Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3567
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA DA SILVA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: SJ200711080035672
Data do Acordão: 11/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : A ocorrência de uma situação que, em termos objectivos, constitui infracção a norma do CE deve implicar presunção juris tantum de culpa na produção dos danos dela decorrentes, a prova em concreto da falta de diligência se dispensando.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. a) AA, a 02-06-17 (cfr. carimbo aposto a fls. 2 e art. 267º nº 1 do CPC), no Tribunal Judicial da Comarca de Amares, intentou, nos termos e com os fundamentos que fls. 2 a 8 evidenciam, acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário, visando a efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação ocorrido a 01-12-21, pelas 15h15, na E.M. 1250, no lugar de Paço, Barreiros, Amares, contra o FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, impetrando a condenação deste a pagar-lhe, a título de indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, 103.000 euros e o "quantum" que se liquidar em execução de sentença pelos "vencimentos ainda não quantificáveis devidos até à alta definitiva", bem como juros vincendos, desde a data da citação, à taxa legal, sobre tais quantitativos.

b) Contestou o Fundo de Garantia Automóvel, por impugnação, como decorre de fls. 17 e 18, concluindo no sentido de dever "a acção ser julgada de acordo com a prova a produzir".

c) Elaboração despacho saneador tabelar, foi seleccionada a matéria de considerada assente e organizada a base instrutória.

d) Por mor do vertido no requerimento que constitui fls.166 e 167. o autor ampliou para 208.000 euros o pedido (capital), ampliação essa que foi admitida.

e) Observado o demais de lei, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, proferida tendo sido sentença que, na parcial procedência da acção, condenou o Fundo de Garantia Automóvel a pagar ao autor 165.000 euros e juros de mora sobre tal montante, à taxa legal, desde a citação vencidos e vincendos até integral pagamento, tal como "indemnização, em montante a liquidar, pelos prejuízos decorrentes da perda de vencimentos desde a data do acidente até à data da alta definitiva."

f) Com o sentenciado se não tendo conformado, apelou o Fundo de Garantia Automóvel, sem êxito, embora já que o TRG, por acórdão de 07-06-12 (cfr. fls. 307 a 323), julgou improcedente a apelação, confirmando, consequentemente, a decisão impugnada.
g) Ainda inconformado, é do predito acórdão que o Fundo de Garantia Automóvel traz revista, na alegação oferecida tendo formulado as seguintes conclusões:

1º - O Tribunal da Relação de Guimarães julgou o recurso de apelação improcedente, confirmando a sentença proferida em 1ª instância.
2º - O Recorrente, com todo o respeito, não se conforma com o Acórdão ora em crise e interpôs novamente recurso onde pretende a apreciação de três questões.
3º - Primeiro, entende o Recorrente, mesmo atendendo só à matéria de facto provada e aos elementos de prova constantes dos autos que foram considerados relevantes, que deveria ter sido outra a decisão em qualquer das instâncias, pelos fundamentos que a seguir se expõem.
4º - O Tribunal de 1ª instância deu como provado que o motociclo circulava a uma velocidade não inferior a 50 Km/h, ou que não significa nem que o motociclo circulava a uma velocidade adequada nem que circulava a uma velocidade excessiva, apesar de não ficar também excluída esta hipótese.
5º O motociclo circulava na Estrada Municipal nº 1250 quando é embatido na sua parte lateral esquerda por veículo desconhecido que seguia em sentido contrário e a velocidade não inferior a 80 Km/h.
6º - Com o embate, o motociclo não foi projectado nem para o lado nem para trás em direcção ao referido poste dos CTT-TLP, já que este se encontrava 5,80m. à frente do local do embate de onde se infere que entre os veículos não se deu um forte embate.
7º - Ora, não tendo sido um forte embate, certo é que o motociclo, descontrolado foi embater no poste dos CTT, partindo-o não sem antes ter ainda raspado num muro à beira da estrada.
8º - Tudo isto conduz à conclusão lógica que o motociclo teria de, necessariamente, circular em manifesto excesso de velocidade, atentas as regras da experiência comum, sob pena de ser ilógico e irrazoável.
9º - Contrapõe o Acórdão em crise que mesmo sendo admissível esta conclusão, não se pode a partir daqui concluir qual a velocidade concreta.
10º - Não sendo errada tal afirmação também não é de todo verdadeira já que foi possível concluir que o motociclo circulava a mais de 50 Km/h.
11º - De acordo com as regras da experiência comum, face aos elementos dos autos e à matéria de facto provada, de forma simples e segura se conclui que o motociclo no momento do acidente circulava a uma velocidade muito superior a 50 km/h, não concretamente apurada mas seguramente muito elevada.
12º - Por um lado atendendo aos danos físicos sofridos pelo Recorrido: o embate com o veículo não terá causado àquele qualquer dano, dado que a perna esquerda (lado em que foi embatido) não teve qualquer lesão. Como tal, os graves danos pelo Recorrente sofridos são todos decorrentes eventualmente do choque com o muro e certamente do choque com o poste e consequente projecção e queda no solo.

13º Entende o Recorrente que o Recorrido teve culpa na produção do acidente e, em maior grau na produção dos danos sofridos, mercê da velocidade excessiva que imprimia ao motociclo.
14º - Culpa essa agravada pelo facto de o Recorrente saber não ser titular de licença de condução que o habilitasse a conduzir o motociclo e como tal não ter certamente grande experiência na condução de um veículo daquele tipo.
15º - Aliás, esse facto tem ainda relevância se perspectivarmos o sucedido pelo seguinte prisma: configura abuso de direito a pretensão do Recorrido em exigir uma indemnização pelos danos sofridos, quando certo é que ele sabia que não podia conduzir o motociclo.
16º - Voltando à questão da culpa, tendo em conta os fundamentos supra aduzidos, entende o Recorrente que deverá ser atribuída ao Recorrido culpa concorrente na produção do acidente e, em maior grau ainda, culpa na produção dos danos verificados.
17º - Pelo exposto, entende o Recorrente que o Tribunal da Relação de Guimarães ao confirmar a sentença da 1ª instância, violou o disposto nos artigos 498º nº1, 570º e 334º, todos do Código Civil.
18º - O Tribunal a quo, para compensação dos danos não-patrimoniais sofridos pelo Recorrido, fixou a quantia de € 25.000,00, valor este actualizado com referência à data da citação, montante este que se considera excessivo.
19º - A jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem entendido que as indemnizações por danos morais devem constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo ser miserabilistas mas também não podem constituir para os lesados uma fonte de enriquecimento sem causa.
20º - E é com base nas indemnizações normalmente arbitradas pelos nossos tribunais para ressarcir o mais elevado dos danos morais, a perda da vida que nos parece que a indemnização arbitrada não é justa, adequada e proporcional, pois afinal o valor fixado é muito próximo do da indemnização pela perda do mais protegido bem humano, isto tendo por referência a data da citação.

21º - Para além disso, é uma indemnização bastante superior à do exemplo jurisprudencial mais próximo que o Recorrente encontrou.
22º - Por estes motivos, entende o Recorrente que a título de danos não patrimoniais se afigura justa e adequada a quantia de € 15.000,00.
23º - Foi assim violado, nesta parte, o vertido nos artigos 562º e 566º do Código Civil.
24º - Por último, a favor do Recorrido foi fixada uma indemnização pelos danos patrimoniais sofridos no valor de € 140.000,00 pelos danos futuros decorrentes da incapacidade permanente que lhe foi diagnosticada em consequência do acidente em que interveio.
25º - Sendo certo que no recurso de apelação o Recorrente não recorreu desta matéria e até já pagou ao Recorrido uma parte da indemnização que foi fixada em 1ª instância, recorre também agora da indemnização pelos danos patrimoniais que a favor do Recorrido foi fixada a fim de, caso não seja reconhecida a culpa do Recorrido na produção do acidente e dos danos, tentar que o valor indemnizatório se aproxime dos montantes que se entendem justos a adequados.
26º - O dano sofrido é passível efectivamente de uma indemnização mas, salvo melhor opinião, entende o Recorrente que o valor é exagerado face aos danos concretamente sofridos.
27º - A jurisprudência dos nossos tribunais superior tem vindo a acolher, de forma pacífica, uma célebre fórmula aritmética como um mero instrumento de trabalho, com vista a ajudar a determinar o valor indemnizatório a atribuir ao lesado, após o que, sempre que se mostrar necessário, os resultados deverão ser sempre temperados com a equidade por forma a subjectivizar o quantum indemnizatório.
28º - Lançando mão desta fórmula e usando os factos dados como provados nestes autos o resultado cifra-se em €75.041,84, afigura-se justa e adequada uma indemnização que não deverá ser superior a € 77.500,00.
29º - Mostra-se assim violado o vertido nos artigos 562º e 566º do Código Civil.
30º - Nestes termos, julgando procedente o presente recurso e alterando o acórdão recorrido no sentido atrás indicado, farão V.Exªs, como sempre, a mais elevada JUSTIÇA.

h) Contra-alegou AA, pugnando pela confirmação do julgado.
i) Colhidos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Eis como se configura a materialidade fáctica dada como provada no acórdão sob recurso, o qual passaremos a designar, tão só, por "decisão":

"1. No dia 21/12/2001, cerca das 15h15, na Estrada Municipal nº 1250, ocorreu um embate entre um veículo ligeiro de passageiros, de cor branca, cuja matrícula não foi identificada, e o motociclo de matrícula RU, conduzido pelo Autor (resposta ao quesito1º da Base Instrutória).
2. Desconhece-se se está transferida para qualquer seguradora a responsabilidade civil por danos resultantes da circulação daquele veículo ligeiro (resposta ao quesito 2º da Base Instrutória).
3. O veículo ligeiro circulava no sentido de Rendufe/Barreiros a uma velocidade não inferior a 80 km/h (resposta ao quesito 3º da Base Instrutória).
4. O motociclo circulava no sentido Barreiros/Rendufe a uma velocidade não inferior a 50 km/h (resposta ao quesito 4º da Base Instrutória).
5. O veículo ligeiro circulava ocupando parte da hemi-faixa de rodagem esquerda, atento o sentido de marcha em que seguia (resposta ao quesito 6º da Base Instrutória).
6. Ao cruzar com o motociclo, o veículo ligeiro embateu com a parte lateral esquerda na parte lateral esquerda do motociclo (resposta ao quesito 9º da Base Instrutória).
7. De seguida o motociclo foi colidir contra um poste de madeira dos CTT-TLP situado na margem direita da via, atento o sentido Barreiros/Rendufe.
8. Em consequência do embate o Autor caiu ao solo (resposta ao quesito 11º da Base Instrutória).
9. O Autor sofreu traumatismo crânio-encefálico, fracturas ósseas no tórax, com fractura da clavícula e fracturas várias no membro superior direito - fractura cominutiva do úmero, fractura do rádio e punho direitos, para além de traumatismo torácico com contusão do lobo pulmonar direito e pneumotórax esquerdo (resposta ao quesito 12º da Base Instrutória).
10. Ficou com cicatrizes localizadas no braço direito de 2 cm na face externa e na face antero-externa de 20 cm de maior eixo, no ombro direito de 5 cm; outras cicatrizes localizadas ainda na metade direita da face anterior do tórax de 13 cm por 1,5 cm; cicatriz localizada na face lateral do pescoço e terço superior e anterior do tórax que se estende até à axila, medindo na totalidade 31 cm, outra cicatriz na linha média da face anterior do tórax de 29 cm e outra interceptando esta cicatriz de 3,5 cm, para além de duas outras cicatrizes em cada uma das metades da face anterior do tórax com cerca de 2 cm cada uma (resposta ao quesito 13º da Base Instrutória).
11. Permaneceu internado no Hospital de São Marcos de Braga durante cinco meses (resposta ao quesito 14º da Base Instrutória).
12. E em estado de coma durante quinze dias (resposta ao quesito 15º da Base Instrutória).
13. Sofreu dores de grau 6 (resposta ao quesito 16º da Base Instrutória).
14. Nasceu no dia 7 de Dezembro de 1983 (alínea A) dos Factos Assentes).
15. Na data do acidente era um homem saudável e com gosto pela vida, não padecendo de qualquer defeito físico ou intelectual (resposta ao quesito 17º da Base Instrutória).
16. Auferia do seu trabalho o vencimento mensal de 334,19 € acrescido de subsídio de alimentação de 82,85 € (resposta ao quesito 18º da Base Instrutória).
17. Recebeu da Segurança Social a título de subsídio de doença no período compreendido entre 21/12/2001 a 19/12/2004 a quantia global de 8.243,68 € e encontra-se a receber desde 20/12/2004 a pensão mensal de 129,89 € (resposta ao quesito 19º da Base Instrutória).
18. Ficou totalmente incapaz para o seu trabalho habitual e com incapacidade permanente geral para as actividades da vida diária de 63% (resposta ao quesito 20º da Base Instrutória)."

III. Não se está ante caso excepcional previsto no nº 2 do art. 722º do CPC (diploma legal a que pertencem os normativos que, sem indicação de proveniência outra, se vierem a citar).
Nem é cabido desencadear a aplicação do art. 729º nº 3.
Destarte, à factualidade que como definitivamente fixada se tem é a elencada na "decisão", aquela se não reescrevendo, por flagrantemente despiciendo isso se antolhar.

IV. O DIREITO:
Delimitando às conclusões da alegação do recorrente o âmbito do recurso (art.s 684º nº 3 e 690º nº 1), temos:
A) Da culpa na produção do sinistro:
Forceja o FGA na defesa da tese da culpa concorrente dos condutores dos veículos intervenientes no acidente de viação em causa, no deflagrar deste, em percentagem maior, embora, a do demandante, adita, mercê da "velocidade excessiva que imprimia ao motociclo" (conclusões 13ª e 16ª da alegação da revista).
Quedou indemonstrado, todavia, o à liça chamado excesso de velocidade, por banda de AA, bem como, saliente-se, o carreado para a conclusão 14ª da aludida alegação, em abono da evidenciação do agravamento da culpa do sinistrado, a título, em substância, apenas hipotético, não se oblitere, já que a falta de "grande experiência na condução de um veículo daquele tipo", com o efeito invocado, também se não divisa ressumar do provado.
Há que ter presente, em prol da "decisão", que orientação constante deste Tribunal, da qual não dissentimos, tem sido a de que a prova da inobservância das leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se a prova em concreto da falta de diligência (cfr. acórdãos de 21-2-61, 14-10-82, 6-1-87, 10-3-98 e 7-11-01, in BMJ nºs 104-417, 320-422, 363-488, 475-635 e CJ-Acs.STJ-Ano VIII-tomo III, pág.105, respectivamente) e que, mediante o recurso a presunções judiciais é defeso ao STJ contrariar respostas afirmativas, negativas ou restritivas a nºs da base instrutória, indúbio como é reconduzirem-se aquelas ao julgamento da matéria de facto, excluído da competência deste Tribunal (cfr. art.26º da LOFTJ e art.s 722º nº 2 e 729º nºs 1 e 2).
"Decisão", refira-se desde já, cuja fundamentação, "in totum", se acolhe, no respeitante ao que ora releva - julgamento da apelação -, para aquela se remetendo, com justo arrimo no art. 713º nº 5, aplicável por força do art. 726º

Enfim:
Tudo visto, presente tendo, ainda, como urge, o vertido nos art.s 342º nº 1 e 483º nº 1, ambos do CC, censura alguma merece a "decisão" confirmatória da culpa exclusiva do condutor do veículo ligeiro que circulava no sentido Rendufe/Barreiros no deflagrar do infausto evento que levou à propositura desta acção.

B) Não consubstancia, mas evidentemente, ao arrepio do pretendido pelo FGA, abuso de direito o expresso na conclusão 15ª da alegação do demandado.
O autor, sim, provou o que lhe cabia, em ordem à acontecida procedência, parcial embora, da sua pretensão indemnizatória, com a fonte relatada, óbice a tal não fazendo, é apodíctico, o não se encontrar, à data do acidente, habilitado a conduzir motociclos.

C) No tocante à indemnização arbitrada, considerados os provados danos não patrimoniais sofridos pelo autor (conclusões 18ª a 23ª da alegação de AA):
Vai longe, felizmente, o tempo das indemnizações simbólicas ou miserabilistas para compensar danos não patrimoniais, como muito recentemente lembrado no Ac. deste Tribunal, de 25-10-07, proferido nos autos de revista registados sob o nº 3026/07-02.
O montante arbitrado, a título de indemnização pelos danos em apreço, ponderado o provado e tidos em conta os parâmetros a que a lei manda atender, pelo dissecado na "decisão", para que já remetemos, não se perfila excessiva, antes ajustada, não dissonante dos padrões que vêm sendo adoptados pela jurisprudência, que, como expresso no último aresto citado, "constituem também circunstância a ter em conta no quadro das decisões que façam apelo à equidade."
Também neste conspecto falece a pretensão recursória.

D) Quanto ao montante da indemnização arbitrada por danos patrimoniais (conclusões 24ª a 29ª da alegação do FGA):
Trata-se de questão não suscitada na apelação e de que o Tribunal "a quo", não conheceu, e com acerto, por não ser de conhecimento oficioso, sopesado o que, consabidamente, os recursos visam (art.s 676º nº 1).
Sendo questão nova, como é, defeso nos é dela conhecer, sob pena de comissão de nulidade por pronúncia indevida (art.s 668º nº 1 d) - 2ª parte -, 716º nº 1 e 726º).

IV. CONCLUSÃO:
Pelo consignado, não constituindo a "decisão" paradigma de violação dos preceitos legais convocados pelo recorrente, sem necessidade de mais considerandos, nega-se a revista, aquela se confirmando.

Sem custas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2007

Pereira da Silva (Relator)
Rodrigues dos Santos
João Bernardo