Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
645/08.0TBALB.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
DUPLA CONFORME
PEDIDO UNITÁRIO
INCLUSÃO QUANTITATIVA
MONTANTES ARBITRADOS
Data do Acordão: 05/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REJEITADA
Área Temática: DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS
Doutrina: -Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, 21 e ss..
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 721.º-A, N.º3.
Sumário : Ocorrendo, num litígio caracterizado pela existência de um único objecto processual, uma relação de inclusão quantitativa entre o montante arbitrado na 2ª instância e o que foi decretado na sentença proferida em 1ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela Relação já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo acórdão de que se pretende obter revista, tem-se por verificado o requisito da dupla conformidade das decisões, no que respeita ao montante pecuniário arbitrado pela Relação, não sendo consequentemente admissível o acesso ao STJ no quadro de uma revista normal.
Decisão Texto Integral:

  1. AA instaurou acção, com processo ordinário, contra a “CP - Caminhos de Ferro de Portugal”, com fundamento na ocorrência de um acidente - traduzido no abalroamento do veículo automóvel por si conduzido por um comboio, numa passagem de nível cujas cancelas estavam indevidamente abertas - do qual resultaram danos para a sua integridade física e  património (tratamentos, perda de dias de trabalho e destruição do automóvel).

Em consequência, pediu a condenação a Ré a pagar-lhe:

a) A título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de € 65.833,40;

b) O que se vier a liquidar em execução de sentença pelos danos futuros previsíveis emergentes dos tratamentos, secções de fisioterapia a que ainda tiver de ser submetida, medicação, consultas, deslocações, despesas com os mesmos e consequências definitivas;

c) E juros de mora, à taxa legal desde a citação.

Na contestação, a Ré alegou ter assumido a responsabilidade pelos danos sofridos pela Autora e que se prontificou a indemnizá-la - o que só não aconteceu pelo facto de a A. ter reclamado uma indemnização tida por excessiva para os danos que efectivamente sofreu.

Realizada audiência final, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, condenou a Ré a pagar à Autora, a título de indemnização:

- Por danos patrimoniais, a quantia de € 26.500,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar da citação;

- Por danos não patrimoniais, a quantia de € 27.442,00, acrescida de juros de mora desde a sentença;

- Na quantia a liquidar em execução decorrente de acompanhamento médico-psiquiátrico, tratamentos, deslocações, consultas e outras despesas.

Inconformada, a Ré apelou, pugnando pela redução dos montantes indemnizatórios arbitrados.

A Relação, no acórdão ora impugnado, julgou parcialmente procedente a apelação e, em consequência, alterou a sentença, condenando a Ré a pagar à Autora, a título de ressarcimento dos danos patrimoniais, a indemnização de € 19.500,00 (15.000,00 + 4.500,00), mantendo-a, porém,  intocada no restante segmento decisório ( incluindo a compensação de € 25.000,00, referente aos danos não patrimoniais sofridos pela lesada).

   2. Novamente inconformada, a R. CP interpôs a presente revista, em que questiona os montantes indemnizatórios arbitrados, tendo-os por excessivos e desajustados face aos critérios legais aplicáveis, encerrando a sua argumentação com as seguintes conclusões: 

    a)O Dano Psicológico, ou Perturbação de stress pós-traumático foi utilizado e duplamente valorizado, na vertente do Dano Patrimonial e Dano Não Patrimonial, o que não se compadece com as regras subjacentes á atribuição das referidas indemnizações,

b)Ficou provado que as sequelas resultantes são, em termos de rebate profissional, compatíveis com o exercício profissional especifico da examinada á data do acidente assim como do actual, não ficando provado que existe uma diminuição da capacidade de ganho nem um aumento de esforço da Autora na realização das suas tarefas quotidianas, até porque esta manteve o salário que auferia (o SMN)

c)Por conseguinte deve ser considerada apenas uma indemnização, a título de Danos Não Patrimoniais num valor nunca acima de 5.000€, ou quando muito de 10.000€ aqui englobando as duas vertentes (Danos Patrimoniais e Não Patrimoniais).

d)O mais relevante foi o trauma psicológico vivido, cuja graduação constante do Relatório Pericial efectuado pelo IML foi de 4 numa escala de 0 a 7, ou seja, no patamar mínimo indemnizável

e)A Autora já apresentava um contexto psicopatológico com repercussão em grau ligeiro a moderado na sua autonomia pessoal, social e profissional que influenciam na sua normal vivência,

f)A Autora apenas recebeu tratamento ambulatório, não esteve internada e obteve alta medica no mesmo dia, não tendo sido necessária qualquer cirurgia, invasiva,plástica ou outra, dado não existir qualquer fractura ou ferimento que a isso obrigasse, e esta, decorridas cerca de duas semanas voltou ao trabalho sendo que as lesões e ou sequelas relacionáveis com o evento resumem-se a varias cicatrizes nacaradas, pouco aparentes, a maior de 5cm por 8mm e a menor com 8mm, no antebraço (vide factos provados sob os n°s 29)

g) Atento o raciocínio seguido maioritariamente na nossa Jurisprudência bem como na matéria de facto assente, é admissível reduzir a indemnização atribuída á Autora a titulo de Danos Patrimoniais (na vertente de perda de ganho) de 15.000€ ao valor de 5.000€,

h) O critério a seguir em termos de Danos Não Patrimoniais será o da equidade, atendendo ao grau de culpa do responsável, situação económica do lesante e do lesado e, entre as circunstâncias do caso, à gravidade do dano a que a compensação deve ser proporcionada, lançando mão, tanto quanto possível, de um critério objectivo não podendo deixar de ser ponderadas circunstâncias comoa natureza e grau das lesões, suas sequelas físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas sofridas e internamentos, o quantum doloris, o período de doença, situação anterior e posterior do ofendido em termos de afirmação social, apresentação e auto-estima, alegria de viver - seu diferencial global -, a idade, a esperança de vida e perspectivas para o futuro, entre outras

i) A Autora não foi sujeita a qualquer intervenção cirúrgica, as sequelas resumem-se á parte psicológica, o quantum doloris foi fixado em 4 na escala de 0 a 7, sendo que 4 é o mínimo indemnizável, não esteve sujeita a internamento e a sua situação anterior ao acidente, quanto á afirmação social e auto-estima deve ser avaliada de acordo com os elementos constantes das perícias psicológicas juntas aos autos, uma vez que já possuía um quadro depressivo

j) A matéria fáctica constante dos artigos 21°, 22°, 23°, 30°, 32° a 39° e 41° ao contrário do considerado pelo Tribunal a Quo, não se revela suficiente para atribuir á Autora uma indemnização a título de Danos Não Patrimoniais no valor de 25.000€, sendo absolutamente desproporcional quer àquela matéria fáctica quer á realidade e ao que habitualmente se tem vindo a praticar nos nossos tribunais.

k) As dores, os sofrimentos e as privações não foram de considerável dimensão, nem afectaram de forma profunda a Autora no seu padrão e na qualidade de vida, de modo que este valor não se coaduna com os critérios que, numa jurisprudência actualista, vêm sendo seguidas em situações análogas ou equiparáveis.

1) Os exemplos multiplicam-se no sentido de se dever considerar como elevadíssima a quantia fixada a titulo de Danos Não Patrimoniais de 25.000€, sobretudo considerando os exemplos já citados, havendo assim um desvio face á Jurisprudência corrente e dominante, devendo por conseguinte aquele valor ser substancialmente reduzido, para um valor nunca acima dos 5.000€,

m) Os juros de mora em qualquer dos casos, devem ser fixados desde a data da Sentença ou do Acórdão a proferir, e nunca desde a Citação, como sucedeu com os fixados a título de danos patrimoniais

Foram assim violadas as normas previstas nosart.º 494°, 496", 564°, 566º e 805°, todos do Código Civil, bem como os Princípios da Equidade e da Proporcionalidade

   Na contra-alegação apresentada, a A. suscita a questão prévia da inadmissibilidade do recurso de revista, por se verificar o requisito da dupla conforme, já que a R. havia sido condenada em 1ª instância no pagamento da indemnização de €53.942,00, tendo a Relação atenuado tal condenação, em termos obviamente mais favoráveis à R./CP, para o valor de apenas €46.942,50.

   3.Distribuido o recurso, o relator determinou, ao abrigo do preceituado no art. 704º do CPC, a notificação da recorrente/ CP para se pronunciar, querendo, sobre a questão prévia suscitada quanto à recorribilidade, proferindo despacho do seguinte teor:.

   Efectivamente, ao presente recurso é já aplicável o regime emergente do DL 303/07, o que nos confronta com a regra – restritiva do acesso ao

STJ – constante do art. 721º, nº3 – segundo a qual não cabe revista normal do

acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância.

   Ora, no caso dos autos, verifica-se que - formulado pela lesada pedido global de ressarcimento dos vários tipos de danos causados pelo acidente,

assente nas várias parcelas em que, para demonstração do quantum indemnizatório peticionado, se desdobrou o cálculo do prejuízo – não ocorre uma estrita e total coincidência numérica entre os valores arbitrados em 1ª instância e na Relação, já que a procedência parcial da apelação da R./CP conduziu a uma diminuição, em seu benefício, do montante indemnizatório arbitrado na sentença à lesada.

   Conduzirá este fenómeno de não coincidência total dos montantes pecuniários das condenações, arbitrados em cada uma das instâncias, a que se não deva ter por verificado o requisito - limitativo do direito ao recurso - emergente da regra da dupla conforme?

   A resposta a esta questão é claramente negativa: na verdade, o referido conceito de dupla conformidade tem de ser interpretado, não em termos empíricos de coincidência puramente numérica ou matemática dos valores pecuniários das condenações constantes das decisões já proferidas pelas instâncias, mas com apelo a um elemento normativo, funcionalmente adequado à actual fisionomia dos recursos e do acesso ao STJ. E, nesta perspectiva, não faria o menor sentido admitir que a parte que viu a sua condenação ser atenuada pelo acórdão proferido pela Relação tivesse a possibilidade de aceder ao Supremo – quando seguramente a não teria se o acórdão proferido em 2ª instância tivesse mantido, nos seus precisos termos, o montante condenatório mais elevado, arbitrado na sentença proferida em 1ª instância. Constituiria, na verdade, seguramente solução normativa qualificável como arbitrária ou discricionária a que se traduzisse em conceder o direito ao recurso à parte beneficiada pela decisão da 2ª instância – quando era inquestionável que não poderia recorrer se a Relação, em vez de proferir decisão mais favorável para o recorrente, se tivesse limitado a manter, ipsis verbis, a condenação mais gravosa, decretada na sentença proferida na 1ª instância.

   Saliente-se que, numa situação com os contornos da que agora nos ocupa, existe uma relação de inclusão quantitativa entre o valor concedido à lesada na 1ª instância e o que lhe foi atribuído no acórdão da Relação – ou seja, o valor pecuniário atribuído pela Relação já estava logicamente compreendido no âmbito do montante – superior – arbitrado na sentença:  como refere Castro Mendes ( Limites Objectivos do Caso Julgado, pags.336 e segs.), ao analisar o fenómeno da extensão do caso julgado e das relações de coerência prática e lógico-jurídica que lhe subjazem, verifica-se a extensão por inclusão quantitativa quando é elemento da

decisão uma quantidade ideal – um valor, uma medida de coisas fungíveis, uma percentagem. Então, a indiscutibilidade da soma alarga-se às parcelas.

   Se R. é condenado a pagar 70 a A, não pode propor contra este uma acção pedindo ( rebus sic stantibus) a declaração de não dever mais de 50. E se A propuser pela mesma causa de pedir uma acção pedindo a condenação de R a pagar 40( não: mais 40), pode opor-se-lhe a excepção dilatória de caso julgado. O efeito que ele pretende ( ser tido como credor de 50), embora quantitativamente diferente do pedido formulado na primeira acção, no entanto, está incluído na respectiva decisão ( se é credor por 70, é-o por 50) e beneficia por inferência do respectivo caso julgado, e consequentemente da possibilidade de opor a excepção respectiva.

   Ocorrendo, deste modo, uma relação de inclusão quantitativa entre o montante arbitrado na 2ª instância e o que foi decretado na sentença proferida em 1ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela Relação já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo acórdão de que se pretende obter revista, é evidente que tem de se ter por verificado o requisito da dupla conformidade das decisões, no que respeita ao montante pecuniário arbitrado pela Relação.

   Neste sentido, pode invocar-se o decidido no recente Ac. de 12/7/11, proferido pelo STJ no P. 203/08.0YYPRT-A.P1.S1, a cuja argumentação inteiramente se adere:

   O alcance do art. 721.º, n.º 3, do CPC não é uma questão de hoje. Esta mesma questão foi já problematizada tanto pelo Professor Miguel Teixeira de Sousa (Cadernos de Direito Privado, 21, 21 e seguintes) como ainda pelo Vice-Presidente deste Supremo Tribunal, Conselheiro Pereira da Silva, numa intervenção no colóquio, em 27.5.2010 “Recursos em Processo Civil: abordagem crítica à última reforma”, (disponível em http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Coloquios/Discursos/Intervenção-colóquioVPPS%2027%2005.pdf).

Naquele artigo refere Teixeira de Sousa que:
“Há casos nos quais o funcionamento do sistema da dupla conforme não levanta certamente nenhuns problemas. Se, por exemplo, o réu tiver sido absolvido na 1.ª instância e vier a ser condenado na Relação (ou vice-versa), é claro que o acórdão da Relação é “desconforme” com a decisão da 1.ª instância e que, por isso, a revista é admissível nos termos gerais. Mas também há casos nos quais a aferição da conformidade ou desconformidade das decisões das instâncias pode ser bastante mais complexa…Um dos casos … é aquele que se refere às decisões relativas a obrigações

pecuniárias (respeitantes, por exemplo, a prestações contratuais ou a indemnizações resultantes de incumprimentos contratuais ou de responsabilidade extra-obrigacional). Se o conteúdo condenatório ou absolutório do acórdão da Relação coincidir, em termos quantitativos, com o conteúdo da decisão da 1.ª instância, parece não haver dúvidas de que a revista não é admissível, por se verificar uma situação de dupla conforme. Por exemplo: a 1.ª instância e a Relação condenam ou absolvem, ambas, o réu no pagamento de € 100.000. Admita-se, no entanto, que a Relação, em vez de condenar ou absolver exactamente no mesmo montante da decisão da 1.ª instância, condena ou absolve num montante distinto, maior ou menor. Por exemplo: a 1.ª instância condenou o réu em € 80.000 e a Relação condenou essa mesma parte em € 85.000 ou em € 75.000. Em hipóteses como estas, coloca-se o problema da admissibilidade da revista com base na seguinte ordem de considerações: se a Relação tivesse condenado exactamente nos mesmos € 80.000 a que o réu foi condenado na 1.ª instância, nem o réu, nem o autor pode interpor recurso de revista, porque se trata de duas decisões “conformes”; sendo assim, tendo a Relação condenado o réu em menos € 5.000 ou em mais € 5.000, não é coerente admitir a interposição de revista, respectivamente, pelo réu ou pelo autor, porque afinal a sentença tem para eles um conteúdo mais favorável do que aquela da qual eles não poderiam recorrer. Em concreto: se o réu não pode interpor recurso de revista de uma decisão que o condena em € 80.000, então não é coerente admitir que ele possa interpor revista de uma decisão que só o condena em € 75.000; se o autor não pode interpor recurso de uma decisão que condena o réu em € 80.000, então não é lógico admitir que ele possa recorrer de uma decisão que lhe concede € 85.000. Do exposto decorre a necessidade de construir um critério pelo qual se possa aferir em que condições as decisões das instâncias, respeitantes a diferentes montantes pecuniários, estão abrangidas pelo regime da dupla conforme. O critério proposto desdobra-se nas seguintes premissas:
–O apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância – isto é, o réu que é condenado em “menos” do que na decisão da 1.ª instância ou o autor que obtém “mais” do que conseguiu na 1.ª instância – nunca pode interpor recurso de revista para o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da 1.ª instância…”

Na intervenção de Pereira da Silva é referido que:
“Acompanhamos, uma vez mais, Teixeira de Sousa, noutro sentido se não pronunciando António Santos Abrantes Geraldes, quando afirma que o sistema de “dupla conforme” está longe de conduzir a “soluções fáceis e indiscutíveis”, sucedendo que, “ao contrário do que o legislador talvez tenha imaginado, a “conformidade” ou “desconformidade” das decisões das instâncias não podem ser aferidas pelo critério puramente formal da coincidência ou não coincidência do conteúdo decisório da sentença”. E aponta, para além de outras situações em que, a seu ver, a conformidade ou desconformidade devem ser concretamente apreciadas, como um dos casos, muito frequente, em que “apesar de se verificar uma divergência no conteúdo decisório das decisões das instâncias, a aferição da “conformidade” ou “desconformidade” dessas decisões se torna algo problemática”, “aquele que se refere às decisões relativas a obrigações pecuniárias “respeitantes, por exemplo, a prestações contratuais ou a indemnizações resultantes de incumprimentos contratuais ou de responsabilidade extra-obrigacional, nas seguintes premissas se desdobrando o critério que advoga para aferir em que condições as decisões das instâncias, respeitantes a diferentes montantes pecuniários, estão abrangidas pelo regime da “dupla conforme”:
1.º - “O apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à decisão da 1.ª instância – isto é, o réu que é condenado em “menos” do que na decisão da 1.ª instância ou o autor que obtém “mais” do que conseguiu na 1.ª instância – nunca pode

interpor recurso de revista para o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da 1.ª instância…
Constitui, assim entendida, a regra da “dupla conforme” uma malha mais apertada, um óbice mais alargado, ao atingir do 3.º grau de jurisdição.»
Esta posição mais abrangente não deixa de se nortear por elementos que têm necessariamente que ser levados em consideração na interpretação da lei, relativamente aos quais já fizemos referência supra, como sejam a ratio legis, a dogmática, e os elementos teleológico, histórico e sistemático.
Com efeito, não podemos descurar, a este propósito, aquilo que consta do preâmbulo do DL n.º 303/2007 de 24-08. Aí se refere:
“A presente reforma dos recursos cíveis é norteada por três objectivos fundamentais: simplificação, celeridade processual e racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuando-se as suas funções de orientação e uniformização de jurisprudência. (…)
Submetem-se claramente nesse desígnio de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça a revisão do valor da alçada da Relação para € 30 000, que é acompanhada da introdução da regra de fixação obrigatória do valor da causa pelo juiz e da regra da dupla conforme, pela qual se consagra a inadmissibilidade de recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância.(…).”

Ora, estes objectivos, clara e expressamente assumidos, de racionalização seriam destituídos de sentido caso se fizesse uma interpretação formalista e meramente literal do art. 721.º, n.º 3, do CPC.
Que racionalidade existe em não permitir um recurso numa situação de confirmação total da decisão recorrida (que para todos os efeitos equivale a uma improcedência do recurso), mas já o permitir numa confirmação mais vantajosa para o recorrente?
Os recursos existem para sindicar as sucumbências e não se antevê que lógica e racionalidade existam em permitir o recurso num caso em que a sucumbência é maior e já o permitir noutro em que a sucumbência é menor.
Assim, vale aqui o princípio de que, quando se proíbe o mais se proíbe o menos, por esta proibição estar logicamente contida na primeira.

   4. A entidade recorrente pugnou pela improcedência da questão prévia suscitada, invocando em abono da sua tese vários arestos em que, na sua óptica, se teria adoptado concepção mais restrita do requisito da dupla conformidade, exigindo a sobreposição total, sem restrições, de ambas as decisões proferidas pelas instâncias, como condição sine qua non para se verificar a restrição do acesso ao STJ - transcrevendo nomeadamente o decidido no ac. de 7/7/10, proferido pela formação a que alude o nº3 do art. 721º-A do CPC - a que compete a filtragem das revistas excepcionais – no P. 5/08.3TBGDL.E1.S1  , em que se conclui que: para que a dupla conforme exista, resulta do disposto no art. 721.º, n.º 3, do CPC, que o acórdão da Relação terá de confirmar, sem restrições, o decidido na 1.ª instância, salvo no que respeita à fundamentação, só essa podendo ser diferente, pois da redacção daquele dispositivo conclui-se que o legislador pretendeu excluir a possibilidade de recurso para o STJ, salvo as excepções do art. 721.º-A, n.º 1, do CPC, apenas nos casos em que as decisões da Relação confirmem na íntegra as da 1.ª instancia e não somente em parte.

   Importa, pois, dirimir a questão prévia suscitada, começando por salientar que a densificação e preenchimento do referido conceito normativo de dupla conforme vem sendo realizado, quer pelas Secções do STJ, quando – como ocorre no caso dos autos - apreciam os pressupostos de admissibilidade das revistas normais interpostas, quer pela formação prevista no nº3 do art. 721º- A, nos casos em que a parte optou pela interposição de revista excepcional, cumprindo a tal entidade decidir se se verificam os específicos pressupostos previstos nessa norma adjectiva.

   Ora, embora as apreciações preliminares da formação acerca da admissibilidade da figura da revista excepcional venham efectivamente acolhendo – desde logo, por razões pragmáticas, ligadas às dificuldades práticas de apuramento, em situações processuais complexas e face à plasticidade das decisões que sucessivamente, em cada instância, procuram a justa composição da lide, do que seja exactamente a dupla conformidade (veja-se a análise aprofundada que o Prof. Teixeira de Sousa realizou no artigo doutrinário atrás citado) – um conceito restritivo de dupla conformidade, fundado na exigência de sobreposição plena das decisões das instâncias, não pode deixar de se verificar, em concreto, qual a exacta configuração de cada um dos casos sub juditio, não sendo possível desligar em absoluto a referida exigência de coincidência total das decisões da peculiar fisionomia da situação concreta em apreciação.

   É que tal exigência tem sido normalmente proclamada a propósito de situações de alguma complexidade, envolvendo nomeadamente pluralidade de pretensões, algumas das quais são apreciadas de modo coincidente pelas instâncias, ocorrendo, porém, divergência essencial quanto ao sentido decisório de sentença e acórdão da Relação quanto a outras pretensões ou pedidos.

   Saliente-se que é exactamente deste tipo a situação versada no ac. de 7/7/10, invocado pela recorrente, em que estávamos confrontados com uma pluralidade de pedidos do A., a que se sobrepunha um pedido reconvencional dos RR., sendo apenas parcialmente coincidentes as decisões das instâncias sobre essa pluralidade de objectos processuais autónomos.

   Esta mesma ideia é explicitada e desenvolvida no Ac. de 29/10/09, proferido na revista excepcional interposta no P. 1449/08.6TBVCT.G1.S1, também invocado pela entidade recorrente, em que se considera que:

 Por outro lado, a conformidade a que alude a lei do processo tem de reportar-se à decisão no seu todo: se a sintonia decisória é apenas parcial, abrangendo tão só um dos segmentos da decisão, ou um (ou mais, mas não a totalidade) dos pedidos no caso de ter havido cumulação, estamos perante uma situação de “desconformidade”, perante uma “dupla desconforme”, que justificará, eventualmente, a interposição de recurso de revista “normal”, mas arreda, seguramente, a possibilidade de interposição de revista excepcional.

Havendo reconvenção, a dupla conformidade tem de ser vista e analisada separadamente, em relação à parte decisória incidente sobre o pedido do autor e à que respeita ao pedido reconvencional. A sentença engloba, nesse caso, duas distintas decisões, respeitando uma à pretensão do autor e a outra ao pedido reconvencional, bem podendo suceder, no caso de ambas as partes apresentarem recurso da sentença, que a Relação confirme, por unanimidade, uma das decisões e altere a outra, existindo, então dupla conforme em relação à primeira e desconformidade decisória no que tange à segunda.

   Porém, como atrás se realçou, a situação dos presentes autos é perfeitamente diversa, já que manifestamente apenas foi deduzido pela lesada um pedido indemnizatório no confronto da entidade recorrente, julgado procedente em ambas as instâncias, apenas tendo a Relação procedido a uma atenuação quantitativa da condenação proferida em 1ª instância, atribuindo à A. um valor pecuniário menor, por valorar diversamente os danos sofridos.

    Ou seja: a situação concreta dos autos nada tem a ver com a peculiaridade dos casos versados nos acórdãos invocados pela recorrente, pressupondo uma pluralidade de objectos processuais, apreciados de modo parcialmente divergente pelas instâncias, mas antes, por exemplo, com a situação que esteve na base do Ac. de  16/11/11, proferido pela Secção Social do STJ no P. 808/08.9TTVCT.P1.S1,onde claramente  se afirma:

 Sempre que o apelante obtenha procedência parcial do recurso na Relação, com uma decisão mais favorável do que a decisão recorrida, está-se perante duas decisões “conformes”, no sentido de impedirem que essa parte possa interpor recurso de revista para o STJ porquanto se a improcedência total da apelação obsta, por imposição do sistema da dupla conforme, à interposição da revista, então também a improcedência parcial dessa apelação não pode deixar de produzir, por idêntica razão, o mesmo efeito impeditivo.

  Ocorrendo, deste modo, num litígio caracterizado pela existência de um único objecto processual uma relação de inclusão quantitativa entre o montante arbitrado na 2ª instância e o que foi decretado na sentença proferida em 1ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela Relação já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo acórdão de que se pretende obter revista, temos como evidente que tem de se ter por verificado o requisito da dupla conformidade das decisões, no que respeita ao montante pecuniário arbitrado pela Relação.

   É que, a não se entender assim, estaríamos a criar um regime perfeitamente incoerente e arbitrário no acesso ao STJ , já que a prolação de uma decisão mais onerosa para a parte – a pura e simples manutenção do valor da condenação em 1ª instância -  a privaria do direito de interpor revista, ao passo que uma decisão mais favorável ao próprio recorrente, expressa numa atenuação quantitativa do valor pecuniário da condenação correspondente ao único pedido formulado, lhe iria estranhamente abrir a via do recurso de revista…

   5. Nestes termos e pelos fundamentos apontados julga-se procedente a questão prévia suscitada quanto à admissibilidade da revista, da qual se não conhece.

   Custas pela entidade recorrente.

Lisboa, 10 de Maio de 2012

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor