Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3241
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: ABUSO DE DIREITO
VENDA EXECUTIVA
ARRENDAMENTO
Nº do Documento: SJ200610310032411
Data do Acordão: 10/31/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : À luz do art. 824º do CC, o contrato de arrendamento é considerado como um verdadeiro ónus em relação ao prédio.
Daí que, vendido o prédio em sede executiva, o contrato de arrendamento celebrado depois da constituição de hipoteca e da penhora caduque automaticamente.
O simples facto de só passados oitos após a aquisição a A., adquirente do prédio onerado com o arrendamento, ter vindo a juízo fazer valer os seus direitos em nada colide com o instituto do abuso de direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I -

Empresa-A, SA.. intentou, no tribunal judicial da Covilhã, acção ordinária contra
Empresa-B, e AA, pedindo a condenação dos RR. a :
- Reconhecerem-na como dona e legítima proprietária do prédio urbano, constituído por uma casa de alvenaria e betão armado, destinado à indústria têxtil, composto de rés-do-chão, 1° e 2° andares e logradouro, sito na Estrada Nacional 230, lugar da Califórnia, freguesia da Conceição, concelho da Covilhã, descrito na Conservatória do registo Predial da Covilhã sob o n° 34632, a fls. 88 do Livro B-91 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 1341º e condenados a entregá-lo completamente livre e devoluto de pessoas e bens;
- Pagarem-lhe, em regime de solidariedade e a título de indemnização pelos danos causados, a importância de 42.893.832 $00, calculada até 30.06.2000 e, ainda, a contar desta data, na importância correspondente à remuneração do capital investido na aquisição, às taxas por ela praticadas nos empréstimos para habitação própria, até à efectiva entrega do imóvel e a liquidar em execução de sentença, e à taxa de juro legal a contar da entrega do imóvel, sobre o montante indemnizatório fixado, até efectivo pagamento; ou
- A pagarem-lhe, em regime de solidariedade a título de indemnização pelos danos causados, a importância de 35.894.222$00, calculada até 30.06.2000, e, ainda, a contar desta última data, no montante mensal de 414.117$00, correspondente ao valor da última renda fixada, até à entrega efectiva do imóvel, com actualizações anuais às taxas fixadas legalmente para as rendas livres, a liquidar em execução de sentença, e à taxa de juro legal sobre o montante total da indemnização até ao efectivo pagamento; ou
- A pagarem-lhe, em regime de solidariedade a título de indemnização, a importância de 39.165.164$00, correspondente aos juros calculados à taxa legal sobre a importância aplicada na aquisição do imóvel, contados desde a data da aquisição até 30.06.2000, e juros vincendos à mesma taxa até integral pagamento.

Em síntese, alegou que
- Tendo adquirido o imóvel por arrematação em hasta pública, em 25.3.92, num processo executivo por ela movido contra os seus proprietários, tentou entrar na sua posse, não o conseguindo dado que o mesmo estar ocupado pelos RR.;
- O imóvel foi arrendado pelos anteriores proprietários a BB, tendo este sublocado uma parte a CC e DD;
- Mais tarde, BB trespassou a CC o estabelecimento de fotografia e com tal negócio passou este a ocupar todo o imóvel (cfr. art. 32º da petição) e este, por sua vez, trespassou o estabelecimento comercial à 2ª R.;
- O 1º R. ocupa parte da 2ª cave do prédio por alegadamente lhe ter sido sublocada por BB (cfr. art. 33º da petição).
- O 1º arrendamento é nulo, quer por vício de forma, falta de escritura pública, quer por ter sido celebrado para uma finalidade diversa daquela para que estava o prédio licenciado, quer por ser um negócio simulado, em termos absolutos, quer com base no abuso de direito, pois estando o imóvel hipotecado a seu favor, a desproporção da renda acordada para o valor objectivo do arrendamento, atenta contra os seus direitos, sendo certo que os proprietários em momento algum referiram que existia qualquer contrato sobre o prédio,
- O contrato celebrado por escritura pública, que repristina a data do início até à daquele celebrado por escrito particular, é ineficaz em relação si, por celebrado depois do registo da penhora a seu favor, para além de ser, igualmente, nulo, por abuso de direito, pela mesma razão, ligada à desproporção da renda contratada e da resultante do mercado real e objectivo, sendo, em consequência, igualmente, ineficazes e nulos, todos os contratos decorrentes deste, incluindo aqueles celebrados com os RR., sendo por isso, estes obrigados a indemniza-la pelo prejuízo derivado, das ocupações abusivas do imóvel.

Ambos os RR. contestaram, por impugnação e por excepção, defendendo a improcedência da acção.

Na réplica, a A. contrariou a defesa excepcional dos RR.

Seguiu-se a fase de saneamento, com transferência para final do conhecimento da excepção da prescrição, e de selecção de factos provados e a provar.

Após julgamento, o Mº juiz de Círculo da Covilhã proferiu sentença, julgando a acção parcialmente procedente e, como consequência, condenou os RR. a reconhecerem a A. como dona e legítima proprietária do prédio reivindicado e condenou os RR. a entregarem o mesmo àquela, completamente livre e devoluto de pessoas e bens, absolvendo-os do mais peticionado.

Com esta decisão não se conformaram ambos os RR. que apelaram para o Tribunal da Relação de Coimbra, mas este confirmou o julgado.

Novamente inconformados, ambos recorreram para este Supremo Tribunal, pedindo revista, tendo, para o efeito, produzido as respectivas alegações que remataram do seguinte modo:

a) Recorrente Curto

1- Atenta a causa de pedir e os pedidos formulados nos autos pela Recorrida, não pode proceder a condenação proferida nos autos, ou seja, entrega por parte do recorrente do locado face à caducidade do contrato de subarrendamento, já que tal condenação extravasa de forma manifesta os pedidos solicitados pela recorrida, existindo assim uma clara e manifesta violação do principio do dispositivo e da estabilidade da instância inserta nos artigos 264, 268 e 460 contidos no C.P.C, sendo assim a sentença proferida na 1ª instância e na sua sequência o Acórdão recorrido - que confirma tal sentença - nula nos termos do disposto no art. 668 n°1, al. e) do C.P.C.

SEM PRESCINDIR

2- Tal conforme resulta da matéria factual dada como provada, a recorrida que era credora hipotecária, adquiriu o prédio por meio de arrematação em hasta publica, adquirindo assim o direito de propriedade sobre o prédio hipotecado.

3- Tal facto não determina a caducidade dos contratos de arrendamento que tinham sido celebrados validamente e pelo anterior proprietários, bem como a autorização da recorrida, que estava em vigor à data da referida hasta publica.

