Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
188/07.0TBMCD.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BETENCOURT DE FARIA
Descritores: BASE INSTRUTÓRIA
VISTOS
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I – Não são sindicáveis as razões pelas quais o Desembargador Adjunto entendeu dispensar o visto.

II – O Supremo Tribunal de Justiça apenas pode fazer a alteração normativa da matéria de facto, nunca a podendo julgar por convicção.

III – Se, num ponto da base instrutória se pergunta se determinado evento teve lugar numa certa data, não pode ser respondido que o teve noutra, porque, deste modo, se está a responder a matéria qualitativamente diversa da perguntada.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
REFER – Rede Ferroviária Nacional EP moveu a presente acção com processo ordinário contra ... – Tratamento e Limpezas Ambientais SA, pedindo que a ré fose condenada a pagar-lhe a quantia de € 106.585,00, acrescida dos respectivos juros legais desde a citação.
Em resumo alega que a ré, sem a sua autorização, apropriou-se de material sua pertença, que atinge o valor peticionado.
A ré contestou impugnando os factos e excepcionando a prescrição, uma vez que, segundo alega, a autora teria conhecimento dos factos que veio invocar, pelo menos, desde 13.01.04 sendo que a presente acção só foi interposta em Abril de 2007, logo, portanto depois de decorrido o prazo prescricional de 3 anos.
Replicou a autora dizendo que só teve conhecimento dos factos em 17.04.04.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar à autora a quantia de 105.000,00, acrescida de juros legais desde a citação.
Apelou a ré, tendo o Tribunal da Relação do Porto, alterado a matéria de facto e, consequentemente, dando por provado o decurso do prazo prescricional de 3 anos, absolvido a ré do pedido.
Recorre, agora, a autora, a qual, nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese as seguintes conclusões:

1 Desconhece-se a razão da dispensa do visto de um dos Adjuntos.
2 A Relação fundou a sua alteração das respostas aos quesitos em meio de prova ilegal, pois tratavam-se de documentos, juntos com as alegações que não eram documentos supervenientes.
3 As respostas aos quesitos 1º e 5º da base instrutória dadas em 1ª instância, atenta a prova produzida, são de manter.
4 Bem como a resposta ao quesito 4º.
5 Pelo que deve ser mantida a sentença de 1ª instância.
6 Quando assim se não entenda, deverá ser ordenada a repetição dos meios de prova.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.


II
Em 1ª instância deram-se por provados os seguintes factos:

1 A autora Rede Ferroviária Nacional EP é uma pessoa de direito público, que tem por objecto principal a prestação do serviço público de gestão da infrastrutura integrante da rede ferroviária nacional, fazendo parte do seu património, designadamente, os carris da linha férrea, respectivas travessas de suporte e material de ligação e ligação.
2 A presente acção foi instaurada em 11.04.07.
3 A ré ... – Tratamento e Limpezas Ambientais SA levantou do local de Barrical, freguesia de Salselas, Macedo de Cavaleiros (antiga linha férrea do Tua) 3.690 m lineares de carril e 5.275 travessas de madeira e respectivo material de ligação e fixação.
4 E procedeu ao carregamento e transporte desses materiais para a sua sede.
5 O perguntado em 1º e 2º foi efectuado contra a vontade da autora.
6 A autora teve conhecimento do sucedido em 17.04.04.
7 O material assinalado em 1º tem o valor de € 105.000,00.
8 No âmbito das relações comerciais entre a autora e a ré esta chegou a adquirir material de sucata à autora.

Na Relação acabou por se fixar a matéria de facto alterando-a do seguinte modo:

1 ...
2 ...
3 A ré ... – Tratamento e Limpezas Ambientais SA levantou do local de Barrical, freguesia de Salsedas, Macedo de Cavaleiros (antiga linha férrea do Tua) quantidade indeterminada de carril.
4 ...
5 ...
6 A autora teve conhecimento do sucedido pelo menos em Fevereiro de 2004.
7 (não provado).
8 ...


III
Apreciando

1 Levanta a recorrente a questão da dispensa do visto por parte de um dos Desembargadores Adjuntos não ter sido fundamentada.
A verdade é que não o tem de ser. E compreende-se porquê. Trata-se de um acto pessoal do foro íntimo, o de se saber que não se precisa de ter vista dos autos para sobre os mesmos se ter uma opinião formada. Assim não é possível sindicar tal acto processual.
Fala o artº 707º nº 2 do C.P.Civil como pressuposto desta dispensa a natureza das questões a decidir ou a necessidade de celeridade no julgamento do recurso. No caso não vemos que de forma relevante ocorressem qualquer destas razões. Mas poderiam existir, pois estamos no campo da boa diligência na gestão processual que apenas os próprios julgadores podem apreciar.
Com o que improcede esta conclusão do recurso.




