Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2892
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BORGES SOEIRO
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: SJ20070116028921
Data do Acordão: 01/16/2007
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário : 1. Na esteira do entendimento predominante do Supremo, os lesados em acidente de viação para quem resultaram incapacidades permanentes totais ou parciais, sofrem, a par dos danos não patrimoniais, traduzíveis em dores e desgostos, danos patrimoniais por verem reduzidas a sua capacidade de trabalho e a sua autonomia vivencial.
2. Trata-se de realidades distintas, com critérios de avaliação também distintos, mesmo no que concerne ao elemento comum a ambos — o juízo de equidade, pois, enquanto na avaliação dos danos não patrimoniais e conforme decorre do n°3 do artigo 496 do Código Civil é a equidade que funciona como primeiro critério, embora condicionada aos parâmetros estabelecidos no artigo 494 do mesmo Código, na avaliação dos danos patrimoniais, a equidade funciona residualmente para o caso, como textualmente se lê no n°3 do artigo 566 do C. Civil, de não ter sido possível averiguar o valor exacto dos danos.

3. Não obstante o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tenha a natureza jurídica de “seguro de responsabilidade”, o certo é que a sua moderna especificidade – com acolhimento no chamado “3.ª Directiva Automóvel” (Directiva do Conselho de 14 de Maio de 1990 (90/232/CEE), publicada no Jornal Oficial, L 129, de 19 de Maio do mesmo ano, (a pgs. 33 e seguintes) e transposição para a nossa ordem jurídica interna através do Dec. Lei nº 130/94, de 19 de Maio, que entrou em vigor a partir de 31 de Dezembro de 1995 – reside no primado da protecção das vítimas corporais, ressarcindo todos quanto não sejam o próprio condutor (o responsável pelo respectivo ilícito) relativamente aos danos corporais de que forem vítimas, por acidente rodoviário não por si próprios causado.

4. Esse é o resultado interpretativo que se deve fazer do artº 7º. (nº.s 1º e 2º, al. a)), do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo aludido Dec Lei nº 130/94.

5. Contrariamente ao entendimento anterior, hoje, “terceiro”, em matéria de acidente de viação, é todo aquele que possa imputar a responsabilidade do evento a outrem - e, não, como anteriormente, aquele que não era o tomador do seguro .

6. Tal princípio sofre das excepções ou exclusões contidas no aludido art. 7º do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Dec Lei nº 130/94, donde resulta “ex vi” do nº 1 que, no que se refere às “lesões corporais”, somente se encontram excluídos da garantia do seguro as sofridas pelo condutor do veículo seguro.

7. O proprietário e tomador do seguro que é transportado como passageiro no seu próprio veículo, sendo outrem o respectivo condutor, está coberto pela responsabilidade civil automóvel quanto aos danos decorrentes de lesões corporais que lhe advenham em virtude do acidente, por, na situação, ter a qualidade de terceiro.

8. O Ac. do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 30.7.2005 decidiu que a segunda Directiva 84/5/CEE e a terceira Directiva 90/232/CEE, relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil sobre circulação de veículos automóveis, opõem-se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado a indemnização com fundamento na contribuição de um passageiro para o dano por si sofrido.

9. E, incisivamente, afirmou que o facto de o passageiro ser o proprietário do veículo cujo condutor provocou o acidente é irrelevante.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA, BB e CC intentaram a presente acção cível, emergente de acidente de viação, contra Companhia de Seguros ..., S.A., pedindo que fosse condenada a ressarcir tais A.A., pelos respectivos danos patrimoniais e não patrimoniais, nos seguintes termos: - à 1ª. A., a importância global de € 73.640,00; à 2ª., idem de € 17.600,00; e ao A. a importância, também global, de € 120.500,00.
Alegaram que, sendo transportados gratuitamente em veículo automóvel pertencente ao 3º. A., seguro na Ré, mas tripulado pela mulher daquele, sofreram um acidente de viação, do qual resultaram os danos patrimoniais e não patrimoniais que fundamentou os correspondentes pedidos.
Na sua contestação, a Ré alegou estarem excluídos da garantia do seguro os danos decorrentes das lesões materiais causadas aos A.A., atentas as relações de parentesco que ligou as A.A. ao A. e à condutora do veículo, ao que acrescia que o 3º. A. era o próprio tomador do seguro. Quanto ao mais – incluindo a demais petição do próprio tomador do seguro de ser indemnizado pelos seus danos pessoais próprios sofridos – escuda-se no desconhecimento das circunstâncias em que ocorreu o acidente, bem como dos danos emergentes.
Nenhum outro articulado tendo havido, foi proferido despacho saneador que concedeu provimento àquela única excepção deduzida, pelo que absolveu logo a Ré dos pedidos indemnizatórios peticionados pelo A.A. relativamente às respectivas lesões materiais.
Tendo transitado em julgado tal despacho, veio a realizar-se, posteriormente a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença, a qual, tendo julgado a acção parcialmente procedente, condenou a Ré aos seguintes pagamentos:
a)- à AA, € 50.750,00, acrescida de juros legais, contados de 3/XII/2002 e até integral pagamento sobre a quantia de € 5.750,00; e da data da mesma sentença, até integral pagamento, sobre os restantes € 45.000,00;
b) – à BB, € 12.500.00, acrescidos de juros legais, a contar da mesma decisão e até integral pagamento;
c) – finalmente, ao A. CC a quantia de € 75.000,00, acrescida também de juros legais contados nos mesmos anteriores termos.
De tal decisão, interpôs a Ré apelação, bem como, posteriormente, os AA. por via subordinada, tendo a Relação de Coimbra julgado improcedentes todos os recursos interpostos, confirmando o decidido em 1ª Instância.
Foi interposto, de seguida, recurso de revista para este STJ que viria anular o Acórdão mencionada, determinando que a Relação se pronunciasse relativamente à excepção peremptória deduzida pela recorrente Seguradora atinente ao contrato de seguro discutido em juízo.
Assim se procedeu, tendo, de novo, a Relação de Coimbra decidido pela mesma forma, confirmando o julgado em 1ª Instância.
Vem, desta feita, a Ré Seguradora interpor recurso de revista para este STJ, concluindo a sua alegação pela seguinte forma:

I. O montante de € 30.000,00 (trinta mil euros) arbitrado à 1.a Autora, AA, a título de indemnização pela Incapacidade Permanente Parcial (IPP) de que ficou a padecer em resultado do acidente é manifestamente excessivo.
II. Em face da matéria de facto provada, relevante a este título - a 1.a Autora ficou a padecer de uma IPP de 20%, 56 anos à data da alta e com a sua actividade de dona de casa e costureira obtinha uma poupança mensal de € 250,00 – o valor adequado para indemnizar esse dano é de € 5.000,00 (cinco mil euros).
III. O douto Acórdão recorrido deverá, por este motivo, ser parcialmente revogado e substituído por outro que, dando provimento às alegações produzidas, fixe neste último montante o valor adequado para indemnizar aquele dano da 1.a Autora.
IV. O douto Acórdão recorrido viola, entre outras, as disposições dos artigos 562.°, 564.° e 566.°, todos do Código Civil.
V. A ora Recorrente entende que o Tribunal a quo faz uma incorrecta aplicação do direito – mais concretamente do regime do seguro de responsabilidade civil automóvel - aos factos dados como provados, o que motivou a excepção arguida no recurso de Apelação.
VI. O 3.° Autor, CC. na qualidade de tomador do contrato de seguro (alínea E) da matéria de facto assente), celebrado com a ora Recorrente, válido à data do acidente, referente à viatura com a matrícula 00-00-00, titulado pela apólice n.° 00000 (junta aos autos) está excluído da garantia do contrato de seguro, pelo que a ora Recorrente não pode ser condenada a indemnizar os danos sofridos pelo mesmo em consequência do acidente em causa nos autos, indemnização essa a que o 3.° Autor, manifestamente, não tem direito nos termos da lei.
VII. O 3.° Autor não pode, ao mesmo tempo, ser beneficiário da garantia (responsável) e beneficiário da indemnização (terceiro).
VIII.Este mesmo foi o entendimento do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, no Acórdão de 26.03.1 998. in www.dgsi.pt. n.° convencional JST.1000 34679, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Silva Paixão.
IX. Em face disso, resulta claro que o douto acórdão recorrido deve ser parcialmente revogado e substituído por outro que absolva a ora Recorrente do pagamento da indemnização peticionada pelo 3.° Autor, CC e, consequentemente, que a absolva do pagamento da quantia de € 75.000,00 arbitrada a esse título pelo Tribunal a quo.
X. O douto acórdão recorrido viola, entre outras normas, o disposto nos artigos 2.°, 7.° e 8.° do DL 522/85, de 31 de Dezembro.

Nas contra alegações, os recorridos de fendem a manutenção do julgado.
Foram colhidos os vistos.
Decidindo.

2. Por não impugnada dá-se por reproduzida a factualidade considerada como provada pelas Instâncias, atento o disposto no art. 713º nº 6 do C.P.C..

3. — Análise do objecto da revista —

São duas as questões trazidas à decisão deste Tribunal, a saber:
a) ser, na perspectiva da recorrente, a indemnização arbitrada à recorrida AA, a título de Incapacidade Parcial Permanente (IPP), a qual segundo também a recorrente não deveria ser superior a €5.000,00;
b) os danos físicos sofridos pelo recorrido CCestariam excluídos da garantia do seguro, já que ele é o tomador do contrato.

Vejamos.
Relativamente à primeira questão, importa salientar que vem sendo, uniformemente decidido por este STJ que a indemnização por danos futuros, decorrentes de incapacidades permanentes, tem natureza patrimonial.
Com efeito, exarou-se na Revista n°4470/04-2, reproduzido no Ac. também deste STJ de 22.6.2005(1) cuja argumentação iremos passar a reproduzir:
«Este Supremo Tribunal tem vindo a entender, persistentemente, que a Incapacidade Parcial Permanente (IPP) «constitui fonte de um dano futuro de natureza patrimonial, traduzido na potencial e muito previsível frustração de ganhos, na mesma proporção do handicap físico ou psíquico, independentemente da prova de prejuízos imediatos nos rendimentos do trabalho da vítima» (2) .
Nesta linha pode, também seguir-se o raciocínio do Ac. deste mesmo STJ de 6.7.2004 (3) , onde se exarou:
I - Se o lesado ficou a padecer, até ao fim da vida, de incapacidades funcionais várias, ao nível das actividades que exigem esforço e boa mobilidade dos membros inferiores, o que tudo consubstancia o denominado «dano corporal» ou «dano biológico», justifica-se a atribuição de uma indemnização por danos patrimoniais futuros, ainda que tais lesões não acarretem diminuição da respectiva capacidade geral de ganho.
II - Na chamada incapacidade funcional ou fisiológica, vulgarmente designada por «handicap», a repercussão negativa da respectiva IPP centra-se precisamente na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços, por parte do lesado, o que se traduz numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo, no desenvolvimento das actividades pessoais, em geral, e numa consequente e, igualmente, previsível maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução das tarefas que, no antecedente, vinha desempenhando, com regularidade.
III - Trata-se de indemnizar, «a se», o dano corporal sofrido, quantificado por referência ao índice 100 - integridade psicossomática plena --, e não qualquer perda efectiva de rendimento ou de concreta privação de angariação de réditos”.
Na esteira do entendimento predominante do Supremo(4), os lesados em acidente de viação para quem resultaram incapacidades permanentes totais ou parciais, sofrem, a par dos danos não patrimoniais, traduzíveis em dores e desgostos, danos patrimoniais por verem reduzidas a sua capacidade de trabalho e a sua autonomia vivencial.
Trata-se de realidades distintas, com critérios de avaliação também distintos, mesmo no que concerne ao elemento comum a ambos — o juízo de equidade.
Na verdade, enquanto na avaliação dos danos não patrimoniais e conforme decorre do n°3 do artigo 496 do Código Civil é a equidade que funciona como primeiro critério, embora condicionada aos parâmetros estabelecidos no artigo 494 do mesmo Código, na avaliação dos danos patrimoniais, a equidade funciona residualmente para o caso, como textualmente se lê no n°3 do artigo 566 do C. Civil, de não ter sido possível averiguar o valor exacto dos danos.
E não será, seguramente, pelo facto (5) de não se poder averiguar exactamente os danos que os danos futuros resultantes de uma incapacidade física e permanente do lesado deixarão de ser avaliados como danos patrimoniais.
Com efeito, a lei não nos dá outra orientação que não seja a que deriva dos artigos 564, n°2 - atendibilidade dos danos futuros previsíveis - e 566, n°s 2 e 3 - teoria da diferença --, ambos do Código Civil, a conjugar com a equidade, se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos.
A equidade funciona, assim neste caso e como já foi dito, como elemento corrector do resultado a que se chegar depois de utilizados os cálculos aritméticos e as tabelas financeiras habitualmente usados, os quais, constituindo embora adjuvantes importantes, não devem ser arvorados em critérios de avaliação únicos e infalíveis.
E, consoante jurisprudência constante, a indemnização do dano futuro decorrente de incapacidade permanente deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir e que se extinguirá no final do período provável da sua vida. Só assim se logra, na verdade, «reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (artigo 562°).
É no cálculo de semelhante capital que a equidade intervém necessariamente, na medida em que há que assentar no tempo provável de vida da vítima, na diferença que, em cada época futura, existirá entre o rendimento auferido e o que auferiria se não tivesse sido a lesão e, por fim, na evolução da unidade monetária em que a indemnização se irá exprimir(6) Ac. do STJ, de 25/6/2002,in “CJ/STJ”, ano X, II-132..
Face ao exposto, para alcançarmos o justo valor indemnizatório e antes da intervenção do juízo corrector da equidade, há que atentar na factualidade apurada, como determina, aliás, a parte final do n°3 do artigo 566 do Código Civil.
E aqui é que funciona o tal juízo de equidade, tomando-se em conta o demais circunstancialismo apurado, por forma a que se encontre a indemnização que melhor se ajuste ao caso concreto.
Mas, se é verdade que os elementos adjuvantes do cálculo indemnizatório (cálculos matemáticos e tabelas financeiras) funcionam com algum rigor objectivo para os casos de perda efectiva e imediata de rendimentos, já o mesmo não sucede quando esta perda não se verifica, interessando apenas indemnizar o dano corporal a se, como é, em parte, o caso que nos ocupa, por a recorrida AA ser, para além de costureira, doméstica.
Assim, para além de se atentar à perda efectiva de ganhos (deixou de auferir ou poupar cerca de € 250,00 mensais), ter-se-á de ter presente, ainda, que a indemnização tem que tomar em conta a previsível capacidade da lesada em continuar, durante alguns anos (tanto mais, obviamente, quanto menos avançada for a sua idade), a poder fazer a sua vida activa normal, sem qualquer afectação negativa, decorrente das lesões corporais provocadas pelo acidente, que lhe provocaram uma IPP de 20%.
Nos casos como o dos autos terá de ser, assim, a equidade a assumir o papel preponderante no cálculo, tal como no arbitramento de indemnização por danos não patrimoniais.
Claro que, para atenuar o inevitável subjectivismo desta fonte de justiça concreta, como é a equidade, deverão ser consideradas todas as circunstâncias do caso, bem como a prática jurisprudencial em situações semelhantes (7) .
E acrescentamos, desde já, que o acórdão recorrido não merece qualquer censura, quer no âmbito dos princípios acima expostos, quer no âmbito da sua concretização prática, pois que fixou em 30.000 euros a indemnização pelos danos futuros — um montante equitativo e, por isso, justo, atento todo o circunstancialismo concreto apurado, como indemnização a que a autora tem indiscutivelmente direito por um dano patrimonial que, sempre e previsivelmente, não deixará de afectá-la no futuro, pelo esforço acrescido que terá de desenvolver no exercício da sua actividade doméstica ainda por mais uns vinte e cinco anos, considerando a média estatística da esperança de vida (quase nos 80 anos) para as mulheres portuguesas.
Improcede, pois, nesta parte, a revista.

No que se refere, agora, à segunda questão, estarem os danos físicos sofridos pelo recorrido CC excluídos da garantia do seguro, já que ele é o tomador do contrato, acompanhamos o decidido no Acórdão recorrido.
Com efeito, muito embora tenha de se convir que o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tenha a natureza jurídica de “seguro de responsabilidade”, o certo é que a sua moderna especificidade – com acolhimento no chamado “3.ª Directiva Automóvel” (Directiva do Conselho de 14 de Maio de 1990 (90/232/CEE), publicada no Jornal Oficial, L 129, de 19 de Maio do mesmo ano, (a pgs. 33 e seguintes) e transposição para a nossa ordem jurídica interna através do Dec. Lei nº 130/94, de 19 de Maio, que entrou em vigor a partir de 31 de Dezembro de 1995 – reside no primado da protecção das vítimas corporais, ressarcindo todos quanto não sejam o próprio condutor (o responsável pelo respectivo ilícito) relativamente aos danos corporais de que forem vítimas, por acidente rodoviário não por si próprios causado.
Na verdade, esse é o resultado interpretativo que se deve fazer do artº 7º. (nº.s 1º e 2º, al. a)), do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo aludido Dec Lei nº 130/94(8).
Contrariamente ao entendimento anterior, hoje, “terceiro”, em matéria de acidente de viação, é todo aquele que possa imputar a responsabilidade do evento a outrem - e, não, como anteriormente, aquele que não era o tomador do seguro .
No entanto tal princípio sofre das excepções ou exclusões contidas no aludido art. 7º do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Dec Lei nº 130/94, donde resulta “ex vi” do nº 1 que, no que se refere às “lesões corporais”, somente se encontram excluídos da garantia do seguro as sofridas pelo condutor do veículo seguro.
Assim, o 3º. A. e, ora recorrido, uma vez que apenas se coloca na lide como vítima da não condenação de outrem, tem plena legitimidade para peticionar, como peticionou, o ressarcimento dos seus danos corporais.
Na verdade, o proprietário e tomador do seguro que é transportado como passageiro no seu próprio veículo, sendo outrem o respectivo condutor, está devidamente coberto pela responsabilidade civil automóvel quanto aos danos decorrentes de lesões corporais que lhe advenham em virtude do acidente.
Na situação em análise, o recorrido CC não deixa, para os efeitos que vêm de ser referidos, de ser um terceiro em termos de responsabilidade pela ocorrência do sinistro e a quem é devida a competente indemnização, no entanto circunscrita aos danos emergentes das lesões corporais que lhe advieram em virtude do acidente.
Refira-se, neste conspecto, que o Ac. do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 30.7.2005 (9) . decidiu que a segunda Directiva 84/5/CEE e a terceira Directiva 90/232/CEE, relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil sobre circulação de veículos automóveis, opõem-se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado a indemnização com fundamento na contribuição de um passageiro para o dano por si sofrido.
E, incisivamente, decidiu que o facto de o passageiro ser o proprietário do veículo cujo condutor provocou o acidente é irrelevante.
É, exactamente esta a situação dos autos.
Improcede, pois, também, nesta parte, a revista.

4. Nestes termos, acordam, no Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando o Acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2007.
Borges Soeiro (relator)
Faria Antunes
Sebastião Povoas, vencido de harmonia com a declaração de voto junta.
Declaração de voto
Fui vencido quanto ao segmento do Acórdão que condena a recorrente a indemnizar o recorrido CC.

Vejamos,

1- Este é o proprietário do veículo e titular do contrato de seguro de responsabilidade civil.
Era transportado no veículo do qual tinha a direcção efectiva e utilizava no seu próprio interesse, por intermédio de comissário – sua mulher – que o conduzia.
Daí que, e nos termos do n°1 do artigo 503° do Código Civil ( por indemonstrada qualquer das situações do artigo 505°) seja solidariamente responsável com o seu comissário – sobre o qual recai uma presunção de culpa – e com a seguradora (esta a responder até ao limite do montante da apólice) – artigo 507°.
Foi precisamente esta sua responsabilidade civil que transferiu para a companhia de seguros.
Não faz qualquer sentido, e antes surge ao arrepio de toda a dogmática jurídica da responsabilidade aquiliana, dos acidentes causados por veículos, e do seguro de responsabilidade civil, que o lesante seja simultaneamente lesado.
Ademais, o seguro em apreço destina-se a garantir os danos causados a terceiros, não se tratando de seguro de danos próprios.
A transposição para a ordem jurídica interna da Directiva n° 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, pelo DL n° 130/94, de 19 de Maio – que alterou o DL n° 522/85 de 31 de Dezembro, já alterado pelo DL n° 122-A/86, de 30 de Maio – não pode conduzir, sem mais, à subversão do nosso sistema jurídico e antes deve ser interpretada em conformidade.
Daí que o n°1 do artigo 7° da nova redacção deva ser lido no sentido de a exclusão do condutor do veículo seguro significar necessariamente a exclusão do seu comitente, já que a condução é feita "por conta" (ou seja, em nome, em representação) deste.

Assim é que se justifica a vigente disciplina do citado artigo 503° do diploma substantivo.
E a presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular do direito à indemnização.
O Prof. A. Varela justifica esta ficção legal por não ser semelhante a posição do condutor-proprietário e do condutor comissário. (cf. parecer no Boletim da Ordem dos Advogados – Janeiro de 1984). Nesta linha, o Acórdão do STJ de 2 de Junho de 1997 – BMJ 428-540 – assim ponderou.
"O condutor do "próprio veiculo", para alem da responsabilidade subjectiva imposta a todo o causador culposo de danos, está onerado com a responsabilidade objectiva, que garante à vitima o direito à indemnização, mesmo que o condutor prove a sua falta de culpa – desde que o acidente resulte de risco próprio do veiculo.
O condutor por conta de outrem, por seu turno, não conduzindo o veiculo no seu próprio interesse não está sujeito ao regime de responsabilidade objectiva. Está sujeito, sim a uma presunção de culpa, presunção que foi estabelecida por razoes bem fundamentadas. (...) O mero condutor será na generalidade dos casos, um motorista profissional, cuja condução se reveste de especiais características e a tomam particularmente perigosa. Por não ser executada sobre coisa própria é, em regra, mais descuidada; pela habitualidade com que é exercida é muito mais atreita a atitudes de facilidade e à rotina de correr maiores riscos; porque feita por quem deve ter obrigação de especial perícia é susceptível de legitimar que se lhes exija (aos condutores por conta de outrem, em termos mais onerosos, a obrigação de identificar e provar a causa de qualquer eventual acidente, caso ela lhes não seja imputável. Os condutores por conta de outrem, (...) são, na maioria dos casos, motoristas profissionais, que conhecem, ou tem obrigação de conhecer, as regras de condução, os segredos da viatura e o perfil das estradas. Se eles, apesar da sua experiência e sabedoria não convencem o tribunal da falta da sua culpabilidade, nada repugna aceitar, em principio, a conclusão da sua culpa. Ao mesmo tempo, (...) a presunção de culpa do condutor por conta de outrem é, em certa medida, uma forma de estimular o cumprimento do dever de vigilância, sobre o veiculo e de combater os perigos decorrentes da fadiga, da embriaguez, da distracção ou do espírito de competição na condução do veiculo. (...)
Temos de concluir, pois, que o "condutor comissário" e o "condutor proprietário" não se encontram numa situação igual, enquanto intervenientes no fenómeno da condução de um veiculo automóvel, a ponto de reclamar ou impor ao legislador ordinário a obrigação de os tratar de forma igual."
Ainda o Prof. A. Varela (Obrigações em Geral 1, 674 — 2° ed) convence da bondade de interpretação do Assento de 14 de Abril de 1983 ao referir:

"Há na condução por conta de outrem um perigo sério de afrouxamento na vigilância do veículo que a lei não pode subestimar: o dono do veículo (muitas vezes, uma empresa cuja personalidade se dilui pelos gestores) não sente as deficiências dele, porque o não conduz; o condutor nem sempre se apresta a repará-las com a diligência requerida, porque o carro não é seu, porque outros trabalham com ele e o podem fazer, porque não quer perder dias de trabalho ou por qualquer outra de várias razões possíveis."
Estabelecida a culpa presumida o lesado não tem que demonstrar os factos que a ela conduzem — artigo 350° n° 1 CC — cumprindo aos lesantes ilidi-los.
O comitente responde, então, como se referiu, solidariamente com o comissário por todos os danos causados no acidente, e não nos termos do n°l do artigo 503° daquele código por não estarem em causa apenas danos resultantes do risco próprio do veiculo, mas sim de danos causados por culpa (embora presumida) do condutor.
E este agravamento da situação do comitente também se destina a incitá-lo aos maiores cuidados na escolha do seu comissário, já que a indemnização é, em regra, suportada por ele.

2- O Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de 30 de Julho de 2005 — CJ/STJ, 2005, II, 7 — vale como mera jurisprudência, desconsiderando, aliás, as especificidades das leis nacionais.
Talvez por isso certos Estados membros da EU, com regimes internos semelhantes ao nosso (v.g. a Alemanha) não o acataram. A transposição das Directivas para o direito interno, tal corno a ratificação de instrumentos de direito internacional, deve ser feita em termos de não conflituar com a unidade do sistema jurídico, buscando-se soluções (ou, em fase ulterior, interpretações) que com ele se coadunem e não o desvirtuem.
Com todo o respeito, defender ser "terceiro" aquele que, também, é responsável pelo evento lesivo é uma contradição nos termos.
O legislador não pode ter querido esta solução, pois não teria deixado de garantir a acenada unidade do sistema jurídico que, como escreveu o Prof. A. Varela (RLJ 3803-42) "só pode construir-se sobre todas as pedras fundamentais em que assentam realmente as regras gerais do direito constituído, iluminadas pelo espírito que as anima."
O n°l do artigo 9° do Código Civil manda ter em conta essa unidade, para além das circunstâncias em que a lei foi elaborada, como as condições específicas do tempo em que é aplicada.
E as chamadas presunções epistemológicas do n°3 deste preceito devem estar sempre presentes na actividade do intérprete (cf. Prof. A. Varela, in "Do Projecto ao Código Civil", Lisboa, 1966, 22 ss). E da conjugação dos princípios expostos e na não busca de reconstituição do pensamento do legislador, na esteira da velha escola subjectiva, mas apelando para o que não pode deixar de ser o pensamento legislativo, que se encontra a interpretação acima referida.
Eis porque concederia parcialmente a revista e absolveria a Ré seguradora do pedido de indemnização formulado pelo proprietário do veículo.

________________________

(1) In,”www. dgsi. pt.”(net), Proc. 05B1597 (Relator Cons. Ferreira Girão), que vamos seguir de perto.
(2) Ac. deste STJ de 8/1/2004, Revista 4083/03-7ª Secção, Sumários, n°77, página 8..
(3) In, Revista n°2084/04-2ª Secção, “Sumário” n°83, página25.
(4) cfr. a exaustiva recensão, levada a cabo pelo Gabinete de Juízes Assessores de sumários de acórdãos proferidos entre 1996 e Fevereiro de 2003 sobre Danos Não Patrimoniais.
(5)Como se salientou no supracitado Ac. deste STJ de 22.6.2005, que estamos seguindo.
(6) Ac. do STJ, de 25/6/2002,in “CJ/STJ”, ano X, II-132..
(7) Vide, a este propósito o cotejo feito no Ac. deste STJ de 17.11.2005, in www.dgsi.pt ( Net), Proc. 05B3167 (Relator Cons. Moitinho de Almeida)..
(8) Note-se que no preâmbulo do aludido Dec-lei se aponta como razão fulcral para se legislar nessa oportunidade a necessidade da transposição da directiva do conselho de 14 de Maio de 1990 (90/232/CEE) para a ordem jurídica portuguesa.
(9) In, “C.J./S.T.J.”, 2005, II, pag.7.