Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B3435
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: FIXAÇÃO JUDICIAL DO PRAZO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
Nº do Documento: SJ200611140034351
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - O processo de fixação judicial de prazo (arts. 1456.º e 1457.º do CPC) não comporta a discussão de questões de natureza contenciosa, como a inexistência ou nulidade da obrigação, o incumprimento definitivo, a resolução, pois tudo isso são problemas a resolver no quadro de uma acção comum.
II - Provando-se que as partes estipularam verbalmente o prazo máximo de 60 dias para outorga do contrato prometido, a intervenção do tribunal para estabelecer um prazo não tem qualquer fundamento legal: as partes, consensualmente, já o fizeram.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No Tribunal de Oliveira de Azeméis, AA propôs uma acção especial para fixação judicial de prazo contra BB, com base, essencialmente, nos seguintes factos:
Celebrou com o requerido um contrato-promessa de compra e venda respeitante a cinco prédios rústicos, com a área total de 32.000 m2, que viriam à posse do requerido após a conclusão das partilhas do pai deste; estipularam verbalmente o prazo máximo de 60 dias para a conclusão das referidas partilhas, que já estavam a ser feitas, a fim de que o requerido, tornado proprietário dos prédios, os pudesse vender ao requerente; o requerido, interpelado, foi sempre dizendo que as partilhas ainda não estavam concluídas.
Contestando, o requerido alegou não ter sido acordado qualquer prazo de 60 dias para a celebração do contrato definitivo, e que só não o realizou por dificuldades surgidas nas partilhas; e alegou ainda que irá instaurar acção judicial onde obterá a propriedade dos bens em causa, procedimento esse que estima demore prazo não inferior a 18 meses; concluiu pedindo que se fixe um prazo não inferior a esse período de tempo.
Produzidas as provas, foi proferida sentença a fixar o prazo de 60 dias para o requerido proceder à marcação da escritura de compra e venda.
A Relação do Porto, porém, dando procedência ao recurso do requerido, revogou a sentença e absolveu-o do pedido.
Agora é o requerente que pede revista, concluindo que, tendo o acórdão recorrido violado os art.ºs 712º, nº 1, a) e b) e 762º, nº 2, “ambos do CPC”, “quer quanto à matéria de facto, quer quanto à má fé e ao apoio judiciário” (fls 282), deve ele ser revogado e substituído por outro que “considere que o prazo de 60 dias fixado verbalmente expirou em 10.6.2001, estando o recorrido desde esta data em claro incumprimento”.
O requerido respondeu, defendendo a manutenção do julgado.
Tudo visto, cumpre decidir.