2 A outra questão colocada pela recorrente é a da alteração das respostas aos quesitos 1º e 5º (pontos 3 e 7 do elenco dos factos provados em 1ª instância) , ou seja, o não dar por assente nem a quantidade nem o valor do material de que a ré se apropriou.
Não estando aqui em questão nem a imposição normativa da necessidade de algum meio de prova, nem a sua força probatória plena, não pode este STJ reapreciar essa alteração. Recorde-se que, partindo do princípio de que apenas as instâncias julgam a matéria de facto por convicção, a lei unicamente reservou ao Supremo a possibilidade de fixar normativamente os factos, ou seja, decidindo, como se disse, se estiver em causa a necessidade de algum meio de prova específico, ou a prova plena que dele advier- cf. os artºs 722º e 726º do C. P. Civil - .
Nem a eventual ilegalidade da junção de certos documentos seria relevante, uma vez que a prova que deles poderia decorrer não foi, só por si, o fundamento da convicção da 2ª instância. Aliás, como se alcança no acórdão em apreço, a base da alteração das respostas aos quesitos foram os depoimentos testemunhais – cf- fls. 789 e 790 - . Estamos, portanto, ainda dentro da liberdade de convicção das instâncias que agora não pode ser reapreciada.
Logo, improcede a pretensão da recorrente de manter as repostas aos quesitos 1º e 5º dadas em 1ª instância..

3 Questão diferente é a da resposta ao quesito 4º (ponto 6 do elenco dos factos provados em 1ª instância). Aqui levanta-se uma questão de direito.
A ré na sua contestação levantou a questão da prescrição do crédito peticionado por terem decorrido mais de três anos na data de propositura da acção – 10.04.07 – contados a partir daquela em que a autora tivera conhecimento dos factos causadores do crédito que invoca. E indicou esta última data como sendo a de 13.01.04. Na réplica, confirmando o que alegara na petição inicial a autora referiu que apenas tomara conhecimento dos factos em 17.04.04.
Deste modo foram quesitadas estas duas datas. Em 1ª instância foi dada por provada a de Abril (quesito 4º) e não a de Janeiro (quesito 12º). Ficava, pois, demonstrado o não decurso do prazo prescricional de 3 anos.
O Tribunal da Relação, mantendo a resposta de não provada para o quesito 12º, respondeu ao quesito 4º da seguinte forma:
“Provado que a autora teve conhecimento do sucedido pelo menos em Fevereiro de 2004.”
Em termos quantitativos a resposta ao quesito pode abarcar uma realidade quantitativamente menor que o perguntado, mas deste não pode divergir qualitativamente, ou seja, não pode englobar realidades que não constem da pergunta.
No caso vertente, o que se pretendia saber era se a autora tivera conhecimento do sucedido em Abril. Nada mais. Se o Tribunal se convencia de que tivera conhecimento em Fevereiro, a única resposta possível era a de “não provado”. A resposta dada pela 2ª instância é, por isso qualitativamente diversa do perguntado e, logo, não podia ter sido sido dada essa mesma resposta..
Aliás, se assim não fosse, chegaríamos ao absurdo de que um facto invocado pela autora em benefício da sua tese da não prescrição funcionaria em termos de prova contra essa mesma tese.
Note-se que o que relevava era a prova pela ré da data que indicou como sendo aquela em que a autora tivera conhecimento do sucedido, a de 13.01.04, uma vez que tinha ela o ónus de provar os factos integrantes da excepção da prescrição que invocara. Se a não provasse a dita excepção não podia proceder. Daí que fosse mais pertinente tratar do referido conhecimento dos factos pela autora em Fevereiro a propósito da resposta ao quesito 12º, em que era perguntado o citado conhecimento em 13.01.04 e foi respondido “não provado”. Mas também na resposta ao artº 12º não era possível consignar que tal conhecimento era de Fevereiro. Como atrás se consignou para a resposta ao quesito 4º, seria uma resposta qualitativamente diversa, versando matéria que não se integra no facto temporal de que se pretende saber. Seria também uma infracção o princípio do dispositivo segundo o qual o tribunal unicamente pode dar relevância aos factos principais alegados pelas partes. Se a parte “arriscou” uma data, o ónus é seu de a demonstrar e a eventual carência de prova não pode ser suprida pelo tribunal, fazendo apelo a uma outra que não integra o elenco dos factos que as partes puseram em discussão.
Deste modo, as respostas aos quesitos 4º e 12º apenas podiam ser as de “provado” ou de “não provado” (ou de provado apenas que foi em Abril ou em Janeiro). Assim, a resposta ao quesito 4º é deficiente por a lei a não admitir. E tem de se considerar como não escrita.
Quanto à questão da prescrição resta-nos, pois, a resposta negativa ao quesito 12º, que o mesmo é dizer que a ré não conseguiu provar, como lhe competia o decurso do prazo prescricional.
Temos, assim, que se prova que a ré apropriou-se de diverso material contra a vontade da sua dona, a autora. Praticou deste modo um acto ilícito que a faz incorrer em responsabilidade civil extracontratual, com a consequente obrigação de indemnizar os prejuízos daí advindos à autora, a qual aqui peticiona os danos patrimoniais correspondentes ao valor do material desviado. E com razão.


Termos em que procede o recurso.


Pelo exposto, acordam em conceder a revista, revogam o acórdão recorrido e condenam a ré a pagar à autora a quantia que se vier posteriormente a apurar até ao montante de € 106.585,00, com os correspondentes juros de mora legais a partir do momento em que o crédito de tornar líquido.



Custas pela recorrida.



Lisboa, 14 de Janeiro de 2010

Bettencourt de Faria (Relator)
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos