Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
09B0263
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
INTERESSE CONTRATUAL NEGATIVO
INTERESSE CONTRATUAL POSITIVO
LUCRO CESSANTE
ANULAÇÃO
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
CAPACIDADE JUDICIÁRIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGOS 661º, 754º
CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 227º, 251º, 254º, 287º, 905º E SEGS., 913º E SEGS.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA DE 16 DE JUNHO DE 2008, WWW.DGSI.PT, 08B1184 E DE 18 DE JUNHO DE 2009, WWW.DGSI.PT , 08B3202
Sumário :
1. Registada a dissolução e o encerramento da liquidação de uma sociedade comercial, as acções em que era parte prosseguem, sendo a sociedade substituída pelos sócios.

2. A efectiva anulação ou a anulabilidade não invocada não são em abstracto incompatíveis com a obrigação de indemnizar, nos termos da responsabilidade pré-contratual.

3. Mas a obrigação de indemnização não pode equivaler à transferência, para o vendedor, do risco inerente à concretização ou não concretização dos objectivos que levaram o comprador a celebrar o contrato de compra e venda.

4. A opção do comprador por não invocar a anulabilidade do contrato, apesar de a sua vontade ter sido determinada por erro sobre o objecto, que funda na falta de informações que o vendedor estava obrigado a prestar, é compatível com um pedido de indemnização pelos danos que não teria sofrido se a obrigação de informações tivesse sido cumprida e, portanto, se o contrato não tivesse sido celebrado.
Decisão Texto Integral:




Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Sociedade de Construções C..., Lda. instaurou contra A. M..., Lda. uma acção na qual pediu a sua condenação no pagamento de uma indemnização de € 64.976,00, com fundamento em responsabilidade pré-contratual, acrescida de juros de mora contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para o efeito, e em síntese, alegou ter adquirido à ré um lote de terreno para construção de uma moradia bifamiliar; ter verificado que a sua configuração geométrica era diversa da que lhe correspondia na planta síntese oficial do loteamento, que lhe fora entregue pela ré, responsável pelo mesmo, o que inviabilizava a construção prevista; que ocorreu, assim, erro sobre o objecto do negócio; que a configuração do lote apenas permitia a construção de uma moradia unifamiliar; que o erro, decisivo “para a vontade de comprar”, lhe causou prejuízos, que calcula em € 55.000,00, por diminuição do lucro que provavelmente auferiria e por aumento dos encargos que tem de suportar; que realizou despesas, relativas à “tramitação do processo junto da Câmara Municipal de Valongo”, no montante de € 9.976,00.
A ré contestou, por impugnação e por excepção; a autora replicou.
Por sentença de fls. 299, a acção foi julgada apenas parcialmente procedente. A ré foi condenada a pagar à autora “uma indemnização equivalente à quantia monetária que esta, em consequência da apurada divergência de configuração geométrica, teve de suportar com a tramitação do processo na Câmara Municipal de Valongo, a liquidar em execução de sentença, e acrescida de juros de mora (…)” e ainda, como litigante de má fé, em 20 ucs de multa.
Já quanto ao pedido de indemnização por lucros cessantes, a sentença, considerando que no caso foi efectivamente celebrado o contrato de compra e venda e que este, quanto aos seus efeitos essenciais, foi executado, entendeu que devia ser antes apreciado à luz do regime definido pelos “arts. 913º e ss. do C. Civil, referente à venda de coisas defeituosas”; que, tendo a compradora incorrido em erro, criado pela ré, esta deveria ser responsabilizada pela frustração da expectativa da autora, a título de negligência grave; que a autora, não pretendendo anular o contrato, por erro, teria direito à redução do preço; que não a tendo requerido, não pode “substituir tal direito pela formulação de um pedido indemnizatório com base nos lucros cessantes decorrentes da diferente configuração do terreno”; e que, não tendo ficado provado o dolo da ré, a autora apenas teria direito a ser indemnizada nos termos do disposto no artigo 909º do Código Civil, ou seja, pelos danos emergentes (mas não por lucros cessantes).
A sentença foi todavia parcialmente revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 379, que condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 50.000,00, “equivalente à vantagem patrimonial que a autora auferiria – entre a venda da moradia bifamiliar e a venda da fracção unifamiliar que a nova configuração do lote de terreno apenas permitiu edificar”, mantendo a condenação nas despesas, no pagamento de juros e na multa por litigância de má fé.
Diferentemente do decidido em 1ª Instância, a Relação entendeu que continuava a ser aplicável o regime da responsabilidade pré-contratual, cujos pressupostos se verificavam; e que o âmbito da obrigação de indemnizar abrangia os lucros cessantes invocados, não estando limitado ao interesse contratual negativo.

