Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
128/05.0JDLSB-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: OPOSIÇÃO DE JULGADOS
RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
EFEITO À DISTÂNCIA
ESCUTAS TELEFÓNICAS
LOCALIZAÇÃO CELULAR
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Área Temática: DIREITO PENAL - OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Doutrina: - SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, in “Recursos em Processo Penal”, pag. 183 e nota 189.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP) : - ARTIGOS 187.º, N.ºS 1 E 4, 189.º, N.º 2, 437.º, E 441.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL JUSTIÇA:
- DE 23/04/1986, IN B.M.J. 356-272;
- DE 11/10/2001, Pº 2236/01, DA 5ª SECÇÃO.
Sumário : I - O art. 437.º do CPP reclama, para fundamento do recurso extraordinário de revisão, a existência de dois acórdãos tirados sob a mesma legislação, que assentem em soluções opostas quanto à mesma questão de direito. Perfilada uma questão de direito, importa que se enunciem “soluções” para ela, que se venham a revelar opostas.
II - Se os dois acórdãos têm que assentar em soluções opostas, essa oposição deve além disso ser expressa e não tácita. Isto é, tem que haver uma tomada de posição explícita divergente quanto à mesma questão de direito. Não basta que a oposição se deduza de posições meramente implícitas, que estão para além da decisão final, ou que em cada um dos acórdãos esta tenha, só por pressuposto, teses diferentes.
III - Mas importa ainda que se esteja perante a mesma questão de direito. E isso só ocorrerá quando se recorra às mesmas normas, reclamadas para aplicar a uma certa situação fáctica, e elas forem interpretadas de modo diferente. Interessa, pois, antes de mais, que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes, naquilo que interessa ao desencadeamento da aplicação das mesmas normas.
IV - No recurso em foco não se trata de apreciar a bondade da decisão proferida no acórdão recorrido. Trata-se de verificar se aí se tomou uma posição, sobre uma questão de direito, em contradição com a posição que, sobre a mesma questão de direito, se tomou no acórdão fundamento.
V - Analisando o caso em apreço, desde logo são diferentes os factos, quanto aos meios de prova envolvidos, já que está em causa a localização de telefone celular e o registo de dados de tráfico no acórdão recorrido, e escutas telefónicas no acórdão fundamento. O grau de intromissão na privacidade da pessoa alvo destas medidas é muito diverso, bem como diferente é o contributo que as medidas aqui contrapostas podem dar, como prova indiciária.
VI - O n.º 2 do art. 189.º do CPP estende o regime das escutas do art. 187.º, n.ºs 1 e 4, à recolha de dados sobre a localização celular, e ao registo de realização de conversações, mas, para além de prever estas últimas em qualquer fase do processo, o preceito limita-se à questão da necessidade de ocorrer autorização judicial para que aqueles meios de prova possam ter lugar. Assim sendo, estando em causa a questão de saber qual a validade da prova que forneça “conhecimentos fortuitos” em ambos os casos, entende-se que não se deve enveredar por um regime igual, e que, pelo contrário, as situações não são equiparáveis.
VII - A posição que se defende vai no sentido de que o uso de conhecimentos obtidos através de localização celular, ou o registo de realização de conversações, não tem que estar sujeito às mesmas restrições que o uso de “conhecimentos fortuitos” obtidos através das escutas, o que inviabiliza, no caso, o preenchimento do requisito da oposição de julgados.
VIII - Acresce que, ambos os acórdãos têm a mesma posição quanto à questão de direito de saber, se pode ser usado como prova de um crime não mencionado no n.º 1 do art. 187.º do CPP, o resultado de interferências nas telecomunicações (ou dados que se supusessem equiparáveis, por força do art. 189.º, n.º 2, do CPP), que foram autorizadas sob a invocação de outro crime, esse sim contemplado no citado n.º 1 do art. 187.º.
IX - Em ambos os arestos em confronto, e perante esta questão, a posição que aflora é uma posição intermédia, segundo a qual os meios de prova são utilizáveis, para além do mais, desde que digam respeito ao crime para que foram autorizados, quando digam respeito a outro crime igualmente de catálogo, ou desde que digam respeito a crime que tenha uma conexão intrínseca, não meramente processual, com o crime para que foram autorizados.
X - É que a chave da posição comum aos dois acórdãos, quanto à questão de direito em foco, está na distinção entre “conhecimentos fortuitos” e “conhecimentos de investigação”, a que ambas as decisões se reportam. Distinção trabalhada pela doutrina e jurisprudência, e que ambos os acórdãos tiveram em conta, certo que, em nome dessa distinção, deve considerar-se vedada a utilização dos “conhecimentos fortuitos”, e autorizada a dos “conhecimentos da investigação”, sempre no condicionalismo em apreço.
Decisão Texto Integral: A – RECURSO

AA interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo dos nºs 1 e 2 do artº 437º do C.P.P., e concluiu a sua motivação como se segue:

“1 – [O acórdão recorrido] decidiu que mesmo que o arguido não venha a ser condenado por um crime de catálogo, previsto no nº 1 do artigo 187º de CPP, podem, ainda assim, as intercepções telefónicas serem usadas como prova.
2 – Esta decisão está em oposição com uma outra proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no processo 551/02.2 PWLSB.L1 da 5ª secção em 10.03.2009.
3 – No acórdão agora fundamento, perfilhou-se o entendimento precisamente contrário.
4 – Nestes dois doutos arestos decidiu-se a mesma questão fundamental de direito, sobre uma questão análoga de facto, sempre no âmbito da mesma legislação e assentando em soluções manifestamente opostas.
5 – Saber se a condenação por crime fora do catálogo do nº 1 do artigo 187º, é possível com o recurso a intercepções telefónicas inicialmente autorizadas para um crime aí previsto.
6 – Entendemos que deve ser fixada jurisprudência com o sentido do acórdão fundamento deste recurso, no sentido de que as intercepções telefónicas autorizadas tendo em vista um crime enquadrável no nº 1 do artº 187º do CPP, não podem ser usadas como prova se oarguido vier a ser condenado por crime fora daquele catálogo.”

Acrescenta que se violaram os artºs 126º e 187º do CPP e que o recurso deve merecer provimento fixando-se jurisprudência no sentido propugnado.
Foi junta certidão do acórdão recorrido, com nota de trânsito em julgado, a 21/10/2009 (fls. 1), e, na sequência de promoção do Mº Pº nesse sentido, certidão do acórdão fundamento, com a nota de trânsito em julgado a 30/3/2009 (fls. 107).

O MºPº neste S.T.J. teve vista nos autos, ao abrigo do nº 1 do artº 440º do C.P.P., e pronunciou-se em sentido negativo quanto ao preenchimento dos pressupostos da prossecução do presente recurso, por, nas decisões postas em confronto, não haver oposição de julgados.
Referiu que, no Pº 551/02.2 PWLSB.L1 (do 1º Juízo Criminal da Comarca de Loures), fora autorizada a intercepção e gravação de escutas, por se investigar um crime de corrupção e só este, havendo depois lugar a uma acusação pelo crime de burla simples. Que essa acusação não fora recebida por se não poderem valorar tais intercepções, e interposto recurso da decisão, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão aqui fundamento, negou provimento a esse recurso, com a explicação de que não podiam ser aproveitados “conhecimentos marginais” ao objecto para que fora autorizada a intercepção. E que, se assim não fosse entendido, sempre se poderiam usar escutas para prova de qualquer crime, bastando que à partida se invocasse um crime de catálogo para sua autorização, crime esse que se abandonaria a seguir. Prosseguiu então dizendo:

“(…) Bem diferente é a situação sobre que se debruçou o acórdão recorrido.
Como se refere a fls. 15, no momento em que foi ordenado pelo M° Juiz de Instrução, a junção aos autos da facturação detalhada relativa a telefones utilizados pelo arguido, estava sob investigação não só o crime de violação de segredo de justiça, que, atenta a moldura penal, não admitia tal meio de prova, mas crimes de corrupção, p. e p. nos artigos 372° e 374° do C. Penal, ambos puníveis com penas de prisão superiores a 3 anos.
Nestes termos, como logo a seguir se acrescenta, tais ordens judiciais respeitavam, na íntegra, o regime legal aplicável, atento o disposto no artigo 187° n° 1, a) do C. P. Penal - fls. 15.
Feito esse enquadramento, aborda-se, então a questão de saber se "aqueles meios de prova podem ser valorados, em sede de julgamento, mesmo quando o digno Ministério Público arquivou os autos no que toca aos aludidos crimes de corrupção".
E a conclusão que se extrai é a de que não se vislumbra qualquer proibição na valoração dos meios de prova em causa, tendo-se indeferido, consequentemente, a requerida proibição da valoração dos mesmos - cf. fls. 17-18.
Como aí se desenvolve:
..."não estando em causa conhecimentos fortuitos, porquanto não se trata de informações colhidas por escutas ou outros meios sujeitos ao mesmo regime, que extravasam o objecto de uma determinada investigação concreta, julga-se estar assim perante conhecimentos de investigação que podem e devem ser valorados em sede de julgamento.
Com efeito, como já se disse, a ordem judicial dada não enferma, pois, de qualquer vício formal ou material, sendo certo que estavam sob investigação crimes de violação de segredo de justiça conexos com eventuais crimes de corrupção...
No momento em que foram ordenadas a junção dos elementos em causa, ... encontravam-se preenchidos todos os requisitos materiais previstos no artigo 187° do C. P. Penal, tendo tal dispositivo legal sido formalmente respeitado. Não existiu assim qualquer violação da lei aplicável, ou seja, uma ingerência abusiva na esfera da reserva privada" (Sublinhei).
Assim sendo, a invocada oposição de julgados mostra-se, pois, manifestamente prejudicada.
5. Termos em que se emite parecer no sentido de que deverá concluir-se pela não verificação da oposição de julgados, rejeitando-se, consequentemente o recurso.”

Ambas as decisões transitaram em julgado, e o acórdão fundamento transitou em julgado antes do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos submeteram-se os autos a conferencia.



B – APRECIAÇÃO

1) Quanto à decisão recorrida

A posição assumida pelo acórdão recorrido quanto à questão em apreço, debruçou-se primeiro sobre as considerações tecidas em primeira instância, no então Pº 128/05.0 JDLSB da 2ª Secção do 6º Juízo Criminal de Lisboa.
De acordo com estas, importava começar por contextualizar a questão da utilização dos meios de prova em foco, que, no caso, eram extractos de facturação detalhada e a localização celular referente a telefones fixos e móveis, tendo a decisão sujeitado expressamente a utilização em questão, ao regime dos artºs 187º a 189º do C P P.
Com aquele propósito, disse-se que
no momento em que se verificou a autorização judicial para solicitar os elementos de prova em causa – facturação detalhada e localização celular - [havia] fundamento legal para tanto, pois investigava-se não apenas o crime de violação de segredo de justiça por funcionário (art. 371º, nº 1 do Código Penal, punível com pena de prisão até 3 anos), mas também crimes de corrupção, previstos nos artºs 372º e 374º do Código Penal, ambos puníveis com penas de prisão superiores a 3 anos”
E prosseguiu-se:
“ Tendo os meios de prova sido produzidos em circunstâncias harmónicas com a lei (art. 187° do Código de Processo Penal), coloca-se agora a questão de saber se aqueles meios podem ser valorados, em sede de julgamento, mesmo quando o digno magistrado do Ministério Público arquivou os autos no que toca aos aludidos crimes de corrupção.
A questão tem conexões com a problemática dos "conhecimentos fortuitos", obtidos através, por exemplo, de escutas telefónicas, ou seja, o conhecimento de factos ilícitos que extravasam uma investigação concreta. No entanto, a questão ora em análise é diferente e deve ser entendida como um conhecimento da investigação e não como um conhecimento fortuito da investigação”.
Depois de acentuar que os conhecimentos da investigação configuram uma categoria processual distinta dos conhecimentos fortuitos, acrescentou-se:
“Ora, não estando em causa conhecimentos fortuitos, porquanto não se trata de informações colhidas por escutas ou outros meios sujeitos ao mesmo regime, que extravasam o objecto de uma determinada investigação concreta, julga-se estar assim perante conhecimentos da investigação que podem e devem ser valorados em sede de julgamento”
Refere-se que estavam em investigação crimes de violação de segredo de justiça conexos com os de corrupção, porque o que se investigava era o facto de o arguido, funcionário da P J, ter fornecido informações sujeitas a segredo, a troco de contrapartidas financeiras. E adiante:
“Por outro lado os elementos obtidos reportam-se directamente ao objecto da investigação, tratando-se do mesmo processo histórico, com indiciadas situações de comparticipação, tratando-se de conhecimentos da investigação directamente relacionados com o objecto do processo. Por último, sempre se dirá que a investigação incidia sobre uma pluralidade de crimes em possível concurso ideal (…).”
Negando provimento ao recurso interposto desta decisão, o acórdão aqui recorrido reiterou a posição aí assumida dizendo a certa altura:
“Voltando ao caso dos presentes autos, como supra referido, foram respeitados todos os requisitos inscritos no disposto no art. 187° do Código de Processo Penal, pelo que, tal como no caso em análise no Acórdão acabado de citar, também no caso sub-judice, foram observadas as regras de produção de prova, pelo que o facto de, posteriormente, em sede de acusação, se ter decidido arquivar o crime de corrupção, nos termos do disposto no art. 277° n° 2 do Código de Processo Penal, não coloca em crise a validade do despacho de autorização proferido pelo M.mo Juiz de Instrução, porquanto, à data da produção do mencionado despacho, existiam, efectivamente, indícios da prática, pelo arguido, de tal crime e o supra referido despacho foi proferido em obediência a todos os preceitos legais, não enfermando de qualquer nulidade ou invalidade (…).
A respeito deste argumento chamamos à colação o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.10.2007, por nós relatado, disponível em www.dgsi.pt/jtrl quando refere que:
"A problemática dos conhecimentos fortuitos não se encontra muito tratada na jurisprudência portuguesa e, mesmo a nível doutrinário, a respectiva abordagem tem sido feita por dois ou três autores que recentemente lhe dedicaram mais aprofundando estudo com base na doutrina e jurisprudência alemãs, por força da quase total similitude dos respectivos ordenamentos jurídicos no que respeita ao mecanismo legal das escutas telefónicas.
Assim, na doutrina, quer nacional quer estrangeira, as posições extremas têm seguidores, havendo quem defenda a valoração, sem restrições, dos conhecimentos fortuitos, em nome do postulado da continuidade entre a licitude da produção de uma prova e a legitimidade da sua valoração, e quem opte pela proibição de valoração de todo e qualquer conhecimento fortuito, em nome da exigência constitucional da reserva de lei (vd. entre nós, defendendo esta proibição, Francisco Aguilar, "Dos Conhecimentos Fortuitos Obtidos Através de Escutas Telefónicas ", Almedina, pág. 76 e 108).
Dando por assente a distinção conceptual entre os denominados conhecimentos da investigação - factos obtidos através de uma escuta telefónica legalmente efectuada que se reportam ou ao crime cuja investigação legitimou as escutas ou a um outro delito que esteja Baseado "na mesma situação histórica de vida" (Conceito cujo conteúdo é susceptível de ser obtido mediante o recurso aos critérios objectivos vertidos no art.º 24 °, n.° 1, do CPP, referentes às situações de conexão processual, embora o seu conteúdo não se esgote naquelas constelações típicas - Francisco Aguilar, obra e local citados) daquele - e os aludidos conhecimentos fortuitos, em que só estes últimos aqui interessam, dir-se-á que «a orientação generalizada da doutrina e da jurisprudência alemãs é no sentido de admitir apenas a utilização dos conhecimentos fortuitos que se reportem a um dos crimes relativamente aos quais a escuta é legalmente admissível» - Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal II, 3.a ed. 2002, pág. 225 - posição para que propende este mesmo autor. No mesmo sentido se têm pronunciado os demais autores portugueses (Manuel Monteiro Guedes Valente, in "Escutas Telefónicas - da Excepcionalidade à Vulgaridade", Almedina, 2004, págs. 84 a 86, que acompanha as conclusões de Costa Andrade, nessa matéria). "
Nesta linha de pensamento se insere o Acórdão do STJ de 16.10.2003 em que foi relator o Exmo. Conselheiro Rodrigues da Costa, disponível em www.dgsi.pt/jstj, quando refere: "Neste sentido não há autonomia de investigação, como se assinala no Acórdão recorrido. E, também, como ponderam os Senhores Desembargadores no mesmo Acórdão, estes factos têm que ser vistos à luz da conexão que intercede entre eles - os destes autos e os do processo 306/00 - ou até, em relação ao recorrente B, como factos que dizem respeito ao mesmo processo, apesar de terem sido autonomizados.
O facto de os processos não terem sido apensados não significa que a conexão não exista, como, além disso, a apensação não é forçosa como resulta, desde logo, do art°. 30° do CPP. O certo é que os factos apresentam conexão uns com os outros. E mais do que isso: estão numa relação de interligação, o que, de resto, é assinalado no próprio despacho de autorização das escutas telefónicas. Foi para permitir descobrir a actividade delituosa, no domínio do tráfico de estupefacientes, do recorrente B e da «rede» que pressupostamente ele controlava, que elas foram autorizadas, e assim é que foi, na verdade, descoberta a actividade delituosa a que se reportam estes autos. Basta ler o despacho inserto por certificação a fls. 1435 e 1436 para ficarmos elucidados sobre isso. Ora, neste contexto, os conhecimentos adquiridos por via das escutas são conhecimentos da investigação e não conhecimentos fortuitos, pois «se reportam ao crime cuja investigação legitimou a sua autorização» (COSTA ANDRADE, Sobre o Regime Processual Penal das Escutas Telefónicas, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1º, n°. 3, p. 399).
«Em situações como estas ou semelhantes, nada repugna e até se justifica que os dados legalmente obtidos através das escutas telefónicas para determinados factos sejam extensíveis à prova dos demais factos que com eles tenham um pólo de afinidade, assim se aproveitando os resultados de uma actividade que teve como escopo cobrir uma rede de criminalidade interligada». (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/10/02, relatado pelo Conselheiro Leal Henriques, CJ ACS STJ, Ano X, T. 3o, pgs. 214/215)."
E perante o exposto, conclui-se que a intercepção de dados de tráfego determinada e realizada nos autos foi legalmente autorizada e efectuada podendo a prova por esse meio obtida ser valorada, como foi, pelo tribunal recorrido.
Na verdade, na esteira do que vimos dizendo, existe conexão entre o crime imputado ao arguido, em sede de acusação e de pronuncia (violação de segredo por funcionário) e pelo qual veio a ser condenado, e o crime de corrupção que inicialmente lhe era imputado por existência de fortes indícios deste à data da prolação do despacho judicial que determinou a realização daquele meio de obtenção de prova, pelo que inexiste dúvida de que tais elementos de prova se traduzem em conhecimentos da investigação obtidos em investigação comum a ambos os crimes.
Para além disso mostra-se de certo modo incompreensível que só em sede de recurso seja tal questão suscitada uma vez que o "abandono" da existência de crime de corrupção se verificou em sede de acusação pública e em sede de requerimento de instrução formulado pelo arguido/recorrente a mesma não é suscitada, o que voltou a ocorrer em sede de contestação.”

2) Quanto ao acórdão fundamento

No acórdão fundamento, começa por se aludir ao facto de, no Pº 551/02.2 PWLSB então do 1º Juízo Criminal de Loures, o Mº Pº ter acusado os dois arguidos dos autos pelo crime de burla na forma continuada, ao que se seguiu o requerimento da instrução por parte de um deles. Foi então proferido despacho de não pronúncia, em que o Merº J I C recusou que a suposta realização das intercepções telefónicas tivesse tido lugar, fora dos prazos concedidos pelo despacho judicial de autorização, e passou depois a tomar posição sobre outra questão, a saber, a da própria utilização das escutas como meio de prova. Transcreveu o art. 187º nº 1 do C P P tanto na redacção anterior à Lei 48/2007 de 29 de Agosto, como na actual, e disse:
“(…) Em qualquer uma das redacções transcritas, a exigência de que as intercepções telefónicas se destinem à investigação de um dos crimes do "catálogo" surge como pressuposto necessário da sua admissibilidade legal e legitimação constitucional.
Como se deixou exarado no despacho que as autorizou, as mesmas visavam a investigação da
Prática de um eventual crime de corrupção, previsto e punível pelo art.° 374°, n.° 1, do Código Penal com pena de prisão até 5 anos, logo, enquadrável na ai. a) do n.° 1 do art.° 187° do Código Penal.
Todavia, como resulta da informação da Polícia Judiciária, de tais intercepções não foi recolhida qualquer informação relevante sobre tal crime, mas sim daquele pelo qual os arguidos vieram a ser acusados: o crime de burla, na sua forma simples, previsto e punível pelo art.° 217°, n.° 1, do Código Penal, com pena de prisão até 3 anos.
Vale isto por dizer que se coloca aqui a problemática dos chamados "conhecimentos fortuitos", entendidos estes como os factos ou conhecimentos recolhidos por meio da realização lícita da intercepção e gravação de comunicações e/ou conversações telefónicas, registo de voz em off e imagem, por via de actuação de agente infiltrado ou por meio de apreensão de correspondência e que não se reportem ao crime ou crimes que fundamentaram o recurso ao meio de obtenção de prova em causa, nem a qualquer outro delito (pertencente ou não ao catálogo legal) que esteja baseado na mesma situação histórica de vida daquele.
Discutiu-se longamente, quer a nível doutrinal, quer jurisprudencial, a "aproveitabilidade" de tais conhecimentos fortuitos.
Em termos jurisprudenciais, um dos primeiros arestos que abordou esta questão foi o Ac. RP 11-01-1995, onde se decidiu que «em matéria de escutas é já aceite, como princípio de observância obrigatória, o da proibição dos conhecimentos fortuitos que não estejam em conexão com um crime do catálogo, entendido este como o numerus clausus dos delitos em cuja instrução a lei adjectiva admite a possibilidade de utilização das escutas».
O mais recente Ac. STJ 23-10-2G02, analisando exaustivamente a problemática, começa por destrinçar, na linha do defendido por MANUEL DA COSTA ANDRADE, os conhecimentos de investigação dos conhecimentos fortuitos: «No primeiro caso estamos ainda no âmbito da própria investigação em curso e em que portanto existe uma maior ou menor proximidade entre situações que estão a ser objecto de apuramento (v.g. «factos que estejam numa relação de concurso ideal e aparente com o crime que motivou e legitimou a investigação por meio da escuta telefónica»; casos de «delitos alternativos que com ele estejam numa relação de comprovação alternativa dos factos»;de «crimes que, no momento em que é decidida a escuta em relação a uma associação criminosa, aparecem como constituindo a sua finalidade ou actividade»; e ainda no caso de «formas de comparticipação-autoria e cumplicidade» e de «formas de favorecimento pessoal, auxílio material ou receptação». Em situações como estas ou semelhantes, nada repugna e até se justifica que os dados legalmente obtidos através de escutas telefónicas para determinados factos sejam extensíveis à prova dos demais factos que com eles tenham um polo de afinidade, assim se aproveitando os resultados de uma actividade que teve como escopo cobrir uma rede de criminalidade interligada.
Estes são os casos mais frequentes em que o problema se pode colocar. No segundo caso, que poderemos considerar residual, a situação é mais melindrosa, pois que contende com os chamados conhecimentos fortuitos, isto é com conhecimentos obtidos de forma lateral e sem relacionamento com a investigação em curso. Aqui, e utilizando palavras de GERMANO MARQUES DA SILVA, trata-se de saber «qual o valor dos conhecimentos obtidos sobre factos que não se reportam ao crime cuja investigação legitimou a realização da escuta telefónica»: Avançando depois para a definição de um critério de admissibilidade de valoração dos conhecimentos fortuitos, escreve-se no citado acórdão que «o aproveitamento dos conhecimentos fortuitos através de escutas telefónicas será meio de prova válido e admissível se: - as escutas de que provêm os conhecimentos fortuitos tiverem obedecido aos respectivos requisitos legais contidos no art, ° 187° do CPP (prévia autorização judicial, referentes a crimes taxativamente indicados na lei - crimes de catálogo - e seu interesse para a descoberta da verdade ou para a prova); - o crime ou crimes em investigação e para cujo processo se transportam os conhecimentos fortuitos constituírem também crimes de catálogo; - o aproveitamento desses conhecimentos tiverem igualmente interesse para a descoberta da verdade ou para a prova no processo para onde são transportados; - o arguido tiver tido possibilidade de controlar e contraditar os resultados obtidos por essa via».
Na doutrina esta é igualmente a posição que mais defensores encontra, entre os quais se salienta MANUEL DA COSTA ANDRADE. Baseando-se na experiência jurisprudencial alemã sobre a matéria, erige este consagrado autor a exigência mínima da possibilidade de aproveitamento dos conhecimentos fortuitos que os mesmos se reportem a um crime do catálogo, ou seja, a uma das infracções previstas no art.° 187°, n.° 1, do Código de Processo Penal. É ainda de exigir, na óptica deste autor, a existência de um estado de necessidade investigatório, ou seja, a verificação da possibilidade de, também quanto ao crime que não fundamentou a autorização da intercepção telefónica mas cuja investigação irá beneficiar do resultado desta, formular um juízo de proporcionalidade e de indispensabilidade - naturalmente que hipotético e póstumo - do recurso a tal meio de obtenção de prova também para a sua investigação. Nas palavras de RUDOLPHI, «a decisão axiológica do legislador com que ele concretizou e fixou em termos legais o princípio constitucional da proporcionalidade terá de valer não só para a autorização da escuta, mas também e na mesma medida, para a valoração das conversações que a utilização legal de uma escuta telefónica permitiu registar no gravador».
No caso vertente, estamos claramente perante conhecimentos fortuitos e não de investigação. Com efeito, para além da denúncia única, nenhum outro ponto de contacto, em termos materiais, existe entre o crime de burla pelo qual os arguidos vieram a ser acusados e o denunciado crime de corrupção a agentes policiais, que mereceu despacho de arquivamento. Inexistem relações de concurso, nos termos do art.° 30°, n.° 1, do Código Penal, nem surgem como funcionalmente dependentes um do outro.
Ora, surge então como incontornável a constatação de que o crime objecto de acusação e que se encontra sustentado, entre outros meios de prova, nas transcrições das intercepções telefónicas realizadas, não é, nem nunca foi, um crime do catálogo, já que não se enquadra no âmbito de aplicação do art.° 187° do Código de Processo Penal. Como já se referiu, a mera circunstância de estar a ser investigado no mesmo processo (por incorporação) daquele em que foram realizadas as intercepções telefónicas não tem a virtualidade de abrir caminho à admissibilidade da sua valoração. Isto porque a problemática dos conhecimentos fortuitos se reporta aos crimes em sentido substancial e não aos processos onde os mesmos são investigados. Como se sabe, as regras de conexão processual, tal como previstas nos art.ºs 24° a 29° do Código de Processo Penal são bem mais amplas do que as regras do concurso de crimes e são a expressão de interesses diversos daqueles que se focaram e que legitimam o aproveitamento dos conhecimentos fortuitos. Veja-se, a título de exemplo, o critério previsto no art.° 25° do Código de Processo Penal, em que basta a coincidência do agente e da competência do tribunal para determinar a conexão processual, independentemente de os crimes em causa nenhum relacionamento terem entre si.
Acresce ainda que, com o advento da Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto, o legislador português tomou posição expressa quanto a esta problemática, ao consignar no n.° 7 do art.° 187° do Código de Processo Penal que «Sem prejuízo do disposto no artigo 248.°, a gravação de conversações ou comunicações só pode ser utilizada em outro processo, em curso ou a instaurar, se tiver resultado de intercepção de meio de comunicação utilizado por pessoa referida no n.° 4 e na medida em que for indispensável à prova de crime previsto no n.° 1».
Significa isto que a doutrina do citado Ac. STJ 23-10-2002 e de MANUEL DA COSTA ANDRADE foi agora vertida em letra de lei.
Naturalmente que, por identidade de razão, a menção que agora consta do citado preceito a «outro processo, em curso ou a instaurar» deve também ser estendida aos casos em que não ; existam processos autónomos, mas apenas um processo, por via das regras de conexão processual.
(…)
No seguimento do que fica dito, há então que considerar não valoráveis as intercepções telefónicas como meios de prova para sustentar a imputação do crime de burla simples aos arguidos, pese embora as mesmas tenham sido validamente autorizadas e realizadas.”
Foi lavrado despacho de não pronúncia no processo, por falta de prova do crime de burla, face à impossibilidade de utilização das escutas feitas, na medida em que os factos por elas revelados foram tidos por “conhecimentos fortuitos”.
Interposto recurso pelo Mº Pº, o qual defendeu que se não estava, no caso, perante tais “conhecimentos fortuitos”, a Relação veio então a pronunciar-se, em termos que consubstanciam o acórdão fundamento invocado. Delimitou-se o objecto do recurso reconduzindo-o
“à questão de saber se, em relação ao crime de burla simples, pelo qual o Ministério Público deduziu acusação, podem ser valoradas as escutas telefónicas efectuadas nos autos, e se a responsabilidade penal dos arguidos, pelos factos que lhe são imputados nessa mesma acusação, se acha ou não indiciada”~
Foi negado, a final, provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Entretanto, disse-se, no acórdão fundamento:
“(…) II 1. Como refere o despacho recorrido, as intercepções telefónicas em causa foram autorizadas tendo em vista a investigação da prática de um eventual crime de corrupção, previsto e punível pelo art° 374°, n.° 1, do Código Penal com pena de prisão até 5 anos, logo, enquadrável na al. a) do n.° 1 do art° 187° do Código Penal.
Contudo, de tais intercepções não foi recolhida qualquer informação relevante sobre tal crime, mas sim daquele pelo qual os arguidos vieram a ser acusados - o crime de burla, na sua forma simples, previsto e punível pelo art.° 217°, n.° 1, do Código Penal, com pena de prisão até 3 anos.
Não sendo este crime abrangido pelo "catálogo" do art.187, do CPP, coloca-se, então, a questão de saber se podem ser aproveitados os elementos obtidos em intercepção validamente efectuada em relação a crime diverso.
Quanto a esta questão, refere o Prof. Costa Andrade (“Sobre o Regime Processual Penal das Escutas Telefónicas" - Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1, Fase. 3, 1991, pág.a 407) "temos por bem fundado o entendimento da doutrina e jurisprudência alemãs na parte em que reclamam como exigência mínima que os conhecimentos fortuitos se reportem a um crime de catálogo, uma das infracções previstas no artigo 187 do GPP. Para além disso cremos, em segundo lugar, ser mais consistente a posição dos autores que, a par do crime de catálogo, fazem intervir exigências complementares tendentes a reproduzir aquele estado de necessidade investigatória que o legislador terá arquetipicamente representado como fundamento da legitimação (excepcional) das escutas telefónicas".
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 4 de Maio de 2006 (Proc. n.° 4406/05 - 5.ª Secção, Relator Alberto Sobrinho, sumário acessível em www.stj.pf). decidiu:
"Poder-se-á atribuir valor probatório aos conhecimentos fortuitos obtidos através de escutas telefónicas se (cf. Ac. do STJ de 23-10-02):
- as escutas de que provêm os conhecimentos fortuitos tiverem obedecido aos respectivos requisitos legais contidos no art. 187.° do CPP (prévia autorização judicial, crimes taxativamente indicados na lei -"crimes de catálogo" - e seu interesse para a descoberta da verdade ou para a prova);
O crime ou crimes em investigação e para cujo processo se transportam os conhecimentos fortuitos constituir(em) também "crimes de catálogo";
- o aproveitamento desses conhecimentos tiver igualmente interesse para a descoberta da verdade ou para a prova no processo para onde são transportados;
- o arguido tiver tido possibilidade de controlar e contraditar os resultados obtidos por essa via". Neste mesmo sentido, decidiu o Ac. deste Tribunal de 6 de Maio de 2003 (Relatora Filomena Clemente Lima), citado no douto parecer da Ex.ma PGA a fls.702 "I - "A intercepção deve respeitar unicamente aos crimes do catálogo (elenco do artigo 187. ° CPP) e dizer respeito a eles. Se em resultado de escuta realizada e autorizada para obtenção de prova de crimes dos previstos no catálogo se colherem informações marginais que denunciem o conhecimento de outro crime não constante do elenco referido, não poderão tais informações fortuitas ser usadas para instruir crimes de gravidade inferior à referenciada, para os crimes referidos no artigo 187.° CPP." (Extracto do Acórdão) II - "Como tal está consagrado um verdadeiro princípio de proibição de valoração dos conhecimentos fortuitos que não estejam em conexão com um crime do catálogo e em função do qual não foi autorizada a escuta que esteve na sua origem (Extracto do Acórdão)”III - "Tais provas proibidas não podem servir para sustentar a pronúncia da arguida como não o seriam para alicerçar uma decisão de condenação. "(Extracto do Acórdão)".
No caso, pretende o recorrente aproveitar os conhecimentos marginais ao objecto para que foi autorizada a intercepção telefónica para fazer prova de crime não abrangido pelo "catálogo", sem que esteja demonstrado, ainda, a indispensabilidade deste meio de prova para a descoberta da verdade.
A aceitar-se a possibilidade de aproveitamento das escutas, nestas circunstâncias, estaria a admitir-se um sistema fácil de fazer escutas em relação a qualquer crime, ordenando-se a realização das mesmas por um crime de "catálogo" e aproveitando-as, mesmo que tal crime de "catálogo" não se confirmasse, para demonstrar uma série de crimes em relação aos quais o legislador não quis admitir este meio de prova, por entender de não justificam as intromissões na esfera privada dos cidadãos que dele sempre resultam.
Assim, não merece o despacho recorrido qualquer censura na parte em que considerou, " as intercepções telefónicas realizadas, não valoráveis para o caso”.

3) Quanto à invocada oposição

3. 1. O artº 437º do C.P.P. reclama, para fundamento do recurso extraordinário de revisão, a existência de dois acórdãos tirados sob a mesma legislação, que assentem em soluções opostas quanto à mesma questão de direito. Perfilada pois uma questão de direito, importa que se enunciem “soluções” para ela, que se venham a revelar opostas.
Se os dois acórdãos têm que assentar em soluções opostas, essa oposição deve além disso ser expressa e não tácita. Isto é, tem que haver uma tomada de posição explícita divergente quanto à mesma questão de direito.
Não basta que a oposição se deduza de posições implícitas, que estão para além da decisão final, ou que em cada um dos acórdãos esta tenha, só por pressuposto, teses diferentes.
A oposição tem que se verificar na decisão e não aos seus fundamentos (cf. v.g. Ac. do S.T.J. de 11/10/2001, Pº 2236/01 desta 5ª Secção).
Mas importa ainda que se esteja perante a mesma questão de direito. E isso só ocorrerá quando se recorra às mesmas normas, reclamadas para aplicar a uma certa situação fáctica, e elas forem interpretadas de modo diferente. Interessa pois, antes do mais, que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes, para o que interessa ao desencadeamento da aplicação das mesmas normas.
Citando A. REIS, dizem-nos SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES:
“Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas” (in “Recursos em Processo Penal”, pag. 183).
A seu turno, o Ac. deste S.T.J. de 23/4/1986 (B.M.J. 356-272) defendeu que “É indispensável para haver oposição de acórdãos, justificativa de recurso, que as disposições legais em que se basearam as decisões conflituantes, tenham sido interpretadas e aplicadas diversamente a factos idênticos”. Esta jurisprudência foi depois uniformemente seguida neste Supremo Tribunal (cf. ob. cit. a menção dos acórdãos pertinentes, a pag. 183, nota 189).

É evidente que se não trata aqui de apreciar a bondade da decisão proferida no acórdão recorrido. Trata-se de verificar se aí se tomou uma posição, sobre uma questão de direito, em contradição com a posição que, sobre a mesma questão de direito, se tivesse tomado no acórdão fundamento.
Ora isso, a nosso ver, não teve lugar.

3. 2. Quanto à equivalência das situações fácticas subjacentes aos dois acórdãos, os elementos disponíveis apontam para realidades diferentes.
Como se viu, no acórdão recorrido estava ab initio em causa o comportamento de um certo funcionário, que fazia passar informações obtidas em virtude do exercício da sua profissão, suspeitando-se que por isso recebia dinheiro. A pertinente autorização foi solicitada tendo em conta esta prática delituosa. Só que não dizia respeito a intercepções e gravações de conversas telefónicas, e, pelo contrário, a localização de telefone celular e a registo de dados de tráfico para se saber quem falou com quem.
No acórdão recorrido, tanto quanto resulta do teor do recurso que o Mº Pº interpôs, investigou-se (aqui com recurso a escutas mesmo), o comportamento de empresas de transportes que se desdobrava em dois tipos de condutas.
Por um lado, a corrupção de elementos da G N R e P S P, e, por outro lado, um estratagema ardilosos que não tinha nada a ver, ao que se sabe, com esses agentes da autoridade. Tratava-se de fazer entrar as viaturas portadoras de identificação da via verde, numa portagem da C R E L, situada antes do posto de abastecimento da S...BB...L sito na região do Tojal, retirando um ticket de portagem que depois é deixado em envelope fechado no posto da S...BB...L, e que vem a ser recolhido pelos condutores das viaturas pesadas das duas sociedades do arguido, procedentes de Coimbra ou do Porto através da A1, entregando os camionistas esses tickets à saída da C R E L, e assim pagando quantia menor do que a devida.
Vê-se assim que, à partida, os factos são diferentes desde logo quanto aos meios de prova que estão em causa. Localização de telefone celular e registo de dados de tráfico no acórdão recorrido, e escutas telefónicas no acórdão fundamento. Ora, o grau de intromissão na privacidade da pessoa alvo destas medidas é muito diverso, como bem diferente é o contributo que as medidas aqui contrapostas podem dar, como prova indiciária.
O nº 2 do artº 189º do C P P estende o regime das escutas do artº 187º nºs 1 e 4 do C P P, à recolha de dados sobre a localização celular, e ao registo de realização de conversações, mas, para além de prever estas para qualquer fase do processo (o que inculca a ideia de que essas medidas podem servir necessidades meramente processuais), limita-se à questão da necessidade de autorização judicial. Assim sendo, estando em causa a questão de saber qual a validade da prova que forneça “conhecimentos fortuitos” em ambos os casos, ou se envereda por um regime igual, ou se entende que as situações não são equiparáveis. E que, portanto, o uso de conhecimentos obtidos através de localização celular, ou registo de realização de conversações, não teria que estar sujeito às mesmas restrições que o uso de “conhecimentos fortuitos” obtidos através de escutas. É esta a nossa posição, o que desde logo inviabilizaria, no caso em apreço, o preenchimento do requisito da oposição de julgados.

3. 3. Mesmo que se admitisse que não haveria que distinguir, quanto ao o regime de validade como prova dos conhecimentos fortuitos, com uma ou outra espécie de fonte, mesmo assim o presente recurso estaria votado ao insucesso.
Tendo em conta a questão jurídica que está em equação, é importante sublinhar que, ao que dito já fica, acresce a discrepância fáctica consistente em haver, no primeiro caso, uma ligação muito próxima entre os ilícitos sob investigação, e, no segundo caso, estarem em causa crimes sem conexão nenhuma.
Houve de facto disparidade das soluções que, a fina, se perfilharam nos acórdãos.
A questão, porém, seria a de saber se tal disparidade decorre, ou não, de se ter manifestado explicitamente, uma diferente interpretação da[s] mesma[s] norma[s]. E também não foi o caso.
Mesmo que se pudesse entender que a factualidade subjacente aos dois casos não apresentava diferenças relevantes, e apresenta, é seguro que a diferença, nas soluções finais, não se ficou a dever a diferente modo de encarar a mesma questão de direito. Resultaria sim de se ter entendido, num caso, que os factos relevavam de certa maneira, e no outro terem sido encarados de modo diferente (designadamente por serem de facto diferentes), tendo pois que relevar diversamente.
Na verdade, a questão de direito em apreço é a de saber se pode ser usado como prova de um crime não mencionado no nº 1 do artº 187º do C P P, o resultado de interferências nas telecomunicações (ou dados que se supusessem equiparáveis, por força do artº 189º nº 2 do C P P), que porém foram autorizadas sob invocação de outro crime, esse sim contemplado no nº 1 do artº 187º do C P P.
Ora ambos os acórdãos têm a respeito desta questão a mesma posição. É que a resposta pode ser a de que “nunca” poderia ser usado como prova esse resultado, poderia ser usado “sempre”, ou de que “dependeria”. Dependeria de estarem em causa, ou não, “conhecimentos fortuitos”.
Em ambos os arestos em confronto, e perante esta questão, a posição que aflora é a intermédia, segundo a qual os meios de prova são utilizáveis, para além do mais, desde que digam respeito ao crime para que foram autorizados, digam respeito a outro crime igualmente de catálogo, ou digam respeito a crime que tenha uma conexão intrínseca, não meramente processual, com o crime para que foram autorizados.
È que a chave da posição comum aos dois acórdãos, quanto à questão de direito, está na distinção entre “conhecimentos fortuitos” e “conhecimentos da investigação”, a que ambas as decisões se reportam. Distinção trabalhada pela doutrina e jurisprudência, e que ambos os acórdão tiveram em conta, certo que, decorrendo dessa distinção, deverá considerar-se vedada a utilização dos “conhecimentos fortuitos”, e autorizada a dos “conhecimentos da investigação”, sempre no condicionalismo em apreço.
Ora, como no acórdão recorrido se entendeu que se não estava perante “conhecimentos fortuitos”, e no acórdão fundamento se achou que estava mesmo perante esse tipo de conhecimentos, daí o resultado final divergente.
No acórdão recorrido disse-se que estavam em causa “elementos reportados ao objecto da investigação”, “o mesmo processo histórico”, “crimes em possível concurso ideal”, “investigação comum” e de “crimes conexos”. No acórdão fundamento consideraram-se os elementos recolhidos “informações marginais”, “informações fortuitas”, “conhecimentos fortuitos sem conexão com crime de catálogo”. A submissão dos factos ao direito divergiu, mas não houve discrepância quanto ao modo de entender o direito aplicável ao caso.
Tudo para dizer que se não verifica, no caso, oposição de julgados, quanto à mesma questão de direito.



C – DELIBERAÇÃO

Pelo exposto se decide em conferência, neste S.T.J., não existir oposição de julgados entre o decidido no acórdão proferido no Pº 128/05.0 JDLSB a 13/11/2008, e transitado em julgado a 21/10/2009 (acórdão recorrido), e no Pº 551/02.2 PWLSB.L1 proferido a 10/3/2009, e transitado a 30/3/2009 (acórdão fundamento), ambos do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do nº 1 do artº 437º do C.P.P..
Termos em que se rejeita o presente recurso, de acordo com o artº 441º nº 1 do C.P.P..

Taxa de Justiça: 6 U. C.
*


Supremo Tribunal de Justiça.

Lisboa, 29 de Abril de 2010
Souto de Moura (Relator)
Soares Ramos