4- Tais contratos de arrendamento apesar de terem sido celebrados em data posterior ao registo da hipoteca e com a autorização da recorrida, contudo produziram efeitos, em data anterior ao registo da penhora efectuada pela recorrida e na sequência da acção executiva que interpôs contra o anterior proprietário do prédio.

5- Tal facto, não determina a caducidade dos contratos de arrendamento celebrados validamente pelo anterior proprietário e com a autorização da recorrida, e que estavam em vigor à data da referida hasta publica, já que sendo os contratos de arrendamento de natureza obrigacional não caduca nos termos do artigo 824 n°2 do C.P.C, sendo certo que a caducidade do contrato de arrendamento apenas se verifica nos casos em que a própria lei o prevê (artigo 1051 C. Civil) sendo certo que e face ao disposto no art. 1057º do C.C. é estabelecido o regime de transmissão, razão pela qual e com a venda judicial a posição assumida pelo anterior proprietário nos contratos de arrendamento é transmitida para a recorrida, razão pela qual não tem acolhimento a posição defendida pelo Exm° Juiz a quo.

6- Por outro lado e contrariamente ao indicado no acórdão recorrido, que aliás reconhece que a situação sub iudice é controversa, os contratos de arrendamento também não caducam em virtude de a penhora ter sido registada em data anterior à celebração dos contratos de arrendamento, já que e para além dos contratos de arrendamento, já estarem em vigor à data do registo da penhora, também é certo que os arrendatários eram terceiros no preferido processo executivo.

7- Ora a penhora do prédio arrendado não ofende o seu gozo pelo arrendatário, não afectando a validade dos actos praticados em relação a terceiros, não sendo assim frustrada a expectativa dos credores, nomeadamente da recorrida, que aliás tinha conhecimento da existência dos arrendatários do prédio, pelo que os contratos de arrendamento não caducaram com a venda do prédio na acção executiva, pelo que e por tal motivo não merece assim acolhimento a posição defendida no Acórdão recorrido.

SEM PRESCINDIR

8- Na eventualidade de se considerar que os contratos de arrendamento caducaram por força da venda judicial do prédio - o que se contesta pelas razões supra mencionadas - também se dirá e contrariamente ao indicado no Acórdão recorrido, que os contratos de arrendamento foram renovados nos termos do disposto no art. 1056º do CC, em virtude de a recorrida ter de forma clara e expressa reconhecido os arrendatários do prédio, nomeadamente o ora recorrente, já que e durante pelo menos 8 anos recebeu as rendas e não se opôs que o recorrente estivesse a exercer a sua actividade comercial no locado, situação esta que aliás ainda hoje ocorre, razão pela qual e por tal motivo ainda estão em vigor os mencionados contratos de arrendamento nomeadamente o celebrado com o recorrente.

SEM PRESCINDIR

9- Diga-se por fim e contrariamente ao indicado na sentença da 1ª instância, bem como no Acórdão recorrido, e atento aos factos dados como provados, é manifestamente ABUSIVA a pretensão deduzida nos autos pela recorrida, pois o pedido deduzido nos autos e relativo à entrega do locado por parte nomeadamente do recorrente, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, já que tinha pelo menos desde 1992 conhecimento da existência dos arrendamentos, conformando-se que os arrendatários exercem suas actividades comerciais, recebendo as rendas, bem como tendo inclusive aquando da arrematação em hasta publica do prédio proposto um preço de forma que os arrendatários e atento ao seu valor, não pudessem exercer os seus direitos de preferência na sequência de informação que para o efeitos receberam da Repartição de Finanças do concelho da Covilhã, razão pela qual a pretensão de recorrida deve assim ser apreciada nos termos do disposto no art. 334º do CC, com as consequências daí decorrentes.

10- Do exposto resulta ainda que, decidindo como se decidiu, ou seja na condenação do recorrente na desocupação e entrega do locado na sentença proferida pelo Juiz da 1ª instância e tendo o acórdão recorrido mantido tal decisão, certo resulta que o Acórdão recorrido realizou uma errada interpretação e aplicação da lei e do direito substantivo e adjectivo, com clara violação ao disposto nos artigos 8º, 9º, 10º, 334º, 824º n°2, 1022º, 1023º, 1051º, 1054º e 1056º todos do CC e artigos 264º, 265º, 268º, 467º, nº 1 al. d) e e), 660º, 661º e 668º do CPC, devendo assim ser dado provimento à presente REVISTA, revogando-se o Acórdão recorrido e a sentença da 1ª instância, substituindo-se por outro que absolva a recorrente do pedido.

B) - Recorrente Empresa-B
1 - É nula a sentença na parte em que condena os R.R. a verem reconhecida a caducidade dos contratos de arrendamento e, por via disso, na desocupação e entrega do prédio à A., quando esta não alegou nem pediu a condenação dos R.R. no reconhecimento da caducidade dos contratos.
2 - O princípio dispositivo e os limites da condenação por lei impostos obstam a que o Tribunal conheça da eventual caducidade dos contratos de arrendamento decorrente da aquisição do direito de propriedade sobre o prédio pela credora hipotecária celebrados em data posterior ao registo da hipoteca e anterior à venda do prédio em hasta pública, quando esta, na qualidade de A., não alega a caducidade dos contratos nem pede a condenação dos R.R. no reconhecimento da caducidade pelos indicados motivos.
3 - Para que o Tribunal possa conhecer do mérito da causa e condenar os R.R. na desocupação do prédio e consequente entrega do mesmo à A., quando está reconhecida a existência e validade de contratos de arrendamento sobre o prédio e a qualidade de arrendatários dos R.R. à data da respectiva venda por arrematação em hasta pública, é necessário que a A. alegue, prove e peça o reconhecimento da caducidade dos contratos.
4 - O direito ao arrendamento resulta do contrato de arrendamento, tal contrato tem natureza obrigacional, embora possa ter efeitos de natureza real, como por exemplo, os atinentes ao gozo e à defesa da posse, é um contrato típico e encontra-se regulado nos arts. 1022° e ss do CC e no RAU. É um contrato fortemente vinculístico, o que tem especial incidência sobre a estabilidade do arrendatário (prorrogação automática do contrato, estabilidade da renda, limitação dos casos de denúncia e de resolução pelo locador e fixação dos casos de caducidade). As causas de caducidade do arrendamento são as taxativamente previstas no art. 1051° do CC, e nelas não se inclui a venda judicial do prédio em processo executivo. Mas, ainda, que se considere que as causas de caducidade do art. 1051° do CC não são taxativas, não há razão para aplicar por analogia ao arrendamento a disposição do art. 824° n° 2 do CC, prevista para a realização coactiva da prestação.
5 - Quando ocorre transmissão da posição do locador, o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo (art. 1057° do C.C.), o que significa que o arrendamento não caduca.

6 - A disposição do art. 824° nº 2 do CC diz quais são as consequências da venda em execução, não diz que o direito ao arrendamento do prédio penhorado caduca pela sua venda em processo executivo, mesmo que o adquirente seja o exequente, garantido por hipoteca registada antes do arrendamento.

7 - A inoponibilidade do arrendamento à execução só existe se ele foi constituído depois da penhora (art. 819° do CC), não foi caso nos presentes autos, e não quando foi constituído depois da hipoteca mas antes da penhora, como foi aqui o caso.

8 - Não obstante a caducidade do arrendamento, se o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano sem oposição do locador, o contrato considera-se renovado nas condições do art. 1054° do CC, pelo que, in casu, ainda que resistisse a tese da caducidade, ficou provado que os RR. se mantiveram no gozo do locado, não tendo a A. alegado nem provado - como lhe competia - que deduziu oposição aos contratos no ano subsequente à verificação da causa da eventual caducidade, pelo que se consideram renovados os contratos.

9 - Constitui abuso do direito a pretensão deduzida judicialmente pela A. em 2000, no sentido da condenação dos R.R. na desocupação e entrega do prédio, quando teve conhecimento da existência dos arrendamentos pelo menos em 1992, conformando-se com a prática dos actos dos arrendatários inerentes à normal exploração dos estabelecimentos instalados no edifício (fotografia, laboratório, discoteca e decoração), aí depositando mercadorias, recebendo clientes e fornecedores, pagando renda que é depositada em agência da AA..

10 - A A. incorre em abuso de direito e é portanto ilegítimo o seu exercício porquanto excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito, já que não agiu com a diligência, zelo e lealdade correspondentes aos legítimos interesses da contraparte, não teve uma conduta diligente e conscienciosa, que obstasse à criação de legítimas expectativas por parte dos R.R. e ao prejuízo que advêm da inércia que se prolongou por mais de oito anos.

11 - Não obstante não ter sido suscitado o abuso de direito em 1ª instância pela Recorrente, este pode ser apreciado em sede de recurso, pois é de conhecimento oficioso quando está em causa um princípio de interesse e de ordem pública.

12 - Decidindo como decidiu - ou seja, confirmando a sentença recorrida e julgando improcedente a Apelação - o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação da lei e do direito substantivo e adjectivo, violando o disposto nos artigos 8°, 9°, 10°, 334°, 824°, n° 2, 1022°, 1023°, 1051°, 1054° e 1056° do CC e artigos 264°, 265°, 268°, 467°, n° l, als. d) e e), 660°, 661° e 668° do CPC, devendo ser dado provimento ao recurso e tal decisão recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que absolva a R. do pedido (na parte em que ainda o não foi).

Contra-alegou a recorrida em defesa da manutenção do acórdão impugnado.

II -

As instâncias deram como provada a seguinte factualidade:

1. A A. é proprietária do prédio urbano, constituído por uma casa de alvenaria e betão armado, composta de rés-do-chão, primeiro e segundo andares e logradouro, sito na Estrada Nacional número 230, no lugar da Califórnia, freguesia da Conceição, desta cidade, descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o número 34632, fls. 88 Livro H-91, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 1.341.
2. Na Conservatória do Registo Predial o prédio encontra-se destinado à industria têxtil.
3. Tal prédio foi adquirido em arrematação em hasta pública por 40.500.000$00, no dia 25 de Março de 1992, no âmbito da Carta Precatória número 35/91, extraída do processo de execução fiscal número 4897/83, do antigo 7° Juízo do Tribunal Tributário de 1ª instância das Contribuições e Impostos de Lisboa em que foi exequente a A. e executados EE e mulher.
4. Para garantia de um empréstimo de 6.800.000$00, respectivos juros e despesas, os antigos proprietários do imóvel referido, constituíram sobre o mesmo uma hipoteca a favor da A. registada pela inscrição 10.041, do Livro C-17.
5. A A. intentou contra EE e mulher a acção executiva que correu antigo 7° juízo do Tribunal Tributário de 1ª instância de Lisboa, onde teve o n.° 4897/83.
6. Para citação dos executados, penhora e venda da garantia do empréstimo foi expedida para a Repartição de Finanças da Covilhã a Carta Precatória n° 35/91.
7. Como os executados não pagaram a dívida exequenda, a Repartição de Finanças da Covilhã procedeu à penhora do dito imóvel, em 20 de Março de 1984.

8. A penhora foi registada na Conservatória do Registo Predial da Covilhã em 26 de Março de 1984, através da inscrição 17.346 do Livro F-21.

9. O aludido BB e os antigos proprietários assinaram um documento particular que intitularam "contrato de arrendamento comercial", onde, no que aqui interessa, ficou consignado:

a) O arrendamento foi feito por 5 anos, com início em 1 de Março de 1984, com renovações sucessivas por iguais períodos;

b) A renda mensal foi de 20.000$00;

c) Foi paga, naquela data, adiantadamente as rendas de 5 anos;

d) Foi autorizada a sublocação da totalidade ou parte do edifício, com aviso prévio aos senhorios;

e) O arrendamento destinava-se a todos os ramos de negócio, designadamente a Laboratórios de Fotografia, Discoteca Pub, confecções e oficinas de máquina, à excepção de agência funerária.
10. Fizeram constar ainda que a data da celebração do contrato foi o dia 25 de Fevereiro de 1984.
11. Em 24 de Novembro de 1986, os antigos proprietários e o identificado BB celebraram um contrato de arrendamento, por escritura pública, no Cartório Notarial de Almeida, onde ficaram convencionadas, entre outras, as seguintes condições:
a) O prazo foi de cinco anos, com início em 1 de Março de 1984, supondo-se sucessivamente renovado por iguais períodos;
b) A renda mensal foi de 20.000$00 mês;
c) Foi dada quitação das rendas vincendas até 20 de Fevereiro de 1989;
d) Foi autorizada a sublocação total ou parcial do imóvel;
e) Foi autorizado que o arrendatário cobrasse do sublocatário valores superiores ao da renda, afastando, assim, o regime previsto no art. 1062° do CC;
f) O destino do locado ficou a ser o de fins fabris.
12. Por escritura outorgada no dia 21 de Janeiro de 1987, também no Cartório Notarial de Almeida, o BB fez um contrato de sublocação com CC e DD, ambos solteiros, maiores, em que se clausulou:
a) objecto da sublocação: 3° pavimento, correspondente ao rés-do-chão do imóvel descrito em A);
b) fim - fabris;
c) o valor da renda foi de 30.000$00 mensais, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1987.
13. Na mesma escritura ficou igualmente consignado que a renda passaria para 100.000$00 logo que o espaço sublocado fosse trespassado.
14. Por escritura outorgada em 24 de Janeiro de 1989, no 14º Cartório Notarial de Lisboa, o identificado BB trespassou, pelo valor de 3.000.000$00, a CC o estabelecimento "constituído por laboratório de fotografia", instalado no prédio urbano aludido em A).
15. Após o aludido trespasse o CC passou a ocupar todo o prédio, já que o trespassante era também arrendatário de todo ele, porém, parte do imóvel mencionado, mais propriamente a 2ª cave, era ocupada pelo R. AA.
16. Por transacção judicial no processo de posse judicial avulsa que correu termos neste Tribunal com o nº 164/89, o referido AA e o BB acordaram que o objecto da sublocação era o piso inferior (23 cave) e o montante da renda mensal era de 30.000$00.
17. Por escritura celebrada no 17° Cartório Notarial de Lisboa, o CC Alves trespassou à 1ª R. o estabelecimento constituído por laboratório de fotografia instalado no prédio reivindicado, sendo a 1ª R. representada nessa escritura pelo antigo proprietário, o EE.
18. São actualmente ocupantes do prédio aludido, os ora RR., facto que o A. conhecia na data da arrematação aludida.
19. Os RR. foram notificados pela Repartição de Finanças da Covilhã, para o exercício do seu direito de preferência aquando da venda judicial por meio de propostas em carta fechada, na qual estiveram presentes.
20. Em Fevereiro de 1984, a renda, de mercado, mensal do prédio aludido em A) dos factos assentes, seria o equivalente a € 600.00.
21. Em Novembro de 1986, a renda, de mercado, mensal do prédio aludido em A) dos factos assentes, seria o equivalente a € 765.00.

22. Em 18 de Setembro de 1987, o antigo proprietário EE enviou à A. a carta junta a fls. 77 e 78 e na qual lhe propôs "a dação em pagamento" do imóvel aludido, bem como do descrito sob o n° 35.626.
23. Por contrato verbal o R. AA celebrou, em 1982, com o aludido EE um subarrendamento do 2° pavimento correspondente à 1.B cave, para o exercício de actividade de armazém.
24. O referido BB celebrou com o R. AA, no ano de 1987, um contrato de subarrendamento relativo ao 3° pavimento do prédio aludido em A), correspondente à 2.B cave, para o exercício da actividade de armazém, produzindo efeitos no dia 02.05, por um prazo de um ano, renovável por iguais períodos de tempo.
25. Tendo ainda acordado que o R. AA ocuparia uma pequena parte do 2° pavimento, correspondente à cave e pelo período de 6 meses.
26. O anterior proprietário autorizou o exercício de outros ramos de actividade no prédio aludido.
27. Aí tendo sido instalados, efectivamente, estabelecimentos de fotografia, laboratório, discoteca e decoração que aí têm desenvolvido a sua actividade desde há mais de 15 anos e até ao presente.
28. No qual deposita suas mercadorias relacionadas com a sua actividade comercial.
29. Aí recebendo clientes e fornecedores.
30. Pagando uma renda pelo facto de estar a ocupar tal pavimento na qualidade de subarrendatário.
31. A qual inclusive está a ser depositada na Empresa-A, agência da Covilhã.
32. No registo da hipoteca constituída a favor da A. e sobre o prédio supra referido consta como data da sua conversão em definitiva a data de 1 de Agosto de 1980.
III -
Quid iuris?
Delimitado o objecto dos recursos pelas respectivas conclusões (arts. 284º, nº 3 e 291º, nº 1 do CPC), eis-nos confrontados com as seguintes questões:

1ª - Da nulidade do acórdão.

O recorrente AA defendeu que o acórdão é nulo na medida em que confirmou a sentença da 1ª instância, sendo que esta não a podia ter condenado na entrega do locado por a mesma condenação extravasar os pedidos formulados pela A.-recorrida. E convocou, em apoio de tal posição, o preceituado na al. e) do nº 1 do art. 668º do CPC.

Segundo este preceito legal, a decisão é nula quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (preceito aplicável aos acórdãos por força do nº1 do art. 716º do CPC).

Também a recorrente Empresa-B invocou a nulidade do acórdão, dizendo que "a sentença é nula na parte em que condena os RR. a verem reconhecida a caducidade dos contratos de arrendamento e, por via disso, na desocupação e entrega do prédio" (conclusões 1ª, 2º e 3ª, coincidentes com as 8ª, 6ª e 7ª apresentadas na apelação).

A argumentação de um e outra recorrentes é, ao cabo e ao resto, a mesma. E foi objecto de apreciação no acórdão recorrido.
Neste, porém, entendeu-se que a crítica dirigida ao julgado na 1ª instância se baseava na al. d) - e não na al. e), como defendeu o recorrente AA - do nº 1 do art. 668º do CPC.
Ora, o acórdão recorrido refutou a crítica, dizendo que o pedido de entrega do prédio livre e devoluto e que, atentos os factos dados como provados, outra solução não poderia ser tomada que não fosse a consagrada.
E não deixou de notar que a qualificação jurídica dos factos dados como provados é tarefa do Tribunal, como claramente resulta do art. 664º do CPC.
Que dizer de tudo isto?
Apenas e só que a razão não está do lado dos recorrentes. Entendemos que a decisão é a correcta.
Senão, vejamos.
Não houve qualquer condenação que a Empresa-A não tivesse pedido.
Esta pediu claramente a entrega do prédio reivindicado. Para tanto invocou várias razões: várias nulidades tornavam, a seu ver, insubsistente e ilegítima a ocupação do mesmo por parte dos RR..
Só que as instâncias chegaram à conclusão que o pedido era o adequado face aos factos dados como provados através de uma argumentação diferente da que aquela apresentou. A ocupação dos RR. é injustificada por ter caducado o contrato de arrendamento celebrado entre os anteriores proprietários e BB por mor da compra do referido e por parte da A., em sede de venda executiva. Como consequência, todos os demais contratos realizados e apoiados naquele contrato deixaram de ter suporte legal.
Será isto motivo de nulidade de decisão?
Evidentemente que não.
Desde logo, o art. 664º do CPC textua que "o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só o pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264º".
Como bem observa Lebre de Freitas, o "conhecimento oficioso da norma jurídica está dependente da introdução na causa dos factos aos quais o tribunal a aplica, devendo sempre distinguir-se o plano dos factos, em que vigora, mesmo em matéria de direito processual, o princípio dispositivo, e o plano do direito, em que a soberania pertence ao juiz, sem prejuízo ainda, no que ao direito material se refere, de o conhecimento oficioso se circunscrever ao domínio definido pelo objecto do processo" (in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, pág. 658 e 659).
Perante os factos dados como provados - trazidos à acção pelas partes nos respectivos articulados -, o tribunal (ambas as instâncias, no caso) não teve dúvidas de, seguindo um iter diferente do apontado, chegar à conclusão que à A. assistia o direito de obter a entrega do prédio reivindicado.
Com efeito, a A. apresentou-se em juízo dizendo-se proprietária do prédio reivindicado e pediu a sua entrega com fundamento na falta de título justificativo dos RR. para a sua ocupação.
Justificou a ilicitude desta ocupação com vários argumentos: desde a nulidade do contrato, por falta de forma, celebrado entre os antigos proprietários do prédio e BB, como ainda por violação de lei imperativa no que tange ao fim dado ao prédio, até ao abuso de direito, como a ineficácia de contrato de arrendamento comercial por o mesmo ter sido celebrado posteriormente ao registo de penhora.
As instâncias, mui embora com argumentação não totalmente coincidente de uma em relação à outra, acabaram por concluir pela caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre os anteriores proprietários e BB, na base do qual estavam os outros que suportavam a posição dos RR., e isto por virtude de este ter sido celebrado em data posterior à penhora e à hipoteca.
Ou seja, as instâncias, perante a factualidade dada como provada, acabaram por concluir pela ilegitimidade dos RR. na ocupação do prédio reivindicado, servindo-se, para tanto de uma argumentação jurídica bem diferente da que a A. apresentou na sua petição.
Acabaram, portanto, por concluir que tal ocupação não se justificava e basearam tal conclusão em argumentação jurídica diferente da que foi aprestada pela A.
Mas fizeram-no no uso dos seus poderes próprios de cognição: nenhuma nulidade foi cometida.
Isto mesmo está perfeitamente claro no aresto recorrido: "...não nos podemos esquecer de que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, embora apenas se podendo restringir aos factos articulados, como resulta do art. 664º do CPC, sendo manifesto que nem sequer os Recorrentes põem em causa o estrito respeito pelos factos alegados e que resultaram da discussão da causa como provados".

Saber se a decisão está certa ou não diz respeito à apreciação do fundo da causa.
É o que passaremos a fazer, à luz das críticas dirigidas ao acórdão impugnado.

2ª Questão - Da caducidade do contrato de arrendamento celebrado pelos anteriores proprietários.

Como já tivemos oportunidade de dizer, as instâncias concluíram, com vista a darem à A. o beneplácito à pretensão de entrega do prédio, pela caducidade do contrato de arrendamento que os anteriores proprietários celebraram com BB.
Caduco este contrato, todos os outros que foram celebrados na sua sequência deixaram de ter subsistência.
Para o Mº juiz de Círculo da Covilhã, "todas as posições contratuais dos réus, baseadas em contratos de arrendamento, que têm por objecto o imóvel, todos eles, posteriores ao momento da conversão em definitivo do registo da hipoteca do imóvel, 1.8.1980, caducaram com a venda no processo de execução, a favor da autora, pelo que não tendo nenhum dos réus título válido que lhes permita estar na posse do imóvel, estão obrigados a entregá-lo à autora".
E isto porque, na sua óptica, de acordo com o art. 824º, nº 2 do CC e actual art. 888º do CPC, correspondente ao antigo 907º, um contrato de arrendamento válido celebrado caduca após a venda em processo executivo.
Já a Relação de Coimbra não aceitou de forma tão sossegada semelhante argumentação, mui embora se tenha, ab initio, inclinado para a solução encontrada.
Porém, entendeu seguir por outros caminhos para chegar à conclusão da 1ª instância e, assim, não deixou de fazer notar que, no caso em análise, independentemente da existência de hipoteca registada anteriormente à celebração do contrato de arrendamento, havia uma penhora registada. Perante esta realidade fáctica apurada a lei vigente tinha uma solução concreta e precisa: o nº 3 do art. 838º do CPC prescrevia que "em relação a terceiros, a penhora só produz efeitos desde a data do registo".
Daí partiu para, apoiando-se na lição de Lebre de Freitas (in A Acção Executiva à Luz do Código Revisto - 2ª edição -, pág. 213 a 218), a conclusão de que o contrato de arrendamento celebrado pelos anteriores proprietários estava caduco na medida em que "com essa penhora ficaram transferidos para o tribunal os poderes de gozo que integravam o direito do executado, com a correspondente transferência de posse para o depositário e a ineficácia relativa dos actos dispositivos do direito subsequentes, pois apesar daquela perda, sempre pode o executado dispor do bem mediante actos de disposição ou de oneração aos quais, no entanto, não pode deixar de ser estranha a penhora já havida, tornando aqueles actos ineficazes em relação à execução".

Temos por perfeitamente certa a argumentação espelhada no aresto impugnado.
Com efeito, independentemente de se curar da hipoteca e da repercussão do registo da mesma em relação ao contrato de arrendamento, uma coisa é certa: no caso presente, houve a efectivação de uma penhora que foi devidamente registada antes da celebração do contrato de arrendamento que serviu de base a outros negócios e que, por isso mesmo, levou a que, consumada a venda executiva, o prédio fosse entregue ao comprador (no caso a própria Empresa-A) livre do ónus do arrendamento. Ou seja, com a concretização da venda, automaticamente caducou o contrato de arrendamento.

Com esta argumentação que, repetimos, temos por perfeitamente correcta atenta a factualidade dada como provada, o problema fica resolvido.
Caduco o referido contrato de arrendamento, automaticamente caducam todos os outros contratos que foram sendo celebrados no pressuposto da validade e eficácia daquele.
Mas não podemos olvidar que, in casu, estamos perante execução hipotecária, com a garantia registada antes da celebração do contrato de arrendamento.
Mas isso não altera em nada o que se disse.
A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor da coisa pertencente ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores, como resulta do nº 1 do art. 686º do CC. É claro que tal garantia há-de manifestar-se com toda a acuidade em sede executiva, esgotadas que sejam as possibilidades de o credor fazer valer as suas potencialidades por via amigável.
Assim, não tendo a credora Empresa-A feito valer por via da negociação os seus direitos garantidos pela hipoteca, outro remédio não tinha que não fosse o recurso à via judicial, concretamente à acção executiva.
Proposta a competente acção, seguiu-se a penhora do imóvel hipotecado, em observância do disposto no art. 835º do CPC.
A execução prosseguiu até à fase da venda e, com a adjudicação do imóvel hipotecado e penhorado, foi ele libertado de todos os ónus a fim de ser entregue ao arrematante, tal-qualmente o mesmo foi pracejado.
E, por isso mesmo, é que o contrato de arrendamento caducou automaticamente.
Se assim não fosse, perderia todo o alcance a garantia real.

