Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
138/09.9YFLSB
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: ESTABELECIMENTO COMERCIAL
JOGO DE FORTUNA E AZAR
CESSÃO DA EXPLORAÇÃO
ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
ERRO SOBRE OS MOTIVOS DO NEGÓCIO
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I- O erro que atinja os motivos determinantes da vontade também se  refere ao objecto do negócio quando está em causa o seu conteúdo (artigo 251.º do Código Civil).
II- Se o erro for incidental, ainda que não  essencial, pode haver lugar à redução do negócio  (artigo 292.º do Código Civil).
III- Não há erro sobre o objecto do negócio se as partes, quando contrataram a cedência de exploração do estabelecimento, aceitaram integrar nessa cedência, para além do mais estipulado,  a exploração de uma máquina de apostas desportivas sabendo que tal cessão desrespeitaria a intransmissibilidade acordada entre o cedente e a Santa Casa da Misericórdia.
IV- Nestas circunstâncias, inviabilizada a prestação por ter sido retirada a máquina do aludido estabelecimento pela Santa Casa, o cessionário pode reclamar a redução da prestação acordada (artigo 801º do Código Civil), constituindo já abuso do direito reclamar indemnização à parte contratante visto que o incumprimento do contrato fez-se com a sua conivência e em seu proveito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. José […] (e mulher...) que veio a ser julgada parte ilegítima logo no despacho saneador: fls.113) demandaram Manuel […] e mulher Maria […] deduzindo os seguintes pedidos:
a) Que seja anulado o contrato de cessão de exploração  a que se refere a escritura pública de 30-11-2000 lavrada no Cartório Notarial […] pela qual os RR cederam ao autor a exploração  de um estabelecimento comercial  de snack-bar e minimercado […].
b) Que seja declarado resolvido o invocado contrato de cessão de exploração.
Mas sempre:
c) Que sejam os réus  condenados a indemnizar o A. com a quantia de 400.000$00/mês desde 1-1-2001 (quando tomaram posse da invocada  exploração do estabelecimento comercial).
d) Que sejam os réus condenados a indemnizar os AA pela quantia paga na aquisição dos imóveis no valor de 1.930.000$00.
e) Que sejam condenados a restituir aos AA todos os cheques entregues, no acto da escritura, referentes ao primeiro ano de vigência do contrato.
f) Que sejam condenados a indemnizar os AA com a importância de 1.000.000$00 pelos danos morais sofridos.
Ou, se assim não se entender,
g) Que seja o preço das prestações reduzido para os valores invocados no item 56.º (50.000$00 no 1º ano, 60.000$00 no 2º ano; 70.000$00 no 3º ano; 80.000$00 no 4º ano;  90.000$00 no 5º ano. (Tinha sido estipulado que o prazo da exploração era de 5 anos com início no dia 1-1-2001 sendo o preço total de 8.400.000$00 com prestações mensais no 1º ano de 120.000$00, de 130.000$00 no 2º ano, de 140.000$00 no 3º ano, de 150.000$00 no 4º ano, de 160.000$00 no 5º ano.
h) E sempre condenados os réus a legalizar o estabelecimento comercial dado de exploração.
i) E condenados em indemnização a liquidar  em execução de sentença por todos os prejuízos  causados aos A.
j) E, finalmente, condenados a pagar aos AA juros à taxa legal sobre as importâncias que vierem a ser consideradas e nas quais sejam condenados desde a citação até efectivo pagamento.

2. O A. alegou que a máquina de exploração do totoloto fazia parte da cessão de exploração e que era elemento essencial para o bom funcionamento do estabelecimento quer pelo lucro que produzia, quer também porque, por via dela, ao mesmo tempo acorriam muitos clientes, sobretudo para tomar café e bebidas brancas, tendo sido a existência do totoloto aí autorizado e colocado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa o facto que determinou o A. a aceitar a cessão de exploração, facto, aliás, do conhecimento dos réus já que sem a máquina do totoloto o A. jamais celebraria o negócio, pois nele não tinha qualquer interesse.

3. Sucede que no dia 17-1-2001 a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa mandou os seus funcionários procederem ao levantamento da máquina de totoloto com a informação de que ela não podia ser explorada por outra pessoa que não fosse o seu titular e que este tinha perfeito conhecimento desta prerrogativa regulamentar da atribuição da máquina do totoloto.

4. Sustentou que o levantamento da máquina ficou a dever-se a culpa exclusiva dos réus, pois sabiam que não podiam fazer a sua cedência com o estabelecimento, facto que foi escondido aos AA.

5. A acção proposta por José […] foi julgada improcedente.

6. Refira-se que os RR Manuel […] e Maria […] por sua vez tinham demandado o A. (P. 552/2001 que foi julgado em conjunto com este P. 319/2001) e nessa acção, P. 552/2001, face ao não pagamento das prestações de Fevereiro a Junho de 2001 e face ao abandono definitivo das instalações por parte de José […] no dia 31-5-2001, abandono que levou aqueles a notificarem judicialmente este último em 21-6-2001 (notificação efectuada em 22-6-2001) declarando a resolução do contrato de cessão de exploração, foram deduzidos os seguintes pedidos:

- Que seja confirmada a resolução do contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial operada pelos AA Manuel […] e Maria […] em 22-7-2001 (por lapso, pois a data de notificação foi de 22-6-2001, como se sentenciou).
- Que seja o réu condenado a pagar aos AA a quantia de 16.050.000$00 a título de indemnização por danos morais e materiais e por não pagamento das prestações contratualmente fixadas acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.

7. Esta acção foi julgada parcialmente procedente, por provada nestes termos:

- Confirma-se a resolução do contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial celebrado por escritura pública no dia 30-11-2000, lavrada no Cartório Notarial […] incidente sobre um estabelecimento comercial […] levada a efeito pelos AA, declarando-se o mesmo resolvido a partir de 22-6-2001.
- Condena-se  o réu José […] a pagar aos AA, Manuel […] e mulher, Maria […] , o montante de 2.992,80€ (600.000$00) referente às rendas vencidas e não pagas até à data da resolução do contrato, ou seja, de Fevereiro a Junho de 2001.
- Condena-se o réu José […] a pagar aos AA, Manuel […] e mulher, Maria […], o montante que se vier a liquidar em execução de sentença, relativo à desvalorização do estabelecimento comercial.

8. Nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação José […] considera que o negócio celebrado é anulável por erro sobre os motivos (artigo 251.º do Código Civil) e alteração anormal das circunstâncias (437.º do Código Civil) considerando que a existência da máquina de totoloto era, para ele, essencial, o réu sabia-o perfeitamente, o desaparecimento da máquina provocou acentuada redução de clientela, situação economicamente insustentável que resultou de incumprimento dos referidos Manuel […] e Maria […]

9. O acórdão da Relação confirmou a decisão de 1ª instância, por remissão na parte não atinente à questão da alteração das respostas aos quesitos.

10. No recurso de revista interposto para o Supremo Tribunal o recorrente considerou que as instâncias interpretaram erradamente a cláusula quinta do contrato de cessão de exploração, que reza “o cessionário ficará responsável para com os cedentes por quaisquer prejuízos que a estes advenham do funcionamento ilegal do estabelecimento, cuja exploração é concedida por este contrato, bem assim como será responsável por indemnizar os cedentes se por culpa sua a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa vier a proceder ao levantamento da máquina de totoloto”.

11. É que, segundo o recorrente, as instâncias interpretaram a referida cláusula como se de um mero alerta, um aviso, uma chamada de atenção para os cessionários se tratasse, quando, ao invés, esta cláusula só pode querer dizer que os cedentes atribuíram um valor tal à máquina que fizeram constar que se ela fosse levantada por culpa dos cessionários, “ eles, estes, responderiam se ela fosse levantada por sua culpa”, verificando-se, porém,  que não foi por culpa dos cessionários que foi levantada.

12. Atentos os factos provados, alegam os recorrentes, “ as instâncias erraram rotundamente ao não responsabilizar os recorridos pelo erro em que mantiveram os recorrentes quando consideraram que esse facto não tem carácter de essencialidade para sancionar o contrato com a chancela da nulidade ou da anulabilidade”.

13. Incorreram, assim, as instâncias em violação dos artigos 342.º a 345.º e 799.º, 236.º, 237.º, 238.º, 251. e 437.º do Código Civil e 668.º/1, alíneas b), c) e d) do Código de Processo Civil

14. Factos provados:

1- Por escritura pública celebrada no dia 30-11-2000, lavrada no Cartório Notarial […] os réus deram de exploração a José […]  um estabelecimento comercial constituído por café, snack e minimercado […] (cf. fls. 9 a 13 dos autos) (A)
2- O referido estabelecimento encontra-se instalado no R/C do prédio urbano supra descrito do qual os réus são proprietários e nele residentes no 1º andar (B)
3- A cedência do estabelecimento foi feita com as seguintes cláusulas:
a) O prazo de exploração era de cinco anos, com início no dia 1 de Janeiro de 2001;
b) o preço total da exploração era  de 8.400.000$00, a pagar na residência dos réus, no primeiro dia útil do mês a que respeitar, sendo no primeiro ano em prestações mensais e iguais de Esc. 120.000$00; no segundo ano  de Esc. 130.000$00;  no terceiro ano de Esc. 140.000$00;  no quarto ano de Esc. 150.000$00 e no quinto ano de Esc. 160.000$00;
c) no início de cada ano o autor entregaria ao réu doze cheques, datados para o dia 1 de cada mês a que dissesse respeito (C).
4- Mais foi acordado  que o cessionário ficaria responsável para com os cedentes por quaisquer prejuízos que a estes adviessem do funcionamento ilegal do estabelecimento  cuja exploração foi cedida, bem assim como seria responsável por indemnizar os cedentes se por sua culpa a Santa Casa da Misericórdia viesse a levantar a máquina do totoloto (cf. cláusula quinta do dito contrato) (D).
5- No dia 12 de Julho de 1988 foi outorgado entre o réu Manuel […]  e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa o contrato n.º […]  por força do qual aquela instituição reconhecia o mesmo como agente oficial das Apostas Mútuas (doc. junto a fls. 69) (E).
6- Em consequência do mesmo contrato a Santa Casa instalou no estabelecimento uma máquina registadora dos boletins das apostas mútuas (F).
7- O movimento dos registos das apostas da Santa Casa foram efectuados pelo menos nos meses de Dezembro de 2000 e Janeiro de 2001 em nome de Manuel […]  (documentos juntos de fls. 70/77) (G).
8- No mês de Dezembro foram registados:
a) Referente ao concurso n.º 49/00 de 3-12-2000 a receita ilíquida de apostas no valor de 68.400$00 importando  a comissão na quantia de Esc. 4.788$00.
b) Referente ao concurso n.º 50/00 de 10-12-2000, a receita ilíquida de apostas no valor de Esc. 61.6000$00, importando a comissão na quantia de Esc. 4312$00.
c) Referente ao concurso n. º51/00 de 17-12-2000 a receita ilíquida de apostas no valor de Esc. 82.400$00 importando a comissão na quantia de 5.769$00.
d) Referente ao concurso n.º52/00 de 24-12-2000 a receita ilíquida de apostas no valor de Esc. 102.100$00, importando a comissão na quantia de 7.148$00.
e) Referente ao concurso n.º 53/00 de 31-12-2000 a receita líquida de apostas no valor de Esc. 98.550$00, importando a comissão na quantia de Esc. 6.8999$00 (H).
9- No mês de Janeiro de 2001 foram registados:
a) Referente ao concurso n.º 1/01 de 7-1-2001 a receita ilíquida de apostas no valor de Esc. 94.050$00, importando a comissão na quantia de Esc. 6584$00.
b) Referente ao concurso n.º 2/2001 de 14-1-2001 a receita ilíquida de apostas  no valor de Esc. 102.250$00, importando a comissão na quantia de 7.158$00.
c) Referente ao concurso n.º 3/01 de 21-1-2001 a receita líquida de apostas no valor de Esc. 5.700$00, importando a comissão na quantia de Esc. 399$00 (I).
10- Em 17-1-2001 a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa procedeu ao levantamento da máquina do totoloto (J).
11- O A. comunicou aos réus, por carta de 29-1-2001, que estaria disposto a aceitar uma modificação do contrato de exploração celebrado, nomeadamente reduzindo a prestação mensal para Esc. 80.000$00 até à recolocação da máquina de totoloto (conforme resulta de fls. 18 dos autos) (L).
12- Em 30-1-2001 o A enviou uma carta à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa requerendo a entrega da máquina de registo do totoloto (cf. doc. junto a fls. 23) (M).
13- A Câmara Municipal […]   emitiu a favor do réu, em 25 de Novembro de 1986, licença para a exploração do estabelecimento em causa, de café e snack-bar (cf. doc. junto a fls. 78) (N).
14- A Câmara Municipal […]  emitiu, em Janeiro de 2001, a favor do autor, José […] , autorização para abrir o estabelecimento às 6 horas da manhã e para encerramento às 4 horas da manhã (cf. doc. junto a fls. 80) (O).
15- No dia 21 de Junho de 2001 os RR requereram ao tribunal judicial […]  a notificação judicial avulsa do autor para a declaração de resolução do contrato de cessão de exploração outorgado no dia 30 de Novembro de 2000, no Cartório Notarial […] , cujo objecto  é um estabelecimento comercial composto por café, snack-bar e minimercado, instalado no R/C do prédio urbano […] (cf. doc. junto a fls. 84 e seguintes)(P).
16- No dia 22-6-20001 o autor foi notificado pessoalmente da declaração de resolução do contrato de cessão de exploração por parte dos réus (cf. doc. junto a fls. 91) (Q).
17- Os réus em 16 de Agosto de 2001 propuseram contra o autor acção declarativa de condenação sob a forma ordinária, na qual peticionam:
a) Confirmar-se a resolução do contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial, operada pelos réus em 22-7-2001.
b) Condenar-se o réu a pagar aos AA a quantia de 16.050.000$00 a título de indemnização por danos morais e materiais e por não pagamento das prestações contratualmente fixadas  acrescida de juros legais  desde a citação até integral pagamento (doc. junto a fls. 92 e seguintes) (R).
18- Manuel […]  e Maria […]  são proprietários de um prédio urbano, destinado a habitação e comércio […]  (al. A) do P. 552/01).
19- Os mesmos são também proprietários de um estabelecimento comercial, composto por café , snack-bar e minimercado, instalado no R/C do prédio urbano referido em A) do P. 552/01.
20- José […]  iniciou a exploração do referido estabelecimento comercial em 1-1-2001 e cessou a exploração em 31-5-2001 tendo neste dia, após as 17 horas, desligado o quadro de energia eléctrica do estabelecimento e, depois de ter retirado os produtos consumíveis, objectos e móveis do mesmo, encerrou as portas do R/C do prédio urbano de Manuel […]  e Elvira […] onde se encontrava instalado o dito estabelecimento (alíneas F) e M) do P. 5552/01).
21- José […]  não pagou  a Manuel […]  e mulher a importância de 600.000$00 correspondente  às prestações de Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2001 (alínea G) do P. 552/2001).
22- No dia 12 de Julho de 1988 foi outorgado entre Manuel […]  e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa  o contrato n.º […]  por força do qual aquela instituição reconhecia o mesmo como agente oficial das Apostas Mútuas tendo, em consequência, sido instalado no estabelecimento  uma máquina registadora dos boletins das apostas mútuas (alínea H) do P. 552/2001).
23- No dia 21-6-2001 Manuel […]  e Maria […]  requereram no Tribunal Judicial […]  a notificação judicial avulsa de José […]  através  da qual declararam resolvido o contrato de cessão de exploração em causa nestes autos tendo sido este último notificado pessoalmente da declaração de resolução (alíneas N) e O) do P. 552/2001).
24- No dia 22-6-2991 os referidos José […]  e Maria […] , após notificação ao réu da resolução do contrato, abriram o R/C do seu prédio  urbano onde se encontrava  instalado o referido estabelecimento comercial (alínea P) do P. 552/2001).
25- O trespasse do estabelecimento comercial cedido ao José […]  valia cerca de 20.000.000$00 (alínea Q) do P. 552/2001).
26- O estabelecimento em causa tinha muita clientela, funcionando no mesmo telefone público, agência de cobrança de energia eléctrica e venda de gás (alínea R) do P. 552/2001).
Do P. 319/01
27- A existência da máquina de totoloto referida em F) foi um factor relevante para que o A. celebrasse o contrato mencionado em A) (1).
28- Sem essa máquina de totoloto, o A. não teria celebrado o negócio pelos valores por que o fez [Perguntava-se: sem a máquina de totoloto os AA não celebrariam o negócio?] (Q 17 aditado).
29- Atento o lucro que tal máquina produzia bem como o facto de, por via dela, acorrerem clientes ao estabelecimento sobretudo para tomar café e bebidas brancas (2) [Não se provou que acorressem muitos clientes ao café]
30- O A. teve conhecimento de que toda a actividade de registo de totolotos não era transmissível e teria de continuar a ser exercida em nome de Manuel […] , o qual sabia que a máquina não poderia ser transmitida (quesito 18 aditado).
31- O movimento dos registos das apostas da Santa Casa eram efectuadas em nome de Manuel […] ( quesito 19 aditado).
32- O A iniciou a exploração do estabelecimento em 1 de Dezembro de 2000 (quesito 21 aditado a fls. 438)[Nota: matéria de facto em contradição com a referida em 20 supra; prevalecerá a matéria acordada que não invalida o facto de se aceitar que foram realizados actos de exploração anteriormente, como flui de 33].
33- Durante o mês de Dezembro José […]  procedeu ao registo de totolotos em nome de Manuel […]  e Maria […] com o fez em Janeiro de 2001 e como anteriormente havia feito o anterior cessionário (quesito 22 aditado).
34- O depósito das quantias e das comissões de lucro eram processados em nome de Manuel […] (quesito 25 aditado).
35- O A. viu reduzida a clientela do estabelecimento em virtude do referido em J) (5) [Não se provou que a redução da clientela fosse para cerca de 40% a 50%] (5).
36- O estabelecimento em causa não possui saneamento próprio (6).
37- O estabelecimento não tem uma correcta instalação e energia eléctrica pois parte está ligada a um contador e outra parte ignora-se de onde vem (8).
38- As botijas de gás estão colocadas sob a escada do prédio dos réus por fora do estabelecimento (9).
39- O réu marido fez ameaças ao A., designadamente afirmando que, se ele não saísse de sua casa, o matava (11).
40- O A. sentiu receio de que o réu consumasse essas ameaças (12).
41 - Em virtude da cessão de exploração efectuada, o A. teve de comprar ao anterior explorador do estabelecimento os móveis que lá se encontravam no valor total de 1.930.000$00 (cf. fls. 30  e 31 dos autos) (13).
42- O A paga a conta referente à energia eléctrica e ao serviço de TV cabo consumidos no estabelecimento (15).
43- O A. encerrou  o estabelecimento em causa em 31-5-201, fechando as portas do mesmo ao público (16).

Do P. 522/01

44- Após ter encerrado  o estabelecimento, o que ocorreu em 31 de Maio de 201, o A. não mais abriu as portas ao público (Q1).
45- Tendo a partir de então começado a popular na freguesia que o café e minimercado havia fechado (Q2).
46- Pelo que os clientes daquele estabelecimento começaram a frequentar outros do mesmo género existentes na mesma freguesia (Q3).
47- No dia 22 de Junho de 2001  Manuel […]e Maria […]  encontraram o estabelecimento sujo e com maus cheiros (Q4).
48- A pintura das paredes e do tecto apresentava uma deterioração normal e decorrente da utilização do imóvel (Q5).
49- Os quartos de banho encontravam-se sujos (Q6).
50- Em virtude do encerramento do estabelecimento comercial levado a efeito por José […] , sofreu desvalorização que não foi possível quantificar em concreto (Q7).
51- O estado de deterioração em que a pintura se encontrava tornava necessário que se procedesse  a nova pintura (Q10).
52- Os factos referidos em 23 e 24 assumiram relevância na decisão de José […]  sair do estabelecimento (Q15).

Apreciando:

15. O litígio suscitado nos presentes autos prende-se com a questão de saber se a existência no estabelecimento dado em exploração de uma máquina de totoloto constituiu elemento fulcral e determinante da adesão do cessionário  em negociar, tornando-se economicamente insustentável o negócio, tudo devido à culpa, senão ao dolo, com que o cedente agiu.

16. Ora a este propósito importa atentar nos seguintes factos:

4. No contrato de cessão de exploração faz-se uma referência à máquina de totoloto considerando-se que o cessionário seria responsável perante o cedente se, por culpa sua, a máquina fosse levantada do estabelecimento pela Santa Casa da Misericórdia.

Corolário desta estipulação:

a)  as partes pressupuseram que a máquina de totoloto integraria o estabelecimento cedido em exploração;
b) as partes consideraram que o levantamento da máquina por culpa dos cessionários importaria a responsabilidade destes para com os cedentes;
c) as partes pressupuseram que a máquina permaneceria no estabelecimento durante o contrato salvo se, por culpa imputável a alguma delas, fosse retirada pela Santa Casa da Misericórdia;
d) atribuíram as partes relevo à existência no estabelecimento da máquina de totoloto.

5- O cedente era agente oficial de apostas mútuas desde 12-7-1988.
7- O movimento do registo das apostas era, efectuado em nome do cedente Manuel […].
8 e 9- Os ganhos auferidos com comissões somou 28.916$00 em Dezembro 2000 e 14.141$00 em Janeiro de 2001.
10-A máquina foi levantada pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em 17-1-2001.
11- O A. em 29-1-2001 pretendia uma modificação do contrato com redução da sua prestação para 80.000$00 até recolocação da máquina de totoloto, reduzindo-se a essa quantia o estipulado de 120.000$00 mensais para o primeiro ano, de 130.000$00 mensais para o segundo ano, de 140.000$00 mensais para o terceiro ano, de 150.000$0 mensais para o quarto ano e de 160.000$00 mensais para o  quinto ano.
21 e 3b)- O cessionário não pagou as prestações de Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2001 no montante de 600.000$00 que se venciam no primeiro dia útil do mês a que respeitassem.
26- O estabelecimento tinha muita clientela funcionando no mesmo telefone público, agência de cobrança de energia eléctrica e venda de gás.
27, 28 e 35- A  máquina de totoloto foi um factor relevante para que o A. celebrasse o contrato de cessão de exploração e, sem essa máquina, não o teria celebrado pelos valores por que o fez, verificando-se redução de clientela com o levantamento da máquina de totoloto.
30, 31 e 33- O A. José sabia que toda a actividade de registo de totolotos não era transmissível, tendo de continuar a ser exercida em nome do cedente da exploração, o que este fez até ao levantamento da máquina, como já tinha feito com o anterior cessionário.

17. Não se provou que a máquina constituísse elemento fulcral e determinante - essencial - da adesão do cessionário em negociar, não se provou que o negócio se tornasse, por isso, economicamente insustentável e finalmente não se provou que o cedente tivesse actuado iludindo o cessionário quanto à natureza do direito de exploração das apostas mútuas desportivas: o cedente agiu com o actual cessionário tal como havia agido com o anterior, ou seja, procedendo em seu nome ao registo de totolotos, assegurando, assim, àquele o proveito do negócio, embora ambos soubessem que a actividade de registo de totolotos não era transmissível.

18. Houve redução de clientela por causa do levantamento da máquina do totoloto, a existência da máquina foi um factor relevante para a contratação, pois, se ela não existisse, o contrato não teria sido celebrado pelos valores indicados.

19. Não se vê que o caso se subsuma ao disposto no artigo 252.º /1 do Código Civil. Prevê esta disposição “ o erro que recaia nos motivos determinantes da vontade, mas não se refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio” prescrevendo que “ só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo”.

20. Ora, como salienta Mota Pinto, “ só é relevante o erro essencial, isto é, aquele que levou o errante a concluir o negócio em si mesmo não apenas  nos termos em que foi concluído. O erro foi causa ( é indiferente tratar-se de uma situação  de causalidade única ou de concausalidade) da celebração do negócio e não apenas dos seus termos” (Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, pág. 507). Verifica-se que, no caso, o erro, a existir, nunca seria essencial, pois, embora a máquina de totoloto fosse factor relevante de celebração do contrato de cessão de exploração, o cessionário, se ela não existisse, não o teria celebrado nos termos em que o fez, mas por outros valores.

21. Não se pode considerar que houve erro sobre o objecto do negócio com o argumento de que as partes não representaram o objecto do negócio em termos exactamente coincidentes com a realidade visto que todos tinham em vista que a máquina de totoloto se integrava na exploração do estabelecimento, sabendo que a actividade de registos das apostas constituía uma actividade intransmissível que tinha de ser exercida em nome do cedente do estabelecimento. Não houve, nesta medida, nenhum erro na formação da vontade: as partes negociaram a cedência da exploração do estabelecimento com a máquina do totoloto com a consciência de que o exercício da sua actividade cabia ao cedente que, por isso, teria necessariamente de cooperar com o cessionário. No momento do negócio, a máquina existia e a actividade de totoloto era exercida e produzia ganhos.

22. No entanto, e como já se referiu anteriormente, as partes, quando contrataram, pressupuseram que o negócio se manteria nos seus precisos termos, ou seja, que, salvo culpa de alguma delas, prosseguiria sempre naquele estabelecimento o exercício da actividade de apostas mútuas desportivas.

23. A pressuposição constitui figura próxima do erro e caracteriza-se “ como a convicção por parte do declarante, decisiva para a sua vontade de efectuar o negócio, de que certa circunstância se verificara no futuro ou de que se manterá um certo estado de coisas” (Mota Pinto, loc. cit, pág. 505).

24. Ora, de acordo com o disposto no artigo 251.º do Código Civil “ o  erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º”

25. No caso vertente, porém, não houve nenhuma falsa representação do âmbito em si do objecto negocial, mas o assumir do risco de que o presente estado de coisas - a exploração da máquina de totoloto - prosseguiria sem qualquer impedimento, e em conformidade com o que cedente e cessionário estipularam, na esperança de que não houvesse interferência da Santa Casa da Misericórdia por não aceitar esta entidade que o exercício da actividade de exploração de apostas mútuas prosseguisse em estabelecimento explorado por pessoa diferente do seu agente.

26. As partes consideraram, portanto, que o contrato de cedência de exploração do estabelecimento tinha por objecto mediato o direito de exploração das apostas mútuas desportivas pelo cessionário em violação da intransmissibilidade contratada entre cedente e Santa Casa.

27. O erro sobre o objecto tem uma grande amplitude, “ uma vez que a palavra objecto está aqui a ser utilizada, tal como no artigo 280.º, no sentido amplo que abrange o objecto propriamente dito e ainda o conteúdo. A desconformidade que caracteriza o erro sobre a percepção do autor e a realidade , tanto pode ter a ver com o quid sobre o qual incide o negócio, como sobre o seu conteúdo, isto é, sobre o seu regime jurídico” (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2008, 5ª edição, pág. 660).

28. Por isso, no caso vertente, seria aplicável ao caso o disposto no artigo 251.º do Código Civil se o cessionário desconhecesse a dita intransmissibilidade.

29. A existir erro do cessionário não seria este essencial, mas incidental visto que, como se provou,  ele propunha-se manter o negócio, embora noutras condições.

30. Entende-se que “ o erro incidental  não será, todavia, irrelevante: o negócio deverá fazer-se valer nos termos em que teria sido concluído sem o erro. Deverá, porém, ter lugar a anulabilidade quando se não possa ajuizar desses termos com segurança, ou pelo menos, com bastante probabilidade e, ainda, quando se prove que a outra parte os não teria acolhido (artigo 292.º, sobre a redução dos negócios jurídicos)(Mota Pinto, loc. cit, pág. 508).

31. Ora se no caso de erro, porque o cedente nem sequer recusou a redução proposta, seria justificada uma redução dos valores mensais, por maioria de razão essa redução se justifica quando as partes sabiam que estavam a negociar desrespeitando uma obrigação contratual, o que levou à impossibilidade de realização dessa prestação por parte do cedente (artigo 802.º do Código Civil)

32.  Neste caso pode o credor reduzir a sua contraprestação, considerando-se razoável uma redução de 40.000$00 mensais para o primeiro ano do contrato, o que leva a considerar-se em dívida por aqueles cinco meses a quantia de 400.000$00,ou seja, 1.995,19€.

33. Não há lugar a anulação do contrato como pretendia o recorrente, mas tão somente à sua redução, sendo certo que da aludida cláusula não poderia resultar indemnização alguma a favor do A. visto que, sob pena de manifesto exercício abusivo do direito, não pode ele querer tirar acrescido proveito de um incumprimento para o qual contribuiu e do qual chegou a obter ganhos. O seu interesse, aliás, como expressamente manifestou, não era o de resolver o contrato, mas mantê-lo, embora em termos diferentes. Esta sua pretensão nesta estrita medida merece tutela.

34. Não incorreu o acórdão nas invocadas nulidades pois tratou o que de novo tinha de tratar, remetendo, em sede de direito, para a decisão proferida pela 1ª instância.

Concluindo:
 
I- O erro que atinja os motivos determinantes da vontade também se  refere ao objecto do negócio quando está em causa o seu conteúdo (artigo 251.º do Código Civil).
II- Se o erro for incidental, ainda que não  essencial, pode haver lugar à redução do negócio  (artigo 292.º do Código Civil).
III- Não há erro sobre o objecto do negócio se as partes, quando contrataram a cedência de exploração do estabelecimento, aceitaram integrar nessa cedência, para além do mais estipulado,  a exploração de uma máquina de apostas desportivas sabendo que tal cessão desrespeitaria a intransmissibilidade acordada entre o cedente e a Santa Casa da Misericórdia.
IV- Nestas circunstâncias, inviabilizada a prestação por ter sido retirada a máquina do aludido estabelecimento pela Santa Casa, o cessionário pode reclamar a redução da prestação acordada (artigo 801º do Código Civil), constituindo já abuso do direito reclamar indemnização à parte contratante visto que o incumprimento do contrato fez-se com a sua conivência e em seu proveito.
 
Decisão: concede-se parcial provimento ao recurso condenando-se José […]  a pagar a Manuel […] e mulher, Maria[…] , o montante de 400.000$00, ou seja, 1.995,19€ (400.000$00) referente às rendas vencidas e não pagas até à data da resolução do resolução do contrato por parte daqueles, ou seja, de Fevereiro a Junho de 2001, mantendo-se em tudo o mais a decisão proferida.

Custas pelo A e réus na medida deste decaimento

Lisboa, 16 de Junho de 2009
 
Salazar Casanova (relator)
Azevedo Ramos
Silva Salazar