Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1410/17.0T8STR.E1.S1-A
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL)
Decisão: NÃO SE ADMITE O RECURSO DA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I- Para que exista um conflito jurisprudencial, susceptível de ser dirimido através do recurso extraordinário previsto no art. 688º do CPC, é indispensável que as soluções jurídicas, acolhidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, assentem numa mesma base normativa, correspondendo a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito.

II- No caso dos autos, não se verifica uma efectiva contradição de acórdãos, designadamente, em função da conformação objectiva da instância subjacente a cada uma das acções (pedido e causa de pedir) e da distinta matéria de facto subjacente a cada uma das decisões com efeitos na respectiva pronúncia decisória.

III- Com efeito, enquanto no acórdão recorrido se discute, em termos probatórios, a falta de colaboração dos réus, nos termos do artº 417º, nº 2 do CPC, por não terem juntado documento relativo ao pagamento do preço da compra de um lote de terreno, nem terem comparecido à audiência de julgamento para prestação de depoimento de parte, no acórdão fundamento aprecia-se a falta de colaboração do réu, nos termos do artº 519º, nº 2 do CPC anterior (417º, nº 2 do actual), na realização dos exames hematológicos.

IV- A valoração dos interesses em causa nos dois arestos são substancialmente diversos. No acórdão recorrido esgrimem-se interesses patrimoniais relacionadas com a compra e venda, enquanto, no acórdão fundamento militam interesses de índole pessoal relacionados com o direito ao reconhecimento da identidade genética do investigante consagrado no artº 26º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa.

V- Nesta conformidade, por não se verificarem os respectivos pressupostos, não se admite o recurso para uniformização de jurisprudência.

 

Decisão Texto Integral:
          

       

Processo nº 1410/17.0T8STR.E1.S1-A, 6ª Secção

     

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça.

       

I-Relatório:

AA e mulher BB, notificados do acórdão deste STJ, proferido nos autos supra referidos, viram interpor recurso para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça com vista à uniformização de jurisprudência, nos termos dos arts. 688.º e seguintes do Código de Processo Civil, invocando, como fundamento, a contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão deste STJ, proferido em 23/02/2012, no processo 994/06.2TBVFR.P1.S1 (acórdão fundamento), tendo formulado as seguintes conclusões:

“A. Vem o presente recurso de uniformização de jurisprudência no seguimento

da contradição existentes entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento melhor identificado no corpo das alegações;

B. No acórdão recorrido os senhores Conselheiros tiveram o entendimento de

que a notificação aos réus a fim de prestarem depoimento de parte na audiência de julgamento, não necessita de ser feita com qualquer cominação, uma vez que a lei não impõe que a notificação aos réus seja feita com a “expressa advertência” de que a falta de comparência injustificada na audiência final para prestarem depoimento de parte, implicaria a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344, n.º 2, do C. C., e de que nada ressalta a este respeito dos artigos 417.º, n.º 2 e 452.º e 344.º, n.º 2 e 357, n.º 2, do C. C;

C. Por sua vez, o acórdão fundamento, anteriormente proferido por este douto tribunal do STJ a 23/2/2012, nos autos de acção declarativa que correu termos sob o processo n.º 994/06.2TBVFR.P1.S1, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, expressamente defendeu que a falta de cooperação por parte do réu, implicando em princípio, a inversão do ónus da prova, mas que tendo em conta as consequências decisivas para a decisão da causa resultante da injustificada recusa em comparecer, impõe-se a notificação do réu com a respectiva cominação, pois o réu tinha de conhecer quais seriam as consequências processuais dos seus actos;

D. A questão aqui em causa foi colocada no seguimento da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que considerou que, pelo facto de “os réus se terem recusado a colaborar com o tribunal no apuramento da matéria de facto, como resulta do despacho consignado em acta de audiência final (fls. 19 e 120), tal motivou e determinou a inversão do ónus da prova nos termos do artigo 417.º, n.º 2 do CPC e 344.º, n.º2 do CC;

E. A decisão da primeira instância foi revogada pelo tribunal da Relação de Évora, após recurso intentado pelos réus, por terem entendido os Senhores Desembargadores que, “a falta dos réus, sem justificação, à audiência final, notificados sem essa expressa advertência, não justifica, a inversão do ónus da prova, certo que o comportamento dos réus não pode sem mais, consubstanciar uma violação do princípio da cooperação em sentido material, nem determinou culposamente a impossibilidade da prova do facto àquele que incumbia. Não é caso da aplicação da sanção gravosa, como seja a inversão do ónus da prova nos termos do artigo 344.º, n.º 2 do C.C. sem justificação à audiência final, sem que os réus tivessem sido notificados com essa expressa advertência;

F. O acórdão recorrido, perfilhou um entendimento diferente do acórdão da Relação, contudo, a questão continuou a manter-se a mesma, como seja, saber se poderia ou não haver inversão do ónus da prova, ou se, pelo contrário, para haver inversão do ónus da prova, teria de haver prévia notificação dos réus com as cominações dos seus actos;

G. A questão colocada aos senhores Conselheiros no acórdão fundamento foi saber se a simples recusa injustificada acarretaria a violação do dever de cooperação, previsto no então artigo 519.º do CPC, actualmente no artigo 417.º do CPC, e se essa violação levaria ou não á inversão do ónus da prova, questões e posições assumidas pela autora naquele processo;

H. Os senhores Conselheiros no acórdão fundamento, expressamente consideraram que “O citado art.º 344º, no seu nº 2 determina que, quando a parte tiver tornado culposamente impossível a prova ao onerado, há a inversão do ónus da prova, contudo, como o réu foi notificado sem qualquer cominação não pode haver inversão do ónus da prova;

I. Consideraram, assim os senhores Conselheiros no acórdão fundamento, que tendo em conta as consequências decisivas para a decisão da causa resultante da injustificada recusa em comparecer – a inversão do ónus da prova – impõe-se a notificação do réu com a respectiva cominação.

J. Dada a divergência de entendimentos, a questão que aqui ora se coloca é de saber se o tribunal antes de fazer operar o princípio da inversão do ónus da prova deve, ou não, notificar previamente a parte sujeita a esse princípio, designadamente notificá-la de que o não acatamento da notificação a que for sujeito, por si só, importa a inversão do ónus da prova, ou se, pelo contrário, como foi defendido no acórdão fundamento a parte deve ser notificada com a advertência de que a recusa injustificada em comparecer implica a inversão do ónus da prova nos termos do art.º 344º nº 2 do C. Civil;

K. Resulta assim que para situações semelhantes o tribunal teve entendimentos divergentes, num protegendo o princípio de que as partes não podem ser surpreendidas com decisões surpresa e no outro fazendo tábua rasa do teor das notificações, baseando-se na interpretação literal dos artigos 417.º, n.º 2 do CPC e 344.º, n.º 2 do CC;

L. No sentido defendido pelo acórdão fundamento têm sido proferidas várias decisões, entre eles, os acórdãos da Relação de Coimbra de 18/05/2010, do STJ de 23/2/2012 e 12/04/2018 e Ac. RG de 20/10/2016, todos disponibilizados in www.dgsi.pt; e o acórdão proveniente da 2.ª Secção, proferido a 12/04/2018, e que poderia também servir de fundamento não fosse a imposição legal de apenas se apresentar um único acórdão, acórdão cujo sumário se pode ler, ”Tendo em conta as consequências decisivas da inversão do ónus da prova para a decisão da causa, impõe-se que a notificação efectuada à parte para proceder à junção de documentos seja acompanhada da advertência de que a sua recusa injustificada implica a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344.º, n.º 2, do CC”;

M. Não tendo o acórdão recorrido ordenado que fosse efectuada nova notificação com a expressa advertência, e ao ter decidido que estavam preenchidos os pressupostos para concluir pela recusa em depor e ou violação do princípio da colaboração decidiu em sentido contrário ao que foi decidido no acórdão fundamento e, por isso, existem dois entendimentos diferentes quanto à interpretação e aplicação de normas legais, artigos 417.º, n.º 2 (anterior 519.º) do CPC e 344.º, n.º 2 do CC;

N. A divergência de interpretação e aplicação das indicadas normas é fundamental e levou a que fossem proferidas decisões contraditórias pelo mesmo Supremo Tribunal de Justiça - no douto Acórdão recorrido e no douto Acórdão fundamento;

O. O acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido, tendo ambos os acórdãos transitado em julgado;

P. Em ambos os acórdãos há uma interpretação e aplicação contraditória, entre si, dos artigos 417.º, n.º 2 (anterior 519.º) do CPC e 344.º, n.º 2 do CC;

Q. Encontrando-se o douto Acórdão recorrido e o Acórdão Fundamento em contradição quanto à interpretação e aplicação do artigos 417.º, n.º 2 (anterior 519.º) do CPC e 344.º, n.º 2 do CC, deve ser este recurso admitido e deve o Pleno das Secções proferir Acórdão Uniformizador que determine qual a interpretação que deve ser feita das indicadas normas quando as partes não são notificadas com a advertência das consequências, designadamente, com a menção expressa de que a recusa injustificada implica a inversão do ónus da prova nos termos e para os efeitos do artigo 344, n.º 2, do C.C;

R. Contradição que importa sanar e que sobre a mesma seja proferido acórdão uniformizador a fim de evitar decisões contrárias para situações semelhantes, e assim contribuir para uma melhor aplicação do direito;

S. A decisão do acórdão fundamento parece-nos a mais correcta e por isso, deve ser fixada jurisprudência que determine que a notificação às partes quando está em causa a violação do dever de colaboração ínsito no artigo 417.º, n.º 2, do CPC e que poderá importar a inversão do ónus da prova previsto no artigo 344.º, n.º 2 do C. C., deve ser feita a advertências das consequências, designadamente, com a menção expressa de que a recusa injustificada implica a inversão do ónus da prova nos termos e para os efeitos do artigo 344, n.º 2, do C.C;”

Por despacho do ora Relator o recurso não foi admitido, com fundamento na inexistência dos pressupostos necessários para a sua admissibilidade.

Deste despacho vieram os recorrentes requerer que sobre ele recaia um acórdão, em conferência.

Os recorridos não se pronunciaram.

   

II- Cumpre decidir:

No despacho do Relator exarou-se a seguinte fundamentação:

«Dispõe-se no artigo 688.º, n.º 1, do CPC que “As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”.

Segundo ABRANTES GERALDES[1], o recurso (extraordinário) para uniformização de jurisprudência assenta em determinados vectores fundamentais.

Estes encontram-se bem sintetizados no sumário do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 2.10.2014, Proc. 268/03.0TBVPA.P2.S1-A[2], onde se diz:

1. Para que exista um conflito jurisprudencial, susceptível de ser dirimido através do recurso extraordinário previsto no art. 688º do CPC, é indispensável que as soluções jurídicas, acolhidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, assentem numa mesma base normativa, correspondendo a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito.

2. O preenchimento deste requisito supõe que as soluções alegadamente em conflito:

- correspondem a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental: implica isto, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica, não integrando contradição ou oposição de acórdãos o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respectiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados;

- têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto;

- a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto – não relevando os casos em que se traduzam mero obter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica”.

Vejamos quais são as questões de que se ocuparam os acórdãos em confronto e como foram respondidas.

No acórdão recorrido, o quadro factual é o seguinte:

Está em causa a celebração de um contrato de compra e venda de um lote de terreno, celebrado entre as partes, por escritura pública, discutindo-se se o respectivo preço foi efectivamente pago, conforme declaração exarada pela vendedora nesse documento notarial.

A autora defende que, apesar ter declarado o seu recebimento, o preço não foi efectivamente pago. Por sua vez, os réus alegam ter efectuado esse pagamento.

No decurso da instrução (por despacho de fls. 79) os réus foram notificados para juntar aos autos suporte documental do pagamento do preço declarado na escritura. O certo é que os réus não juntaram qualquer documento nem deram explicação por não terem cumprido a notificação ordenada pelo tribunal de 1ª instância.

Por outro lado, apesar de devidamente notificados para comparecerem na audiência final a fim de prestarem depoimento de parte, os réus não compareceram, nem deram qualquer justificação (despacho de fls 119 e 120).

Ora, foi precisamente com base nestes dois comportamentos por parte dos réus  (não junção de documento do pagamento e a falta de comparência na audiência para prestação de depoimento de parte) que o Tribunal de 1ª instância inverteu o ónus da prova ao abrigo do disposto no art° 417º, n° 2 do CPC e 344º, n° 2 do CC.

Decisão inteiramente acolhida no acórdão recorrido, por se ter entendido que a apreciação conjunta destes dois elementos factuais consubstanciadores da falta de colaboração por parte dos réus foi decisiva para a inversão do ónus da prova, conforme fundamentação nele exarada e que aqui se reproduz:

Esta falta injustificada de comparência na audiência final, bem como a não apresentação do documento comprovativo do pagamento, sem qualquer justificação, traduzem factos que terão de ser valorados como comportamento não colaborante que justifica a inversão do ónus da prova. Com efeito, os RR., que sempre alegaram ter efectuado o pagamento do preço, teriam uma forma fácil e expedita de fazer essa prova, juntando o documento comprovativo, ou comparecendo na audiência final esclarecendo o meio e o modo como tal pagamento foi realizado.

Todavia, não optaram pela via da colaboração com o Tribunal na descoberta da verdade, adoptando um comportamento omissivo, que deve equiparado a recusa para efeitos de aplicação do regime previsto no artº 417º, nº 2 do CPC”.

Mais se exarou no acórdão que “a lei não impõe que a notificação seja feita com a “expressa advertência” de que a falta de comparência injustificada na audiência final, implicaria a inversão do ónus da prova, nos termos do artº 344º, nº 2 do CC. Com efeito, nada ressalta a tal respeito dos arts. 417º, nº 2, e 452º do CPC e 344, nº 2 e 357º, nº 2 do CC.

A decisão de inversão do ónus da prova está dependente da livre apreciação que o julgador faz ex post facto (isto é, depois da produção de prova em julgamento), designadamente sobre a necessidade de recorrer, ou não, ao sobredito mecanismo legal de inversão do ónus da prova”.

No acórdão fundamento o quadro factual é o seguinte:

Trata-se de uma acção de investigação de paternidade, no decurso da qual o investigado faltou, por diversas vezes, à realização dos exames hematológicos. Estava em causa, para além do mais, a questão de saber se, numa acção de investigação da paternidade, o investigado impedir, culposamente, a recolha de material biológico, impossibilitando, assim, a realização dos testes de ADN, ocorre a inversão do ónus da prova. Neste acórdão, entendeu-se que o réu deveria ser notificado para a realização dos exames hematológicos com a expressa cominação de que a recusa injustificada em comparecer implicaria a inversão do ónus da prova nos termos do artº 344º, nº 2 do CPC, tendo-se determinada a baixa dos autos para este efeito.

Defendem os recorrentes que existe oposição de acórdãos que justificam o recurso para o pleno das secções cíveis, nos termos do art 688º do CPC, porquanto no acórdão recorrido decidiu-se inverter o ónus da prova sem que as respectivas notificações tenham sido efectuadas com essa expressa cominação, enquanto no acórdão fundamento se decidiu que a notificação com essa cominação seria necessária para operar a referida inversão.

 Analisados os acórdãos em confronto, afigura-se-nos que não se verificam os pressupostos da pretendida uniformização com base na apontada contradição.

 Resulta, desde logo, que não se verifica uma efectiva contradição de acórdãos, designadamente, em função da conformação objectiva da instância subjacente a cada uma das acções (pedido e causa de pedir) e da distinta matéria de facto subjacente a cada uma das decisões com efeitos na respectiva pronúncia decisória.

Com efeito, enquanto no acórdão recorrido se discute, em termos probatórios, a falta de colaboração dos réus, nos termos do artº 417º, nº 2 do CPC, por não terem juntado documento relativo ao pagamento do preço da compra de um lote de terreno, nem terem comparecido à audiência de julgamento para prestação de depoimento de parte, no acórdão fundamento aprecia-se a falta de colaboração do réu, nos termos do artº 519º, nº 2 do CPC anterior (417º, nº 2 do actual), na realização dos exames hematológicos.

Perante o enquadramento dos elementos descritivos e distintivos dos processos subjacentes à prolação dos acórdãos em confronto, desde logo, se indicia que não existe identidade no que concerne aos pedidos formulados e à tutela jurisdicional almejada, com prejuízo para o preenchimento do elemento de identidade necessário ao reconhecimento da oposição.

A valoração dos interesses em causa nos dois arestos são substancialmente diversos. No acórdão recorrido esgrimem-se interesses patrimoniais relacionadas com a compra e venda, enquanto, no acórdão fundamento militam interesses de índole pessoal relacionados com o direito ao reconhecimento da identidade genética do investigante consagrado no artº 26º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa.

Por outro lado, também não existe qualquer identidade entre a finalidade das notificações (com ou sem a expressa cominação) entre os dois arestos, que determinaram a inversão do ónus da prova. Com efeito, enquanto no acórdão se recorrido as notificações se reportam à junção do documento comprovativo do pagamento do preço e ao comparecimento dos réus na audiência de julgamento para prestação de depoimento de parte, no acórdão fundamento a notificação tem como objectivo a realização de exames hematológicos por parte do réu para apuramento da paternidade biológica da autora.

Deste modo, os acórdãos em confronto têm na sua base situações materiais e factuais que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – não são análogas ou equiparáveis, porquanto não existe uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto.

Circunstância que é impeditiva da necessária identidade que deve presidir ao reconhecimento da contradição.

Ora, conforme refere Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª Edição, pág. 490), “a natureza extraordinária do recurso [para uniformização de jurisprudência] e o facto de visar a impugnação de um acórdão do Supremo impõem, naturalmente, que se deva ser rigoroso tanto no cumprimento dos requisitos materiais e formais, como na verificação desse cumprimento. A natureza “extraordinária” do recurso justifica que seja reservado para situações que inequivocamente preencham os pressupostos legais, com especial destaque para a verificação de uma verdadeira contradição jurídica essencial e para a demonstração do acórdão fundamento”.

No caso presente, como se viu, esse preenchimento inequívoco dos pressupostos legais de admissibilidade deste recurso extraordinário, em especial a contradição jurídica sobre a mesma questão fundamental de direito não se verifica, pelo que o recurso em causa é legalmente inadmissível».

Não se vislumbram motivos para discordar do despacho do Relator.

 Com efeito, como se refere nesse despacho, não se verifica uma efectiva e real contradição de acórdãos, designadamente, em função da conformação objectiva da instância subjacente a cada uma das acções (pedido e causa de pedir) e da distinta matéria de facto subjacente a cada uma das decisões com efeitos na respectiva pronúncia decisória. Não existindo também identidade no que respeita aos pedidos formulados e à tutela jurisdicional almejada, com natural prejuízo para o preenchimento do elemento de identidade necessário ao reconhecimento da oposição de acórdãos.

III- Decisão:

Pelo exposto, por não se verificarem os respectivos pressupostos, não se admite o recurso para uniformização de jurisprudência.

 

Custas pelos Recorrentes

Lisboa, 13 de Outubro de 2020

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Ana Paula Boularot

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 471-477.

[2] Disponível em www.dgsi.pt.