Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A2478
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA RAMOS
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: SJ200210150024781
Data do Acordão: 10/15/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 10361/01
Data: 12/18/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: ANULADA A REVISTA.
Sumário : O acórdão recorrido não poderia ter decidido a questão da legitimidade com um fundamento frontalmente diverso e não ponderado na sentença da 1ª instância, sem, antes, ter convidado o recorrente a pronunciar-se e tomar posição sobre essa questão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. A 19.10.95, no Tribunal da Comarca de Lisboa, "A"- Sociedade de Financiamento de Vendas a Crédito, S. A., propôs acção com processo ordinário contra "B"-Gabinete de Gestão, Lda., pedindo que seja:
- reconhecida judicialmente a resolução do contrato de compra e venda a prestações VCR/602, à data de 18.2.94, celebrado em 5.8.92 e referente ao equipamento discriminado em anexo ao contrato junto como doc. n.º 1;
- condenada a restituir à autora o equipamento vendido, no estado em que o mesmo lhe foi entregue, ressalvadas as deteriorações decorrentes de um uso prudente durante a vigência do contrato (cfr. fls. 75).
Para tanto, e em síntese, alegou que, em 5.8.92, foi celebrado o contrato de compra e venda a prestações, com reserva de propriedade, n. VCR/602, entre a ré e "C" - Comércio e Aluguer de Bens e Serviços, S.A., que cedeu à autora a sua posição contratual, tendo a ré deixado de fazer os pagamentos a que se havia obrigado nesse contrato.
A ré defendeu-se por impugnação e por excepção, sustentando, nomeadamente, a ilegitimidade da autora.
2. No saneador-sentença, a 15.01.2001 julgou-se improcedente a excepção de ilegitimidade, e procedente e provada a acção em relação à restituição do equipamento vendido, com fundamento na resolução do contrato (fls. 91).
Inconformada, a ré apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 18.12.2001, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida (fls. 127).
3. Irresignada, interpôs o presente recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo ao alegar:

"1ª O douto acórdão é nulo,
a) por ter confirmado a sentença, apesar de ter discordado dos fundamentos da mesma;
b) por, ao negar provimento ao recurso, ter fundamentado com outras razões diversas das expressas na sentença, sem ter concedido o prazo a que se refere o artigo 715°, nº 2, do CPC;
c) por ter fundamentado a confirmação da sentença, com factos não alegados na petição e apenas veiculados pela recorrida na réplica, numa autêntica alteração da causa de pedir.
2ª A recorrida enviou as cartas de interpelação e de resolução em seu próprio nome.
3ª Intentou a acção em seu próprio nome.
4ª Jamais, tanto nas cartas como na petição, fez qualquer referência à existência de tal procuração.
5ª O mandato deve ser exercido em nome e representação do mandante (artigos 1178°, nºs 1 e 2, e 268° do Código Civil).
6ª A recorrida não tinha assim legitimidade para, em seu próprio nome, proceder à resolução do contrato celebrado entre a recorrente e a "C".
O douto Acórdão recorrido violou os artigos 3°, nº 3, 668°, nº 1, alíneas c) e d), 715°, nºs 2 e 3, do CPC, e os artigos 1157°, 1178°, nºs 1 e 2, do Código Civil".
A recorrida pugnou pela confirmação do julgado (fls. 139-170).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Não tendo sido impugnada, nem se justificando uma alteração oficiosa da matéria de facto que vem dada como provada, para ela se remete nos termos do disposto nos artigos 713º, nº 6, e 726º, do CPC.
Das conclusões da recorrente, delimitadoras que são do âmbito do recurso (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CP), emerge como questão fundamental, prejudicial do conhecimento das demais, saber se o acórdão violou a norma do nº 3 do artigo 3º do CPC, que estabelece:
"O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem".
1. Tomando como parâmetro a lei fundamental, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar a consagração do princípio do contraditório como algo integrado no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da CRP.
O direito de acesso aos tribunais é, na verdade, dominado por uma ideia de igualdade, uma vez que o princípio da igualdade vincula todas as funções estaduais, jurisdição incluída (acórdão do TC nº 147/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., pp. 623 e ss.) - vinculação que significa igualdade perante os tribunais, donde decorre que "as partes têm que dispor de idênticos meios processuais para litigar, de idênticos direitos processuais" (acórdão do TC nº 223/95, DR, II série, de 27.6.95).
O princípio do contraditório - escreveu-se no acórdão do TC nº 177/2000, DR, II série, de 27.10.2000 -, enquanto princípio reitor do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de - deduzir as suas razões (de facto e de direito)", de "oferecer as suas provas", de "controlar as provas do adversário" e de "discretear sobre o valor e resultados de umas e outras" (cfr. Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil", 1956, p. 364).

2. Não se duvida que a norma transcrita - nº 3 do artigo 3º, introduzida pela Reforma de 1995/96 - veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialéctica ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo.

A uma concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do ‘rechtliches Gehõr’ germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de influir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo" (José Lebre de Freitas, "Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto", 1996, p. 96, e "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, 1999, p. 8).
Pondo o enfoque no plano das questões de direito, a norma proíbe, como este Autor logo sublinha, as decisões-surpresa, isto é, as decisões baseadas "em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes".
Proibição, pois, das decisões "surpresa, enquanto violadoras do princípio do contraditório, conforme este Supremo Tribunal tem tido oportunidade de decidir (cfr., entre outros, os acórdãos de 18.11.99, Proc. nº 794/99, 16.02.2000, Proc. nº 732/99, 5.12.2000, Proc. nº 3247/00, e de 05.07.2001, Proc. nº 2038/01).
III
Os elementos recenseados permitem se passe à abordagem e decisão da questão enunciada.
Em relação à qual entendemos que assiste razão à recorrente.
Como se passa a demonstrar.
1. Porque nas alegações do recurso de revista foram suscitadas nulidades, a Relação lavrou, a 14.05.02, o acórdão de fls. 176, no qual concluiu que o acórdão recorrido não enferma de qualquer vício, nem constitui qualquer decisão "surpresa.
Para tanto, produzem-se nesse acórdão algumas considerações que, com respeito, não podemos acompanhar - designadamente quando se diz "que dele (1) não resulta que tenha confirmado a sentença, apesar de ter discordado dos fundamentos da mesma; e do acórdão também não resulta que ao negar provimento ao recurso tivesse fundamentado com outras razões diversas das expressas na sentença, alterando a causa de pedir".
Vejamos com mais pormenor.
2. Na petição inicial a autora alegou que, tendo sido celebrado um contrato de compra e venda a prestações entre a ré e a "C", esta veio, depois, a "ceder à autora a sua posição contratual, conforme documento que se junta (doc. nº 2)" (artigo 4º, a fls. 3).
A ré arguiu, logo na contestação, a ilegitimidade da autora para a acção, dizendo que a "C" não cedeu qualquer posição contratual à autora, constituindo o doc. nº 2 junto com a petição tão-só um contrato de cessão de créditos, que não confere legitimidade para pedir o reconhecimento judicial da resolução do contrato de compra e venda (fls. 49).
Replicando, a autora veio, então, alegar que a legitimidade lhe advém, e tem como fundamento, uma procuração irrevogável que a "C" emitiu a seu favor (fls. 73-74).
3. Sem questionarmos que a alteração da causa de pedir era permitida face ao disposto no artigo 273º, o que mais importa relevar, e reter, é que houve, de facto, alteração da causa de pedir.
Ao passo que no artigo 4º da petição inicial a autora invocara uma cessão da posição contratual (embora o doc. nº 2, para que aí se remetia, incorporasse um "contrato de cessão de créditos"), na réplica, após invocar uma procuração irrevogável emitida pela compradora a seu favor, rematou assim: "deste modo, a autora tem legitimidade para resolver o contrato de compra e venda a prestações efectuado, e de pedir o seu reconhecimento judicial" (artigo 5º, a fls. 64).
4. Como assim, apresenta-se como indispensável recordar o que na sentença de 1ª instância se ponderou, e decidiu, a propósito dessa questão da "ilegitimidade da autora", a saber:
- Constata-se dos docs. juntos que a Soc. "C" (a que fez o negócio com a ré) cedeu todos os créditos e todos os direitos referentes ao incumprimento do negócio à autora.
Diz o artigo 582º do Código Civil que, com a cessão de créditos, se transmitem todas as garantias e acessórios.
Portanto, a autora passou a ser sujeito da relação jurídica controvertida, pelo que improcede esta excepção" (fls. 90).
Se bem interpretamos este passo, dele flui, com clareza bastante, que a sentença fez radicar a legitimidade da autora na cessão de créditos - aliás, lida toda a sentença, constata-se que nenhuma referência nela é feita à procuração.

5. Contra o assim decidido, a ré reagiu apelando para o Tribunal da Relação, alegando e concluindo que o contrato de cessão de créditos não transmite ao cessionário o direito de resolução do contrato, direito que não faz parte das garantias e acessórios do crédito cedido, pelo que a autora não tem legitimidade para resolver o contrato celebrado entre a ré/apelante e a "C" (cfr. conclusões 1ª a 3ª, a fls. 100 v.).
Entendimento este que diverge, claramente, da tese defendida na 1ª instância, a ela se opondo sem margem para dúvidas.
5.1. E foi esse entendimento, vazado nas referidas conclusões, que veio a ser perfilhado pelo acórdão recorrido.
Como flui, com segurança, dos passos seguintes:
- "...na cessão de créditos não se transmite para o cessionário o direito de resolver o contrato donde nasceu o crédito cedido";
- "para a "A" (autora) apenas se transmitiu o crédito e as garantais do crédito";
- "...é óbvio que com base na cessão de créditos a "A" não tinha legitimidade para resolver o contrato de compra e venda e pedir o reconhecimento judicial dessa resolução".
Estes trechos não consentem se duvide que o acórdão, divergindo da sentença (que havia considerado, ao menos de forma implícita ou tácita, que o direito de resolução se transmitiu com a cessão), aceitou a tese da recorrente, considerando que, com base na cessão, a autora seria parte ilegítima.
5.2. Todavia, após afastar a legitimidade com esse fundamento - o único que a sentença recorrida ponderara -, o acórdão prosseguiu chamando a terreiro um outro, e diverso, fundamento - a procuração -, do qual fez derivar a legitimidade, que assentou nessa procuração junta aos autos, de fls. 66 a 72.
A propósito, ponderando:
"...há que reconhecer que a mesma conferia à "A" o poder de resolver o contrato de compra e venda a prestações celebrado com a ré, e à sombra dessa procuração lhe assistia legitimidade para pedir em juízo o reconhecimento judicial dessa resolução e que a ré fosse condenada a restituir-lhe o equipamento vendido".
Após o que, imediatamente, decidiu assim:
"Nestes termos e pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida".
Portanto, sentença confirmada, face aos termos expostos no acórdão.
Ou seja, a legitimidade da autora - com a consequente procedência da acção -, teve como fundamento (e causa de pedir), não o contrato de cessão de créditos, como entendera a 1ª instância, mas a procuração referida.
Ora, sobre esta procuração e sua relevância para a decisão, a recorrente não se havia pronunciado - nem tinha que o fazer, perante os termos em que a 1ª instância decidiu a questão.
IV
Face ao exposto, entendemos que o acórdão recorrido constitui uma decisão-surpresa, com violação do princípio do contraditório.
1. E não se diga, como faz o acórdão de 14.05.2002, que a recorrente poderia ter respondido à réplica em que a causa de pedir foi alterada, mediante apresentação de tréplica (artigo 503º, nº 1).
Como também não colhe argumentar-se com a possibilidade que ela teve de se pronunciar sobre a procuração junta com a réplica.
É necessário distinguir.
Com efeito, não é a sentença de 1ª instância que ora está em causa (esta, sim, poderia ter decidido a questão com fundamento na procuração sem que isso constituísse uma decisão-surpresa, face às possibilidades que a ré teve de sobre ela se pronunciar).
Porém, o que aqui se discute e aprecia é a questão de saber se o acórdão recorrido constitui ou não uma decisão-surpresa.
2. Ora, as considerações oportunamente desenvolvidas sobre a extensão actual do princípio do contraditório, conjugadas com as produzidas sobre o caso dos autos, permitem se conclua, fundadamente, pela afirmativa.
Ou seja, propendemos a entender que o acórdão não poderia ter decidido a questão da legitimidade com um fundamento frontalmente diverso e não ponderado, por qualquer forma, pela sentença de 1ª instância, sem antes ter convidado a recorrente a se pronunciar e tomar posição sobre essa questão de direito.
Em suma, o acórdão baseou a decisão num fundamento que não foi previamente considerado pela recorrente.
E, "dada a importância do contraditório, é indiscutível que a sua observância pelo tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa" (Miguel Teixeira de Sousa, "Estudos sobre o Novo Processo Civil", LEX, 1997, p. 48) - a omissão do convite às partes para tomarem posição, gera nulidade (José Lebre de Freitas, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, 1999, p. 9).

Termos em que se anula o acórdão recorrido e se determina que os autos voltem ao Tribunal da Relação de Lisboa, para que aí, se possível com intervenção dos mesmos Senhores Desembargadores, se dê cumprimento ao princípio do contraditório e, após, se proceda a julgamento.
Custas pela recorrida.

Lisboa 15 de Outubro de 2002
Ferreira Ramos,
Pinto Monteiro,
Lemos Triunfante.
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1 Leia-se, acórdão recorrido.