Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
088389
Nº Convencional: JSTJ00029721
Relator: METELLO DE NAPOLES
Descritores: DANO CAUSADO POR EDIFÍCIOS OU OUTRAS OBRAS
PROPRIETÁRIO
PRÉDIO
DONO DA OBRA
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
DANOS MORAIS
MATÉRIA DE FACTO
FACTO NÃO ARTICULADO
QUESITO NOVO
ARGUIÇÃO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: SJ199605280883892
Data do Acordão: 05/28/1996
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Referência de Publicação: BMJ N457 ANO1996 PAG317
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR REAIS.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 483 ARTIGO 496 ARTIGO 565 ARTIGO 1209 ARTIGO 1348 N1 N2.
CPC67 ARTIGO 661 N2 ARTIGO 668 N1 D E ARTIGO 672.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1988/04/26 IN BMJ N376 PAG587.
Sumário : I - A lei, atendendo a critérios de razoabilidade, impõe ao proprietário do prédio onde se proceda a escavações, embora lícitas, a responsabilidade pelos prejuízos causados pelas obras a qualquer proprietário vizinho, ainda que tenham sido cumpridas as cautelas consideradas exigíveis.
II - A formulação de quesito, em audiência de julgamento, sobre matéria não alegada, não é questão de conhecimento oficioso, devendo ser arguida oportunamente por quem pretenda que dela se conheça.
III - Na responsabilidade civil extracontratual é admissível a reparação dos danos não patrimoniais, não havendo que distinguir entre a licitude ou ilicitude dos actos que lhes deram causa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
No Tribunal Judicial de Espinho foi proposta por A, posteriormente acompanhado de sua mulher B (que deduziu a sua intervenção principal espontânea), acção de processo ordinário contra C, para o ver condenado a pagar-lhe determinadas indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela construção de um edifício num terreno contíguo a um prédio urbano do autor.
A acção foi contestada e seguiu seus termos.
Na audiência de julgamento o presidente do colectivo aditou ao questionário um novo quesito (com o n. 33).
A sentença julgou a acção parcialmente procedente, condenando o réu a pagar ao autor a quantia de 13500000 escudos por danos causados no prédio e já liquidados, 960000 escudos por rendas que o autor iria ter de pagar durante a execução das obras de restauro na sua habitação, 500000 escudos por danos não patrimoniais, e o mais que se viesse a liquidar em execução de sentença que resultasse do restauro e aplicação de novos azulejos decorativos e de um eventual acréscimo de despesas com o arrendamento.
Tendo o réu apelado, a Relação do Porto confirmou essa sentença.
Ainda inconformado, pediu ele revista, sustentando nas conclusões da sua alegação o seguinte:
O recorrente não executou qualquer obra, pois que as obras foram executadas, sem direcção ou vigilância sua, por empreiteiro, mediante contrato de empreitada;
Os danos resultaram da forma e método deficiente como o empreiteiro executou a obra, sendo este pois o agente do facto gerador da responsabilidade civil, o autor das obras em causa;
Autor da obra não é, nem na letra nem no espírito da lei, sinónimo de dono da obra ou proprietário;
Para existir responsabilidade, mesmo que por actos lícitos, é necessário obviamente que existam actos ou omissões;
O recorrente não praticou qualquer acto e não omitiu nenhum dever que a lei lhe imponha, pois foi o empreiteiro quem praticou o acto e omitiu deveres de cuidado, não estando assim aquele constituído na obrigação de indemnizar;
Além disso só se encontram alegados montantes calculados por estimativa e previsão, como resulta do próprio conceito de orçamento, pelo que ao aditar-se um quesito (o 33) em que se formula pergunta sobre danos certos, quesitou-se matéria não alegada;
Tal aditamento viola a lei e o despacho respectivo não tem que ser atacado senão no recurso da decisão final, sendo competente o S.T.J. para anular a decisão que considerou admissível a formulação do quesito;
Não poderia pois o recorrente ser condenado senão na quantia certa que se viesse a liquidar em execução de sentença;
Não há lugar a indemnização por danos não patrimoniais quando a responsabilidade seja extracontratual e por acto ilícito;
Na perspectiva da decisão a condenação do recorrente não se fundou em qualquer acto lícito ou culpa, pelo que nunca haveria lugar a tal condenação;
Violaram-se as disposições legais contidas nos artigos
429, 1348, 562, 563, 564 e 566 do Código Civil e 650 alínea f), 664, 668 alíneas d) e e) e 661 do Código de Processo Civil.
Contra-alegaram por sua vez os autores no sentido de ser negada a revista.
As questões que cumpre aqui resolver, dada a delimitação do âmbito do recurso pelo teor das conclusões formuladas, respeitam à alegada irresponsabilidade do recorrente e exclusiva responsabilização do empreiteiro, à indevida formulação do quesito 33, à fixação dos montantes indemnizatórios e à indemnização fundada em danos não patrimoniais.
Para a dilucidação da primeira das aludidas questões relevam os seguintes factos respigados do elenco factual estabelecido pela Relação:
O réu iniciou a construção de uma nova edificação num prédio de que é dono e que confina com um prédio urbano dos autores, na cidade de Espinho;
Para tanto celebrou o réu um contrato de empreitada com um terceiro;
Na fase da construção das fundações do novo edifício abriram-se várias fendas nas paredes do prédio dos autores, e produziram-se nele outros danos, designadamente em pavimentos, portas e janelas, o que tudo se agravou no decurso da obra;
Todas essas deteriorações foram causadas unicamente pela obra levada a cabo no prédio do réu, e foram devidas ao facto de a construção dos pilares da estrutura na cave da edificação ter sido feita pelo método de argolas, executado de forma incorrecta, e à natureza arenosa do terreno.
Vê-se pois que o prédio dos autores ficou danificado por virtude de escavações, com vista à construção de um edifício, efectuadas no prédio confinante.
Estará o réu obrigado a indemnizar os proprietários lesados, como o julgaram as instâncias?
Ou será que, sendo a obra levada a cabo por um empreiteiro, à sombra de contrato celebrado pelo réu proprietário, só aquele está vinculado a indemnizar prejuízos causados aos vizinhos, como defende o recorrente?
Rege nesta matéria o artigo 1348 do Código Civil, onde se reconhece ao proprietário a faculdade de fazer escavações no seu prédio (n. 1), dispondo-se porém a seguir (n. 2):
Logo que venham a padecer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas necessárias.
É este um daqueles casos excepcionais de responsabilidade civil (extracontratual) resultantes do exercício de uma actividade lícita, em que se prescinde da ilicitude e da culpa.
Com efeito, o dever de indemnizar não depende aqui da verificação de culpa, ocorrendo pois uma excepção à regra geral proclamada no n. 2 do artigo 483 do Código Civil.
A lei impõe ao "autor" das escavações, embora lícitas, que indemnize qualquer proprietário vizinho lesado pela obra, ainda que tenham sido adoptadas as cautelas que se consideraram exigíveis, atendendo assim a critérios de razoabilidade.
Resta saber quem é que a lei reputa "autor" da obra feita.
O recorrente faz a distinção entre o "autor da obra" (que seria, no caso, o empreiteiro) e o "dono da obra" (o proprietário), para sublinhar que o texto legal alude à responsabilidade do "autor".
Mas essa argumentação é frágil.
É certo que na regulamentação do contrato de empreitada a lei designa por "dono da obra" o sujeito oposto ao empreiteiro e perante quem este se obriga.
Isso não significa porém que, ao tratar, não já do direito das obrigações, mas do direito de propriedade, num subsequente Livro (o Livro III), no âmbito da sistematização do Código Civil, se deva concluir, sem mais, que o legislador quisesse distinguir conceitualmente as pessoas do proprietário e do autor, a quem respectivamente alude nos ns. 1 e 2 do artigo 1348.
À face do Código Civil de 1867 regia na matéria o artigo 2323, em cujo parágrafo 2 se dispunha também que.
Logo, porém, que o vizinho venha a padecer dano com as obras mencionadas, será indemnizado pelo autor delas...
Já procede assim desse diploma a referência ao "autor" das obras; e nem por isso os comentadores deixaram de se referir à responsabilidade do dono quanto à reparação dos danos (Cfr. Dias Ferreira, in "Código
Civil Português Anotado", vol. I, 1870, página 429, e Cunha Gonçalves, in Tratado de Direito Civil", vol. XII, 1937, página 65).
A verdade é que a expressão "autor delas" utilizada nestes textos legais explica-se por uma facilidade de redacção, e não por quaisquer lucubrações respeitantes à determinaºão da pessoa responsável.
O redactor do texto do n. 2 do artigo 1348 não podia lançar mão do vocábulo "proprietário" para a imputação da responsabilidade pela indemnização (expressão essa que de resto já usara no n. 1, ao qual o subsequente n. 2 está logicamente ligado) pela circunstância de já haver referência anterior no mesmo texto a "proprietários vizinhos" e não ser por isso aconselhável que a palavra fosse repetida, dados os inconvenientes que tal acarretaria para a clareza do texto.
Não se tem pois dúvida em afirmar que é ao proprietário do prédio onde é feita a obra que se pretende atribuir, naquele n. 2, a obrigação de indemnizar os proprietários vizinhos (como também se entendeu nos votos de vencido apostos no acórdão deste Supremo de 26 de Abril de 1988, in B.M.J., n. 376, páginas 587 e seguintes).
Isto não significa, obviamente, que não existam porventura outros responsáveis (sendo certo que não está em discussão a responsabilidade do empreiteiro, que não é parte na causa) pela reparação dos danos; significa, isso sim, que o pensamento legislativo foi o de responsabilizar em primeira linha, e independentemente de culpa, aquele que, sendo o titular do direito de propriedade, em princípio tira proveito ou beneficia da obra que decidiu realizar no prédio.
Daí que seja totalmente irrelevante, na perspectiva do vizinho lesado, que a obra seja levada a cabo pessoalmente pelo dono do prédio (ou através de pessoal que dele dependa por vínculo laboral) ou antes por empreiteiro contratado (sob a direcção do próprio empreiteiro e sem vínculo de subordinação ao dono da obra); em qualquer das hipóteses o dono responde pelos mencionados danos.
Nem se objecte que, havendo empreitada, o dono da obra não é obrigado a fiscalizar a execução dela.
É que uma tal fiscalização funciona no interesse do dono da obra, tendo como fim principal impedir que o empreiteiro oculte vícios de difícil verificação no momento da entrega (Cfr. "Código Civil Anotado", de P.
Lima e A. Varela, II, anot. ao artigo 1209).
O dono da obra pode ou não valer-se dessa faculdade de fiscalização (artigo 1209 do Código Civil), que só o beneficia, mas que em todo o caso diz somente respeito às relações (contratuais) entre ele e o empreiteiro.
Pareceria de resto absurdo que se reconhecesse ao dono da obra o direito de se exonerar unilateralmente da sua responsabilidade face a terceiros vizinhos, pela simples via da celebração de um contrato de empreitada com quem quer que fosse, sem a menor atenção às qualidades e meios do empreiteiro (porventura incompetente e desconhecedor das regras da arte, quiçá negligente, quem sabe se insolvente), caso em que os vizinhos lesados poderiam ser colocados em situações altamente embaraçosas.
Entende-se, em suma, que bem decidiram as instâncias no tocante à responsabilidade do réu.
O recorrente protesta contra a formulação do quesito 33, por alegadamente inserir matéria não alegada.
Ora, como se disse atrás, esse quesito foi aditado na audiência de julgamento, por despacho do presidente do colectivo.
Nenhuma das partes reagiu contra tal despacho, através da interposição do competente agravo.
Estabeleceu-se assim um caso julgado formal, cuja força obrigatória se impõe a este Supremo (artigo 672 do Código de Processo Civil), sendo pois verdade conhecer de uma tal questão, que não foi oportunamente suscitada e não é de conhecimento oficioso.
A questão subsequente é atinente à condenação em quantia líquida.
Segundo o recorrente, não foram alegados factos concretos que permitissem quantificar os danos.
Ora a verdade é que, segundo a resposta que foi dada pelo tribunal colectivo ao quesito 33, e que a Relação manteve, os danos existentes no prédio do autor ascendem a 13500000 escudos.
E, como se disse acima, este Supremo não pode agora apreciar se a formulação desse quesito ofendeu o disposto na segunda parte do artigo 664 do Código de Processo Civil.
A condenação decretada obedece aos moldes determinados nos artigos 565 do Código Civil e 661 - n. 2 do Código de Processo Civil, ao englobar uma parte líquida e uma parte ilíquida, correspondendo aquela ao quantitativo já provado.
Também aqui não pode pois reconhecer-se razão ao recorrente.
Alega, enfim, o recorrente que não à lugar a indemnização por danos não patrimoniais quando se trate de responsabilidade civil por actos lícitos.
Seria inaplicável nesse domínio, a seu ver, o disposto no artigo 496 do Código Civil.
Ora, como se salienta no acórdão recorrido, nunca se sustentou, que se saiba, a irreparabilidade daqueles danos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, não havendo que estabelecer para esse efeito qualquer distinção entre a que emerge de actos ilícitos e a que deriva de actos lícitos.
É de resto entendimento geral que a admissibilidade da reparação dos danos não patrimoniais corresponde a um princípio imanente no nosso direito, com aflorações dispersas, e que remonta já à legislação anterior ao
Código Civil actual (cfr. Vaz Serra, in R.L.J., 98, página 266).
Mesmo Antunes Varela, defensor da corrente (minoritária, ao que se crê) que exclui a ressarcibilidade desses danos na área da responsabilidade contratual, aceita, em termos gerais, a tese da reparabilidade no domínio da responsabilidade extracontratual, sem estabelecer restrições (cfr. "Das
Obrigações em Geral", I, 6. edição, página 575, e R.L.J., 123, páginas 253 e seguintes).
E a verdade é que, à luz dos princípios que doutrinariamente justificam a compensação dos danos não patrimoniais, não há razões que levem a postergar os danos desse tipo causados pelo exercício de uma actividade lícita, tais como estados de ansiedade e outros incómodos de ordem psicológica, em tudo semelhantes aos que podem ocorrer na sequência da prática de um acto ilícito, sem embargo da inexistência de norma de carácter genérico relativa à responsabilidade por intervenções lícitas na esfera jurídica alheia.
Nesta mesma orientação é de invocar ainda Almeida Costa, a quem "também se afigura justificada" a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais nesse domínio (cfr. "Direito das Obrigações", 6. edição, página 505).
É por isso de rejeitar uma tal alegação.
Improcedem deste modo as conclusões formuladas pelo recorrente.
Embora se invoque também a violação de disposições que versam nulidades do acórdão (as das alíneas d) e e) do n. 1 do artigo 668 do Código de Processo Civil), a verdade é que não se diz em que se traduzem concretamente as invocadas nulidades.
Ora, por um lado, não cumpre ao tribunal de recurso suprir as omissões do recorrente nem perscrutar os seus desígnios.
Por outro lado não podem ser consideradas questões que não tenham sido directamente abordadas no texto da alegação.
Daí que seja inatendível uma pretensa arguição de nulidades do acórdão que se limita à indicação dos preceitos legais que as esquematizam.
Tudo visto, decide-se negar a revista.
Custas a cargo do recorrente.
Lisboa, 28 de Maio de 1996
Metello de Nápoles,
Pereira da Graça,
Nascimento Costa. (Segue Declaração de Voto)
Decisões Impugnadas:
I - Sentença de 7 de Novembro de 1994 de Espinho.
II - Acórdão de 20 de Junho de 1995 da Relação do
Porto.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevi o acórdão, com uma ressalva: não concordo com a fundamentação do decidido quanto à questão do quesito 33.
Este Tribunal não pode alterar o decidido nesse segmento mas por razão diferente, porque não estamos perante uma das situações previstas nos artigos 729 ns. 2 e 3 e 722 n. 2 do Código de Processo Civil.
Não pode invocar-se aqui caso julgado formal, que na realidade não existe: vidé A. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, III, 283 e A. Varela, J. M Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de
Processo Civil, 1984, página 412.
Ilídio Gaspar Nascimento Costa.