2. A ré recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso foi recebido como revista, com efeito meramente devolutivo.
Nas alegações que apresentou, a recorrente requereu que fosse declarada a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, por falta de “capacidade judiciária para intervir nos presentes autos” por parte da autora, em resultado da perda de personalidade jurídica, “como flui do disposto no artigo 5º nº 2 do CPC"; subsidiariamente, requereu “a anulação do processado” a partir do momento em que ocorreu essa perda, invocando o disposto no nº 3 do artigo 277º do mesmo Código. E formulou as seguintes conclusões:

“ I. Na data de registo de dissolução, liquidação e encerramento a sociedade autora perdeu a perdeu a personalidade e capacidade jurídica, sendo tal o equivalente a dizer-se que deixou de existir, mais não restando que julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide;
II. Ainda que tal não se entenda, uma vez que a extinção e subsequente perda de personalidade e capacidade jurídica mais não resta que ordenar a anulação de todo o processado a partir da data de registo de dissolução, liquidação e encerramento da sociedade autora, ficando as custas do processo a cargo de quem lhes deu causa;
III. Não resulta dos factos provados que no lote em questão apenas seja possível a construção de uma moradia unifamiliar;
IV. Ao invés, aquilo que resulta dos factos provados (mais propriamente do ponto 9° dos factos provados) é que no referido lote só é possível a construção de uma moradia de dimensões inferiores às projectadas, e nesse âmbito inclui-se uma moradia bifamiliar, ainda que de menores dimensões da que inicialmente se havia idealizado pelo que a autora jamais deixou de poder cumprir aquilo que havia projectado fazer aquando da compra, tendo unicamente ficado limitada, em medida não concretamente apurada, no que à área da moradia bifamiliar diz respeito.
V. Na determinação dos danos indemnizáveis em sede de responsabilidade pré-contratual apenas devem ser atendidos os chamados danos negativos ou da confiança, relacionados com a violação dos princípios da boa fé negocial, e já não o dano positivo, este relacionado com o cumprimento do contrato propriamente dito;
VI. O dano ressarcível por culpa in contrahendo não se identifica com o ganho que derivaria da celebração do contrato;
VII. Ainda que tal orientação não se acolha, sempre se dirá que, havendo a obrigação de indemnizar atendendo aos danos positivos, nos quais se incluem os lucros cessantes, os critérios para a sua aferição terão sempre de assentar em critérios de probabilidade, numa base fáctica realista que não em meras conjecturas;
VIII. Acresce que, na indemnização pelo interesse contratual positivo, não deve o lesado ser colocado num situação mais vantajosa do que aquela que teria se não tivesse ocorrido qualquer irregularidade na formação do contrato;
IX. Ao condenar a ré no pagamento integral do lucro hipotético da Autora, sem simultaneamente resolver o contrato, o Tribunal abriu as portas ao locupletamento da autora, na medida em que lhe atribui indemnização correspondente ao lucro possível de obter após a construção e venda da moradia bifamiliar e, necessariamente do lote sobre o qual seria edificada, sem que contudo a mesma haja sido edificada e o lote vendido.
X. Tendo a autora optado pela manutenção do contrato a indemnização deve consistir na reposição do equilíbrio, através da redução da sua prestação, auferível nos termos dos art. 913º, 911º e 884º CC;
XI. Não havendo qualquer avaliação, nem dos autos resultar qualquer valor em que se pudesse sequer cifrar o quantum da redução a fixar subsiste a necessidade da sua quantificação, a qual deverá ser realizada, sob pena de um non liquet intolerável, em sede de incidente de liquidação e por avaliação, ao abrigo do disposto nos arts. 661°, n° 2,378°, n° 2 e 380º-A do CPC;
XII. Não tendo a recorrente litigado em desrespeito pelo Tribunal, mas talvez, de forma arrojada, convém não deixar de ter presente a diferença entre os pressupostos da litigância de má fé dolosa e a litigância de má fé instrumental, não permitindo que uma actuação menos feliz do mandatário acabe por atingir o património do mandante;
XIII. Ao decidir conforme se decidiu o Acórdão recorrido violou, entre outros, os arts. 227º, 913º, 911º, 884º do C.C. 653º, 659º, 661º, nº 2 e 456º do CPC.”

Contra-alegou A...A...O...F..., invocando ter sido habilitado para se substituir à autora, concluindo assim:

1- O habilitado tem legitimidade para prosseguir com os autos, em substituição da recorrente Sociedade Construções C..., pelo que, o facto de a sociedade Autora, na presente data, não possuir capacidade jurídica não impede que o processo siga os seus trâmites normais.
2- Atenta a habilitação do adquirente não pode ser declarada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
3 - Quando da venda e segundo informações prestadas pela Ré, a área indicada permitia a construção de uma moradia bifamiliar, porém foi dado como provado que somente é possível a construção de uma moradia de dimensões inferiores às inicialmente previstas, significando tal expressão que apenas é possível a construção de uma moradia com dimensões que não se coadunam a uma moradia bifamiliar ou seja coadunam-se a uma moradia unifamiliar.
4- No acórdão da Relação do Porto não existe qualquer extrapolação, visto que a responsabilidade pré contratual que o mesmo refere existir fundamenta-se no facto de existirem prestações de informações falsas que influenciaram todo o negócio.
5- Existe culpa "in contrahendo", na formação da vontade de contratar da sociedade Autora, por violação da boa fé contratual, nos termos do art. 227º do C.C. dado que a informação em causa (área do lote) reportava-se a um dado fundamental para a esclarecida formação da vontade negocial da contraparte, e visto que tratava-se de informação que estava na posse da Ré e por isso esta tinha obrigação de conhecer a real dimensão dos lotes que negociava.
6- Quanto aos danos indemnizáveis ao abrigo do art. 227º do C.C., a jurisprudência e a doutrina maioritária vão no mesmo sentido do acórdão objecto de recurso.
7 - Devem ser ressarcidos todos os danos causados, tanto os danos emergentes, como os lucros cessantes.
8 - Quanto à litigância de má fé, bem esteve o Tribunal ao condenar a Ré, já que esta alegou factos relevantes para a decisão da causa que sabia não serem verdadeiros, assim entorpecendo a acção da justiça, deduzindo oposição cuja falta de fundamento não devia nem podia ignorar.”

3. Após remessa ao processo a este Supremo Tribunal, a recorrente apresentou o requerimento de fls. 492. Referindo ter sido entretanto indeferida a habilitação do recorrente, pelo acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 25 de Novembro de 2008, já transitado, requereu que fosse julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide.
Notificado para se pronunciar, A...A...O...F..., ao abrigo do disposto no artigo 162º do Código das Sociedades Comerciais, requereu a substituição da sociedade autora pelos seus sócios, que identificou.
Foi, assim, proferido o seguinte despacho, a fls. 519:

«1. Nos termos do disposto no artigo 162º do Código das Sociedades Comerciais, “as acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários (…)”, sem necessidade de habilitação.
No caso, verifica-se que a sociedade autora da acção, Construções C... Lda., foi dissolvida e liquidada, tendo sido inscrito no registo a dissolução e o encerramento da liquidação, com data de 28 de Setembro de 2005.
2. Tendo sido encerrada a liquidação, cabe a todos os sócios substituir a sociedade em juízo, em litisconsórcio necessário.
Nestes termos, notifique M...I...O...D..., identificada no requerimento de fls. 509, para, no prazo de dez dias, dizer se ratifica os actos praticados por A...A...O...F....»

A fls. 520, a recorrente pronunciou-se no sentido de não ser aplicável ao caso o disposto no citado artigo 162º, por já ter ocorrido a liquidação da sociedade autora.
Sustentou, assim, que se “mantém (…) a irregularidade de não existir autora, nem quem lhe suceda”, devendo portanto a lide ser julgada extinta, por inutilidade superveniente.

A fls. 525, M...I...O...D... veio juntar procuração a advogado e ratificar “todos os actos praticados pelo marido A...A...O...F...”.

4. Cumpre então começar por analisar a questão prévia, suscitada pela recorrente, da perda de “personalidade e capacidade jurídica” da sociedade autora. Como se viu, a recorrente sustenta que deve ser julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide; ou, se assim se não entender, que deve ser anulado “todo o processado a partir da data de registo de dissolução, liquidação e encerramento” da sociedade.
É exacto que o acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de fls.220 (do incidente de habilitação apenso) indeferiu a habilitação requerida por A...A...O...F..., assim revogando o acórdão da Relação do Porto que a tinha admitido.
Em síntese, o Supremo Tribunal da Justiça entendeu que “não há coincidência entre a coisa ou direito transmitido na escritura – propriedade sobre lote de terreno para construção – e o direito em litígio na acção principal – direito de crédito de indemnização por responsabilidade pré-contratual decorrente de contrato de compra e venda do mesmo lote de terreno”.
A...A...O...F... não pode, pois, ter-se como habilitado, na qualidade de comprador do lote de terreno a que respeita o litígio objecto da presente acção.
Verifica-se, todavia, que a acção estava pendente quando foi dissolvida e liquidada a sociedade autora, e portanto, quando a dissolução e o encerramento da liquidação foram registados.
Verifica-se, ainda, que desde o início da acção a sociedade foi representada em juízo por A...A...O...F... (cfr. procuração de fls. 34); e que, notificada para o efeito, a outra sócia da sociedade extinta, M...I...O...D..., veio intervir, juntando procuração a advogado e ratificando “todos os actos praticados pelo marido A...A...O...F...”.
Ainda que tenha sido levado ao registo o encerramento da liquidação, vale a regra resultante do nº 1 do artigo 162º do Código das Sociedades Comerciais; extinta a sociedade, é a mesma substituída nas acções pendentes pelos sócios.
Como se observou no acórdão de 26 de Junho de 2008 deste Supremo Tribunal, disponível em www.dgsi.pt como proc. nº 08B1184, “Com a extinção, deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do disposto nos arts. 162º, 163º e 164º. (…) Assim, no tocante às acções pendentes em que a sociedade seja parte, elas continuam após a extinção desta, que se considera substituída – sem que haja lugar a suspensão da instância, uma vez que não é necessária habilitação – pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários.”
Em nada altera esta substituição, nem o registo da dissolução e encerramento da liquidação, nem a circunstância de constar da escritura de dissolução da sociedade a afirmação, feitas pelos dois sócios, de que a mesma “não tem qualquer activo ou passivo a partilhar” (neste sentido, o mesmo acórdão deste Supremo Tribunal de 26 de Junho de 2008).
Assim, no que em particular respeita à presente acção, não é possível retirar desta afirmação qualquer renúncia ao direito de indemnização em discussão nos autos, como seria necessário para se poder concluir pela inutilidade superveniente da lide; e, com a ratificação por parte de M...I...O...D..., desapareceu a irregularidade decorrente da falta da sua intervenção.
Não procede, pois, a questão prévia suscitada pela recorrente.

5. Antes de passar ao conhecimento do recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, cumpre excluir desde já a questão relativa à condenação da recorrente como litigante de má fé, por não se verificarem as condições de que o nº 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil faz depender a correspondente apreciação.
E cumpre ter em conta que, nas alegações de recurso, a recorrente aceita que lhe caiba ressarcir a recorrida pelas despesas que teve de suportar com a tramitação do processo na Câmara Municipal de Valongo; tal condenação está, pois, fora do âmbito do presente recurso.

6. Vêm definitivamente provados os seguintes factos (transcreve-se o acórdão recorrido):

“1) A Autora dedica-se com intuito lucrativo à compra e venda de terrenos (Alínea A)).
2) Com data de 07 / 12/ 1999, por escritura pública, outorgada no Cartório Notarial de Ermesinde, a Ré declarou vender à Autora, que declarou aceitar, pelo preço de Esc. 7.000.000$00, o seguinte prédio: terreno para construção, com a área de 361 m2, situado na freguesia de Alfena, concelho de Valongo, na Rua S. Margarida, no lugar do Lombelho, designado por lote n° ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o n° 2910, da freguesia de Alfena e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 4646 (Alínea B)).
3) A documentação respeitante ao loteamento do terreno recebida pela Autora, incluindo a planta síntese oficial, foi entregue pela Ré (Alínea C)).
4) A Autora adquiriu o prédio convencida que o mencionado lote tinha a configuração geométrica constante da planta síntese oficial (Alínea D)).
5) O prédio indicado em 2) foi adquirido pela Autora para construção de uma moradia bifamiliar (identificada pelo referido lote n° 2 do Alvará de Loteamento n° 883/97, de 2-4, e Aditamento n° 13/99) (Item 1°).
6) Com o conhecimento da Ré, quando da venda (Item 2°).
7) O mencionado Lote n° 2 dispõe, na planta síntese oficial, de uma profundidade média de 23,00 metros, enquanto na realidade tal profundidade não excede 21,00 metros (Item 3°).
8) Na planta síntese oficial apresenta uma área de 361,00 m2, quando na realidade dispõe de 402,50 m2 (Item 4°).
9) Com base em tais elementos que foram apresentados pela Ré, a Câmara Municipal de Valongo aprovou o loteamento (Item 5°).
10) Em consequência da verdadeira configuração geométrica do terreno, a Autora está impedida de nele implantar uma construção com um polígono de implantação de 14,00 x 7,50 (a que corresponde uma área de piso de 105,00 m2), mantendo-se os afastamentos aprovados em sede de planta síntese e que são de 5,00 m2 às extremas laterais, 3,00 m2 mínimos ao muro frontal e 5,00 m2 a 5,25 m2 a tardoz (Itens 7° e 8°).
11) É somente possível a construção de uma moradia de dimensões inferiores às projectadas (Item 9°).
12) Com a venda de uma moradia bifamiliar, a Autora auferiria uma vantagem patrimonial superior em pelo menos € 50.000,00 à vantagem patrimonial que decorreria da venda de uma moradia unifamiliar (Itens 10° e 11°).
13) Em consequência da referida divergência, a Autora teve de suportar, com a tramitação do processo na Câmara Municipal de Valongo, uma quantia monetária em valor concreto não apurado (Item 12°).
14) A Câmara Municipal de Valongo nunca recusou a construção no lote em causa de uma moradia de dimensões inferiores à projectada pela Autora (Item 13°).”

7. No que toca ao mérito do recurso, a recorrente começa por observar que o acórdão recorrido assentou “num pressuposto inexistente”, já que não ficou provado que não era possível construir no lote alienado uma moradia bifamiliar, mas apenas “uma moradia de dimensões inferiores às planeadas”, o que é coisa diferente.
Esta observação é, diga-se já, totalmente procedente. Com efeito, apesar de ter sido levada à base instrutória a questão de saber se, “em consequência da verdadeira configuração geométrica do terreno, a A. está impedida de nele implantar” uma moradia bifamiliar “com um polígono de implantação de 14,00x7,50 (a que corresponde uma área de piso de 105,00 m2), mantendo-se os afastamentos aprovados em sede de planta síntese e que são de 5,00 m2 às extremas laterais, 3,00 m2 mínimos ao muro frontal e 5,00 m2 a 5,25 m2 a tardoz” (quesitos 7) e 8)), apenas foi julgado provado que “em consequência da verdadeira configuração geométrica do terreno, a Autora está impedida de nele implantar uma construção com um polígono de implantação de 14,00 x 7,50 (a que corresponde uma área de piso de 105,00 m2), mantendo-se os afastamentos aprovados em sede de planta síntese e que são de 5,00 m2 às extremas laterais, 3,00 m2 mínimos ao muro frontal e 5,00 m2 a 5,25 m2 a tardoz (Itens 7° e 8°).”
Igualmente foi quesitado (quesito 9)) se, em consequência da mesma configuração, era “apenas possível a construção de uma moradia unifamiliar”; mas apenas ficou provado “que é somente possível a construção de uma moradia de dimensões inferiores às projectadas”.
Tendo o pedido de indemnização formulado pela autora assentado na impossibilidade de construção de uma moradia bifamiliar no lote comprado à ré; tendo a autora pedido apenas o pagamento da indemnização correspondente à diferença entre a “vantagem patrimonial” que obteria com a venda de duas fracções de uma moradia bifamiliar e aquela que alcançaria com a venda de uma moradia unifamiliar (cfr. petição inicial), era pressuposto indispensável de procedência da acção que tivesse ficado provado que a diferença entre a configuração geométrica do lote na planta oficial de loteamento e a sua configuração real teve como consequência a impossibilidade de construção de uma moradia bifamiliar.
Não pode, pois, proceder o pedido de indemnização por lucros cessantes, seja qual for o correspondente enquadramento jurídico.

8. A improcedência não resulta, pois, de uma opção teórica, nem pela impossibilidade de aplicação do regime da responsabilidade pré-contratual aos casos em que, como aqui sucedeu, o contrato chegou a ser realizado, nem pela inadmissibilidade de indemnização pelo interesse contratual positivo no âmbito da responsabilidade pré-contratual.
De acordo com o que ficou provado, autora e ré celebraram um contrato de compra e venda de um determinado lote de terreno, constando da correspondente escritura que tinha uma área de 361 m2; a vendedora entregou à compradora a planta síntese oficial do loteamento; a compradora adquiriu o lote convencida de que o mesmo tinha a configuração constante dessa planta, para nele construir uma moradia bifamiliar, como permitida pelo alvará de loteamento e respectivo aditamento; a vendedora conhecia essa intenção da compradora; o loteamento havia sido aprovado pela Câmara com base nos elementos (profundidade de 23,00 m e área de 361,00 m2) constantes da planta; na realidade, a área do terreno é de 402,50 m2 e a profundidade não excede 21,00m, o que impede a compradora de nele implantar uma construção com as dimensões referidas no ponto 10 dos factos provados, apenas possibilitando a construção de uma moradia de dimensões inferiores às projectadas; em consequência da divergência de configuração do terreno, a compradora teve de suportar despesas com a tramitação do processo na Câmara; a Câmara nunca recusou a construção, no referido lote, de uma moradia de dimensões inferiores à que foi projectada pela compradora; a compradora, “com a venda de uma moradia bifamilar (…) auferiria uma vantagem patrimonial superior em pelo menos € 50.00 à vantagem patrimonial que decorreria da venda de uma moradia bifamiliar”.
Não ficou provado, nem que a vendedora sabia que não correspondiam à realidade a profundidade e a área do lote que constavam da planta síntese oficial (resposta negativa ao quesito 6º), nem que fosse “apenas possível a construção de uma moradia unifamiliar” no mesmo lote (resposta aos quesitos 8º e 9º), nem que, “depois de aprovar o loteamento, a Câmara Municipal de Valongo” tenha permitido “o implante de um arruamento, e em consequência disso” tenha feito “crescer o seu lote para o loteamento em causa” (resposta negativa ao quesito 14º).
Os factos provados permitem concluir que houve erro sobre o objecto do negócio (sobre a configuração do lote comprado), como a autora alegou na petição inicial (cfr. em especial o seu artigo 20º); mas não que esse erro tenha sido determinante (cfr. artigo 251º do Código Civil), ou seja, que a compradora não teria comprado se conhecesse a real configuração do lote, não obstante isso ter sido alegado (artigo 22º da petição inicial); também não ficou provado que o erro tenha sido provocado por dolo da vendedora (não tendo ficado provado que esta conhecia a divergência de configuração, não pode sequer considerar-se ter ocorrido a dissimulação do erro que o nº 2 do artigo 254º do Código Civil inclui no dolo).
Não releva no entanto que não esteja provada a essencialidade do erro, uma vez que a autora afirmou expressamente não pretender anular o negócio (cfr. nº 1 do artigo 287º do Código Civil).
Com efeito, do ponto de vista que agora interessa, não seria diferente a resposta à questão de saber se a compradora poderia ou não ser indemnizada com fundamento em responsabilidade pré-contratual por parte da vendedora, posto que se concluísse que esta, agindo com a prudência exigível, se teria apercebido da divergência de configuração e teria informado a compradora, como o padrão da boa fé lhe exigiria (nº 1 do artigo 227º do Código Civil). A efectiva anulação ou a anulabilidade não invocada não são em abstracto incompatíveis com a obrigação de indemnizar, nos termos da responsabilidade pré-contratual (cfr., por todos, Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, II; Coimbra, 2008, pág. 1389 e segs.); nem seriam no caso concreto.
No entanto, ainda que se pudessem considerar preenchidos, quer os requisitos de relevância do erro, quer a negligência imprescindível para que a actuação da vendedora fosse qualificada como culposa (como se entendeu nas instâncias), a obrigação de indemnizar decorrente do nº 1 do artigo 227º do Código Civil não abrangeria, no caso concreto, os lucros cessantes invocados. Tal inclusão significaria a transferência para a vendedora do risco inerente à concretização ou não concretização do objectivo que levara a compradora a adquirir o lote, não existindo qualquer rasto da correspondente assunção; criaria uma dualidade de regimes inaceitável, por confronto com o disposto nos artigos 908º e 909º para os casos realmente próximos da venda de bens onerados e de coisas defeituosas (artigos 905º e segs. e 913º e segs. do Código Civil); e não respeitaria, no caso, o critério fundamental da obrigação de restituir, ou seja, o da reconstituição natural (nº 1 do aro 566º do Código Civil).
Na verdade, a indemnização, no caso, deveria ser apta a colocar a compradora na situação em que se encontraria se a obrigação de informação tivesse sido cumprida pela vendedora; ora, tendo sido determinante o erro, como a autora alegou e hipoteticamente agora se admite, o cumprimento dessa obrigação teria levado à não conclusão do negócio. A indemnização, a ser devida, apenas teria de cobrir os danos que a compradora não teria sofrido se não tivesse celebrado o contrato de compra e venda, ou seja, o chamado interesse contratual negativo.
A solução a que o acórdão recorrido chegou – e que conduz a que a compradora, para além de manter a propriedade do lote comprado, tenha direito a receber o lucro que previsivelmente conseguiria com a venda da moradia bifamiliar que projectara para o terreno, sem todavia ter que proceder a nenhuma edificação nem a nenhuma venda – não pode ser mantida.

9. Não tendo sido pedida qualquer redução do preço da compra e venda, está vedado ao Supremo Tribunal da Justiça (e às instâncias) pronunciar-se sobre tal hipótese, colocada pela recorrente nas suas alegações.
Não se exclui essa possibilidade, apontada como adequada à reposição do equilíbrio contratual em situações como a dos autos por Carlos Ferreira de Almeida em Contratos, I, 3ª ed., Coimbra, 2005, pág.207; e, para uma situação em que a redução do preço se justificou em erro essencial parcial, incidente sobre o montante do preço, cfr. acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de Junho de 2009, disponível em www.dgsi.pt como proc. 08B3202. Apenas se afirma que o princípio do pedido (nº 1 do artigo 661º do Código de Processo Civil) o impede.

10. Nestes termos, decide-se:

a) Conceder provimento parcial à revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou a ré A. M..., Lda. no pagamento à autora Sociedade de Construções C..., Lda. da indemnização de € 50.000,00;
b) Absolver a ré do correspondente pedido de condenação.


Custas por ambas as partes, na proporção de 2/10 para a recorrente e de 8/10 para a recorrida.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lázaro Faria
Lopes do Rego