apareceu a Polícia Judiciária para interrogar o arguido.

31 – O arguido agiu de modo livre, deliberado e conscientemente, no decurso do aludido período temporal, com o propósito reiterado e concretizado de satisfazer as suas intenções libidinosas, actuando de todas essas vezes de forma a ter com as duas crianças actos de natureza sexual, sabendo que quer a CC quer a BB tinham idades inferiores a 14 anos, facto a que foi indiferente, querendo praticar com as mesmas tais actos.

32 – Dizendo à ofendida CC, no tom sério e credível em que o fez, que aquela não poderia contar a ninguém o que se passara entre eles e que se o fizesse atentaria contra aquela, a sua mãe e a casa onde ambas viviam, quis o arguido constranger a mesma ofendida a manter-se em silêncio e ocultar, por força do receio que lhe incutiu, o crime de que havia sido vítima, o que apenas não conseguiu por razões alheias à sua vontade, concretamente a ofendida CC não ter suportado a pressão que o arguido exerceu sobre ela.

33 – Ao proferir as expressões intimidadoras supra referidas em mensagens sms que enviou para o telemóvel da ofendida DD, dirigindo-se àquela ofendida quer em seu nome quer fazendo-se passar por uma terceira pessoa, actuando de forma essencialmente homogénea e no quadro de circunstâncias exteriores que facilitaram a reiteração da sua conduta criminosa, sabia o arguido que tais expressões eram susceptíveis de, em concreto, fazer aquela ofendida sentir receio pela sua vida e integridade física, o que quis e conseguiu.

34 - Ao praticar todas as condutas acima descritas, agiu sempre o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem essas condutas proibidas e penalmente punidas.

35- O arguido foi condenado, por sentença de 27.10.2014, transitada em julgado na mesma data, pela prática, em 04.08.2013, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

*

Das condições de vida e personalidade do arguido

36- AA é o mais velho de cinco irmãos, tendo nascido no seio de uma família com algumas dificuldades socioeconómicas, tendo o processo de desenvolvimento daquele decorrido num ambiente familiar disfuncional, no qual as figuras parentais terão tido dificuldades em se constituir como modelos positivos de identificação. A mãe era essencialmente permissiva e o pai, pelo contrário seria autoritário e agressivo.

37- Iniciou a escolaridade em idade normal, abandonando o sistema de ensino aos 13/14 anos. Ainda frequentou o 7.º ano de escolaridade mas sem aproveitamento, registando duas retenções no percurso escolar, segundo o próprio associadas a absentismo e falta de motivação para o estudo. Admite que em contexto escolar era rebelde e terá sido chamado algumas vezes ao Conselho Executivo, embora não se recorde de ter sido alvo de processos disciplinares propriamente ditos.

38- Com 15/16 anos ficou a residir sozinho, em ..., de onde é natural, quando os pais alteraram a residência, os quais mantiveram a seu cargo as despesas de manutenção da habitação, passando alguns fins-de-semana com a progenitora, em ....

39- Passou a trabalhar de forma indiferenciada em vários sectores, desde agricultura, venda de fruta, construção civil, frequentemente actividades exercidas sem vínculo formal e intercaladas com períodos de desemprego, registando assim, instabilidade profissional ao longo dos últimos anos.

40- O arguido refere ter iniciado o consumo de bebidas alcoólicas e de haxixe no início da adolescência, vindo a intensificar posteriormente esses consumos. Por volta dos 19 anos considera que abusava particularmente de bebidas alcoólicas.

41- Após vários relacionamentos afectivos de curta duração, o arguido estabeleceu a primeira união de facto aos 18 anos, tendo vivido com esta companheira cerca de 4 anos. Na sequência da ruptura desta relação, refere ter tido uma depressão e ter agravado o consumo de estupefacientes, tendo na altura iniciado acompanhamento no CRI de .... Viria a abandonar este acompanhamento pouco tempo depois uma vez que a medicação não fazia efeito, considerando mais eficaz o consumo de bebidas alcoólicas para lidar com os sentimentos disfóricos.

42- Logo depois estabeleceu um novo relacionamento, vindo a ter uma filha dessa relação, actualmente com três anos de idade. A atribuição da paternidade desta criança resultou de um processo de averiguação oficiosa, uma vez que o arguido a negou.

43- Entretanto teve mais alguns relacionamentos, tendo a última companheira vivido consigo durante cerca de quatro ou cinco meses (há pouco mais de um ano). Segundo o próprio, o relacionamento não era aceite pelos pais da companheira, os quais a foram buscar e obrigaram a interromper a gravidez, fruto da relação consigo.

44- O arguido refere ter tido a sua primeira experiência sexual aos 12 anos de idade, com uma colega da escola, tendo desde então assumido nesta área um estilo de vida promíscuo, tendo para além das companheiras atrás mencionadas (pelo menos quatro), diversos relacionamentos com carácter fortuito. Acrescenta que tem recorrido, desde a separação da mãe da filha, às redes sociais para estabelecer conhecimentos com raparigas, seleccionando as eventuais parceiras pelo aspecto físico e idade.

45- À data dos factos em causa no presente processo, o arguido residia sozinho, em ..., numa habitação propriedade dos pais, com condições razoáveis de habitabilidade.

46- Nesta ocasião, o arguido ia desenvolvendo trabalhos pontuais na agricultura, na limpeza de pinhais e venda de fruta, deparando-se assim com dificuldades económicas.

47- Ocasionalmente ficava uns dias com a progenitora em ..., encontrando-se o pai emigrado em França a trabalhar. Das quatro irmãs, as duas mais velhas (de 23 e 19 anos) já se autonomizaram, estando as duas mais novas (13 e 5 anos) a viver com a mãe.

48- No decurso da prisão preventiva tem tido visitas destes familiares, com mais frequência da mãe, havendo apenas o registo de uma visita por parte do pai.

49- O arguido não tem qualquer contacto com a filha, tendo-a visto apenas uma ou duas vezes, nem comparticipa por qualquer meio para a sua subsistência.

50- Considera-se uma pessoa muito nervosa e impulsiva em situações em que tenha que defender a família, assumindo igualmente ser reactivo em situações de conflito interpessoal e ter fraca tolerância à frustração.

51- No meio de residência o arguido apresenta uma imagem negativa associada à instabilidade laboral e consequente modo de vida menos convencional, chegando a haver rumores do seu envolvimento em furtos.

52- O arguido denota alguma apreensão com a evolução do processo, em particular com uma eventual condenação em pena de prisão efectiva, considerando injustas as acusações de que é alvo, embora afirme ter conhecimento da ilicitude dos comportamentos da mesma natureza dos que lhe são imputados.

53- A prisão tem sido vivida pelo arguido com alguns sentimentos disfóricos, tendo solicitado apoio médico e medicamentoso no estabelecimento prisional, o qual se encontra a fazer desde há dois meses. No estabelecimento prisional tem assumido uma postura de cumprimento das regras de funcionamento, tendo numa fase inicial sido alvo de algumas provocações verbais por parte de outros reclusos, dada a natureza do crime em causa.

54- Saindo em liberdade, o arguido refere como possibilidade integrar o agregado da progenitora e irmãs mais novas (cuja residência e contacto telefónico desconhece) ou emigrar para França, onde espera arranjar trabalho por intermédio de um tio materno. Como último recurso pode regressar à anterior residência. Dado não haver qualquer forma de contacto com a progenitora e com o tio materno do arguido, não foi possível confirmar a viabilidade das duas primeiras hipóteses.

*

2.2. Matéria de Facto Não Provada

Para além dos factos não referidos por irrelevantes, conclusivos, por conterem matéria de direito ou por se apresentarem em contradição com os factos provados, não se provou, com relevância para a boa decisão da causa, que:

a) No dia 7 de Julho de 2014, a hora não apurada, o arguido, através do seu telemóvel com o número ...., telefonou para a ofendida CC, para o telemóvel com o nº ..., dizendo-lhe que se queria encontrar com ela ao que a ofendida recusou, pelo que o arguido, em tom sério e credível, lhe disse que se ela não aceitasse encontrar-se com ele que já sabia o que lhe aconteceria, pois ele a violaria a ela e à mãe, insistindo que queria estar com ela na quarta-feira seguinte e que queria ir dormir em casa da ofendida nessa noite.

b) Nas situações aludidas no ponto 29 dos factos provados o arguido tenha usado preservativo, que colocava previamente.»

3. Apreciação

3.1. O recorrente questiona as penas concretamente aplicadas pela prática dos cinco crimes de abuso sexual de crianças – 4 anos e 6 meses de prisão por cada um deles.

Entende que «a determinação da pena concreta alcançada na decisão proferida pelo tribunal a quo, salvo melhor entendimento, não se encontra adequada ao caso concreto»; que «a aplicação de 4 anos e 6 meses de prisão, ao arguido, por referência a cada um dos crimes de abuso sexual de criança, a que foi condenado, não espelha, com exactidão o que resultou dos factos dados como provados. Tais penas, parcelares, mostram-se excessivas, desproporcionais e desadequadas».

Entende que «em relação a cada crime de abuso sexual de menores de crianças, cuja moldura penal prevista no art. 171 nº 2 do CP é de 3 a 10 anos de prisão, considera-se razoável, e justo, que a pena concreta seja fixada no mínimo legal de 3 anos de prisão», e que «dentro da moldura do concurso que resulta das penas parcelares a que o arguido foi condenado pelos 7 crimes que praticou, valorando, no seu conjunto e interconexão, os factos e a personalidade do arguido, considera-se adequada a pena púnica de 5 anos de prisão [em substituição da pena única de 9 anos de prisão fixada pelo tribunal de 1.ª instância]».

3.2. De acordo com o artigo 171º, n.º1, do Código Penal, «Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos», estabelecendo, por sua vez, o n.º 2 da mesma disposição legal que: «Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos».

Perante a matéria de facto considerada provada, nenhuma dúvida pode suscitar a integração dos factos nas citadas disposições, já que os actos sexuais de relevo praticados na pessoa das ofendidas CC e ..., de 13 anos de idade à data dos factos, consistiram em cópula.

Na secção do Código Penal dedicada aos crimes contra a autodeterminação sexual, visa-se «o direito à protecção da sexualidade numa fase inicial ou em desenvolvimento da personalidade, que, pelas suas características, é carecida de tutela jurídica». Consagram-se tipos «tipos preordenados à protecção da juventude e infância», sendo que, conforme assinalam JOSÉ MOURAZ LOPES e TIAGO CAIADO MILHEIRO, que vimos citando, «as perturbações fisiológicas e psicológicas que um precoce despertar sexual (seja ou não violento ou consentido) pode provocar, são factos e motivos suficientes para uma tutela jurídica efectuada naqueles termos»[5].

Segundo TERESA PIZARRO BELEZA, a ideia de atentado ao pudor foi substituída pela de desrespeito pela autodeterminação sexual, pois «já não é o pudor da criança ou do jovem (...) que está em causa – ele pode, até, ser inexistente e nem por isso o crime deixa de existir ou o Direito ficciona um pudor inexistente – mas a convicção legal (iuris et de iure, dir-se-ia) de que abaixo de uma certa idade ou privada de um certo grau de autodeterminação a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual».

«O bem jurídico ofendido por um acto sexual de relevo, que seja praticado com, em ou perante uma criança, já não é o pudor, salienta esta autora, mas as potencialidades de desenvolvimento, não excessivamente condicionado ou traumatizado por experiências demasiado precoces»[6].

Também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS entende que «[a] lei presume (…) que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor (…); e considera este interesse (no fundo, um interesse de protecção da juventude) tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob ameaça de pena criminal»[7].

Os crimes contra a autodeterminação sexual são crimes de perigo abstracto. Para PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «[o] perigo abstracto resulta da presunção legal do prejuízo dos actos descritos na lei para o livre desenvolvimento da personalidade da criança, apesar do acto sexual ser consensual.

Atenta a natureza indisponível do bem jurídico em causa (a autodeterminação sexual do menor) e a estrutura do crime, não releva o acordo ou consentimento do menor de 18 anos, como resulta também do artigo 3.º, al. b), do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças»[8].

O bem penalmente protegido e a irrelevância do consentimento têm sido igualmente postos em destaque pelo Supremo Tribunal de Justiça.

«Nos crimes de abuso sexual o bem jurídico protegido – considera-se no acórdão de 22 de Maio de 2013, proferido no processo n.º 93/09.5TAABT.E1.S1 – 3.ª Secção, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Adjunto – o bem jurídico protegido é a liberdade de autodeterminação sexual, lesada sempre que, à luz dos n.os 1 e 2 do art. 171.º do CP, o menor de 14 anos é vítima de acto sexual de relevo, que pode consistir, tipificadamente, em cópula, coito anal, oral ou introdução vaginal ou anal de partes de corpo ou de objectos».

O consentimento da vítima – lê-se no mesmo acórdão – «não possui virtualidade para eximir o agente da responsabilidade criminal, por a lei partir do pressuposto, próximo da constatação natural, que o menor, por regra, não possui o desenvolvimento psicológico suficiente para compreender as consequências, por vezes graves, deles emergentes, que podem prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade física e psíquica, no aspecto do livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual», resultando dessa incapacidade que «o crime é concebido como de perigo abstracto resultante da presunção implicitamente inscrita na lei, juris et de jure, com razoável correcção, do prejuízo físico e psíquico, para a pessoa da criança, na sua dimensão integral, que os actos sexuais de relevo podem provocar».

Também no acórdão deste Supremo Tribunal, de 14 de Março de 2013, do mesmo Relator, proferido no processo n.º 294/10.3JAPRT.P1.S2 - 3.ª Secção), se identifica o bem jurídico que se pretende proteger, «a liberdade de autodeterminação sexual, de uma forma muito particular, não somente de condutas que possam resultar de extorsão de contactos sexuais mas daqueles actos de natureza sexual, que, em razão da pouca idade da vítima, mesmo que consentidos, podem prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade física e psíquica, muito particularmente no aspecto do livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual».

Nos crimes sexuais – considera-se no mesmo acórdão – «tutela-se a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; liberdade de crescer na relativa inocência até à adolescência, até se atingir a idade da razão para aí se poder exercer plenamente aquela liberdade, considerou o Prof. Figueiredo Dias, in Actas de Revisão de 95, do CP, pág. 246, pois é benéfico que o processo de desenvolvimento da liberdade sexual das crianças se exercite de forma sadia, sem pressas ou sobressaltos, de risco incontrolável, se bem que dificilmente se conceba a sua evolução em ambiente asséptico, totalmente puro, à margem de influência, no dizer de Heloísa Pinto, in A Sexualidade na Escola, Ed. Summus, S. Paulo, 1997, 46.

Está-se perante crimes de perigo abstracto, em que «o perigo abstracto resulta da presunção legal, “juris et de jure“, “com razoável correcção“, do prejuízo físico e psíquico, à pessoa da criança, na sua dimensão integral, que os actos sexuais de relevo, segundo o enunciado o legal, podem provocar – Cfr. Tereza Beleza, citada in Comentário Conimbricense do Código Penal, TI, 541».

Acompanhando ainda o citado acórdão, «[n]o acto sexual de relevo praticado com, em ou perante uma criança já não é o pudor mas a potencialidade de desenvolvimento, não excessivamente condicionado ou traumatizado por experiências demasiadamente precoces, escreveu Teresa Beleza, in O Repensar dos Crimes Sexuais, Revisão do Código Penal, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, pág., 169, sobretudo quando sustentados por uma vontade controlada, “viciada “ (cfr. A Tutela Penal da Liberdade Sexual, de Inês Ferreira Leite, pág. 9) por terceiro, por factores exteriores, terceiro esse que se acha numa posição de ascendência sobre a vítima, incapaz de se furtar, em razão de uma infraavaliação do seu alcance, do seu desígnio libidinoso, tendo a idade, à medida que a criança nela avança, consabida eficácia portadora de uma maior consciencialização do malefício e de gradual inflexão».

Como também se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 22 de Janeiro de 2013, proferido no processo n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1 – 3.ª Secção:

«O princípio que fundamenta a menoridade sexual não é qualquer suposição de que o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazo sexual, mas, sim, que ele não desenvolveu ainda as competências consideradas relevantes para consentir a relação sexual. Só o tempo, por meio de um processo de socialização no qual o sujeito racional completo é (com)formado permitem um processo de decisão correctamente elaborado.»

3.3. De acordo com a matéria de facto provada, o arguido, agora recorrente, conheceu as menores ofendidas através da rede social facebook, com elas conversando sob o nick name de “Danny Dark”. No decurso dessas conversas, o arguido ficou ciente de que as menores tinham menos de 14 anos. A ofendida CC tinha então apenas 13 anos de idade. A ofendida BB tinha apenas 11 anos de idade.

No mesmo mês em que conheceu, pela via referida, a menor CC, o arguido deslocou-se – dia 30 de Junho de 2014, cerca das 9h30m – a casa dela, sabendo que a mesma aí se encontrava sozinha, ficando os dois toda amanhã «no sofá da cozinha, onde por diversas vezes se beijaram na boca e trocaram carícias, apalpando-se mutuamente nas zonas erógenas sobre a roupa que vestiam», mantendo, após o almoço, relações sexuais de cópula completa.

A actuação do arguido processou-se no seguinte encadeamento, claramente expresso na matéria fáctica dada como assente:

«6 – Entre as 12h30 e as 13h30m, a ofendida CC saiu de casa e foi almoçar a casa de sua avó, permanecendo o arguido em sua casa. Quando a ofendida aí regressou, cerca das 13h30m, o arguido insistiu com ela para irem ambos até ao quarto.

7 - Apesar de inicialmente recusar irem para o quarto e chegar mesmo a verbalizar não querer manter relações sexuais com o arguido, a ofendida CC acabou por aceitar e foi buscar uma toalha de rosto que colocou sobre a sua cama, por prever que poderia sujar a cama uma vez que seria a primeira vez que iria ter relações sexuais, deitando-se sobre a mesma.

8 – De seguida, o arguido tirou a roupa da ofendida CC e despiu-se a si mesmo, ficando ambos nus.

9 – Depois, o arguido deitou-se sobre aquela ofendida e introduziu o seu pénis erecto na vagina da mesma, ali o mantendo em movimentos ritmados para cima e para baixo, até ejacular.

10 – Após o arguido sair de cima de si, a ofendida CC foi à casa de banho lavar-se e vestir-se, regressando ao quarto onde se deitou na sua cama ao lado do arguido, ficando ambos a ver um filme no computador.

11 - Durante o filme, o arguido deu a entender à ofendida CC que queria voltar a manter com ela relações sexuais e, apesar de aquela lhe ter dito que não queria, o arguido retirou a roupa da ofendida e retirou a sua própria roupa, introduzindo de seguida o seu pénis erecto na vagina da menor CC, aí o friccionando até ejacular.

12 – A menor CC foi lavar-se de novo e, quando regressou ao quarto junto do arguido este, em tom sério e assustador, ordenou-lhe que não contasse a ninguém o que se passara acrescentando, em jeito credível, que se dissesse alguma coisa a alguém o que se passara entre ambos ele voltaria e violaria a ofendida CC e a mãe e que destruiria a casa onde ambas viviam se aquela contasse alguma coisa a alguém.»

Relativamente à ofendida BB, ficou provado que:

«24 – Desde data não concretamente apurada mas ocorrida em finais de Julho ou inícios de Agosto de 2014, o arguido e ofendida BB iniciaram uma relação de namoro entre ambos, vindo a conhecer-se pessoalmente em dia igualmente não apurado mas durante o mês de Setembro de 2014, bem sabendo o arguido que a ofendida BB tinha então apenas 13 anos de idade.

25 – Em dia não concretamente apurado mas ocorrido numa quarta-feira do mês de Setembro de 2014, após as 12h40m, quando terminou as aulas, a ofendida BB apanhou o autocarro para ... e daqui para ...., onde o arguido se encontrou consigo, ficando em casa do arguido até quinta-feira.

26 – Durante esse período de tempo que permaneceu em casa do arguido, por diversas vezes a ofendida BB manteve com aquele relações sexuais de cópula completa, em casa daquele arguido em circunstâncias ainda não concretamente apuradas. Durante esse mesmo período de tempo por várias vezes o arguido beijou a ofendida BB na boca, apalpando-se mutuamente nas zonas erógenas, quer por cima da roupa quer quando ambos se encontravam despidos.

27 – No dia 8 de Outubro de 2014, a hora não apurada, a ofendida BB apanhou de novo o autocarro e foi ao encontro do arguido, permanecendo em casa daquele até sexta-feira, dia 9 de Outubro, aí voltando a manter com aquele arguido relações sexuais de cópula completa.

28 – Nesse dia 9 de Outubro, a hora não apurada, a ofendida BB e o arguido foram para a ...., passando esse fim de semana naquela cidade, em casa da testemunha EE, amigo do arguido, que foi quem os transportou a ambos de carro até àquela localidade, onde permaneceram até domingo, dia 11 de Outubro de 2014, à tarde, quando regressaram com o mesmo ... para casa do arguido, onde a menor BB permaneceu até segunda-feira.

29 – Durante esse período de tempo em que estiveram juntos, de 9 a 12 de Outubro, por diversas vezes o arguido manteve com a ofendida BB relações sexuais de cópula completa, inserindo sempre o seu pénis erecto na vagina daquela ofendida, na qual ejaculava, relações essas que tiveram lugar quer em casa do arguido quer na ... em casa do seu amigo.

30 – No dia 3 de Novembro de 2014, cerca das 7h00m, a ofendida BB saiu de casa de seus pais para ir para as aulas, porém, ao invés de se dirigir à escola que frequenta, a ofendida tomou o autocarro que a trouxe até ... e desta cidade apanhou um outro autocarro até ..., onde a aguardava o arguido que a levou uma vez mais para sua casa, onde ambos se mantiveram até que ali apareceu a Polícia Judiciária para interrogar o arguido.»

«O arguido agiu de modo livre, deliberado e conscientemente, no decurso do aludido período temporal, com o propósito reiterado e concretizado de satisfazer as suas intenções libidinosas, actuando de todas essas vezes de forma a ter com as duas crianças actos de natureza sexual, sabendo que quer a CC quer a BB tinham idades inferiores a 14 anos, facto a que foi indiferente, querendo praticar com as mesmas tais actos».

Sobre as condições de vida e personalidade do arguido, apurou-se que:

 

«36- AA é o mais velho de cinco irmãos, tendo nascido no seio de uma família com algumas dificuldades socioeconómicas, tendo o processo de desenvolvimento daquele decorrido num ambiente familiar disfuncional, no qual as figuras parentais terão tido dificuldades em se constituir como modelos positivos de identificação. A mãe era essencialmente permissiva e o pai, pelo contrário seria autoritário e agressivo.

37- Iniciou a escolaridade em idade normal, abandonando o sistema de ensino aos 13/14 anos. Ainda frequentou o 7.º ano de escolaridade mas sem aproveitamento, registando duas retenções no percurso escolar, segundo o próprio associadas a absentismo e falta de motivação para o estudo. Admite que em contexto escolar era rebelde e terá sido chamado algumas vezes ao Conselho Executivo, embora não se recorde de ter sido alvo de processos disciplinares propriamente ditos.

38- Com 15/16 anos ficou a residir sozinho, em ..., de onde é natural, quando os pais alteraram a residência, os quais mantiveram a seu cargo as despesas de manutenção da habitação, passando alguns fins-de-semana com a progenitora, em ....

39- Passou a trabalhar de forma indiferenciada em vários sectores, desde agricultura, venda de fruta, construção civil, frequentemente actividades exercidas sem vínculo formal e intercaladas com períodos de desemprego, registando assim, instabilidade profissional ao longo dos últimos anos.

40- O arguido refere ter iniciado o consumo de bebidas alcoólicas e de haxixe no início da adolescência, vindo a intensificar posteriormente esses consumos. Por volta dos 19 anos considera que abusava particularmente de bebidas alcoólicas.

41- Após vários relacionamentos afectivos de curta duração, o arguido estabeleceu a primeira união de facto aos 18 anos, tendo vivido com esta companheira cerca de 4 anos. Na sequência da ruptura desta relação, refere ter tido uma depressão e ter agravado o consumo de estupefacientes, tendo na altura iniciado acompanhamento no CRI de .... Viria a abandonar este acompanhamento pouco tempo depois uma vez que a medicação não fazia efeito, considerando mais eficaz o consumo de bebidas alcoólicas para lidar com os sentimentos disfóricos.

42- Logo depois estabeleceu um novo relacionamento, vindo a ter uma filha dessa relação, actualmente com três anos de idade. A atribuição da paternidade desta criança resultou de um processo de averiguação oficiosa, uma vez que o arguido a negou.

43- Entretanto teve mais alguns relacionamentos, tendo a última companheira vivido consigo durante cerca de quatro ou cinco meses (há pouco mais de um ano). Segundo o próprio, o relacionamento não era aceite pelos pais da companheira, os quais a foram buscar e obrigaram a interromper a gravidez, fruto da relação consigo.

44- O arguido refere ter tido a sua primeira experiência sexual aos 12 anos de idade, com uma colega da escola, tendo desde então assumido nesta área um estilo de vida promíscuo, tendo para além das companheiras atrás mencionadas (pelo menos quatro), diversos relacionamentos com carácter fortuito. Acrescenta que tem recorrido, desde a separação da mãe da filha, às redes sociais para estabelecer conhecimentos com raparigas, seleccionando as eventuais parceiras pelo aspecto físico e idade.

45- À data dos factos em causa no presente processo, o arguido residia sozinho, em ..., numa habitação propriedade dos pais, com condições razoáveis de habitabilidade.

46- Nesta ocasião, o arguido ia desenvolvendo trabalhos pontuais na agricultura, na limpeza de pinhais e venda de fruta, deparando-se assim com dificuldades económicas.

47- Ocasionalmente ficava uns dias com a progenitora em ..., encontrando-se o pai emigrado em França a trabalhar. Das quatro irmãs, as duas mais velhas (de 23 e 19 anos) já se autonomizaram, estando as duas mais novas (13 e 5 anos) a viver com a mãe.

48- No decurso da prisão preventiva tem tido visitas destes familiares, com mais frequência da mãe, havendo apenas o registo de uma visita por parte do pai.

49- O arguido não tem qualquer contacto com a filha, tendo-a visto apenas uma ou duas vezes, nem comparticipa por qualquer meio para a sua subsistência.

50- Considera-se uma pessoa muito nervosa e impulsiva em situações em que tenha que defender a família, assumindo igualmente ser reactivo em situações de conflito interpessoal e ter fraca tolerância à frustração.

51- No meio de residência o arguido apresenta uma imagem negativa associada à instabilidade laboral e consequente modo de vida menos convencional, chegando a haver rumores do seu envolvimento em furtos.

52- O arguido denota alguma apreensão com a evolução do processo, em particular com uma eventual condenação em pena de prisão efectiva, considerando injustas as acusações de que é alvo, embora afirme ter conhecimento da ilicitude dos comportamentos da mesma natureza dos que lhe são imputados.

53- A prisão tem sido vivida pelo arguido com alguns sentimentos disfóricos, tendo solicitado apoio médico e medicamentoso no estabelecimento prisional, o qual se encontra a fazer desde há dois meses. No estabelecimento prisional tem assumido uma postura de cumprimento das regras de funcionamento, tendo numa fase inicial sido alvo de algumas provocações verbais por parte de outros reclusos, dada a natureza do crime em causa.

54- Saindo em liberdade, o arguido refere como possibilidade integrar o agregado da progenitora e irmãs mais novas (cuja residência e contacto telefónico desconhece) ou emigrar para França, onde espera arranjar trabalho por intermédio de um tio materno. Como último recurso pode regressar à anterior residência. Dado não haver qualquer forma de contacto com a progenitora e com o tio materno do arguido, não foi possível confirmar a viabilidade das duas primeiras hipóteses».

3.4. Sobre a determinação da medida concreta das penas aplicadas ao agora recorrente, considera-se no acórdão recorrido o seguinte:

           

«Nos termos do disposto no artigo 70º, n.º1 do Código Penal, “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; sendo que “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” (n.º2, do mesmo artigo).

Dispondo o artigo 40º, n.º2 do Código Penal que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” tal significa que a pena deve ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta. A culpa não constitui, assim, apenas pressuposto e fundamento da pena (não há pena sem culpa), mas também o seu limite máximo (a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa).

Se a medida da culpa é o limite máximo da medida da pena, o limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, que têm em vista a protecção de bens jurídicos (a pena deve permitir a estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade na norma jurídica violada, como instrumento de tutela de bens jurídicos).

Naquele intervalo, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial positiva – é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade causando-lhe só o mal necessário (neste sentido, Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, Parte Geral”, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 227).

Vejamos, então, a situação em análise.

Afiguram-se elevadas as exigências de prevenção geral, considerando o sentimento de repulsa que comportamentos como o ora em apreço criam na sociedade em geral, especialmente tendo em conta a idade das vítimas, objecto de especial protecção por estar em desenvolvimento a sua personalidade.

As exigências de prevenção especial são também elevadas considerando as condições pessoais e de vida do arguido (das quais resulta um trajecto de vida desestruturado em termos socio-comunitários, sem retaguarda familiar, e a ausência de um projecto de vida devidamente estruturado, emergindo o consumo de álcool, a dependência de produtos estupefacientes e a adopção de um estilo de vida promíscuo com importantes factores de risco); o facto de já ter sido condenado pela prática de um crime contra as pessoas (o crime de violência doméstica), numa pena de prisão suspensa na sua execução; e a sua personalidade, revelada pela gravidade dos factos praticados e pela postura assumida perante os mesmos, não traduzindo arrependimento (chegando, aliás, a gabar-se das suas façanhas sexuais em sede de primeiro interrogatório judicial) – tudo o que é revelador da não interiorização do desvalor da sua conduta. Em face disso, e pela forma como o arguido aborda o tema da sexualidade e pela forma como actuou, ficou o Tribunal convencido de que o mesmo padece de um problema nesta área da vida, apresentando mesmo perfil de “predador sexual”.

É elevado o grau de ilicitude, salientando-se:

- quanto aos crimes de abuso sexual, os concretos actos praticados – cópula completa com ejaculação -, em conjugação com o facto de não se ter apurado que o arguido usasse preservativo, para além da rapidez com que arguido passa de meros contactos escritos através do facebook, com palavras de enamoramento sem conotações sexuais, a uma prática desta natureza;

        

Inexistem factores a ponderar em favor do arguido.

Em desfavor do arguido milita, para além do facto de ter atuado com dolo directo – que se reputa de intenso -, a sua postura perante os factos, tal como as suas condições pessoais e de vida, onde residem ponderosos factores de risco. Pondera-se, ainda, a condenação de que já foi objecto.

A culpa é ponderosa, enquanto reflexo da ilicitude dos factos praticados, relativizada contudo pelo facto de o arguido, que contou com um processo de desenvolvimento num ambiente familiar disfuncional, com a ausência de modelos positivos de referência, não contar com qualquer supervisão – da família ou do Estado - desde os 15/16 anos».

3.5. Esta fundamentação merece inteira concordância e adesão, pelo que reputamos adequada e justa a pena de 4 anos e 6 meses que o Tribunal Colectivo fixou por cada um dos crimes de abuso sexual praticados pelo arguido.

Nos termos do artigo 71.º do Código Penal, a pena é determinada em função da culpa e das exigências de prevenção. A pena tem como finalidade primordial a prevenção geral (protecção dos bens jurídicos), entendida como prevenção positiva, ou seja, entendida como a afirmação da validade das normas perante a comunidade, sendo nessa moldura que devem ser valoradas as exigências da prevenção especial e intervindo a culpa apenas como limite máximo da pena.

Como se consigna no acórdão deste Supremo Tribunal, de 22 de Janeiro de 2013, proferido no processo n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1 – 3.ª Secção, «o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação». Aqui, afirma-se ainda, «é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, adquirindo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial».

O arguido agiu com dolo, que se apresenta na sua forma mais grave - dolo directo.

É muito acentuado o grau de ilicitude da actuação do arguido, sendo de sublinhar, como justamente se observa na decisão recorrida, a «rapidez com que arguido passa de meros contactos escritos através do facebook, com palavras de enamoramento sem conotações sexuais, a uma prática desta natureza».

O abuso sexual de crianças representa uma catástrofe na vida da vítima, produzindo uma devastação da sua estrutura psíquica. O abuso afecta o corpo da vítima do abuso sexual, o núcleo mais pessoal, mais íntimo da sua identidade.

Os actos praticados pelo arguido na pessoa das duas menores ofendidas prolongaram-se de Junho de 2014 a Novembro do mesmo ano, não se podendo concluir, como pretende o recorrente, que tenham ocorrido «num espaço de tempo curto», sendo que pode razoavelmente considerar-se que a cessação dos actos se verificou com a intervenção da Polícia Judiciária (facto provado n.º 30).

São muito intensas e prementes as exigências de prevenção geral positiva ou de reintegração que se fazem especialmente sentir nos crimes de abuso sexual de crianças tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a autodeterminação sexual de crianças.

Na verdade, como se pondera no acórdão deste Supremo tribunal, de 10 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 617/08.5PALGS.E2.S1 – 3.ª Secção), «o abuso sexual de crianças repugna à consciência colectiva, tanto no plano ético como moral, por um lado por ser um grave atentado a seres indefesos, salutar e desejável, em termos de interesse comunitário, que as crianças cresçam e se desenvolvam harmonicamente, por outro por ser frequente a prática de crimes desta natureza, gerando graves consequências à pessoa das vítimas, e também alarme e intolerância social, ataque à paz social, não se dispensando uma intervenção firme dos tribunais, como forma de apaziguar o tecido social afectado e demover potenciais delinquentes». Por isso, quer a prevenção geral, quer a prevenção especial «concorrem – lê-se no citado acórdão – com particular exigência punitiva».

Importa reafirmar serem prementes e muito elevadas as razões de prevenção geral que se fazem especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a autodeterminação sexual de crianças – e impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, maxime, nos últimos anos, em que estas questões passaram a assumir muito maior visibilidade, justificando uma resposta punitiva firme, sendo ainda de ter em conta os danos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas.

Pelo que supra ficou dito supra, consideramos irrelevante a eventual concordância, ou consentimento das ofendidas na prática das relações sexuais com o arguido, ou a alegada circunstância de ter sido a ofendida BB «que se deslocou para junto do arguido». Valem aqui as considerações já tecidas sobre a irrelevância do consentimento e o objectivo de total protecção das crianças que está na base da incriminação dos actos sexuais de relevo com elas praticados.

 No que toca à prevenção especial avulta a personalidade do arguido, a forma como actuou, na procura da satisfação dos seus instintos sexuais, com absoluta indiferença e insensibilidade pela idade das ofendidas e pelos valores que a lei protege com a incriminação destes actos.

O arguido-recorrente carece fortemente de socialização, com necessidade de fidelização ao Direito, tendo em vista a prevenção da prática de futuros crimes.

Assim, as penas parcelares de 4 anos e 6 meses de prisão fixadas na decisão recorrida para cada um dos crimes de abuso sexual de crianças cometido, numa moldura abstracta prevista artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, de 3 a 10 anos de prisão, são adequadas e proporcionais à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassam a medida da culpa do recorrente, pelo que se mantêm, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto.

4. Quanto à pena única:

O arguido-recorrente foi condenado pela prática de cinco crimes de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, cada um deles na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, pena que se mantém, por um crime de coacção agravada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, n.º 1, alíneas a) e b), 23.º, n.os 1 e 2, 73.º, 54º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, e por um crime de ameaça agravada, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.º, n.º 2, 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi o recorrente condenado na pena única de 9 anos de prisão.

Prescreve o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, quanto às regras de punição do concurso de crimes, que:

«Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

De acordo com o n.º 2 do mesmo preceito, a moldura penal aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

No caso em apreço, a moldura da punição do concurso vai de 4 anos e 6 meses de prisão a 23 anos de prisão.

No domínio da fixação da pena única, o Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo, em abundante jurisprudência, que, com a fixação da pena conjunta «se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, e, assim, importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos (-), tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele» (acórdão de 12 de Setembro de 2012, proferido no processo n.º 605/09.4PBMTA.L1.S1).

Como também se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, também de 12 de Setembro de 2012, proferido no processo n.º 2745/09.0TDLSB-L1.S1 – 3.ª Secção, «a medida da pena unitária reveste uma especificidade própria: por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes; por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, uma pena final, de síntese, correspondente a um novo ilícito (agora global), e a de uma nova culpa (agora outra culpa, ponderada pelos factos conjuntos, em relação), com outra específica fundamentação, que acresce à decorrente do art. 71.º do CP».

Na consideração dos factos (do conjunto dos vários factos que integram os diversos crimes em efectivo concurso), afirma-se no mesmo acórdão, «está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto dos crimes em concurso ficcionasse como um todo único, total, globalizado, que deve ter em conta a existência, ou não, de ligações, conexões, ou pontos de contacto, entre as diversas actuações, e, na afirmativa, o tipo de ligação, conexão, ou contacto, que se verifique entre os factos em concurso».

A pena de conjunto repousa numa valoração da totalidade dos factos, que fornece a ilicitude global, sendo decisiva para essa avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos e se eles representam, também, uma manifestação da personalidade, na vertente de uma mera pluriocasionalidade, de um trajecto de vida puramente ocasional e não enraizado, ou, ao invés, uma carreira criminosa.

Sobre a pena única, ponderou o Tribunal Colectivo o seguinte:

«Nesta operação [fixação da pena única do concurso] tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.

Para a avaliação da personalidade do agente relevará a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível ou não a uma tendência criminosa.

Ora, considerando tudo o que supra se expendeu em sede de determinação da medida da pena - especialmente tomando como base o número e o tipo de crimes praticados, a relação entre os mesmos, o período de tempo da actividade e estarem em causa três ofendidas menores de 14 anos - e a circunstância de o conjunto dos factos, em conjugação com as apuradas condições pessoais e de vida do arguido, se reconduzir a uma tendência criminosa, fixa-se a pena única de 9 anos de prisão.»

Existe, sem margem para dúvidas, uma conexão entre os crimes de abuso sexual praticados sobre as menores CC e BB e os crimes de coacção agravada, na forma tentada, e de ameaça agravada, na forma continuada. Tendo presentes as circunstâncias em que se desenrolaram os factos integradores de tais ilícitos, consideramos, concordando com o Tribunal Colectivo, indiciar-se aqui um perfil de «predador sexual» por parte do arguido.

O arguido actuou com o intuito de satisfação incontrolada dos apetites sexuais, conhecedor da idade das ofendidas e impôs às mesmas, e a uma outra menor, um clima de constrangimento e de ameaças no mesmo ou muito próximo contexto de relacionamento sexual.

Os factos cometidos pelo arguido reflectem uma personalidade dissociada do direito, que apontam para uma certa propensão ou tendência para o crime, não constituindo manifestamente expressão de simples ocasionalidade.

A pena única deve corresponder à valoração, no seu conjunto e interconexão, dos factos e personalidade do arguido.

Pelo que, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a conexão entre eles, bem como a sua relacionação com a personalidade do arguido, que se revelou desconforme aos valores sociais reinantes, tendo em conta a moldura do concurso vai de 4 anos e 6 meses de prisão a 23 anos de prisão, é de concluir por um elevado grau de demérito da conduta do recorrente, se considera ajustada a pena única de 9 (nove) anos de prisão fixada na 1.ª instância, por satisfazer os interesses de prevenção geral e especial, e as necessidades de punição que aqui se fazem particularmente sentir.

Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a decisão recorrida.

III – DECISÃO

Termos em que os Juízes que compõem a 3.ª Secção do Supremo tribunal de Justiça acordam em:

1. Indeferir a questão prévia suscitada pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta quanto à incompetência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer deste recurso;

2. Negar provimento ao recurso interposto por AA, mantendo-se a decisão recorrida.

3. Tributar o recorrente em custas, com 5 unidades de conta (UC) de taxa de justiça.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 28 de Abril de 2016

(Texto elaborado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)

Manuel Augusto de Matos (Relator)

Armindo Monteiro

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[1]     Não consta o n.º 9.
[2] Acórdão sumariado nos Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais, n.º 215 – Novembro de 2015.
[3] ANTÓNIO HENRIQUES GASPAR, JOSÉ ANTÓNIO HENRIQUES DOS SANTOS CABRAL, EDUARDO MAIA COSTA, ANTÓNIO JORGE DE OLIVEIRA MENDES, ANTÓNIO PEREIRA MADEIRA e ANTÓNIO PIRES HENRIQUES DA GRAÇA, Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, p. 1311.
[4] Os acórdãos citados, sem outra indicação quanto à sua fonte, estão disponíveis nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.
[5] Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual, Coimbra Editora, p. 140.
[6] “O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, I Volume, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996, p. 169.
[7] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pp. 541-542.
[8] Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade católica Editora, Novembro de 2015, p. 680.