2. O recurso não apresenta nenhum fundamento válido.
Vejamos porquê.
a) A 1ª instância deu como provado em sede de matéria de facto, além do mais, que as partes estipularam verbalmente o prazo máximo de sessenta dias para ou­torga do contrato prometido. No recurso apresentado à Relação a decisão sobre a matéria de facto não foi posta em causa. Por tal motivo o acórdão recorrido, não tendo detectado razão para anular oficiosamente a decisão recorrida com fundamento no nº 4 do art.º 712º (por deficiência, obscuridade ou contradição entre os factos), limitou-se, e bem, a aplicar o direito aos factos apurados pelo tribunal recorrido. Contrariamente ao que o recorrente parece supor, a modificação da matéria de facto pela Relação nos casos previstos no nº 1 do indicado preceito não pode ter lugar ex officio: impõe-se que o recorrente inclua essa pretensão no objecto do recurso, especificando-a nas conclusões (art.ºs 690º e 690-A). No caso em exame poderia o ora recorrente, que na apelação figurou na posição de recorrido, ter impugnado nessa altura a decisão sobre o facto em apreço, assim prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pelo apelante, ao abrigo do art.º 684º-A (disposição que trata da ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido); só que não o fez.
b) E não o tendo feito nessa ocasião, obviamente que não poderá conseguir em sede de recurso de revista um resultado equivalente, certo como é que o STJ não tem competência para decidir matéria de facto, sindicando o julgamento proferido pelas instâncias nessa área (art.ºs 722º, nº 2 e 729º, nº 1, do CPC).
c) O recorrente menciona ainda como disposição violada a do art.º 762º, nº 2, do CPC, nos termos da qual, “se a Relação, por qualquer motivo, tiver deixado de conhecer do objecto do recurso, o Supremo revogará a decisão no caso de entender que o motivo não procede e mandará que a Relação, pelos mesmos juízes, conheça do referido objecto”. Admitindo que a invocação deste preceito não ficou a dever-se a lapso manifesto do recorrente, é óbvia, de qualquer modo, a sua inaplicabilidade à situação ajuizada, por ser diametralmente oposta à ali prevista: é que, justamente, a Relação, neste processo, conheceu do objecto do recurso, revogando a sentença;
d) O recorrente levou ainda à conclusões do recurso a tese de que o recorrido litiga com manifesta má fé, preconizando a sua condenação a esse título em multa e numa indemnização de 1500 €, e de que obteve, “à custa” da sua boa fé (sua, do recorrente, se bem se percebe) um “claro enriquecimento sem causa”.
Quanto ao problema da má fé o recorrente não toma em consideração o princípio básico, há muito assente na doutrina e na jurisprudência, de que os recursos não se destinam a criar decisões sobre matéria nova, mas sim a reapreciar aquelas que foram tomadas pelo tribunal recorrido; e não havendo qualquer dúvida de que o pedido agora apresentado em tal contexto não tem por fundamento um comportamento do recorrido assumido em momento posterior à prolação da sentença, claro está que, por se tratar duma questão nova, ela escapa à cognição do STJ.
e) O mesmo é de dizer, mutatis mutandis, quanto ao enriquecimento sem causa, que o recorrente, tanto quanto é lícito deduzir da sua alegação, parece filiar na circunstância de, como afirma a dado passo da minuta, estar sem o seu dinheiro desde 2001 e não “ser dono de coisa nenhuma” (fls 280). Neste ponto, contudo, importa acrescentar algo mais, chamando a atenção para o grande equívoco que percorre todo o posicionamento assumido pelo autor no presente processo, mesmo depois da Relação ter clarificado as coisas adequadamente no acórdão recorrido. O equívoco resulta do facto de pretender discutir numa acção desta natu­reza questões que ultrapassam largamente a finalidade tida em vista pelo leg­isla­dor ao introduzir no elenco dos processos de jurisdição voluntária o de fixação judicial do prazo (art.ºs 1456º e 1457º do CPC). Ora, ao decidir, em suma, que não se compreendia no caso sub judice a razão de ser da acção posta pelo recorrente uma vez que foi ele próprio a reconhecer a existência de um acordo entre as partes quanto ao prazo de cumprimento da obrigação, o acórdão recorrido fez uma apli­cação correcta da juris­prudência constante deste STJ, toda ela no sentido de que o processo de fixação judicial de prazo não comporta a discussão de questões de natureza contenciosa - inexistência ou nulidade da obrigação, incumprimento definitivo, resolução, etc – pois tudo isso são problemas a resolver no quadro de uma acção comum, insusceptível de confusão com o presente processo especial, de cariz menos formal e mais expedito. Assim, por exemplo, no acórdão de 6.5.03 (Revista nº 03 A230) disse-se, textualmente, que não cabe na linearidade desta acção discutir a existência ou inexistência da obrigação, a sua nulidade ou extinção, validade ou ineficácia, e que nenhum tipo de indagação se justifica, para além daquele que respeite à fixação do prazo e adequação do mesmo. Reafirmamos novamente esta doutrina, que nenhuma razão substancial vemos para abandonar; e ela conduz em linha recta à improcedência da revista na exacta medida em que, conforme se pôs em relevo, a intervenção do tribu­nal para estabelecer um prazo não tem qualquer fundamento legal: as partes, consensualmente, já o fizeram, e não ocorre nenhuma das situações tipificadas no art.º 777º, nºs 2 e 3, do CC.

3. Acorda-se em negar a revista.
Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Novembro de 2006

Nuno Cameira (relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira