Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
62/21.7T9LMG.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PENA PARCELAR
DUPLA CONFORME
IRRECORRIBILIDADE
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A “pena de prisão não superior a 8 anos” a que alude a al. f) do nº 1 do artº 400º do CPP, abrange a pena parcelar, relativa a cada um dos crimes por cuja autoria o arguido é condenado como, naturalmente, a pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares.

II. E daí que, apreciando-se a (ir)recorribilidade da decisão por referência a cada uma dessas situações, os segmentos do acórdão proferido em recurso pela Relação, atinentes a crimes punidos com penas parcelares não superiores a 8 anos de prisão, objecto de dupla conforme, são insusceptíveis de recurso para o STJ, nos termos do art. 432.º, n.º 1, b), do CPP.

III. Tal irrecorribilidade no âmbito das penas parcelares determina que as questões que lhes dizem respeito, sejam elas de inconstitucionalidade, processuais ou substantivas, sejam interlocutórias, incidentais ou finais, não poderão também ser conhecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Decisão Texto Integral:

Acordam, na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I. 1. No âmbito do Proc. Comum Colectivo nº 62/21.7T9LMG.C1, do Juízo Central Criminal ..., J..., o arguido AA, com os demais sinais dos autos, foi submetido a julgamento, tendo sido condenado:

a) pela prática de 3 (três) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p. e p. pelos artigos 165º n.º 1 e 177º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal, na redacção da Lei n.º 101/2019, de 06/09, nas penas parcelares de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles (vítima BB);

b) pela prática de 1 (um) crime de coacção agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154º n.º 1, 155º n.º 1 alíneas a) e b), 22º e 23º todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão (vítima BB);

c) pela prática de 70 (setenta) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p. e p. pelo artigo 165º n.º 1 e 177º n.º 6, ambos do Código Penal, redacção da Lei n.º 103/2015, de 24/08, nas penas parcelares de 3 (três) anos de prisão, por cada um deles (vítima CC, menor de 16 anos);

d) pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelo artigo 165º n.º 1 do Código Penal, nas penas parcelares de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, por cada um deles (vítima CC, factos praticados nos anos lectivos de 2017/2018 e 2018/2019);

e) pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p. e p. pelo artigo 165º n.ºs 1 e 2 e 177º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal, na redacção da Lei n.º 101/2019, de 06/09, nas penas parcelares de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles (vítima CC, factos praticados no ano lectivo de 2019/2020) [1];

f) pela prática de 3 (três) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p. e p. pelo artigo 165º n.ºs 1 e 2 e 177º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal, na redacção da Lei n.º 101/2019, de 06/09, nas penas parcelares de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles (vítima CC, factos descritos nos pontos 21, 22 e 22 dos factos provados) [2];

g) em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na pena única 12 (doze) anos de prisão, acrescida da pena acessória de proibição do exercício de função pelo período de 4 (quatro) anos;

h) na procedência parcial do pedido de indemnização deduzido pela demandante/assistente BB, no pagamento a esta da quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a prolação do acórdão, até efectivo e integral pagamento e da quantia de €75,00 (setenta e cinco euros), a título de danos patrimoniais, quantia acrescida dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento;

i) no pagamento à ofendida CC, da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), a título de indemnização, nos termos do artigo 16º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro e artigos 67º-A e 82º-A do CPP.


2. Inconformado, o arguido interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, em acórdão datado de 8 de Fevereiro de 2023, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.


II. 1. Mais uma vez inconformado, o arguido interpôs recurso deste último aresto para o Supremo Tribunal de Justiça, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcritas):

«1º - O Acórdão do qual ora se recorre padece vícios que versam Matéria de Facto e de Direito, designadamente:

– Erro notório de apreciação da prova e o princípio in dubio pro reo;

– Da prova proibida – art. 126º nº 2 al. a) do Código Processo Penal;

– Da Qualificação Jurídica;

– Da Medida da Pena;

2º - O princípio de inocência, in dubio pro reo, previsto no art. do art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa que determina que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado, deve estar sempre presente na mente do julgador.

3º - Há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, tendo em consideração as regras da experiência e a lógica comuns, não poderiam ter ocorrido. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, perceptível pela mera leitura do texto da decisão.

4º - É precisamente este vício que está na base do caso sub judice. Pelo que, o arguido foi condenado no Acórdão proferido em primeira instância e confirmado na Relação, não havendo, como se demonstrará, provas, elementos ou factos susceptíveis de justificar a condenação em causa.

5º - Destarte, em sede de audiência, por um lado, o arguido negou a prática dos crimes, versão que se mostrou credível e verdadeira; por outro lado, as testemunhas, quer de defesa quer de acusação, nada viram ou ouviram relativamente ao ilícitos em causa; também não foram carreadas outras provas, por exemplo prova documental ou exames médicos que comprovem que o aqui Recorrente cometeu os crimes em causa. Zero. Absolutamente nada.

6º - A verdade é que, o aqui arguido, ora Recorrente, foi condenado apenas pelas declarações de duas crianças (lamentavelmente com perturbações mentais), que se mostraram vagas, dúbias e imprecisas, sem qualquer tipo de prova a corroborar as mesmas.

7º - No Acórdão de que se recorreu, não foi indicada qualquer prova, que ateste que o aqui Recorrente cometeu os crimes em causa, pelo que, a decisão baseia-se em considerações, convicções e aspectos/circunstâncias que foram associados para justificar a culpa do arguido, mas o raciocínio inverso não foi seguido.

8º - Significa isto, portanto, que, segundo a decisão recorrida, as declarações do Recorrente não foram valoradas e não colheram qualquer credibilidade, encontrando-se este a mentir, já as declarações das menores, foram completamente credíveis, mesmo que tenham sido prestadas em sede de memória futura e como tal não se tenha verificado, na fase do julgamento (no que toca ao Tribunal de Julgamento), o princípio da imediação e oralidade, o que, configura uma ostensiva dualidade de critérios.

9º - Sucede, porém, que, o arguido é inocente, na medida em que nunca o aqui Recorrente, abusou sexualmente de nenhuma menor e a verdade é que, não resultou demonstrado o contrário.

10º - O arguido laborava na escola na qual as menores frequentavam e exercia as funções de ... operacional. Até à data da notícia do crime, nunca houve qualquer queixa no que tange ao seu comportamento, quer em termos pessoais, quer em termos laborais.

11º - As menores prestaram declarações em sede de memória futura e da leitura das mesmas, se depreende, com o devido respeito, que não foram livres, nem espontâneas, pois foram avivadas memórias e “sugestionadas” algumas respostas.

12º - Por outro lado, pelas ofendidas foram indicados factos, que não são compatíveis com a normalidade do acontecer, nem com a natureza das coisas.

13º - A ofendida CC referiu que os abusos sexuais tiveram início no 8º ano de escolaridade, ou seja no ano lectivo 2015/2016, ocorriam 3 vezes por semana, o que perfaz 70 vezes por ano. Nos anos subsequentes, o arguido abusou menos vezes, segundo a ofendida abusou sexualmente da mesma 2 vezes por ano. Por fim, em Outubro de 2020, voltou a abusar sexualmente mas de modo mais assíduo, tendo abusado da ofendida 3 vezes na sua garagem, chegando a haver relações sexuais de cópula completa.

14º - Tal depoimento não é compaginável com a normalidade do acontecer. Não se compreende o porquê do arguido alegadamente abusar da menor com regularidade semanal em 2015, depois parar quase por completo, mas manter a frequência exactamente igual de 2 vezes por ano e recentemente em Outubro de 2021, voltar a incidir e a agravar o comportamento criminoso.

15º - Como se referiu, o arguido negou a prática dos ilícitos, mas ainda a terem ocorrido, não é credível que tenham sucedido da forma mencionada, nem que a menor conseguisse precisar com segurança o número de vezes que foi vítima de crimes sexuais, ainda para mais tratando-se de uma jovem com debilidades mentais.

16º - Acresce que, nos casos de abuso sexual de menores, por regra, os respectivos abusos costumam ser graduais aumentando até chegarem às relações sexuais de cópula completa. Não colhe a versão de que o agressor abusou 70 vezes de uma menor em 2015, esteve os anos seguintes a abusar exactamente 2 vezes por cada ano e depois, em 2021 avançar para relações sexuais completas.

17º - A ofendida, à excepção dos anos de 2015 e dos últimos acontecimentos alegadamente ocorridos em Outubro de 2021, não foi capaz de contextualizar os dias ou meses do ano em que tais ilícitos ocorreram. Motivo pelo qual, mal andou o Tribunal a dar como provada tal factualidade, descurando por completo, a razoabilidade, o senso comum e o princípio in dubio pro reo.

18º - Outra questão que se afigura relevante e que não deve ser descurada, prende-se com o facto da ofendida CC declarar que teve relações sexuais de cópula completa com o arguido, porém do Relatório do Instituto de Medicina Legal indica que esta é virgem.

19º - Por outro lado, sempre se dirá que resultou demonstrado em sede de audiência de discussão e julgamento, através do depoimento da Prof. DD que a menor em causa tinha namorados e resulta da decisão na pág. 39 que “a CC é muito desinibida sexualmente” o que significa que, caso tenha mantido contactos de natureza sexual, não podemos imputar tal responsabilidade ao arguido.

20º - Com efeito, não se compreende a condenação do arguido, nos termos em que foi, quando para além das disparidades supra mencionadas, ficam ainda inúmeras perguntas por responder, designadamente:

- Se de facto as ofendidas foram abusadas sexualmente porquê que não deram sinais disso? Resulta da prova carreada no processo, que demonstraram tristeza, ansiedade e até agressividade após terem denunciado os alegados crimes. Ou seja, após a comunidade próxima ter conhecimento dos alegados ilícitos;

- Porquê que as ofendidas denunciaram os abusos tanto tempo depois de terem ocorrido? No caso da ofendida CC, a denúncia foi efectuada anos depois;

- Porquê que as duas denúncias ocorreram no mesmo dia? Segundo as ofendidas os abusos prolongaram-se no tempo, mas estranhamente decidiram denunciar no mesmo dia;

- Se o arguido é um abusador sexual de crianças, porquê que trabalhando este com crianças há anos, só cometeu estes crimes agora? Porquê que nunca houve nenhuma denúncia, tendo o arguido o registo criminal isento de condenações?

21º - Estas interrogações retóricas, segundo a regras da experiência, conduzem a mais questões: Será que as menores (ou pelo menos uma delas), foram influenciadas, manipuladas ou convencidas a prestar estas declarações? –  Será que foram instrumentalizadas por alguém? Tal instrumentalização deveu-se a finalidades económicas? Não pode o Tribunal descurar que eram amigas, tendo chegado a frequentar a mesma escola simultaneamente, bem como o respectivo ensino especial.

22º - Entendeu o Tribunal a quo que os depoimentos para memória futura prestados pelas ofendidas revelaram-se: “coerentes, espontâneos, sinceros e bastante pormenorizados (…)”

Todavia, discordamos veementemente com tal entendimento, pois não foram pormenorizados, as ofendidas não foram capazes de indicar datas. Também não foram espontâneos, mas antes avivadas as memórias. Por outro lado, principalmente o depoimento da ofendida CC, não foi sincero nem coerente tendo em conta a discrepância do por si relatado e o constante no relatório do IML, bem como o relato confabulatório latente nos 3 raptos que diz ter sido vítima.

23º - Resulta do teor da decisão ora recorrida (pág. 44) que o arguido alegadamente era o único que controlava a arrecadação e que apesar de existir uma chave extra para aceder aquele compartimento, era ele quem a disponibilizava. Sucede que, para além de ter referido isso, a verdade é que mencionou também que essa chave suplente se encontrava no balcão de livre acesso. Em termos objectivos, o mesmo será dizer que, não poderia ter praticado actos sexuais com as ofendidas, sabendo que corria o risco (ainda que mínimo) de ser descoberto.

24º - Acresce que tal arrecadação encontrava-se no interior da escola, local por onde passavam alunos, professores e restante pessoal. Ainda que se trate de uma zona menos frequentada, a verdade é que, se o arguido realmente quisesse cometer os ilícitos em causa, não optaria por aquele local porque se tivesse dentro da arrecadação não conseguiria saber se passava ou não alguém naquele momento, logo corria riscos de ser descoberto.

25º - Consta do Acórdão recorrido (pág. 45) que a ofendida CC conhecia e foi capaz de descrever o interior da garagem do arguido. De facto, tal corresponde à verdade. Mas podemos fazer a ponte desse aspecto para dar como provados os ilícitos? Estamos em crer que não, a garagem tinha abertura suficiente para ser vista da rua, não podemos dar como provada tal factualidade de teor tão grave sustentada com este aspecto.

26º - Por fim, resulta da pág. 43 da decisão recorrida que o arguido terá enviado mensagens via facebook para a ofendida, quando afinal estava a dialogar com a madrasta da mesma. O arguido declarou que não enviou as mensagens em causa e que o seu telemóvel não tinha código de desbloqueio. Conclui o Tribunal que o arguido mente porque o telemóvel tinha código e que terá indicado o mesmo à polícia judiciária. Porém, o arguido explicou cabalmente esta questão, referindo que durante muito tempo o seu telemóvel não tinha código, colocou o código pouco tempo antes da apreensão do telemóvel.

27º - Por maioria de razão, o facto de o telemóvel ter código no momento da entrega do mesmo à polícia judiciária, não significa que não tivesse código antes. Ou seja, a existência do código naquele momento, não invalida o depoimento do arguido.

28º - Na pág. 43 da decisão recorrida entendeu o Tribunal que o arguido mente pois afirma que terá sido algum colega a enviar as referidas mensagens no seu lugar, mas não identificou ninguém. Com o devido respeito, discordamos com tal entendimento e se nos colocarmos no lugar do homem médio, podíamos validamente questionar que: se não foi o arguido a mandar, não terá sido enviado por ninguém que habite em sua casa, pois reside com a esposa, filha e sogra, logo, por exclusão de partes, só podia ser algum colega do trabalho. O depoimento do arguido é compreensível, atentas as circunstâncias.

29º - Com efeito, uma análise objectiva e directa do processo em relação aos crimes aqui contestados, infelizmente, faz-nos concluir, com o devido respeito, que o Recorrente foi acusado e condenado em função de ilações injustificadas e depreensões demasiadamente amplas. Está em causa a liberdade de um ser humano, e tudo o que restrinja a mesma deve ser escrupulosamente ponderado e analisado, tendo em consideração as circunstâncias do caso.

30º - Na comunicação dos factos delitivos imputados ao arguido, não se pode partir da presunção da culpabilidade do arguido, mas antes da presunção da sua inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP).

31º - O critério orientador nesta matéria deve ser o seguinte: a comunicação dos factos imputados ao arguido deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico\criminal, por forma a que lhe seja dada 'oportunidade de defesa' (artigo 28.º, n.º 1, da CRP).

32º - Muito mais numa situação como a presente, que supostamente se prolongou ao longo de vários anos, com prática reiterada de actos de índole sexual, é indispensável que ao arguido fosse dado conhecimento de todas as circunstâncias essenciais à sua defesa, com indicação precisa das datas de cada um desses actos, do conteúdo concreto de cada um deles ou da respectiva duração, só assim se respeitando o princípio da igualdade de armas entre a acusação e defesa, e sob pena de, o processo penal não ser verdadeiramente contraditório, assim se violando o artigo 5.º, n.º 4, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

33º - Não é aceitável e legalmente admissível a omissão daqueles pormenores por estarem em causa direitos das crianças, devendo para isso haver compreensão. Claro que deve haver compreensão. Só que tal compreensão não pode ser cega a ponto de se permitir uma universalizada generalização que perverte os princípios penais e processuais penais.

34º - O Acórdão recorrido contempla de forma deveras evidente, um vício de erro notório de apreciação da prova e paralelamente uma violação do princípio constitucionalmente consagrado - in dubio pro reo.

35º - O vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410º nº 2 al. c) do CPP, constitui um vício da sentença/Acórdão cuja verificação dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art.º 426.º nº 1 do CPP.

36º - Foram juntas aos autos transcrições de mensagens enviadas via facebook, contendo conversações entre o arguido e a madrasta da ofendida CC, a senhora EE. Todavia, o arguido negou ter escrito e enviado estas mensagens, porém, não perdendo de vista esta premissa, por mero raciocínio académico, importa vislumbrar a hipótese de ter sido efectivamente o ora Recorrente o autor das referidas conversações e analisar a validade jurídica da junção aos autos das mesmas.

37º - De acordo com o despacho de acusação e do depoimento da senhora EE, alegadamente esta última iniciou conversações via facebook fazendo-se passar pela ofendida CC. O arguido pensava que estava a falar com a ofendida mas na realidade dialogava com pessoa diversa.

38º - Ora, resulta do art. 126º nº 1 e 2 al. a) do Código de Processo Penal o seguinte: “1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas. 2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante: a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos.”.

39º - É precisamente o que sucedeu no caso sub judice, onde o arguido terá sido enganado, induzido em erro pensando que estava a falar com uma determinada pessoa quando na verdade falava com outra. Mas mais, foi “convidado” a falar sobre os crimes cometidos e ainda, eventualmente, induzido a praticar novos crimes ou pelo menos a tentar fazê-lo.

40º - Para além da prova ser proibida por se tratar de um método enganoso, a senhora EE, testemunha no processo, agiu como se de um agente provocador se tratasse, figura proibida no nosso ordenamento jurídico.

41º - Face ao exposto, a prova em causa foi obtida mediante o atropelo das mais basilares normas e princípios do direito penal e do direito processual penal, violando os mais básicos direitos de garantia de defesa dos arguidos, pelo que, por força do art. 126º nº 1 e 2 al. a) do Código de Processo Penal, tal prova é nula, não podendo ser utilizada. E correlativamente, não poderá afectar a convicção do Tribunal.

42º - Pese embora as ofendidas tenham referido terem sido vítimas de abuso sexual por parte do arguido, a verdade é que, principalmente no que tange à ofendida CC in casu, não é possível apurar com certeza e segurança o número exacto de vezes em que tal alegadamente se verificou.

43º - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.

44º - Destarte, apesar da conduta do arguido se subsumir a vários actos delituosos, e tendo em conta que a lei, no seu artigo 30º nº 3 do Código Penal, proíbe a aplicação do crime continuado, no âmbito da lesão de bens jurídicos iminentemente pessoais, que é o caso, certo é que entendemos estarmos perante crimes de trato sucessivo.

45º - Tal conceito com genética doutrinal e jurisprudencial, visa as situações de realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos de crime, que, fundamentalmente, protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea, e unificados pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime.

46º - Motivo pelo qual, uma vez que não resultou demonstrado o número exacto de vezes em que o ora Recorrente alegadamente lesou os bens jurídicos, sempre se dirá que se encontram preenchidos os vectores da aplicação do conceito do trato sucessivo, designadamente: há homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo; os tipos de ilícito, individualmente considerados, protegem o mesmo bem jurídico; e as vítimas são as mesmas.

47º - Quanto ao crime de coacção agravado, na forma tentada, na pessoa da ofendida BB, imputado ao Recorrente, somos de opinião que tal não resultou demonstrado. Sendo certo que, com a sua conduta, o arguido não preenche os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime.

48º - Relativamente à conduta típica que se traduz em um acto de coação, a lei distingue três meios típicos: a violência, a ameaça e o constrangimento. Ora segundo a versão da ofendida BB, o arguido não a agrediu fisicamente, logo não se encontra verificado o requisito exigível pela disposição legal; no que tange ao requisito - “ameaça com mal importante” tal também não se encontra verificado, pois segundo a ofendida, o arguido terá dito para ela não revelar nada a ninguém sobre o sucedido, sob pena de, para a próxima, acontecer pior; segundo ainda a versão da ofendida, o arguido não concretizou a ameaça, ou seja, não disse o quê que seria pior.

49º - Face ao exposto deve o aqui Recorrente ser absolvido. Caso assim não se entenda, o que por mero raciocínio académico se equaciona, deve o arguido ser condenado pela prática de 1 crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, previsto e punido pelo art. 165º, n.º 1 e 177º, nº1, al. c) do Código Penal, na pessoa da ofendida BB e 1 crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, previsto e punido pelo art. 165º,n.º 1 e 177º, nº1, al. c) do Código Penal, na pessoa da ofendida CC.

50º - No que respeita à dosimetria da pena de prisão aplicada ao Recorrente, consideramos que o Tribunal a quo além da sua injustificável severidade, visto ser o Arguido primário não levou em conta as suas condições pessoais, nos termos do art. 71° nº 2 do Código Penal.

51º - A decisão recorrida não fez correcta aplicação dos artigos 40º nº 1 e 2 e 70º nº 1 do Código Penal.

52º - Assim, apesar de ter reconhecido que o mesmo não possui antecedentes criminais, não valorou devidamente: o relatório social, elemento fundamental para se aferir em como o arguido é merecedor de uma oportunidade; o apoio familiar; o enquadramento habitacional do arguido; o facto de ter hábitos de trabalho e por isso tem boas perspetivas de se inserir profissionalmente; o Tribunal também não valorou o facto de ter colaborado com a justiça ab initio.

53º - O Recorrente é primário; Cooperou ab initio com as autoridades policiais, fornecendo todas as informações solicitadas; em julgamento prestou declarações; possui enquadramento habitacional, social e familiar; à data da notícia dos crimes encontrava-se inserido profissionalmente e estava efectivo; foi com surpresa que os seus vizinhos e amigos assistiram às noticias surgidas no âmbito do presente processo, pois, o arguido é uma pessoa estimada e respeitada no meio social onde reside; tem cumprido escrupulosamente a medida de coação que lhe foi aplicada.

54º - Após análise jurisprudencial, concluímos que a decisão de que ora se recorre, foi das decisões mais duras, que há notícia, aplicada a crimes sexuais, uma vez que o Tribunal a quo aplicou uma pena que (só) se aplicaria em caso de homicídio, onde é lesado o bem jurídico mais relevante e por isso o mais protegido pela nossa lei penal – o direito à vida.

55º - No caso sub judice, o Tribunal a quo, não foi fiel aos desígnios do legislador, uma vez que aplicou uma pena de prisão de 12 anos, com ausência de prova firme. Tal pena é excessiva tendo também em conta os tipos legais de crime infringidos. Tal pena de prisão não foi sequer aplicada, pelos Tribunais nos casos supra referidos, designadamente em casos de arguidos que mataram e por isso infringiram o crime mais gravoso tipificado na nossa lei penal, precisamente por proteger o bem jurídico mais primário – o direito de viver.

56º - Mesmo em comparação com casos semelhantes, consideramos que o Tribunal a quo aplicou uma pena excessiva no caso em apreço.

57º - Resulta, pois, dos elementos supra referidos, que, a condenação do caso sub judice para além de se apresentar contrária aos princípios e aos fundamentos legais e constitucionais expostos, constituiu uma opressão desnecessária do direito à liberdade do arguido, pelo que se apresenta manifestamente injustificada, severa, excessiva e injusta.

58º - Em face de todo o exposto, deve o arguido AA ser absolvido. Caso assim não se entenda, o que por mero raciocínio académico se equaciona, deve o arguido ser condenado pela prática de 1 crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, previsto e punido pelo art. 165º, n.º 1 e 177º, nº1, al. c) do Código Penal, na pessoa da ofendida BB e 1 crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, previsto e punido pelo art. 165º,n.º 1 e 177º, nº1, al. c) do Código Penal, na pessoa da ofendida CC. Caso, ainda, assim não se entenda deve a medida da pena aplicada ser revista, por se afigurar absolutamente exagerada e desajustada às circunstâncias do caso concreto».


2. Respondeu o Exmº Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra, pugnando pelo não provimento do recurso:

«(…)

4. Ora, das conclusões apresentadas pelo recorrente, retira-se que este pretende que esse Supremo Tribunal aprecie as seguintes questões:

a) existência de erro notório de apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo; b) uso de prova proibida;

c) errada qualificação Jurídica;

d) pena excessiva.

5. Não nos parece que assista razão ao recorrente, sendo que os padecimentos agora apontados são em tudo semelhantes aos anteriormente apontados, sendo a lógica recursiva e argumentativa também idêntica.

Sobre eles já anteriormente se tinha pronunciado a Sra. Procuradora da República junto do Tribunal de 1ª instância aquando da resposta do Ministério Público ao recurso ali apresentado pelo arguido, pugnando pela total improcedência do recurso com pertinente argumentação, a que aderimos no nosso Parecer emitido no TRC em 29.11.2022, tendo ainda sido, na altura, aduzida argumentação complementar.

A posição assumida pelo Ministério Público nas duas instâncias, em abono do decidido no JCC de ..., mereceu inteiro acolhimento por parte do TRC no seu acórdão de 8.2.2023, que confirmou o decidido.

Como os vícios agora apontados têm o mesmo enquadramento jurídico, dispensando-nos de repetir a argumentação então assumida, que nos parece ser de manter.

O V. TRC proferiu douto acórdão exaustivamente fundamentado, de facto e de direito, clarividente, ponderado, assertivo, sem obscuridades, pronunciando-se sobre todas as questões que foram colocadas, sem margem para crítica ou para dúvida, como decorre (em especial) de fls. 46 a 104, cujo teor, a que aderimos por completo, nos dispensamos de repisar por melhor não nos podermos explicar.

6. Tudo para concluir que a pretensão recursiva do arguido perante esse Supremo Tribunal deve ser rejeitada, mantendo-se o decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

Deve, pois, ser negado provimento ao recurso interposto».


III. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso, à excepção do segmento relativo à medida da pena única e, quanto a este, pugnando pela sua improcedência:

«I Questão-Prévia.

Recorribilidade.

1 A decisão de admissão do recurso não vincula o tribunal superior (cfr, o art. 414º/3 do Código de Processo Penal).

2 Como resulta do introito supra-delineado, o recorrente apenas foi condenado pelo Tribunal Colectivo em três penas parcelares superiores a cinco anos de prisão, sendo que em cúmulo jurídico (com as restantes penas) lhe foi aplicada a pena única de doze anos de prisão.

3 Tal condenação foi integralmente confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, agora sub judice, que julgou totalmente improcedente o recurso interposto.

4 Ou seja:

Ocorre uma situação de dupla conforme, assente na concordância das duas Instâncias quanto ao mérito da causa – alcançando todo o processo lógico-jurídico da decisão – pelo que, no caso, o recurso apenas será admissível quanto à impugnação da pena única aplicada, pelo que deve ser rejeitado no seu restante objecto (cfr, arts. 399º, 400º/1-e) e f), 414º/2 e 420º/1-b) e 432º/1-b) do Código de Processo Penal).

5 Sendo, pois, claramente irrelevante para o caso a rectificação de lapso manifesto e ostensivo nas alíneas e) e f) da parte decisória do Acórdão do Colectivo operada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que não se constituiu, pois, em alteração do decidido.

6 Veja-se, nesta matéria, entre outros, o Ac. do STJ de 30.11.2022, P-1052/15.4PWPRT.P1.S1:

I - Da conjugação do disposto nos arts. 399.º, 400.º, n.º 1, als. e) e f), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP resulta que só é admissível recurso de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância; esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de condenação pela prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso.

……

II Mérito do Recurso.

Medida da pena única.

7 Em consequência da prática de crimes e da condenação nas penas parcelares em questão, o Colectivo, com vista à fixação da pena única do concurso (12 anos de prisão), valorou, nomeadamente – no que obteve a concordância do Acórdão sub judice:

O grau muito elevado da ilicitude;

O modo de execução dos crimes;

A intensidade do dolo;

A gravidade das consequências na saúde psico-somática das ofendidas;

A natureza dos deveres violados;

A ausência de confissão e de arrependimento;

A falta de antecedentes criminais;

A inserção familiar, social e profissional (cfr, págs. 98-99 do Acórdão recorrido).

8. Isto, numa moldura penal abstracta do concurso de 05 anos e 06 meses a 25 anos de prisão.

9. Não concorda o recorrente com a pena única que lhe foi aplicada, que considera absolutamente exagerada e desajustada – sem estar, porém, disposto a quantificá-la –em virtude, no essencial, de (para além das circunstâncias valoradas a seu favor na decisão condenatória):

Ter cooperado com as autoridades policiais, fornecendo todas as informações solicitadas.

Ter prestado declarações em julgamento.

Ser inocente;

Se atravessar um período de grande alarido social relativamente ao tipo-de-crimes em questão,

Ser das decisões mais duras, que há notícia, aplicada a crimes sexuais, uma vez que o Tribunal a quo aplicou uma pena que (só) se aplicaria em caso de homicídio.

10. Contrapomos nós, todavia, que as concretas circunstâncias da prática dos crimes, com relevância ao nível da formulação dos juízos de ilicitude e de culpa (que constam dos factos-provados e são ponderadas na douta fundamentação) – valoradas, pois, à luz dos critérios tipológicos previstos nas disposições dos arts. 71º e 77º/1 do Código Penal para a determinação da pena –, permitem a conclusão de que a pena única concretamente aplicada se mostra, adentro da sua moldura abstracta do concurso, justa e criteriosa, dando expressão acertada às exigências do princípio da culpa e da prevenção geral e especial (com adequação e proporcionalidade).

11. Concretizando.

A natureza, quantidade dos actos de sexo cometidos sobre as duas ofendias, que, sendo menores, sofriam de deficiências cognitivas, assim como o período em que tais actos tiveram lugar;

Os deveres funcionais violados pelo arguido, que, contra o que se impunha, não se constituíram em acrescidos factores de inibição da sua actuação.

Não mostrou arrependimento;

Continua a negar a prática dos factos

12. Quanto à a alegada ausência de antecedentes criminais e à inserção familiar, social e profissional (havendo que relativizar esta, pois que foi, precisamente, do exercício da sua função que aproveitou para lograr sexuar com as ofendidas ):

Sendo o factum a matriz lógica e ontológica (genética) do Direito Penal, apenas de forma acessória considerações que lhe sejam exteriores poderão ser erigidas em critérios essenciais na valoração atinente à determinação da pena concreta, sem nunca, porém, poder conduzir à absoluta substituição do agir pelo ser como objecto da censura jurídico-criminal.

13. Aliás, demonstra a estatística criminológica que os agentes de crimes sexuais cometidos no resguardo das relações de proximidade com vítimas portadoras de dificuldades cognitivas, não cometem normalmente outros crimes da mesma natureza fora da “segurança” desse meio, por normalmente se “acovardarem” na confrontação face a potenciais vítimas de uma ambiência que não é a do seu conforto.

14. Por outro lado, ao clamar por supostas motivações decisórias assentes no alegado período alarido social face a crimes de tal natureza e por um pretenso juízo de injustiça em face da punição dos crimes de “homicídio”, o arguido, ora recorrente, não faz mais do que relativizar, trivializando-os, os crimes cometidos.

15. Em termos de justiça comparativa – sempre de relativizar –, atente-se, não obstante o alegado fracasso na pesquisa de decisões proferidas em recurso sobre a matéria, ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.07.2014, P-2060/12.2JAPRT.S1.P1, que confirmou uma pena única de 14 anos de prisão, por 70 crimes de “abuso sexual de criança”, p. e p. pelos artigos 171º/2 do Código Penal, estando em causa apenas uma menor (cfr, IGFEJ).

16. Por fim, impõe-se-nos dizer que a suscitada questão da suspensão da execução da pena de prisão – ao de leve aventada no recurso, mas sem reflexo ao nível das conclusões e do pedido formulados – seria, se não autêntica quimera, uma questão vincadamente talhada para o fracasso, com todo o respeito, que esbarra na lei-penal.

17. Perante os termos da condenação do arguido, em especial face aos elementos que aqui foram sublinhados, constitui, segundo cremos, exercício do inútil – qual temeridade –, que, também aqui, tem o condão de revelar o quão o arguido desvaloriza a sua actuação criminosa.


*


Não violou a decisão “sub judice” o disposto nos arts. 71º e 77º do Código Penal.

III. Em síntese:

Ocorre uma situação de dupla conforme, assente na completa concordância das duas Instâncias quanto ao mérito da causa (condenação em três penas de 05 anos e 06 meses de prisão, que, com as restantes, inferiores a 05 anos, resultaram na pena única de 12 anos de prisão ) – alcançando todo o processo lógico-jurídico da decisão – pelo que, no caso, o recurso apenas será admissível quanto à impugnação da pena do concurso aplicada;

A pena única de 12 anos de prisão é ponderada e adequada.

IV. Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

Deve o presente recurso ser rejeitado, salvo no que respeita à ponderação da pena única aplicada;

No restante, o presente recurso não merece provimento, sendo de manter os termos da decisão recorrida».


Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2 do CPP, não houve respostas.


IV. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

São as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação que delimitam o âmbito do recurso - artº 412º, nº 1 do CPP.

E a primeira questão a decidir prende-se, naturalmente, com a inadmissibilidade do presente recurso, à excepção do segmento relativo à medida concreta da pena única, suscitada pelo Exmº Procurador-Geral da República, neste Supremo Tribunal de Justiça.

Vejamos:

O recorrente foi condenado no Juízo Central Criminal ..., J...,:

a) pela prática de 3 (três) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p. e p. pelos artigos 165º n.º 1 e 177º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal, na redacção da Lei n.º 101/2019, de 06/09, nas penas parcelares de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles (vítima BB);

b) pela prática de 1 (um) crime de coacção agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154º n.º 1, 155º n.º 1 alíneas a) e b), 22º e 23º todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão (vítima BB);

c) pela prática de 70 (setenta) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p. e p. pelo artigo 165º n.º 1 e 177º n.º 6, ambos do Código Penal, redacção da Lei n.º 103/2015, de 24/08, nas penas parcelares de 3 (três) anos de prisão, por cada um deles (vítima CC, menor de 16 anos);

d) pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelo artigo 165º n.º 1 do Código Penal, nas penas parcelares de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, por cada um deles (vítima CC, factos praticados nos anos lectivos de 2017/2018 e 2018/2019);

e) pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p. e p. pelo artigo 165º n.ºs 1 e 2 e 177º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal, na redacção da Lei n.º 101/2019, de 06/09, nas penas parcelares de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles (vítima CC, factos praticados no ano lectivo de 2019/2020) ;

f) pela prática de 3 (três) crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p. e p. pelo artigo 165º n.ºs 1 e 2 e 177º n.º 1 alínea c), ambos do Código Penal, na redacção da Lei n.º 101/2019, de 06/09, nas penas parcelares de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles (vítima CC, factos descritos nos pontos 21, 22 e 22 dos factos provados);

g) em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na pena única 12 (doze) anos de prisão, acrescida da pena acessória de proibição do exercício de função pelo período de 4 (quatro) anos.

Em recurso por si interposto por si para o Tribunal da Relação de Coimbra e a que foi negado provimento, foi confirmado integralmente o acórdão da 1ª instância.

Estatui-se no artº 432º, nº 1, al. b) do CPP que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º”.

E, nos termos do artº 400º, nº 1 do CPP, não é admissível recurso:

“(…)

f) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Em face dos normativos enunciados resulta claro que, sendo recorrível o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no que se refere à pena única aplicada ao arguido ora recorrente, não o é no que diz respeito às penas parcelares.

E isto, naturalmente, porque estamos perante penas parcelares não superiores, todas elas, a 8 anos de prisão, confirmadas em recurso pelo Tribunal da Relação.

Com efeito, como bem se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 6/1/2020, no Proc. 266.17.7GDFAR.E1.S1 [3],

«II - A disposição do art. 400º, nº 1, al. f) consagra a regra da dupla conforme, impeditiva de um terceiro grau de jurisdição, segundo de recurso, de acordo com a qual se as instâncias se pronunciam da mesma maneira quanto às questões essenciais e chegam à mesma solução jurídica sem que existam nas decisões proferidas elementos relevantes de desconformidade não há motivo consistente para continuar a questionar a justiça que foi feita.

III - Só assim não será se a decisão da 2ª instância que aprecia um recurso se releva discrepante quanto a aspectos essenciais, isto é, se são alterados factos que possam influenciar a qualificação jurídica ou se, sem qualquer alteração factual, essa qualificação se modifica. Aí, como já foi afirmado, «ultrapassa-se a barreira da segurança que justifica a recusa de uma terceira apreciação».

IV - Nessa mesma linha de entendimento da jurisprudência também é de considerar que «toda a decisão referente a crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, incluindo questões conexas como a violação do princípio “in dubio pro reo”, invalidade das provas, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [e demais vícios a que  se refere o nº 2 do art. 410º CPP – interpolação] violação do nº 2 do art. 30º do CP, qualificação jurídica dos factos, consumpção entre os crime em concurso, violação do princípio da proibição da dupla valoração, reincidência e medida das penas parcelares, já conhecidas pela Relação, não é susceptível de recurso para o STJ».

V - Nesse sentido, já se pronunciou também o Tribunal Constitucional no Ac. nº 659/2011 (e também nos Acórdãos nºs 194/2012, 399/2013 e 290/2014 remetendo estes expressamente para a fundamentação do Acórdão nº 659/2011) decidindo “não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretada no sentido de não ser admissível o recurso de acórdão condenatório proferido em recurso pela relação que confirme a decisão da 1.ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo no caso de terem sido arguidas nulidades de tal acórdão”».

Nisto se traduz a jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, da qual não vemos qualquer razão para divergir.

Com efeito, a “pena de prisão não superior a 8 anos” a que alude a al. f) do nº 1 do artº 400º do CPP, abrange a pena parcelar, relativa a cada um dos crimes por cuja autoria o arguido é condenado como, naturalmente, a pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares. E daí que, apreciando-se a (ir)recorribilidade da decisão por referência a cada uma dessas situações, os segmentos do acórdão proferido em recurso pela Relação, atinentes a crimes punidos com penas parcelares não superiores a 8 anos de prisão, objecto de dupla conforme, são insusceptíveis de recurso para o STJ, nos termos do art. 432.º, n.º 1, b), do CPP [4]. E tal irrecorribilidade no âmbito das penas parcelares determina que as questões que lhes dizem respeito, sejam elas de inconstitucionalidade, processuais ou substantivas, sejam interlocutórias, incidentais ou finais, não poderão também ser conhecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça [5].

Como se refere no Ac. deste STJ de 28/11/2018, Proc. 115/17.6JDLSB.L1.S1, “IV - O princípio da dupla conforme é assegurado através da possibilidade de os sujeitos processuais fazerem reapreciar, em via de recurso, pela 2.ª instância, a precedente decisão; por outro lado, impede, ou tende a impedir, que um segundo juízo, absolutório ou condenatório, sobre o feito, seja sujeito a uma terceira apreciação pelos tribunais. V - As garantias de defesa do arguido em processo penal não incluem o 3.º grau de jurisdição, por a CRP, no seu art. 32.º, se bastar com um 2.º grau, já concretizado no presente processo”.

E o Tribunal Constitucional, como é sabido, vem considerando conforme à Constituição da República Portuguesa este entendimento, como claramente resulta do seu Ac. nº 186/2013, de 4/4/2013, publicado no DR II série, de 9/5/2013, onde se decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f) do nº 1, do artº 400º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão”.

Afirmada a irrecorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães no que às penas parcelares diz respeito (implicando o não conhecimento de todas as questões, processuais, substantivas ou de constitucionalidade respectivas), resta dizer que o recurso só é admissível relativamente à pena única em que foi condenado – e apenas quanto a ela.

E a (única) questão a decidir prende-se, por isso, com a alegada excessividade da pena única.


V. As instâncias consideraram assente a seguinte matéria de facto:

1. O arguido, pelo menos, desde o ano de 2015 até ao mês de Fevereiro de 2021, exerceu as funções de ... operacional, na Escola Secundária ..., em BB, mercê da nomeação emitida por parte da Direcção Geral da Administração Educativa, do Ministério da Educação e subsequentes prorrogações de mobilidade interna.

2. Na qualidade de ... operacional, o arguido tinha funções de ... dos assistentes operacionais (que executam funções de natureza executiva, de caráter manual ou mecânico), bem como a realização das tarefas de programação, organização e controlo dos trabalhos a executar pelo pessoal, sob sua ....

3. Em virtude das suas funções e aproveitando-se da livre disponibilidade de contactos que tinha com as estudantes que frequentavam tal estabelecimento escolar, mormente as que padeciam de atrasos mentais, o arguido formulou o propósito de se aproveitar das situações em que se encontrasse sozinho com as mesmas, designadamente com as vitimas BB e CC bem como da deficiência de que estas padeciam, para assim, satisfazer os seus impulsos sexuais lascivos, levando-as a suportar actos de teor sexual consigo, fazendo-se ainda valer, para o efeito, da superioridade física, do ascendente decorrente da sua idade e experiência e da inerente autoridade e confiança que as vítimas em si depositavam, o que quis e conseguiu.

4. BB, nasceu a .../.../2003 e padece de incapacidade intelectual ligeira a moderada, sofrendo de atraso global de desenvolvimento cognitivo e de diplegia espástica, que lhe condiciona os movimentos e a sua mobilidade.

5. Mercê de tais deficiências a menor frequenta um curso profissional de informática na Escola Secundária ..., em BB, sendo beneficiária de apoio de educação especial por referência às medidas de inclusão previstas no Decreto Lei n.º 54/2018 de 06.07.

6. Na execução do propósito acima descrito, em data não concretamente apurada do mês de Junho de 2020 e do mês de Dezembro de 2020 junto ao período de Natal, bem como no dia 18 de Janeiro de 2021, sempre numa segunda-feira depois do almoço, entre as 13h30 e as 13h45, e assim por três vezes, o arguido agarrou a menor BB pelo braço e levou-a, então com 16 e 17 anos de idade, respectivamente, para uma arrecadação com produtos de limpeza situada no referido estabelecimento escolar, fechando e trancando a porta, após o que despiu a menor, puxando as suas calças até aos joelhos, bem como a camisola e o soutien para cima e beijou os seios desta, apalpando-lhe os mesmos, as nádegas e a vagina.

7. Acto contínuo, o arguido tirou o seu pénis erecto para fora das calças, agarrou a mão da menor e colocou-a sobre aquele, fazendo movimentos de masturbação bem como encostou o seu pénis erecto à vagina da menor, friccionando-o.

8. O arguido colocou os dedos na vagina da menor acariciando-a junto aos pelos púbicos, após o que virou a mesma de costas, colocando-a em cima da mesa lá existente e encostou o seu pénis ao ânus desta, friccionando-o.

9. Após, o que o arguido ejaculou para um papel.

10. Em data não concretamente apurada, mas no seguimento de um dos factos acima descritos, e pelo menos por uma vez, o arguido disse à menor BB para não dizer nada a ninguém, sobre o que tinha ocorrido nem à sua mãe, senão na próxima seria muito pior, fazendo assim alusão a que pudesse manter relações sexuais de cópula com esta e que lhe batia.

11. No referido hiato temporal, o arguido deu presentes à menor, colocando na mochila desta doces e dinheiro.

12. CC, nasceu a .../.../2001 e sofre de incapacidade intelectual (deficiência cognitiva), moderada/acentuada, em contexto de síndrome alcoólico fetal, frequentando desde o mês de Outubro de 2020 e no decorrer do ano de 2021, um curso de formação para pessoas com incapacidade, no FF, sito na Quinta ..., BB.

13. Pelo menos, desde o ano de 2014, a vítima CC frequentou a Escola Secundária ..., em BB.

14. Assim, no ano lectivo de 2015/2016, a vítima CC encontrava-se no 8º ano de escolaridade.

15. Na execução do propósito descrito a 3, em datas não concretamente apuradas, mas no decurso do referido período lectivo, com uma periodicidade de duas a três vezes por semana e num total de, pelo menos, setenta vezes, o arguido levou a vitima CC, então com 14/15 anos de idade para uma arrecadação com produtos de limpeza, existente no referido estabelecimento escolar, fechou e trancou a porta, puxou a camisola desta para cima, apalpou-lhe os seios, tendo de seguida baixado as calças que esta trazia vestidas e apalpado a sua vagina, por dentro das cuecas.

16. Para o efeito, e durante os intervalos das aulas, o arguido pedia à vítima para estar sozinha com este, dizendo-lhe que se alguém perguntasse o porquê de ela chegar atrasada às aulas, declarasse que tinha ido à casa de banho ou ao cacifo.

17. Em datas não concretamente apuradas do 10º ano de escolaridade da vítima, correspondente ao ano lectivo de 2017/2018, e pelo menos por duas vezes, o arguido encaminhou CC, então com 16/17 anos de idade, para uma sala de aulas da referida escola, fechando e trancando a porta, e apalpou-lhe os seios e a vagina, por dentro da roupa que a mesma trazia vestida.

18. Em datas não concretamente apuradas do 11º ano de escolaridade da vítima, correspondente ao ano lectivo de 2018/2019, e pelo menos por duas vezes, o arguido encaminhou a vitima CC então com 17/18 anos de idade, para uma sala da referida escola, fechando e trancando a porta, e apalpou-lhe os seios e a vagina por dentro da roupa que a mesma trazia vestida, dizendo que queria manter relações sexuais com a mesma à força, beijando-a na boca.

.... Tais situações voltaram a ocorrer no 12º ano de escolaridade da vítima, correspondente ao ano lectivo de 2019/2020, nas mesmas circunstâncias de lugar, por pelo menos duas vezes, tendo o arguido apalpado os seios, as nádegas e a vagina da vítima, por dentro da roupa que trazia vestida, e introduzido os seus dedos na vagina desta.

20. A partir do mês de Outubro de 2020 e até ao final do referido ano, o arguido foi buscar a vítima junto do FF, onde esta se encontrava a frequentar um curso de formação e levou-a para a garagem da sua habitação, sita na Rua ..., em BB, transportando-a para o efeito, no seu veículo automóvel, de marca Peugeot, dizendo-lhe que tinha lá coisas para lhe dar ou precisava da sua ajuda.

21. Lá chegados, em datas não concretamente apuradas mas no período temporal acima mencionado, e pelo menos por três vezes, o arguido despiu a vítima, abriu a mala do veículo automóvel marca Peugeot, matrícula ..-NA-.., que lá se encontrava e deitou a mesma no seu interior, após o que introduziu o seu pénis erecto no interior da vagina dessa, realizando movimentos de vai vem até ejacular para um preservativo, que previamente tinha colocado.

22. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido colocou o seu pénis com preservativo, na boca da vítima, praticando sexo oral.

23. Após a prática dos referidos factos, para agradar a vítima, o arguido deu-lhe chocolates, barras de cereais e bolachas.

24. Mercê dos contactos que manteve com as vítimas BB e CC, no exercício das suas funções, o arguido tinha perfeito conhecimento da idade destas em todos os períodos temporais acima descritos, que as mesmas padeciam de défices cognitivos, e que tal as impedia, designadamente, de formar e exprimir a sua vontade em termos de sexualidade e de resistir à prática de actos desta natureza, não possuindo qualquer capacidade de discernimento ao nível do comportamento sexual.

25. O arguido agiu, nos termos acima descritos, com o propósito concretizado de satisfazer os seus instintos lascivos e libidinosos, praticando os actos sexuais supra descritos sem o consentimento e contra a vontade das vítimas, bem como de dominar a liberdade de determinação sexual das vítimas BB e CC, bem sabendo que as mesmas face aos seus atrasos cognitivos e quanto à menor BB, incapacidades motoras, eram especialmente frágeis e indefesas perante os seus intentos.

26. O arguido sabia que as vítimas, em razão da sua idade, anomalia psíquica e das limitações acima descritas, existentes à data dos factos acima descritos e que o arguido bem conhecia, não possuíam a capacidade e discernimento necessários para se auto determinar sexualmente, bem como não eram capazes de se defender e de se oporem de forma eficaz aos seus actos ou sequer possuíam capacidade para consentir aos mesmos, condições de que o arguido tinha consciência e de que se aproveitou para praticar os factos supra descritos.

27. Sabia ainda o arguido que um relacionamento de natureza sexual com as vítimas, tirando proveito das suas incapacidades e fragilidades, era adequado a molestar a sua liberdade de auto conformação da vida sexual e que causava um mau estar físico e psicológico de inquietação nas mesmas, o que quis e conseguiu.

28. Mercê dos problemas psíquicos de que padeciam, BB e CC não tinham capacidade para avaliar em toda a sua extensão o sentido e o significado dos referidos actos sexuais e das suas consequências e, também por esse motivo, de lhes resistir, circunstância que o arguido conhecia e de que se aproveitou para satisfazer os seus instintos libidinosos, o que quis e conseguiu.

29. Bem sabia o arguido que as suas condutas eram de molde a prejudicar, como prejudicaram, o normal desenvolvimento da liberdade e da autodeterminação sexual das vítimas bem como a sua sã personalidade e livre desenvolvimento, ofendendo assim o seu sentimento de inocência, de modéstia e vergonha bem como a integridade física e psicológica daquelas, o que quis e conseguiu.

30. Ao proferir a expressão referida em 10, o arguido agiu com a intenção concretizada de provocar na menor BB um sentimento de medo e inquietação, por forma a constrangê-la na sua liberdade de decisão e acção, e desse modo, impedir que esta relatasse o ocorrido a familiares ou qualquer pessoa, o que não aconteceu por circunstâncias alheias à sua vontade, tendo a menor denunciado os factos junto da sua professora GG.

31. O arguido sabia que a expressão proferida contra a menor, aludida em 10, era apta a limitar a liberdade e a livre determinação da mesma, fazendo-a temer pela sua liberdade e autodeterminação sexual bem como perturbava e prejudicava de forma séria o são desenvolvimento psicológico e afectivo da menor, de cuja idade, inexperiência e fragilidades se aproveitou e bem conhecia, o que quis e representou.

32. A qualidade de ... operacional por parte do arguido foi imprescindível e necessária para a prática dos factos supra descritos e realizada no exercício da actividade do mesmo, o que bem sabia.

33. Com as suas condutas, supra descritas, o arguido bem sabia que violava e desrespeitava gravemente os deveres de lealdade, zelo, isenção e correcção, exigidos aos trabalhadores que exercem funções públicas, o que quis e conseguiu.

34. Ao arguido, era-lhe exigido no desempenho de funções públicas, um escrupuloso cumprimento da lei, actuando o mesmo por forma a violar frontalmente tais regras e deveres de conduta profissional, que bem conhecia, tendo-o feito com o propósito, conseguido, de satisfazer os seus instintos libidinosos e assim na prossecução de interesses pessoais.

35. O arguido demonstrou uma conduta imprópria e absolutamente inadequada ao prestígio e elevação que, como trabalhador de funções públicas se lhe impunha, violando a confiança que nos mesmos é deposita pelos cidadãos.

36. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, não se coibindo, porém, de assim actuar.

37. Como consequência necessária e directa da conduta do arguido, a ofendida BB realizou uma deslocação ao Instituto de Medicina Legal ... no dia 5 de Março de 2021, no que despendeu a quantia de €75,00 (setenta e cinco) euros;

38. Como consequência necessária e directa da conduta do arguido sofreram as ofendidas CC e BB, tristeza, vergonha, ansiedade, nervos, intranquilidade, constrangimento e insegurança sobre a sua liberdade sexual e integridade pessoal, bem assim instabilidade emocional.

Dados relevantes do processo de socialização

39. AA é o mais velho de dois irmãos, cujo processo de socialização decorreu em BB.

40. O progenitor era carpinteiro e a progenitora assumia a função educativa dos filhos e a lida doméstica, o que garantiu durante vários anos a estabilidade económica do agregado familiar, que também sempre foi investido ao nível da afectividade.

41. O arguido entrou para a escola na idade prevista para o efeito, revelando boas capacidades ao nível da aprendizagem que lhe permitiram obter o 12º ano, tendo expectativas elevadas de ingressar no ensino superior. Porém, a morte do pai, quando o arguido tinha ... anos de idade veio a alterar o seu projecto de vida, procurando fontes de rendimento que ajudassem na subsistência do agregado familiar, centrado essencialmente nos biscates realizados pela progenitora, no sector da costura e de algum apoio concedido pelos avós maternos.

42. Inicialmente, AA frequentou um curso remunerado em BB, na área da ..., tendo, entretanto, entrado, com 21 anos de idade, na escola secundária HH, onde veio a vincular.

43. Ingressou também nos Bombeiros Voluntários ..., onde foi ... no período de Março de 2007 a Janeiro de 2011, cargo de onde se demitiu, na sequência de desentendimentos com um bombeiro da corporação.

44. Após 8 anos de namoro com II, proveniente da mesma área residencial, contraíram casamento, tinha o arguido, 30 anos. O casal tem uma filha que tem actualmente ... anos de idade.

Condições sociais e pessoais

45. AA mantém há cerca 20 anos a relação conjugal com II, auxiliar de ... há 20 anos na .... .

A filha de ambos, frequenta o 2º ano do curso superior .... Integra também o agregado familiar, a sogra do arguido, com 85 anos de idade e que tem uma pensão de reforma no valor de € 300 por mês.

46. O casal reside em BB, num apartamento do tipo ..., com boas condições de habitabilidade e equipado com as infraestruturas básicas. O ambiente intrafamiliar é positivo e orientado em torno da satisfação das necessidades do quotidiano.

47. O arguido exerce funções de ... como assistente operacional na escola secundária ..., constando do documento entregue na DGRSP, uma sequência, desde que ingressou na carreira, de notas positivas referentes à avaliação do desempenho.

48. O seu salário é de € 800 por mês, contudo, está actualmente, suspenso de funções desde Fevereiro de 2021 o que veio a deteriorar a situação económica familiar. Com efeito, o cônjuge é desde há um ano, o único elemento ativo, auferindo um salário de € 733,63 por mês, sendo com este montante que o agregado suporta as despesas, como o crédito à habitação, no valor de € 220/mês, o crédito automóvel no montante de € 130.32 mensais e a renda da casa da filha no ..., no valor de € 220 por mês.

49. Em BB, o arguido está bem inserido socialmente, atentos os hábitos de trabalho evidenciados e às relações de convivência desenvolvidas com os residentes, constituindo uma surpresa as notícias surgidas no âmbito do presente processo.

50. No posto local da G.N.R., onde o arguido tem cumprido a medida de cocação de apresentações periódicas, não há registo de qualquer outro processo que o envolva.

Impacto da situação jurídico-penal

51. AA apresenta-se pela primeira vez em julgamento, situação que lhe suscita alguma ansiedade, não obstante, acreditar num desfecho positivo do presente confronto com o sistema judicial.

52. A sua postura é de adequação à ordem social e jurídica, identificando e censurando no abstrato, e em consonância com o socialmente desejável, as condutas criminais em apreço e os danos causados às vítimas, considerando que deverá haver uma reacção penal proporcional.

53. O principal impacto da situação jurídico-penal verifica-se ao nível profissional, atenda a sua actual condição de suspensão, com repercussões significativas na estabilidade económica da família, dispondo do apoio do cônjuge e da filha.

Admite também um sentimento de incómodo na sua imagem social, principalmente, pela visibilidade pública empolada pela forte cobertura mediática do caso.

54. O arguido é pessoa respeitada e estimada no meio social onde reside.

Antecedentes criminais

55. O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.


VI. Decidindo:

É excessiva e deve ser reduzida a pena única de 12 anos de prisão aplicada ao arguido?

O tribunal recorrido abordou a determinação das penas parcelares e única de forma conjunta, desta forma se pronunciando:

«(…)

Assim, valorando a matéria fáctica provada nos termos do artº 71º nºs 1 e 2 do CP, e tendo em conta:

O grau de ilicitude do facto: muito elevado. Como é referido no acórdão recorrido “a gravidade da sua conduta assente no facto de se ter aproveitado da inexperiência de quem sofria de uma deficiência mental que não lhe permite, nem permitia, perceber o alcance de actos de natureza sexual, sofrendo também de incapacidade de se autodeterminar sexualmente de exprimir a sua vontade no sentido de resistência aquele tipo de actos, circunstância que era conhecida do arguido, para satisfazer os seus desejos e instintos sexuais, sendo que a sociedade não pode compreender a atitude de pessoas destas e espera uma reacção firme da justiça com vista a prevenir a ocorrência de casos como este, os quais, infelizmente, têm sido recorrentes. A actuação do arguido levou a que, desse modo, as ofendidas se vissem confrontadas com estas experiências de carácter sexual completamente desadequadas para a sua condição de deficiente e incapaz.

Haverá que atender, concretamente, ao facto de que a vítima BB contava 16 e 17 anos de idade, enquanto a vitima CC no início da conduta do arguido contava 14 anos sendo que a atitude do arguido permaneceu e se repetiu durante vários anos até aos 19 anos desta ofendida. Por outro lado, o arguido no início da sua actividade delituosa (ano lectivo 2015/2016) tinha 45 anos de idade e manteve a conduta ofensiva até aos 50 anos idade”.

O modo de execução: o arguido procurava as ocasiões para actuar e aproveitava-se da ”inocência” das ofendidas, que tinham consigo uma relação de grande proximidade, tendo-se aproveitado dessa relação e da confiança que as mesmas depositavam nele, bem como os professores da escola onde este desempenhava as suas funções de auxiliar.

A intensidade do dolo: o dolo sendo directo revela elevada intensidade traduzido no empenho e energia revelada na execução dos actos que repetidamente praticou e os obstáculos sociais que teve de vencer para concretizar o seu propósito libidinoso, evidenciando perigosidade social pois que se mostra insensível aos valores que fundamentam as regras de vivência em sociedade, tanto mais que como se disse o arguido conhecias as limitações das ofendidas. Aliás, a energia criminosa usada pelo arguido resulta também do facto de, relativamente à CC, quando ela saiu da Escola que frequentava, transitando para o Seminário, o arguido “foi atrás dela” mantendo e agravando a sua actividade criminosa. Haverá que ponderar a gravidade das consequências da conduta do arguido, o perigo concreto das eventuais consequências ao nível psicológico que tais condutas poderão produzir, no futuro, às ofendidas.

“As vítimas eram estudantes na escola onde o arguido trabalhava, mereciam-lhe respeito ao qual, aliás, estava obrigado no desempenho da sua função, acrescido ainda em função da situação de deficiência e incapacidade de que são portadoras e que ele bem conhecia, abusando o arguido dos seus corpos, da sua liberdade sexual, das suas incapacidades de autodeterminação sexual e, do mesmo passo, da sua função de funcionário da escola onde estudavam e onde seria de esperar que beneficiariam de protecção”.

O arguido não confessou os factos, não mostrou qualquer arrependimento. A seu favor apenas milita a circunstância de não apresentar antecedentes criminais e mostrar-se inserido familiar, social e profissionalmente.

As necessidades de prevenção geral são cada vez mais exigentes neste tipo de crimes, tendo em conta o bem jurídico violado (a autodeterminação sexual das menores) e impostas pela frequência dos casos de abusos sexuais em geral e em especial dos abusos sexuais de menores. Geradora do elevado alarme social que este tipo de actuações criminosas suscita na comunidade, justificando resposta punitiva firme, no caso vertente ainda mais premente devido á repercussão que o caso teve na medida em que estão em causa actos sexuais praticados sobre alunas de uma escola por funcionário dessa mesma escola de quem deveriam esperar protecção e com grave abuuso da função que desempenha.

Ora, atendendo às molduras penais abstratas correspondentes aos ilícitos praticados pelo arguido (…) temos que as penas aplicadas quer parcelares, quer a pena única se mostram justas, equilibradas e proporcionais».

Posto isto:

“Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” – artº 77º, nº 1 do Cod. Penal – sendo certo que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares (não podendo ultrapassar os 25 anos de prisão ou 900 dias de multa) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.

Assim, no caso em apreço, a moldura penal aplicável parte de um mínimo de 5 anos e 6 meses de prisão, não podendo ultrapassar os 25 anos de prisão (a soma das penas parcelares ultrapassa os 255 anos de prisão).

Como se refere no Ac. STJ de de 08-07-2020, Proc. n.º 1667/19.1T8VRL.S1 - 3.ª Secção, “I - A medida da pena conjunta deve definir-se entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente. II - Em sede de cúmulo jurídico a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. III - À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. IV - De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente - exigências de prevenção especial de socialização”.

De outro lado, “a proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global (do concurso de crimes enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente nele revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a intensidade ou gravidade da medida da pena conjunta no âmbito do ordenamento punitivo” – Ac. STJ de 08-07-2020, Proc. n.º 74/14.7JAPTM.E1.S1 - 3.ª Secção.

Ora, numa avaliação global dos factos, é necessário, desde logo, ponderar as fortes exigências de prevenção geral presentes na situação em apreço.

Com efeito, os crimes contra a liberdade e autodeterminação social constituem objecto de manifesta reprovação geral, sendo certo que a frequência com que vêm ocorrendo elevam as necessidades de prevenção geral.

Na verdade, do relatório anual de segurança relativo ao ano de 2019 e divulgado no final do 1º semestre de 2020, já se retirava um aumento dos crimes participados desta natureza relativamente ao ano anterior. Mas, no relatório de 2022, divulgado em Abril deste ano, constata-se – relativamente a 2019 – um aumento de 20,4% na criminalidade deste tipo.

Simas Santos e Leal-Henriques, “Noções Elementares de Direito Penal”, 2ª ed., 169, escrevem:

(…) a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida”.

Há que atender, ainda, ao período de tempo ao longo do qual foram praticados os ilícitos (no que concerne à ofendida CC, durante mais de 4 anos), o número dos mesmos, o seu modo de execução, denunciador de uma elevada ilicitude e o bem jurídico atingido.

Mas há que atender, também, à ausência de antecedentes criminais do arguido e à sua inserção familiar e social.

Ponderados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, é nosso entendimento que se mostra justa e adequada a satisfazer as necessidades da punição, a pena única de 12 anos de prisão aplicada em 1ª instância e confirmada no acórdão recorrido, situada no limite do primeiro terço da pena abstractamente aplicável, que assim será mantida.


VII. São termos em que, sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em:

a) rejeitar o recurso interposto, por inadmissível, nos segmentos relativos às penas parcelares (abrangendo todas as questões, de natureza substantiva ou processual a elas respeitantes) e negar provimento ao mesmo recurso na parte relativa ao quantum da pena única, desta forma confirmando inteiramente o douto acórdão recorrido;

b) condenar o recorrente nas custas do processo, fixando em 6 UC’s a taxa de justiça – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


Lisboa, 29 de Junho de 2023 (processado e revisto pelo relator)

           

Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

M. Carmo Silva Dias (Juíza Conselheira 1ª adjunta)

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro 2º adjunto)

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[1] A referência ao nº 2 do artº 165º do Cod. Penal resulta da rectificação de lapso material, determinada pela Relação de Coimbra, ao abrigo do disposto no artº 380º, nºs 1, al. b) e 2) do CPP.
[2] Mais uma vez, a referência ao nº 2 do artº 165º do Cod. Penal resulta da rectificação de lapso material, determinada pela Relação de Coimbra, ao abrigo do disposto no artº 380º, nºs 1, al. b) e 2) do CPP.
[3] Acessível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:266.17.7GDFAR.E1.S1.
[4] Cfr., neste sentido, Acs. STJ de 4/7/2019, Proc. 461/17.9GABRR.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., neste sentido, Acs. STJ de 15/4/2015, Proc. 3/12.2PAMGR.C1S1, de 4/7/2019, Proc. nº 461/17.9GABRR.L1.S1, de 21/10/2020, Proc. n.º 1551/19.9T9PRT.P1.S1 e de 12/1/2022, Proc. nº 89/14.5T9LOU.P1.S1 (com o mesmo relator), todos disponíveis em www.dgsi.pt.