Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6/98.8PACSC-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO
Descritores: HABEAS CORPUS
CÚMULO JURÍDICO
CUMPRIMENTO DE PENA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A providência de habeas corpus não constitui um grau de recurso nem se destina à reapreciação das decisões condenatórias proferidas contra o arguido.
II - Não é ilegal a situação de prisão em cumprimento de pena, na sequência de condenação aplicada por um tribunal e do cumprimento de mandados de desligamento/ligamento, emitidos por ordem de um juiz, entidade competente para o efeito.
Decisão Texto Integral:


Providência de Habeas Corpus

Processo: 6/98.8PACSC-A.S1

5ª Secção Criminal


I - RELATÓRIO
1. AA, ao abrigo do disposto no artº 222º, nº 1 e 2, do Código de Processo Penal (CPP), efectuou pedido de providência de Habeas Corpus, alegando em síntese, os seguintes factos:

i) (…) que jamais planearia ou concretizaria tais ditos crimes que pusessem em situação de alto risco de pessoas e bens ou terceiros, sabendo antecipadamente que tal conduta, para além de sancionatória, contraria princípios morais e éticos que são do senso comum…”; pois, ii)(…) A acusação/julgamento e condenação arbitrária infundada e desproporcional, tendo sido isoladamente pelos ditos detentores do poder com o propósito específico do tão comum cumprimento e de objetivos lavrando umas acusações e condenações após julgamento arbitrário e tendencioso em modelo pouco percetível, carentes dos mais basilares de fundamentação, assercados de irregularidades e lacunas na sua descrição…”, sendo que iii) (…) todas as acusações, julgamentos e consequente condenação padecem de nulidade o que conduz à anulação de todos os atos subsequentes nos termos dos artºs supra citados. A análise dos artigos e dos supostos crimes e seguintes é o modelo perfeito de um embuste criminal e do absurdo completo”, e por isso “requer a Vossas Excelências e nos demais de direito a revogação da decisão, considerando ao ora recorrente não restar outra alternativa senão a de submeter o presente habeas corpus a apreciação de Vossas Excelências, Vª Exª Presidente e Colectivo Juízes-conselheiros, a fim de o pedido apresentado ser atendido, isto é, seja revogado ou mesmo considerada nula, por outra que absolva o arguido segundo os moldes aqui exposto.”. – sublinhado nosso.

           


2. Nos termos do artº 223º, do CPP, e no que concerne ao requerente AA, foi prestada a seguinte informação:

Intentado habeas corpus por prisão ilegal, nos termos do artº 222º, do CPP, nos termos do requerimento antecedente, cujo teor se dá por aqui reproduzido, verifica-se que o mesmo, s.m.o., é manifestamente improcedente.

Com efeito, desde o arguido intentou o mesmo com referência a dois processos, 810 e 793, que não o presente 6/98.

Por outro lado, conforme se afere da pesquisa de recluso antecedente, o arguido permanece preso.

Por Ac. de 27/11/2002 foi condenado neste P.6/98 em pena única de 15 anos e 6 meses de prisão.

Após, por Ac. cumulatório (com as penas aplicadas no P.1543), de 22/6/2004 foi condenado neste P.6/98 em pena única de 25 anos de prisão.

Nessa sequência foi feita liquidação de pena, nos termos da qual o arguido previsivelmente terminaria o cumprimento da pena única em 2019 – cfr. fls.438 a 440.

Nessa sequência em 2010 não lhe foi concedida liberdade condicional– cfr. fls.467 a 481.

Foi-lhe concedida liberdade condicional em 2012– cfr. fls.485 a 492. Mas foi-lhe revogada em 2018- cfr.fls.500 a 502.

Nessa sequência foi feita nova liquidação de pena e o arguido foi de novo ligado a este P.6/98- cfr.fls.506 a 511.

Donde se afere que o arguido está, por decisão do TEP, à ordem dos presentes autos.

E previsivelmente só atingirá o meio da pena em 2023, os 2/3 da mesma em 2024 e o termo aí previsto em 2026.

Por outro lado não está preenchido, com referência aos presentes autos, qualquer dos pressupostos de habeas corpus por prisão ilegal, nos termos do artº 222º, do CPP, nem se verifica qualquer dos vícios aventados pelo arguido.

Sendo estes ademais fundamento de eventual recurso, que não da presente providência.

Não se mostra ultrapassado qualquer prazo de prisão.

Não se constata dos autos qualquer vício, nomeadamente nulidade, inconstitucionalidade ou preterição de direito fundamental do arguido.”.

Em suma, quanto à decisão do pedido de Habeas Corpus foi dito não se considerar verificados nenhuns dos fundamentos exigidos nos termos do artº 222º, do CPP e consequentemente, ser de indeferir o decretamento da providência requerida.

II - FUNDAMENTO
Importa, pois, decidir se o requerente AA se encontra preso ilegalmente.

1. Antes de mais há que esclarecer que a providência de Habeas Corpus não é um recurso de uma decisão que determina a prisão de alguém, seja a prisão preventiva ou para cumprimento de pena ou medida, aplicadas ao sujeito peticionante.

A providência de Habeas Corpus constitui uma garantia fundamental do direito à liberdade, inscrita no artº 31º da Constituição da República (CRP) como meio “(…) contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal…”, sendo um procedimento expedito e excepcional, a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória, conforme o artº 31º, nº 3, CRP. Nas palavras de Eduardo Maia Costa, em anotação ao artº 222º do CPP, in Código Processo Penal Comentado, 3.ª Edição Revista, pág. 852, trata-se de uma “(…) providência extraordinária e expedita que se destina exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade, não visando, pois, a reapreciação da decisão que decretou a prisão. É um mecanismo situado à margem das garantias do processo penal, tendo por fim único a proteção dos cidadãos contra a prisão ilegal.”.


2. A ilegalidade da prisão afere-se a partir dos factos documentados no processo, tendo por pressuposto legal o disposto no artº 222º do CPP, cujo nº 2 dispõe o seguinte:

Artigo 222º

Habeas corpus em virtude de prisão ilegal

(…)

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Deste preceito se extrai a noção de ilegalidade da prisão que se atém às situações taxativamente definidas nas als. a) a c), do citado preceito legal, sendo que se exige a verificação cumulativa dos pressupostos de abuso de poder e de prisão ou detenção ilegal.


3. No caso dos autos, o requerente AA, nada invoca sobre a sua situação de prisão, apenas se referindo ao seu julgamento que, em seu entender, se verifica ser “A acusação/julgamento e condenação arbitrária infundada e desproporcional” que, concretiza com a alegação de ter sido condenado injustamente “(…) após julgamento arbitrário e tendencioso em modelo pouco percetível, carentes dos mais basilares de fundamentação, assercados de irregularidades e lacunas…”.

Da informação junta e dos elementos constantes da certidão do processo resulta demonstrado que, por acórdão de 27/11/2002, proferido neste processo nº 6/98.8PACSC-A.S1, pelo Tribunal de Círculo ..., actualmente Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., o arguido foi condenado em penas privativas da liberdade que, em cúmulo jurídico, se traduziu na condenação de uma pena única de 15 anos e 6 meses de prisão. Esta decisão transitou em julgado, em 12/12/2002, conforme certidão do mesmo Tribunal Judicial, Referência Citius ...73, uma vez que o ora requerente dela não recorreu.

Por acórdão de 22/06/2004, proferido pelo mesmo Tribunal Judicial foi efectuado o cúmulo das penas em que o arguido foi condenado neste processo nº 6/98.8PACSC-A.S1, com as penas que lhe foram aplicadas nos processos, nº 190/94...., pelo ... Juízo, ... secção, do Tribunal Criminal ..., nº 17/94, pela ... secção, da ... Vara Criminal ... e nº 1543/95...., pelo ... Juízo Criminal ..., tendo sido condenado na pena única de 25 anos de prisão. Esta decisão transitou em julgado em 07/07/2004, não tendo o ora requerente, dela recorrido.

Em consequência, foi efectuada a liquidação da pena (fls. 438, dos autos) e a sua homologação (Referência: ...36, fls. 440, dos autos) ocorridas, respectivamente em 28/07/2004 e 29/07/2004, conforme decisão do Tribunal de Círculo .... Nessa circunstância, o arguido, que se encontrava preso desde 08/09/1994, veria o termo da sua pena ocorrer em 07/09/2019.

Por decisão do ... Juízo do TEP ..., proferida em 08/05/2012 e pelo período de 5 (cinco) anos a partir da data da sua libertação, foi-lhe concedida a liberdade condicional, que veio a ser revogada, conforme decisão proferida pelo mesmo TEP, em 07/03/2018, (Referência ...62, fls. 500).

Em consequência da revogação da liberdade condicional e tendo o arguido sido detido a 15/05/2019, à ordem do Processo nº 793/12...., do Tribunal da Comarca ..., foi efectuada nova liquidação da pena remanescente de 7 (sete) anos, 3 (três meses) e 30 (trinta) dias de prisão, a cumprir no âmbito deste processo 6/98, (Referência ...79), homologada por despacho judicial de 03/06/2019 (Referência ...07), pena remanescente essa cujo termo ocorrerá em 14/09/2026, pelo que, foram passados os respectivos mandados de desligamento/ligamento, cumpridos em 16/05/2019, (Referência ...76), passando a ficar preso à ordem destes autos.


4. Como referido, a providência de Habeas Corpus não constitui um grau de recurso nem se destina à reapreciação das decisões condenatórias proferidas contra o arguido.

Na verdade, nestes autos, verifica-se que o arguido AA se encontra preso, em cumprimento do remanescente da pena de prisão de 25 anos que lhe fora aplicada em cúmulo, não se verificando que a sua situação actual de prisão se tenha por ilegal, porquanto o mesmo bem sabe que se encontra em cumprimento de pena de prisão efectiva, na sequência de condenação aplicada por um tribunal e de revogação da liberdade condicional que lhe fora concedida, e que a sua prisão à ordem destes autos ocorre em cumprimento de mandados de desligamento de um processo no âmbito do qual fora detido, e que esses mandados foram emitidos por ordem de um juiz, entidade competente para o efeito.

Ou seja, o arguido não discute uma eventual situação de prisão ilegal, mas a sua concreta condenação pela prática dos crimes que lhe foram imputados nos diversos processos que contra ele correram e que culminaram na condenação de uma pena única de 25 anos de prisão, pedindo a sua absolvição e que se faça justiça. Porém, não é este o procedimento adequado.

O arguido encontra-se preso em cumprimento de pena de prisão, determinada por entidade competente e por factos que a lei prevê e pune com pena de prisão, pelo que, o pedido deve improceder, pois, não se verifica qualquer fundamento para o deferimento do presente pedido de habeas corpus.


III - DECISÃO

Termos em que, acordando, se decide:

a) Indeferir a providência de HABEAS CORPUS apresentado pelo requerente AA, por falta de fundamento bastante, conforme artº 223º, nº 4, al. a), do CPP.
b) Fixar em 3 UC a taxa de justiça, nos termos do artº 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa.

Lisboa, 30 de Junho de 2022 (processado e revisto pelo relator)

Leonor Furtado (Relator)

Elisa Sales (Adjunto)

Eduardo Loureiro (Presidente)