Mas, a verdadeira dificuldade do problema está em saber se o arrendamento é um verdadeiro ónus para este efeito.
Caso a resposta seja positiva, encontraremos a solução, em tese geral, para o caso concreto, não obstante o resultado já alcançado por via da particularidade do mesmo, tal como o Relação o fez.
Vejamos, então.
O art. 819º do CC, na sua redacção originária e aplicável ao caso, tendo em conta a temporalidade dos factos em causa, dispunha que "sem prejuízo das regras de registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados".
À luz deste preceito discutia-se já se o arrendamento era, para este efeito, um verdadeiro ónus, não faltando jurisprudência a aceitar semelhante tese.
Exemplar é o acórdão deste Supremo Tribunal de 06 de Julho de 2000 que aprofundadamente debateu o problema e chegou à conclusão de que "a venda judicial, em processo executivo, de fracção hipotecada faz caducar o seu arrendamento, não registado, quando posteriormente celebrado à constituição e registo daquela hipoteca, por na expressão «direitos reais» mencionada no art. 824º, nº 2 do CC se incluir, por analogia, aquele arrendamento" (in C.J. - Acs. STJ -, Ano VIII - Tomo II, pág. 150 e ss.).
Data venia, desde já adiantamos que este nos parece ser o ponto de vista correcto.
Na verdade, o art. 1057º do CC preceitua que "o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo".
Consagra, pois, este preceito legal a regra "emptio non tollit locatum".
A sua excepção surge apenas com respeito ao que está estabelecido no direito registral.
Como assim, um contrato de arrendamento (registado ou não) celebrado antes do registo de hipoteca, arresto ou penhora é oponível a estes actos (no caso de arrendamento sujeito a registo e não registado é que ele só poderá ser oponível pelo prazo pelo qual podia ser feito sem sujeição a registo).
Mas já um contrato de arrendamento, sujeito a registo e registado, celebrado após aqueles actos posteriormente a constituição de arresto, hipoteca ou penhora extingue-se com a venda.
Isto mesmo resulta do respeito pelo estabelecido no art. 6º do CRP, nº 1 - "o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que lhe seguirem relativamente aos mesmos bens".
Mas o que nos preocupa, de verdade, é saber se o mesmo também se verifica em relação a um arrendamento não sujeito a registo celebrado após serem levados a registos hipotecas, arrestos ou penhoras.
Pela nossa parte, entendemos que não há razão para dar mais protecção aos arrendamentos não sujeitos a registo celebrados após aqueles actos do que aos arrendamentos não sujeitos a registo ou aos registáveis e não registados. Tanto num caso como noutro, a situação locatícia não merece qualquer protecção.
Seguir por caminho diferente daria azo a graves injustiças, pois estaríamos a criar um regime de favorecimento em relação a estas situações não registadas: nestes casos, os arrendatários veriam a sua situação perfeitamente segura, apesar da venda executiva do imóvel e quiçá com arresto ou hipoteca prévios.
E a injustiça sairia até reforçada nos casos de o contrato de arrendamento não estar registado apesar da sua obrigatoriedade. Nestes casos, valeria bem a pena não registar o contrato.
É que registando-o, mais dia, menos dia, havendo registo prévio de penhora, arresto ou hipoteca, a sua situação estava ficaria definida com a venda executiva do imóvel e no sentido da caducidade do arrendamento.
Mas já o caso mudaria radicalmente de figura se o arrendamento não estivesse registado ou não fosse registável.
O Direito, sob pena de se negar, não pode aceitar esta dualidade de critérios: há que considerar que o arrendamento surge aqui e agora como um verdadeiro ónus quer esteja sujeito a registo quer não.
Assim, no caso de não estar o arrendamento sujeito a registo ou, estando-o, não ter sido registado, há que, no caso de venda executiva com penhora, hipoteca ou outro direito real registados, julgar o mesmo caduco.
Esta é, aliás, a lição que se colhe de Miguel Teixeira de Sousa:
"..., em concreto: - se a locação dever ser registada - ... -, extingue-se aquela que tenha registo posterior ao do aresto, penhora ou garantia; - se a locação não dever ser registada, releva a data da sua constituição e extingue-se a que for constituída após o arresto, penhora ou garantia e que, por isso, é inoponível à execução" (in Acção Executiva Singular, 1998, pág. 390).
Remédios Marques e Miguel Mesquita defendem, de igual modo, a caducidade, após venda judicial, dos contratos de arrendamento não sujeitos a registo celebrados antes de penhora, arresto ou garantia invocada na execução, bem como daqueles outros que embora sujeitos a registo tenham sido levados a registo posteriormente à inscrição daqueles actos (cfr. Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, pág. 408 e ss. e in Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro, pág. 179 e ss., respectivamente).
Esta é também a posição de Henrique Mesquita, para quem o art. 1057º é também inaplicável à venda da coisa locada em processo executivo, sendo que "esta hipótese deve considerar-se incluída na regra do nº 2 do art. 824º" e, portanto, "inoponíveis ao comprador as relações locativas constituídas posteriormente ao arresto, penhora ou garantia" (in Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 140).
Igual é a posição defendida por Oliveira Ascensão: por um lado, o nº 2 do art. 854º do CC refere-se aos direitos inerentes e entre estes conta-se o arrendamento e, por outro, este está incluído nos direitos reais que produzem efeitos em relação a terceiros independentemente de registo, e tudo isto para além de se curar da natureza (real ou obrigacional) do contrato de arrendamento (in ROA, Ano 45, Setembro, pág. 365 e 366).

Aqui chegados, podemos dizer que qualquer situação locatícia - registada ou não - constituída após o registo de hipoteca, arresto ou penhora, é inoponível ao comprador do imóvel em sede de venda judicial, na justa medida em que após a concretização desta caducam automaticamente.

Mas depois desta pequena excursão em busca da solução a dar ao "nosso caso", ainda não está dada a resposta, de uma forma explícita, ao problema que colocamos, saber se o arrendamento constitui um verdadeiro ónus.
A este propósito, não resistimos em fazer apelo às reflexões feitas por Nuno de Lemos Jorge no seu trabalho "Arrendamento de Imóveis Hipotecados: Caducidade do Arrendamento Com a Venda Executiva", apresentado no âmbito no âmbito do Mestrado, Coimbra, 2002, ainda inédito.
Para este A., o arrendamento é um encargo pesado sobre um imóvel, determinado por dois factores - o art. 1057º do CC e o vinculismo -, que "diminui o valor da venda de um prédio, tanto, ou mais do que um direito real limitado".
Como assim, "se for permitida a subsistência de um arrendamento após a venda executiva, contraria-se o pensamento subjacente à regra do artigo 824º, nº 2 do CC, pois permite-se que o devedor e proprietário do bem onerado diminua o valor da garantia por mera vontade sua".
E não deixa de responder, com argumentos seguros, a quem vê obstáculos nos arts. 1051º e 1057º do CC, dizendo, por um lado, que o locatário não concorre ao património do locador como credor de uma dívida de gozo, não sendo parte no processo executivo, mas tão só "titular de um direito que lhe adveio de negócio com o devedor, direito esse que vai ceder no confronto com aquele que o credor accionou e, por outro, defendendo que o 1º dos preceitos citados não é taxativo, ideia esta também defendida por Oliveira Ascensão na obra referida, a pág. 355 ("o grande princípio da nossa ordem jurídica é o da analogia, fundado na regra constitucional do tratamento idêntico de casos semelhantes").
Se é certo que a regra do vinculismo acabou de levar uma grande machadada com o NRAU, não é menos certo que este diploma não é para aqui chamado, atenta a temporalidade dos factos em apreciação, não vendo nós razões para não considerar pertinentes e válidos para o caso os argumentos apresentados.
Temos, pois, por absolutamente seguro que o arrendamento se afigura como um verdadeiro ónus e como tal deve ser considerado no âmbito do nº 2 do art. 824º do CC.
Neste preciso sentido opina José Alberto Vieira:
"...o art. 824º, nº 2 do Código Civil tem aplicação ao arrendamento de prédio dado de hipoteca. Não obstante não mencionado expressamente, o direito do arrendatário implica materialmente um gravame sobre a coisa muito semelhante, se não até maior, àquele que é posto pelos direitos reais... Nenhum argumento se opõe a esta solução. Não o art. 1051º, ..., pois não existe uma tipicidade taxativa de casos de caducidade. E também decerto a posição do arrendatário. Não se esqueça que o direito deste é constituído após o registo da hipoteca. ... O arrendatário de imóvel dado de hipoteca sabe ou pode saber que o direito com base no qual o arrendamento foi celebrado se encontra onerado e que a hipoteca pode vir a ser executada", concluindo, assim, que "o direito do arrendatário de prédio dado em garantia se extingue com a venda judicial, nos termos do art. 824º, nº 2 do Código Civil" (in Arrendamento de Imóvel dado em Garantia, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Volume IV, pág. 448 e ss.).

Este foi o sentido que o legislador acabou por consagrar, não permitindo mais dúvidas, ao dar nova redacção ao art. 819º do CC, através do D.-L. 38/2003, de 8 de Março:
"Sem prejuízo das regras de registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados".

Ora, no caso que nos ocupa, o contrato de arrendamento que está na base das posições defendidas pelos RR., aqui recorrentes, foi celebrado por cinco anos e com tendo como fim a indústria; como assim, à luz do art. 6º do CRP citado, não estava sujeito a registo.
Porém, o mesmo foi celebrado depois da constituição e registo não só da hipoteca como também da penhora.
Concretizada a venda em sede executiva, caducou automaticamente o aludido contrato, sendo, portanto, inoponível à A.. Empesa-A.
Com ele, caducaram também todos os demais contratos celebrados e que tinham na génese daquele a sua razão de ser.
Isto significa que os RR., aqui recorrentes, após a concretização da venda judicial, deixaram de ter título justificativo para a ocupação do prédio reivindicado.
Perfeitamente certa e legal a decisão das instâncias em ordenar a entrega do imóvel à Empresa-A, compradora do mesmo no processo executivo.

3ª Questão - Do alegado reconhecimento por parte da A. da posição dos RR.

Defendem, contudo, os recorrentes que, malgrado a verificação da caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre os primitivos proprietários e BB, os contratos que suportam a suas posições (sublocação em relação ao R. AA e trespasse em relação à R. Empresa-B) permanecem em vigor por virtude do reconhecimento da A. da situação jurídica de ambos por um período que durou pelo menos oito anos sem qualquer oposição ao exercício das suas actividades e com a percepção das respectivas rendas. A tal situação seria aplicável o regime previsto no art. 1056º do CC.
Esta questão apenas foi colocada em sede de recurso para a Relação de Coimbra, não tendo as partes, no lugar próprio que é o dos articulados, feito valer tais argumentos: é, portanto, questão nova, e, como tal, fora do alcança e da finalidade dos recursos (cfr. art. 676º, nº 1 do CPC).
Não obstante isso, a Relação de Coimbra ainda rebateu a argumentação apresentada, fazendo notar a inaplicabilidade do preceito legal citado ao caso pela singela razão de que a Empresa-A não era locadora, apenas sucedeu aos proprietários-locadores por virtude da aquisição do prédio em sede de venda executiva.
Errou a Relação ao dar resposta a uma questão que não tinha sido submetida à apreciação do tribunal de 1ª instância.
Só que em relação às rendas já nada disse.
É que em relação às mesmas havia uma impossibilidade total de se pronunciar: nada foi debatido, nada ficou provado a este respeito.
Ora bem.
Com a interposição de recurso a parte não conformada apresenta a um tribunal superior os argumentos que em seu entender deveriam ter levado o tribunal inferior a decidir de modo diferente a questão que lhe foi apresentada.
Como assim, ao tribunal da Relação apenas compete a análise da argumentação apresentada e dentro do quadro submetido ao tribunal inferior.
Ao STJ, nos limites cognitivos que a lei traça (cfr. art. 26º da LOFTJ e 721º do CPC), apenas compete a apreciação do julgamento que o Tribunal da Relação fez da decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância.
Com tudo isto, queremos dizer que a tese do reconhecimento por parte da A. das posições dos RR. não pode ser aqui e agora apreciada pela singela razão que a mesma não foi vertida no articulado de defesa.
Descabida, portanto, qualquer consideração deste Supremo Tribunal sobre tal matéria.

4ª Questão - Do abuso de direito

Também este ponto não foi suscitado pelas partes no tribunal de 1ª instância. Apenas em sede de recurso de apelação se lembraram de invocar tal instituto em defesa das suas posições.
Mas isso não impede que o tribunal de recurso tome posição sobre o mesmo.
Uma ou outra voz isoladas a defender que o abuso de direito não é de conhecimento oficioso (vide, v.g. Ac. deste Supremo de 19 de Outubro de 1978, in B.M.J. 280 - 290), não são suficientes para nos afastarmos da posição afirmada.
Na verdade, como defende Vaz Serra, em anotação ao referido aresto, "não parece que deva depender de invocação do interessado a apreciação judicial da aquisição dolosa ou de violação de boa fé e deve, portanto, poder o juiz apreciar oficiosamente se o direito foi adquirido ou é exercido dolosamente".
E, citando Enneccerus-Nipperdey, acrescenta: "um abuso de direito é sempre de ter em consideração oficiosamente no processo, pois é função do tribunal determinar os limites internos de um direito, mesmo que as partes os não invoquem" (in R.L.J., Ano 112º, pág. 131).
Indo de encontro a estas ideias, aceitamos o repto lançado pelos recorrentes no sentido de dizer se da parte da A.-recorrida houve ou não comportamento abusivo pelo facto de ter vindo a juízo reclamar a entrega do prédio que adquiriu em haste pública. Precisamente porque também pensamos que a apreciação da lealdade e da boa fé que se exige às partes na condução da solução dos seus problemas compete ao juiz a partir do momento em que as mesmas a ele confiaram os seus destinos.
De acordo com o art. 334º do CC, "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
Tal qual os recorrentes se insurgem contra o "comportamento abusivo" da A., - frustração das suas legítimas expectativas -, o abuso de direito surgir-nos-ia na modalidade de venire contra factum proprium, nele estando incluídos os casos de supressio ou de surrectio que constituem comportamentos contraditórios.
Assim, "há contradição inadmissível em boa fé entre uma omissão prolongada do exercício do direito, em circunstâncias tais que suscitam a expectativa de que ele não virá a ser exercido. Uma vez consolidada a confiança e a expectativa - a fé - e desde que essa consolidação da confiança seja imputável ao titular do direito, a brusca inflexão de atitude é contrária à boa fé" (Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral de Direito Civil - 2ª edição -, pág. 685).
No estudo profundo que Baptista Machado nos deixou, colhe-se a ideia de que imanente à proibição do venire contra factum proprium está o "dolus praesens", "que a conduta sobre que incide a valoração negativa é a conduta presente", relevando para efeitos de censura:
a) a verificação de uma situação objectiva de confiança.
b) que o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica apenas surjam quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada. Mas para tal é necessário que o investimento dessa contraparte haja sido feito com base na dita confiança.
c) Que haja boa fé da contraparte que confiou. Nos casos em que a base de confiança é uma aparência, a confiança de terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando esta esteja de boa (por desconhecer aquela divergência) e tenha agido com o cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico (in R.L.J., Ano 117º e 118º, em especial, no caso que ora nos preocupa, a pág. 171 e 172 deste último, e também, e in Obra Dispersa, Vol. I, pág. 415 e ss.).
Se olharmos atentamente ao que foi vazado nos autos e, mais propriamente ao que ficou provado, nada nos permite concluir que a conduta da A.-recorrida violou as regras da bona fides.
Ela limitou-se a reivindicar o prédio que adquiriu execução que oportunamente moveu contra os anteriores proprietários em virtude de estes não terem honrado os compromissos assumidos.
Nenhuma expectativa criou nos RR., ora recorrentes: estes acabaram por celebrar negócios a partir de um contrato de arrendamento celebrado com BB e por um período de cinco anos já depois do registo da hipoteca e da própria penhora.
E não será despiciendo fazer notar que ao ser concretizada a penhora foi nomeada fiel depositária a própria executada, Felicidade Matos da Costa Antunes, em 20 de Março de 1980 (cfr. fls. 44 vº). E que se esta, nessa qualidade, arrendasse o imóvel o contrato caducaria automaticamente após a venda por cessarem os seus poderes de administração, ut al. c) do art. 1051º do CC (antes da alteração introduzida pelo D.-L 47.690, o art. 843º do CPC estabelecia no seu nº 3 que "o depositário não pode fazer arrendamento por prazo superior a um ano").
E o curioso é que, depois de ter sido celebrado um contrato meramente verbal e datado de 25/02/1984, os executados celebraram um outro, este por escritura pública, no qual convencionaram, além do mais, que o prazo do arrendamento era de cinco anos (menos um do que o prazo a partir do qual o registo se tornava obrigatório por força do disposto na al. m) do nº 1 do art. 6º do CRP) e com início a 1 de Março de 1984!
Ambos os contratos - um por escrito particular, outro por escritura - acabaram por ser celebrados após a penhora. E também após a hipoteca!
E por quem não tinha então poderes de administração: referimo-nos concretamente a EE.
Mas, também não deixa de ser curioso que a R. Empresa-B foi representado no contrato de trespasse, celebrado em 16 de Junho de 1999, na sua qualidade de trespassária, o anterior proprietário do prédio, EE, casado com a fiel depositária FF!
Para além destas simples curiosidades que não passam despercebidas a qualquer observador, o que importa, para os efeitos pretendidos - saber se a A. abusou do seu direito - é captar factos que permitam chegar à conclusão defendida pelos recorrentes.
Ora, vistas bem as coisas, nada, mas nada, se pode imputar à A. como sendo integradora de um comportamento menos leal, menos correcto, como contraditório com algo que deixou antever nos recorrentes e que tivesse levados estes à celebração dos negócios que suportam as suas posições.
O simples facto de só passados oitos após a aquisição a A. ter vindo a juízo fazer valer os seus direitos em nada colide com o instituto do abuso de direito: não proclama o art. 1313º do CC. a regra da imprescritibilidade da acção de reivindicação?

A A., ao reivindicar o imóvel que arrematou em haste pública nada mais faz do que do que exigir que o seu direito seja respeitado.
Não vemos como se possa, in casu, fazer apelo aos à boa fé, aos bons costumes e ao fim social e económico para contrariar aquele direito.
O fim social só não seria alcançado se a A. não tivesse em devida conta o fim pessoal e social que a propriedade deve ter hodiernamente.
Os bons costumes só seriam ofendidos se a A. com a sua pretensão violasse os ditames da Ética.
Nada, a este respeito, ficou provado.
Injustificada, pois, a invocação do abuso do direito por parte dos recorrentes com vista a obterem a consagração das suas pretensões. Ao proclamarem em vão tal instituto, acabaram, ao cabo e ao resto, por reconhecer o direito que assiste à A. e traduzido na entrega do imóvel em causa.

Dito isto só nos resta terminar, afirmando a sem razão das teses que os recorrentes trouxeram à nossa apreciação.
IV -
Em conformidade com o exposto e sem necessidade de qualquer outra consideração, decide-se negar revista a ambos os recorrentes que, por isso mesmo, vão condenados nas respectivas custas.

Lisboa, 31 de Outubro de 2006
Urbano Dias (Relator)
Paulo Sá
Borges Soeiro