Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4422
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
SEGURADORA
SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS
CARTÃO DE CRÉDITO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ200801290044222
Data do Acordão: 01/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. Não podendo o STJ, em regra, alterar a matéria de facto fixada pelas instâncias, já, porém, se contém nos seus poderes o conhecimento da questão – que de questão de direito se trata – de saber se as respostas dadas pelo julgador da matéria de facto excedem o âmbito da alegação fáctica e dão como assente matéria de facto que não foi alegada pelas partes.

2. Se as respostas aos quesitos ultrapassarem as fronteiras da factualidade alegada e quesitada, têm elas de se considerar não escritas, por força do estatuído no art. 664º, n.º 4 do CPC, aplicável por analogia.

3. Embora a interpretação das declarações negociais constitua matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, não está o STJ impedido de exercer censura sobre a decisão respectiva quando esta contraria o disposto nos arts. 236º/1 e 238º do Cód. Civil, pois, neste caso não se trata de fixar apenas factos, mas de aplicar um critério normativo, uma disposição legal – ou seja, de interpretar as disposições legais com vista a fixar o seu sentido juridicamente relevante, o que constitui matéria de direito.

4. Assiste-se, hoje em dia, a uma ligação e colaboração entre Bancos e Companhias de Seguros, dando lugar ao fenómeno designado por bancassurance, deixando a banca de estar confinada às actividades tradicionais de recolha de fundos e ao crédito ou financiamento, e interagindo com os seguros na distribuição de produtos financeiros, vendendo “produtos” de seguros através da sua rede de balcões.

5. A massificação das operações da Banca e dos Seguros levam os respectivos operadores a elaborar formulários ou impressos, contendo o clausulado que os clientes não estarão em condições de discutir, tendo apenas a alternativa de celebrar ou não o contrato, com o conjunto padronizado ou normalizado de cláusulas que este apresenta (cláusulas contratuais gerais).

6. A lei impõe ao proponente um conjunto de deveres, com vista à tutela do contraente que as subscreve por mera adesão: o dever de comunicação integral, prévia e adequada aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las, o dever de informação e esclarecimento, e o dever de clareza e precisão, isto é, a sua redacção clara e precisa.

7. Em matéria de interpretação das cláusulas contratuais gerais são aplicáveis, por força do disposto no art. 10º do Dec-lei 446/85, de 25 de Outubro, as normas dos arts. 236º a 238 do CC.

8. O sentido da declaração negocial do proponente é, pois, (art. 236º/1) o que corresponda à compreensão virtual de uma figura padronizada de declaratário: um declaratário medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.

9. Todavia, por força do disposto na parte final do art. 10º do Dec-lei 446/85, a interpretação das c.c.g. deve fazer-se sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam, tendo-se, assim, em conta que as circunstâncias concretas dos contratos singulares podem conduzir a resultados interpretativos diferentes dos que resultam da análise de cláusulas abstractas, tomadas em si e por si, e possibilitando-se uma justiça material mais apurada.

10. As cláusulas ambíguas valem com o sentido que lhes daria um aderente normal, colocado na posição do aderente real (art. 11º do Dec-lei 446/85), não valendo aqui uma ressalva semelhante à da parte final do art. 236º/1 do CC. E, em caso de dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.

11. A cláusula – constante de contrato de seguro de acidentes pessoais em viagem agregado a um cartão do sistema VISA, celebrado entre o banco emitente do cartão e uma seguradora – que estabelece o pagamento de uma soma em dinheiro, em caso de morte do titular do cartão em acidente sofrido em viagem, se a viagem tiver sido comprada com utilização do cartão, e uma soma (menor) se a viagem for comprada sem utilização do cartão, deve, à luz dos princípios constantes dos números anteriores, ser interpretada no sentido de incluir, na primeira modalidade, a utilização do cartão no pagamento da totalidade ou apenas de parte do preço da viagem.

12. A condenação como litigante de má fé assenta num juízo de censura incidente sobre um comportamento inadequado à ideia de um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de Direito: não litiga de má fé a parte que não ultrapassa os limites da litigiosidade séria, aquela “que dimana da incerteza”.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA, por si e em representação de seu filho menor BB, intentou, em 06.01.2003, pelo 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Leiria, contra COMPANHIA DE SEGUROS A... PORTUGAL, S.A., acção com processo ordinário, peticionando a condenação desta a pagar-lhes a quantia de € 324.218,63, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.
Alegou, para tanto, e em síntese, serem ela e o dito seu filho únicos e universais herdeiros de CC tendo ambos, por morte deste, ocorrida em 13.08.2001, em consequência de acidente de viação ocorrido no dia 6 desse mesmo mês e ano, no Brasil, direito ao capital de esc. 65.000.000$00, garantido pela ré no âmbito de um contrato de seguro de acidentes pessoais no qual o falecido, por ser titular de um cartão do sistema Visa, denominado BPI Gold, figurava como pessoa segura.
A ré contestou, pugnando pela improcedência da acção, sustentando, com interesse, que a viagem em que se verificou o acidente de que veio a falecer o segurado não foi paga com o mencionado cartão bancário, não se verificando, assim, a condição, estabelecida no respectivo contrato de seguro, de que dependia a aplicação do seguro e da cobertura Morte ou Invalidez Permanente.
Seguindo o processo a sua normal tramitação, veio a ser efectuado o julgamento e a ser proferida sentença, na qual a acção foi julgada totalmente procedente, com a correspondente condenação da ré nos termos peticionados pela demandante.
Sob recurso da ré, a Relação de Coimbra anulou a decisão, determinando, nos termos do n.º 4 do art. 712º do CPC, a repetição do julgamento da matéria de facto, quanto a pontos concretos que indicou.
Cumprido o determinado pela Relação, foi proferida nova sentença, cuja parte decisória repete, ponto por ponto, a anterior, condenando a ré a pagar aos autores a quantia de € 324.218,63, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

A ré interpôs novo recurso de apelação, mas agora sem êxito, pois a Relação de Coimbra, por seu acórdão de 19.06.2007, julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

De novo inconformada, a ré traz agora a este Supremo Tribunal recurso de revista.
Doutamente minutado, o recurso apresenta um vasto leque conclusivo que, na sua globalidade, coloca ao tribunal ad quem duas questões:
1ª - A da alteração ilegal da causa de pedir, por iniciativa oficiosa do M.mo Juiz a quo (art. 664º do CPC) e da violação do princípio do dispositivo (art. 264º do mesmo Código) e, ainda, do imperativo legal da coincidência entre a causa de pedir e a causa de julgar, decorrente dos mesmos arts. 264º (n.º 2) e 664º;
2ª - A da interpretação, operada na decisão recorrida, da verdadeira intenção dos declarantes, em violação dos critérios normativos dos arts. 236º/1 e 238º do CC.

Em contra-alegações, os autores defendem a confirmação do acórdão recorrido, pedindo ainda a condenação da recorrente como litigante de má fé, em indemnização a favor deles, demandantes.
Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.
2.

É o seguinte o acervo factual que vem, das instâncias, dado como assente:
1. A autora foi casada com DD;
2. Desse casamento existe um filho, BB, nascido a 16 de Fevereiro de 1997;
3. A autora e o seu filho são os únicos e universais herdeiros do falecido DD;
4. DD faleceu a 13 de Agosto de 2001, na sequência de um acidente de viação ocorrido no Brasil a 6 de Agosto de 2001, quando viajava de Lagoa da Anta, Maceió, para Porto de Galinhas;
5. O falecido DD era titular de um cartão do sistema Visa, designado por BPI Gold, n.º ...;
6. Tal cartão tinha agregado um seguro de acidentes pessoais em viagem, celebrado entre o BPI e a Companhia de Seguros A... Portugal, SA, e titulado pela apólice n.º ...;
7. No ponto 6.1 da referida apólice estipula-se “Cobertura: Importâncias e indemnizações devidas por morte (. . .) em consequência de acidente sofrido em viagem em qualquer meio de transporte público de passageiros. Valores garantidos: com utilização do cartão BPI Gold na compra da viagem (por titular e por ano) : coberturas morte (. . .) 65.000 contos ( . . . ) Sem utilização do cartão BPI Gold na compra da viagem, na cobertura de morte o valor garantido está limitado a 5.000 contos”;
8. Consta ainda da mesma apólice que “Secção II, I - Coberturas e valores seguros, 1- acidentes pessoais/viagem: ponto 1.1 Título de viagem comprado com cartão Gold: coberturas morte . . . ) valores garantidos 65.000.000$00”;
9. Da mesma apólice consta também na secção II, I - Coberturas e valores garantidos, ponto 1.2 Título de viagem comprado sem cartão Gold: Coberturas morte (...) valores garantidos 5.000.000$00;
10. O cartão BPI Gold a que se alude em 5. foi um dos meios utilizados no pagamento do preço da viagem ao Brasil de DD, de EE, de AA, de BB, de FF e de GG, com partida de Lisboa no dia 3 de Agosto de 2001, e que incluía o transfer de Lagoa de Anta, Maceió, para Porto Galinhas;
11. Desse preço, no montante de 8.273,71 euros, DD pagou à agência de viagens Star Turismo, em 13 de Julho de 2001, a quantia de 249,40 euros com o cartão BPI Gold a que se alude em 5.;
12. A referida agência de viagens emitiu uma só factura pelo total das viagens compradas e relativas a cinco adultos e uma criança, no total de 1.658.730$00/8.273,71 euros.
3.

Como é sabido, e flui do disposto nos arts. 684º/3 e 690º/1 do Cód. Proc. Civil (1) , o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da alegação do recorrente, circunscrevendo-se às questões aí equacionadas; o tribunal de recurso – ressalvadas as questões de conhecimento oficioso – só destas pode conhecer.
É, pois, apenas das duas questões acima enunciadas que este Supremo Tribunal tem de curar.

3.1. Sustenta a recorrente que a factualidade alegada pelos autores nos arts. 11, 12 e 13 da petição inicial – pagamento pelo falecido, com o cartão BPI Gold, do trajecto transfer entre Lagoa de Anta, Maceió e Porto Galinhas, em que viria a falecer, no valor de 50.000$00 – foi modificada pelo Ex.mo Juiz da 1ª instância, pois deu como provado que o cartão referido foi um dos meios para o falecido pagar toda a viagem, sua e dos restantes acompanhantes.
E daí extrai a conclusão de que essa modificação configura alteração ilegal da causa de pedir, por iniciativa oficiosa do dito magistrado (art. 664º) e violação do princípio do dispositivo (art. 264º) e, ainda, do imperativo legal da coincidência entre a causa de pedir e a causa de julgar, decorrente dos arts. 264º/2 e 664º.
Vejamos.
A questão está ligada com a matéria dos quesitos 1º e 2º – a alegada naqueles indicados artigos da p.i. – e com a resposta que a tais quesitos foi dada pelo julgador da matéria de facto.
O quesito 1º está assim formulado:
A viagem durante a qual o CC faleceu, transfer de Lagoa de Anta, Maceió, para Porto Galinhas, foi paga com a utilização do seu cartão BPI Gold a que se alude em E)?
A resposta que obteve é a que se encontra vazada no n.º 10 da matéria de facto assente, ou seja,
Provado apenas que o cartão BPI Gold a que se alude em E) foi um dos meios utilizados no pagamento do preço da viagem ao Brasil de DD, de EE, de AA, de BB, de FF e de GG, com partida de Lisboa no dia 3 de Agosto de 2001, e que incluía o transfer de Lagoa de Anta, Maceió, para Porto Galinhas.
Por seu turno, no quesito 2º indaga-se:
Para tanto, o CC pagou à agência de viagens Star Turismo, em 13 de Julho de 2001, a quantia de 50.000$00/249,40 €?
Resposta do julgador da matéria de facto (cfr. n.º 11 da apurada matéria de facto):
Provado apenas que desse preço, no montante de 8.273,71 euros, DD pagou à agência de viagens Star Turismo, em 13 de Julho de 2001, a quantia de 249,40 euros com o cartão BPI Gold a que se alude em E).
A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada pelo Supremo, a não ser no caso excepcional previsto no art. 722º, isto é, no caso de ter havido ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. O Supremo limita-se, como tribunal de revista, a aplicar aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julga adequado. É o que decorre do disposto no art. 729º, n.os 1 e 2 e no n.º 2 do citado art. 722º.
Mas, como vem sendo entendido pela doutrina e pela jurisprudência, pode o Supremo conhecer da questão de saber – porque de questão de direito se trata, decorrente da conjugação dos arts. 664º e 264º – se as respostas dadas pelo julgador da matéria de facto excedem o âmbito da alegação fáctica, dando como assente matéria de facto que não foi alegada pelas partes.
De tais normativos resulta que o tribunal só pode valer-se, para decidir a questão de direito, dos factos alegados pelas partes ou dos factos instrumentais ou circunstanciais que resultem da instrução e discussão da causa. Se as respostas aos quesitos ultrapassarem as fronteiras da factualidade alegada e quesitada, têm elas de se considerar não escritas, por força do estatuído no n.º 4 daquele art. 664º, aplicável por analogia (2)
A Relação entendeu que as respostas acima transcritas não são excessivas ou exorbitantes; bem pelo contrário, foi “um pronunciamento de natureza restritiva – ou, se se quiser, de natureza restritiva-explicativa – aquele que o M.mo Juiz, em face do resultado da prova produzida, e na preocupação de fazer corresponder a matéria de facto à convicção por si formada, efectivou em relação a esses dois quesitos, pronunciamento por isso inteiramente regular e lícito”.
E, na verdade, não pode deixar de se concordar com este entendimento.
As respostas aos dois quesitos contêm-se na matéria quesitada. Perguntava-se se a viagem em que ocorreu o acidente de que veio a resultar a morte de DD – o “transfer” de Lagoa de Anta, Maceió, para Porto Galinhas (que, como é inequívoco, estava inserida na viagem por ele e familiares feita ao Brasil) – foi paga com a utilização do seu cartão BPI Gold; e se, para tanto, o CC pagou à agência de viagens Star Turismo, em 13 de Julho de 2001, a quantia de 50.000$00.
E, produzidas as provas, o Ex.mo Juiz deu como assente que o cartão BPI Gold foi um dos meios utilizados no pagamento do preço da viagem ao Brasil do dito CC e dos seus familiares, com partida de Lisboa no dia 3 de Agosto de 2001, e que incluía o transfer de Lagoa de Anta, Maceió, para Porto Galinhas; e que desse preço, no montante de 8.273,71 euros, DD pagou à agência de viagens Star Turismo, em 13 de Julho de 2001, a quantia de 249,40 euros com o mencionado cartão BPI Gold.
Ou seja: provou-se apenas que, do preço da viagem – que incluía o mencionado “transfer” – uma parte (€ 249,40, equivalentes a 50.000$00) foi paga com o cartão.
Não há, pois, qualquer deficiência nas respostas.
Com elas, o Ex.mo Juiz move-se inteiramente dentro da causa de pedir, que é constituída pela titularidade, pelo falecido, de um cartão Visa (BPI Gold), que tinha agregado um seguro de acidentes pessoais em viagem, celebrado entre o BPI e a aqui recorrente, e a utilização de tal cartão no pagamento da viagem em que ocorreu o evento determinante da morte do seu titular.
A decisão da Relação é, a este respeito, de uma impressiva clareza, não justificando o mínimo reparo.
Não se verifica, pois, a alegada alteração da causa de pedir, nem se vislumbra a imputada violação do princípio do dispositivo ou do imperativo legal da coincidência entre a causa de pedir e a causa de julgar, decorrente dos arts. 264º/2 e 664º. Na verdade, as instâncias não se socorreram, na apreciação e julgamento da causa, de outros factos que não os alegados pelas partes ou nestes contidos.
A recorrente sustenta, na discussão desta questão, que não pode aceitar-se que o meio de pagamento seja igual ao pagamento de parte especificada da viagem, e que a restrição da resposta à pergunta é utilizada com o sentido de resposta totalmente positiva, acrescentando que ser um dos meios de pagamento não equivale ao pagamento exigido para funcionar a cláusula de seguro.
Trata-se, porém, de considerações que não têm directa relação com a matéria de facto fixada, situando-se já no plano da valoração jurídica desta, isto é, no plano da decisão de direito.
Irrelevante é também, face ao disposto no já citado n.º 2 do art. 722º, a alegação de que os documentos demonstram que o título de viagem contratada entre a STAR e o falecido não foi adquirido com o cartão BPI Gold deste último, mas com um outro cartão (Master Card).
Claudica, pois, face a tudo quanto se deixou expresso, a argumentação da recorrente no tocante à questão em apreço.

3.2. Vejamos a segunda questão.
De acordo com orientação há muito firmada neste Tribunal, embora a interpretação das declarações negociais constitua matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, não está o STJ impedido de exercer censura sobre a decisão respectiva quando esta contraria o disposto nos arts. 236º/1 e 238º do CC. Neste caso – i.e., quando a interpretação das declarações negociais deva ser feita nos termos destes indicados preceitos – não se trata de fixar apenas factos, mas de aplicar um critério normativo, uma disposição legal, devendo o Supremo apreciar se as instâncias fizeram correcta aplicação desse critério. Trata-se, então, de interpretar as declarações negociais com vista à fixação do seu sentido juridicamente relevante, o que constitui matéria de direito, como tal sindicável pelo STJ.
É, precisamente, o que acontece no caso em apreço.

3.2.1. Está em causa a interpretação de cláusula do contrato de seguro do ramo “acidentes pessoais” celebrado entre o BPI, S.A. e a ora recorrente, no qual figuram como pessoas seguras os titulares do cartão Gold, residentes em Portugal, os respectivos cônjuges e os filhos até à idade de 25 anos, desde que vivam na dependência económica do titular.
O aludido contrato de seguro garante, entre outros, o risco de Acidentes Pessoais/Viagem, assegurando a A..., na cobertura deste risco, além do mais, o pagamento de um capital, variável, em caso de morte da pessoa segura em consequência de acidente sofrido quando em viagem em qualquer meio de transporte público de passageiros (Condições Particulares da apólice, secção I, cláusula VI , n.º 1.1.1.).
Os valores dos capitais garantidos são os constantes dos n.os 7., 8. e 9. da matéria de facto assente.
Importa recordá-los, aqui e agora, reproduzindo a parte dos documentos que os inserem. Assim,
Da secção II das Condições Particulares da apólice acima aludida consta o seguinte (n.os 8. e 9. da matéria de facto), no tocante a “Coberturas e Valores Seguros” do risco de “Acidentes Pessoais/Viagem”:
1.1. Título da viagem comprado com cartão GOLD:
Morte (...) – 65.000.000$00
1.2. Título da viagem comprado sem cartão GOLD:
Morte (...) – 5.000.000$00.
E o Guia do Utilizador do BPI Gold, que contém a indicação dos seguros de que beneficiam os titulares do cartão e o respectivo regime, referencia no n.º 6.1, respeitante ao seguro de “Acidentes Pessoais em Viagem” (n.º 7. da matéria de facto):
Cobertura: Importâncias e indemnizações devidas por morte (...), em consequência de acidente sofrido em viagem em qualquer meio de transporte público de passageiros.
Valores garantidos:
Com utilização do Cartão BPI Gold na compra da viagem (por titular e por ano):
Coberturas: morte (...) 65.000 contos.
Sem utilização do cartão BPI Gold na compra da viagem, na cobertura de morte (...) o valor garantido está limitado a 5.000 contos.
O que está em jogo é, pois, como bem refere a decisão da 1ª instância, a interpretação da cláusula do contrato de seguro que condiciona o pagamento do capital de 65.000.000$00 a ser o “título da viagem comprado com Cartão Gold” ou à “utilização do Cartão BPI Gold na compra da viagem”. Tudo está em saber se tal cláusula opera os seus efeitos apenas no caso de a viagem ser integralmente paga com o cartão BPI Gold ou se basta, para que tais efeitos se possam produzir, que o dito cartão tenha sido um – e não o único – dos meios de pagamento da viagem.
Em matéria de interpretação das cláusulas contratuais gerais, o princípio geral, emergente do art. 10º do Dec-lei 446/85, de 25 de Outubro, é o de que estas são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos, dentro do contexto do contrato singular em que se incluam. São, pois, aplicáveis as normas dos arts. 236º a 238º do CC.
Dispõe este art. 236º, no seu n.º 1, que “(a) declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.(6)
E acrescenta no n.º 2 que, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Nos negócios formais – como é o caso presente – a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, salvo se esse sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (citado art. 238º, n.os 1 e 2).
Estas regras interpretativas valem para as declarações receptícias, não se aplicando às declarações estritamente unilaterais.
Está, no caso, afastada a aplicação o disposto no n.º 2 do art. 236º: não se conhece a vontade real do declarante.
Importa, pois, interpretar a sua declaração negocial, procurar o sentido com que esta há-de valer. E, para tanto, estabelece o n.º 1 do mesmo preceito, como regra, que o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um “declaratário normal”, é dizer, um declaratário medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. O sentido juridicamente relevante será, assim, em princípio, o que corresponda à compreensão virtual dessa figura padronizada de declaratário.
A “normalidade” deste padronizado declaratário expressa-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante (4)
O objectivo perseguido pela regra legal, ao conferir à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir, é, em tese geral, o de assegurar a protecção do declaratário.
Postos estes princípios, vejamos como deve ser interpretada a questionada cláusula do seguro.
A Relação, a este propósito, considerando que as razões e argumentos da sentença da 1ª instância, “pela sua consistência e argúcia, encerram (...) uma proficiente linha de fundamentação totalmente infirmativa das doutas objecções formuladas pela recorrente”, remeteu para essa fundamentação, valendo-se da faculdade prevista no n.º 5 do art. 713º, acrescentando apenas, como resposta à hipótese equacionada pela recorrente, de que, se fosse utilizada uma multiplicidade de cartões para pagamento da viagem, tal poderia conduzir ao percebimento, pelos herdeiros do titular falecido, de somas astronómicas, que a tal resultado obviaria o mecanismo corrector do abuso do direito.
Não podemos deixar de estar com a Relação, na apreciação que faz à douta sentença da 1ª instância, que, efectivamente, releva de fundamentação consistente e, a nosso ver, convincente.
Vale a pena transcrever aquilo que constitui a sua parte nuclear:
Para a ré, a cláusula com a utilização do cartão BPI na compra da viagem abrange apenas os casos em que todos os percursos de uma viagem são integralmente pagos com o cartão BPI Gold.
Deduz-se desta afirmação que, para a ré, a cláusula sem a utilização do cartão BPI na compra da viagem abrange duas situações distintas:
- A 1ª, é a de o cartão de crédito não ter sido utilizado no pagamento da viagem, porque, por exemplo, foi utilizado outro meio de pagamento;
- A 2ª, é a de o cartão de crédito ter sido utilizado apenas para pagamento de parte do preço da viagem.
Isto é, a ré considera que um cartão de crédito não é utilizado na compra de uma viagem quando é utilizado apenas para pagar parte do preço dessa viagem.
Salvo o devido respeito, esta interpretação não seria acolhida por um declaratário normal.
Esta interpretação não seria acolhida, desde logo, porque ela envolve uma contradição nos seus termos, pois considera como não utilizado um cartão quando ele foi efectivamente utilizado.
Em segundo lugar, a expressão “com a utilização do cartão BPI na compra da viagem”, tanto é compatível, do seu ponto de vista literal, com uma utilização do cartão para pagar parte da viagem como com uma utilização do cartão para pagar a totalidade da viagem. Em ambos os casos há utilização do cartão.
Em terceiro lugar, a interpretação para que se propende é a que melhor se ajusta à razão de ser do estabelecimento de um capital mais elevado no caso de o cartão de crédito ser utilizado na compra da viagem.
O contrato de seguro estabeleceu um valor mais elevado, para a morte ou invalidez permanente, no caso de ser utilizado o cartão de crédito no pagamento da viagem com o objectivo de incentivar a utilização do cartão de crédito, pois esta utilização é vantajosa para a instituição bancária que o emite.
Sendo esta a razão de ser, a compensação devida pela utilização do cartão de crédito tanto se justifica quando o mesmo tenha sido o único meio de pagamento da viagem como quando tenha sido apenas um dos meios de pagamento.
É certo que, assim sendo, o resultado pode ser o que foi denunciado pela ré: o pagamento de 1% do preço da viagem faz funcionar o máximo do capital garantido.
Este resultado não é, no entanto, decisivo para acolher a interpretação da ré.
Em primeiro lugar, o contrato de seguro não estabelece qualquer relação entre o que se despende com a utilização do cartão de crédito e o valor do capital seguro.
Em segundo lugar, o resultado denunciado pela ré pode acontecer num caso em que o titular do cartão pagou um valor muito reduzido comparado com o capital máximo. Pense-se no seguinte caso: o titular do cartão BPI Gold utiliza-o no pagamento integral de uma viagem de reduzido custo, na sequência da qual vem a morrer. Numa situação destas não se questiona que é devido o capital de 65.000.000$00.
Em terceiro lugar, se é certo que a interpretação que se defende permite que o pagamento de 1% do preço da viagem com o cartão de crédito faça funcionar o máximo do capital garantido, também é certo que a interpretação da ré excluiria do valor máximo os casos em que 99% do preço da viagem tivessem sido pagos com o cartão de crédito e apenas 1% com outro meio de pagamento.
Por último, cabia à seguradora prevenir dificuldades interpretativas e, à semelhança do que faz com outros conceitos, definir o que considerava «viagem» e «utilização do cartão de crédito na compra da viagem».
Feito este percurso, concluo que um declaratário normal, caso fosse destinatário da cláusula referida, interpretá-la-ia no sentido de que o capital de 65.000.000$00 tanto era devido no caso de o cartão ter sido utilizado no pagamento da totalidade do preço da viagem como no caso de o cartão de crédito ter sido utilizado no pagamento de parte do preço da viagem.
Dúvidas não existem, pois, de que a sentença da 1ª instância aborda proficientemente a questão, em termos que, a nosso ver, dispensariam novas considerações em abono da solução nela propugnada.
Não deixaremos, porém, de aduzir uma ou outra consideração, de reforçar um ou outro aspecto da coerente e convincente linha de raciocínio desenvolvida pelo Ex.mo Juiz.
A expansão da Banca para o mercado dos seguros é uma realidade incontornável nos nossos dias. A ligação e colaboração entre Bancos e Companhias de Seguros, dando lugar ao fenómeno designado por bancassurance, vem-se manifestando de forma cada vez mais vincada, desenvolvendo-se e concretizando-se, inter alia, na produção e comercialização, em conjunto, de produtos concorrentes (v.g., seguros de vida, que vencem juros e capitalizam), de produtos complementares – nos quais podemos incluir os cartões de crédito e débito com seguros vários associados (seguro de viagem, seguro de doença, seguro de vida, etc.) – e mesmo de produtos diversificados (v.g., seguros não vida).
A Banca deixou, pois, de estar confinada às actividades tradicionais de recolha de fundos e ao crédito ou financiamento, assumindo-se como empresa cross-border, sendo patente a interacção com os Seguros na distribuição de produtos financeiros, com a banca a vender “produtos” de seguros através da sua rede de balcões (5)
A massificação das operações da Banca e dos Seguros levam os respectivos operadores – por exigências de simplificação e racionalização de custos, e de eficiência, celeridade e segurança na contratação – a elaborar formulários ou impressos, nos quais é vazado um conjunto de cláusulas que os clientes não estarão em condições de discutir, restando-lhe a alternativa de celebrar ou não o contrato, com o conjunto padronizado ou normalizado de cláusulas que este apresenta (cláusulas contratuais gerais).
Trata-se de cláusulas pré-formuladas pelo proponente, sem prévia negociação individual, para utilização geral numa série de contratos em massa, de modo rígido e inflexível (art. 1º/1 do Dec-lei 446/85), ou de cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar (art. 1º/2).
Já acima ficou referido o diploma que estabelece, entre nós, o regime legal das cláusulas contratuais gerais – o Dec-lei 446/85, de 25 de Outubro (com as alterações introduzidas pelo Dec-lei 220/95, de 31 de Agosto e pelo Dec-lei 249/99, de 7 de Julho) – e se fez também referência à interpretação destas cláusulas.
A lei impõe ao proponente um conjunto de deveres, com vista à tutela do contraente que as subscreve por mera adesão: o dever de comunicação (art. 5º) – a sua comunicação integral, prévia e adequada aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las; o dever de informação e de esclarecimento (art. 6º), e o dever de clareza e precisão – a sua redacção clara e precisa, e em caracteres facilmente legíveis (art. 9º/2.a) da Lei 24/96, de 31 de Junho).
Em matéria de interpretação das cláusulas contratuais gerais, já o dissemos, o princípio geral, tal como decorre do art. 10º do Dec-lei 446/85, de 25 de Outubro, é o de que estas são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos, sendo, pois, aplicáveis as normas dos arts. 236º a 238º do CC (que consagram a teoria da impressão do destinatário razoável).
Todavia, a parte final do preceito releva um aspecto da maior importância: a interpretação deve fazer-se sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam. O que vale dizer que se afasta a possibilidade de interpretação realizada na base exclusiva das próprias cláusulas contratuais gerais, afirmando-se a prevalência de uma justiça individualizadora. Tem-se em conta que as circunstâncias concretas dos contratos singulares podem, de facto, conduzir a resultados interpretativos diferentes dos que resultam da análise de cláusulas abstractas, tomadas em si e por si, assim permitindo uma justiça material mais apurada.
Em conformidade, estabelece-se no art. 11º – relativamente ao qual, e contrariamente ao que se refere na sentença da 1ª instância, não vemos razão para excluir a sua aplicabilidade ao caso em apreço – que as cláusulas ambíguas valem com o sentido que lhes daria um aderente normal, colocado na posição do aderente real. “As responsabilidades particulares que recaem sobre a pessoa que impõe cláusulas contratuais gerais – a qual, tendo ponderado as cláusulas a que recorre, deve conhecer o seu sentido – justificam que não se consagre uma ressalva semelhante à da última proposição do artigo 236º n.º 1 do Código Civil. Portanto, o sentido deduzido pelo aderente normal, colocado na posição do aderente real, colhe, ainda que a contraparte não possa razoavelmente contar com ele”(6)
E em caso de dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente: in dubio, contra stipulatorem. Solução também ela imposta e justificada pelas responsabilidades próprias daquele que se prevalece de cláusulas contratuais gerais, e que se acha vinculado aos supra referidos deveres de clareza e precisão, reforçados pelo princípio da boa fé, que confere uma protecção especial aos contratantes fracos ou em posição desfavorecida.
Os princípios expostos servem, sem margem para dúvidas, de arrimo à linha argumentativa desenvolvida pelo Ex.mo Juiz de Círculo de Leiria, e de reforço à conclusão que, em coerência com esse percurso argumentativo, o ilustre magistrado expressou na sua muito bem elaborada sentença.
Ademais, a cláusula em análise foi estabelecida em contrato celebrado entre o Banco (BPI) e a seguradora (a ora ré recorrente), que actuaram, no quadro de cooperação e inter-relacionamento acima desenhado, na prossecução dos respectivos interesses económicos.
E foi transmitida, no contrato celebrado entre o Banco e o seu cliente, que deu origem á emissão do cartão de crédito, pela forma que consta do n.º 7 da matéria de facto assente (7) que assenta, no que tange aos valores garantidos, numa clara alternativa, com apenas dois termos: com utilização do cartão BPI Gold na compra da viagem ou sem utilização do cartão BPI Gold na compra da viagem.
A interpretação que um aderente normal, colocado na posição do cônjuge da aqui autora, faria de uma tal cláusula, a partir do sentido literal da sua expressão formal, é aquela a que chegou a sentença aludida: utilizar o cartão na compra da viagem é usar o cartão no pagamento, total ou parcial, do preço da viagem; não utilizar o cartão não pode significar (como bem enfatiza a mesma sentença) o seu uso no pagamento de parte do custo da viagem. Os dois termos da alternativa, tal como estão formulados, não toleram outro entendimento. E na dúvida – se dúvida legítima se colocasse, sob invocação de ambiguidade da cláusula – contra stipulatorem.
Este entendimento impõe-se ainda com maior vigor, colocado o dito aderente normal dentro do contexto do contrato de quo agitur, como o impõe, aliás, o já citado art. 10º do Dec-lei 446/85.
É conhecida a preocupação dos utilizadores de cláusulas contratuais gerais (no caso, o Banco e a Seguradora) de desenvolverem pormenorizadamente o clausulado dos seus formulários, de modo a evitar hiatos interpretativos. Por isso, aquele aderente normal, colocado perante a cláusula em apreço, seria levado a pensar, no processo formativo da sua interpretação, que se quisessem excluir o funcionamento da dita cláusula no caso de ser o cartão de crédito apenas um dos meios de pagamento da viagem, que não o único, não teriam os seus proponentes deixado de o expressar com clareza, bastando, para tanto, a introdução do vocábulo exclusiva” a seguir à expressão “com utilização”: com utilização exclusiva do cartão BPI Gold na compra da viagem.
Ainda dentro da moldura contratual, deverá atentar-se em que não se fixa um limite mínimo de custo da viagem para que a cláusula possa operar, o que permite extrair duas conclusões:
- para o Banco, a utilização do cartão, qualquer que seja o montante com ele pago – e, portanto, seja com ele paga a totalidade ou apenas parte da viagem – representa sempre uma vantagem;
- para a seguradora, é indiferente o valor do pagamento efectuado com o cartão e, consequentemente, se foi utilizado como meio único ou conjuntamente com outros, no pagamento da viagem.
Se a seguradora não enjeita a sua responsabilidade ocorrendo a morte do aderente numa curta viagem de, por exemplo, € 100,00, integralmente paga com o cartão, parece claro que a não poderá repelir no caso de tal evento ter lugar em acidente ocorrido numa extensa e diversificada viagem, em que o mesmo aderente haja despendido, no pagamento do seu preço, v.g., € 1.000,00, entregando à agência de viagem € 500,00 em numerário e satisfazendo os restantes € 500,00 com o cartão de crédito.
Não interessará, pois, à seguradora, considerando os termos do contrato de seguro em causa, nem a extensão da viagem, nem o custo desta, nem se o preço respectivo abrange apenas o trajecto nos meios de transporte públicos utilizados ou inclui também a estadia em hotéis, nem tão pouco se, no seu custeio, o cartão de crédito foi o único meio utilizado, e em que medida foi utilizado.

3.2.2. Contra a solução defendida nas decisões das instâncias argumenta a recorrente, em desespero de causa, que tal solução pode conduzir a resultados chocantes – como sucederá no caso de ser o adquirente da viagem titular de dez ou vinte cartões e os utilizar no pagamento dela, vindo a falecer em acidente no decurso da mesma viagem, caso em que os seus herdeiros viriam a receber, em vez de 65.000 contos, o valor de 650.000 contos ou 1.300.000 contos.
E – acrescenta a recorrente – “este resultado pode ser aumentado quase ao infinito, se pensarmos na utilização de cem cartões, para pagamento, com cada cartão, de 1% do valor da viagem: desta forma, o titular dos cartões (ou os herdeiros) receberia 6.500.000 contos!!!”.
Ora – remata a mesma recorrente – não haveria meio de evitar este iníquo e desproporcionado resultado, pois os herdeiros do falecido não estariam a actuar contra a boa fé, nem seria ilegítimo o seu procedimento, não podendo, pois, ao contrário do que referiu a Relação, contrapor-se-lhes a figura do abuso de direito.
Esta argumentação claudica logo no plano da razoabilidade, na medida em que faz apelo a situações completamente desfasadas da realidade da vida: “ninguém” tem dez, vinte ou cem cartões de crédito, com seguro de vida agregado, para utilizar, em simultâneo, no pagamento de uma viagem, até porque “ninguém” é, em simultâneo, cliente de dez, vinte ou cem Bancos!!!
Por outro lado, pressupõe, relativamente aos seguros agregados a esses dez, vinte ou cem cartões de crédito, a existência de uma cláusula de teor idêntico àquela que aqui é objecto de interpretação – isto é, joga claramente no campo das hipóteses ... e só nesta referida hipótese não perde, de todo, sentido.
Mas, abstraindo destas circunstâncias, que, só por si, desvalorizam, de modo irremediável, a pretensa eficácia do argumento em análise, cremos ainda que a actuação hipotizada pela recorrente – de os herdeiros da vítima, titular de uma pluralidade de cartões de crédito, reclamarem tantas indemnizações por morte daquela quantos os cartões utilizados no pagamento da viagem – poderia, na verdade, ser enfocada na perspectiva do abuso de direito (art. 334º do CC), pela afirmação da prevalência do princípio da boa fé, correlativo da ética e da probidade das condutas e que aflora o nosso sistema jus-civilístico, particularmente no que respeita ao cumprimento das obrigações e ao exercício de direitos, se viesse a verificar-se que o direito respectivo era inequivocamente exercido, em termos objectivos, em ofensa da justiça, ou que tal exercício se traduzia numa conduta clamorosamente ofensiva da justiça ou numa afronta ao sentimento jurídico dominante.
O abuso de direito é, como refere CASTANHEIRA NEVES, um princípio normativo, um postulado axiológico-normativo do direito positivo.
Não precisaria sequer de ser afirmado em lei para se aceitar a sua vigência.

3.2.3. Decorrendo, do exposto, a improcedência da argumentação da recorrente, importa agora analisar a pretensão dos recorridos – de condenação daquela como litigante de má fé.
O modelo processual introduzido pela reforma de 1995/96 consagrou, como um dos seus princípios fundamentais, o princípio da cooperação.
Tem ele assento no art. 266º/1:
Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
Este relevante princípio destina-se, segundo MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, a transformar o processo civil numa “comunidade de trabalho” e a responsabilizar as partes e o tribunal pelos seus resultados (8)
No que respeita às partes, o dever de cooperação vem concretizado no art. 266º-A, tendo como principal manifestação o dever de litigância de boa fé.
A violação, por qualquer das partes, deste dever de honeste procedere, traduz a litigância de má fé.
Diz-se litigante de má fé – art. 456º/2 – quem, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Cabem, na definição legal, situações de má fé subjectiva, caracterizadas pelo conhecimento ou não ignorância da parte, e objectiva, resultantes da violação dos padrões de comportamento exigíveis.
Na redacção anterior à reforma do Código, a má fé era identificada como uma modalidade do dolo processual, consistindo, na expressiva síntese de MANUEL DE ANDRADE, na “utilização maliciosa e abusiva do processo”.
Como reflexo da filosofia que lhe está subjacente, a reforma alargou o conceito, estendendo-o justificadamente às condutas processuais gravemente negligentes. Basta, pois, uma falta grave de diligência para justificar o juízo de má fé da parte.
Distinguem-se claramente, na formulação legal, a má fé substancial – que se verifica quando a actuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 456º, supra transcrito – e a má fé instrumental (al. c) e d) do apontado normativo). Mas em ambas está presente ou uma intenção maliciosa, ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação ou de censura e idêntica reacção punitiva.
A condenação como litigante de má fé assenta num juízo de censura incidente sobre um comportamento inadequado à ideia de um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito.
Ora, no caso em apreço, não vemos que a actuação da ora recorrente se possa reconduzir a qualquer dos apontados aspectos da má fé – é dizer, que tal actuação se possa encarar como um exercício que claramente haja ultrapassado os limites daquilo a que LUSO SOARES chamou de litigiosidade séria, isto é, aquela que “dimana da incerteza”.
Não há, assim, justificação para a sua condenação como litigante de má fé.

4.

Nos termos que vêm de ser expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2008

Santos Bernardino (Relator)

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva
_________________________
(1) São do CPC as normas citadas na exposição subsequente sem indicação do diploma a que pertencem
(2) Assim foi entendido, v.g., no acórdão deste Supremo Tribunal, de 27.10.94, in BMJ 440/478..
(3) É, pois, a própria recorrente que admite o carácter restritivo das respostas em causa.
(4) Pires de Lima/Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, vol. I, 1ª ed., pág. 153..
(5) Cfr. Prof. João Calvão da Silva, Banca, Bolsa e Seguros – Direito Europeu e Português, tomo I, Parte Geral, 2ª ed. revista e aumentada, pág. 22/23..
(6) M. J. Almeida Costa e A. Menezes Cordeiro, Cláusula Contratuais Gerais – Anotação ao Dec-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Liv. Almedina – Coimbra, 1986, pág. 32..
(7) E não com a redacção que consta da conclusão 6. da alegação da recorrente.
(8)Cf. Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa 1996, pág. 63..