Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5521/03.0TBALM.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: URBANO DIAS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRODUTOR
QUESTÃO NOVA
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 153
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I – O juiz, ao elaborar a sentença, deve tomar posição sobre todos os factos dados como provados e não só perante aqueles que, na sua perspectiva, fundamentam o pedido.
II – Com efeito, tendo o A. perspectivado o seu pedido (de condenação da R. no pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos) com alegação de factos integradores de duas causas de pedir (defeitos de fabrico do produto e defeitos de informação sobre a utilização do produto), a constatação da improcedência do pedido, com base numa delas (defeito de fabrico), obriga à ponderação do seu êxito na base da outra (defeito de informação).
III – Se o não fizer, a Relação, colocada perante a situação de total desconsideração de parte da matéria de facto dada como provada, por parte da 1ª instância, não pode recusar o conhecimento do mérito da pretensão do A., à luz desta outra causa, sob o pretexto de lhe ter sido apresentada uma “questão nova”, antes lhe competindo decidir da procedência ou da improcedência do pedido.
IV – O A., na acção de responsabilidade civil dirigida contra o produtor, com vista a obter ganho de causa, terá de alegar e provar os seus elementos constitutivos, a saber: os danos, os defeitos e o nexo causal entre estes e aqueles.
V – Se, em relação aos danos e aos defeitos a produção de prova cai no âmbito da normalidade, já a prova do nexo causal se apresenta, na maior parte das vezes, como sendo muito difícil: perante isso, as regras da experiência de vida, o id quod plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada poderão permitir a preponderância da evidência, uma espécie de causalidade.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I.
AA intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Almada, acção ordinária contra BB – Fábrica de Acessórios Industriais, S. A., pedindo a sua condenação no pagamento de 95,479,92 €, para além do que, em sede de liquidação, se apurar, como forma de indemnização dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência do acidente causado pela utilização de um puxador, fabricado pela R., que apresentava defeitos num dos seus materiais, ou na forma dos seus materiais, ou no momento da junção dos materiais, dando origem a uma fissura, actuando parte do material porcelânico, sob a forma de lâmina afiada, na sua mão direita. A R. contestou para defender a improcedência da acção, arguindo, por um lado, a caducidade do direito da A., atento o lapso de dez anos decorrido sobre a venda do material, e, por outro, impugnando parte da factualidade vertida na petição.
Na réplica, a A. contrariou a defesa excepcional arguida pela R..
O processo foi saneado e condensado e seguiu para julgamento dentro da normal tramitação.
Realizado este, foi a acção julgada improcedente.
Em vão, apelou a A. para o Tribunal da Relação de Lisboa, na medida em que o julgado foi inteiramente confirmado.
Continuando irresignada, pede, ora, revista, a coberto das seguintes conclusões com que fechou a sua minuta:
- Por razões que se desconhecem, vem persistindo, de modo intrépido e aparentemente árduo, uma recusa frontal da aplicação do Direito em vigor aos factos que compõem o que normalmente se designa por matéria de facto dada como provada, comprometendo forçadamente o bom sucesso desta causa...
- Os tribunais a quo ao entenderem não ter resultado demonstrada a existência de um defeito causador do acidente e dos consequentes e conexos danos, violaram o disposto no artigo 60º, nº 1, da Constituição, nos artigos 1º e 4º do Decreto-Lei nº 338/89, nos artigos 342º e 563º, do Código Civil, e a correcta interpretação dos artigos 1º, 6º e 4º da Directiva 85/374/CEE do Conselho e aboliram o contributo interpretativo postulado, sob o considerando 6º desta.
Ao contrário do que é afirmado pela Relação de Lisboa, a Recorrente não confunde o ónus da prova do facto ilícito com o ónus da prova da culpa do produtor, pois basta ler com cuidado e alguma atenção (que nem sequer precisa de ser muita) um conteúdo do processo que normalmente se designa por matéria de facto dada como provada, e, em especial, os pontos no acórdão reproduzido sob os números 1, 3, 4, 7, 8, 9,10 e 11 (pág. 21 e 22).
- Nesta matéria de facto dada como provada, encontra-se inteiramente cumprido o tal ónus da prova do facto ilícito, aliás com inteiro sucesso, bem como o nexo de causalidade existente entre este e os danos, pelo que não se entende o que é que a Relação de Lisboa quis significar com tamanho absurdo, violando o disposto no artigo 342º, do Código Civil, e furtando-se a uma correcta interpretação do artigo 4º da Directiva 85/374/CEE do Conselho.
- Aliás, tendo ficado provado que “A autora aplicou uma pressão normal para conseguir abrir a porta através do movimento de torção necessário para o efeito”, bem como que o puxador é perigoso (“o único cuidado a ter prende-se com o facto de a porcelana partir” e que “uma vez partida deve ser manuseada com cuidado, porque zonas mais afiadas podem, eventualmente, cortar”) e que não é dado qualquer alerta acerca da perigosidade do mesmo (“O puxador adquirido pela autora não veio acompanhado de instrução ou advertência sobre o modo de utilização”), ENCONTRA-SE MAIS DO QUE DEMONSTRADO o defeito por falta de informação/advertência;
- “Só quem se esqueceu dos óculos graduados respectivos em qualquer sítio de que já não se lembra (pelas tais razões que a Recorrente já disse que não quer saber...) é que pode afirmar inexistir nexo de causalidade entre a falta de advertência e o acidente sofrido pela Recorrente!!! Daí a violação do disposto no disposto no artigo 1º do Decreto-Lei nº 338/89, do artigo 563º do CC e a incorrecta interpretação do artigo 1º da Directiva 85/374/CEE do Conselho” (sic).
- Parece-nos medianamente entendível que o “defeito de informação” constitui “em abstracto, segundo o curso normal das coisas, causa adequada” (definição cfr. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 6ª ed., página 655) à produção dos danos da Recorrente porque, se a esta tivesse sido feita a devida advertência, provavelmente o uso teria sido de extrema cautela (com recurso às tais luvas especiais, à prova da porcelana partida), ou apenas teriam sido utilizados os puxadores como bibelots, evitando-se o acidente que aconteceu... – Isto não será demasiadamente óbvio?
- A verdade é que a recorrente VIU A SUA MÃO SER CORTADA E DILACERADA NO DECORRER DE UMA UTILIZAÇÃO NORMAL!
- A rejeição tenaz da existência de um “defeito de informação”, que entra pelos olhos dentro de uns e pela mão dentro de outros, viola o disposto no artigo 4º do Decreto-Lei nº 338/89 e fustiga a correcta interpretação do artigo 6º da Directiva 85/374/CEE do Conselho, pois ficou sobejamente demonstrado nos autos que o puxador em questão não “oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação” – texto dos referidos dispositivos.
- O puxador pode partir-se durante o uso a que é destinado e pode cortar severamente a mão do seu utilizador tal como a própria R. reconhece e NÃO ADVERTE no momento da aquisição – o que é preciso fazer mais para que se considere demonstrado provado o “defeito de informação”?
- O produto apresenta-se assim inepto e não idóneo para a prossecução do fim a que se destina comercialmente;
- Dispõem os referidos artigos 4º do Decreto-Lei nº 338/89 e 6º da Directiva que a expectativa de segurança do consumidor com relação a um produto deverá ser aferida objectivamente, ou seja, de acordo com a expectativa que aquele tem com relação a um determinado sector de consumo, que neste caso é o de puxadores de portas.
- Jamais pode prever-se que um puxador de porta se vá partir no interior da mão de um utilizador quando tem lugar uma utilização normal, a não ser que haja informação nesse sentido, mesmo que tal signifique uma quebra substancial nos níveis de vendas do produto perigoso ou potencialmente perigoso.
- Distinguem ainda os mesmos dispositivos – artigos 4º do Decreto-Lei nº 338/89 e 6º da Directiva – sem pretensão de esgotar o elenco, três elementos de valoração habilitados a aferir da LEGÍTIMA FALTA OBJECTIVA DE SEGURANÇA, são eles: a apresentação do produto, a utilização razoável do produto e o momento de entrada em circulação.
- O defeito pode não residir necessariamente no produto em si – intrinsecamente – mas provir da forma externa com que é apresentado ao mercado e assim demonstrando-se necessário analisar o modo com que ele o faz.
- Conforme ensina o Prof. Calvão da Silva, deverá indagar-se, valorizando-se, sobre todo o “processo de comercialização e de marketing, às campanhas de publicidade e promoção, à existência ou inexistência, adequação ou inadequação das informações e advertências sobre eventuais perigos do produto e às instruções quanto ao seu uso, enfim, a toda a vasta gama de estímulos que tende a criar no público a imagem e a expectativa de que se trata de um produto devidamente seguro”.
- Isto porque o público espera que a “segurança externa” do produto não falte na sua “segurança interna”! (in “Responsabilidade Civil do Produtor”, Colecção Teses, Almedina, Reimpressão, 1999, pág. 637).
- O produtor é responsável não só no âmbito de uma utilização normal, uso para que o produto foi especificamente concebido, mas também no de uma utilização errónea ou incorrecta, desde que, objectivamente, previsível.
- No considerando 6º da Directiva 85/374/CEE DO CONSELHO distingue-se a utilização previsível e razoável da que é abusiva: “...com vista a proteger a integridade física do consumidor e os seus bens, a qualidade defeituosa de um produto não deve ser determinada com base numa inaptidão do produto para utilização, mas com base numa falta da segurança que o público em geral pode legitimamente esperar; que esta segurança se avalia excluindo qualquer utilização abusiva do produto que não seja razoável nas circunstâncias em causa”.
- O critério do momento de entrada em circulação obriga o Tribunal a ajuizar da segurança expectável à data em que o produto se encontra no mercado, não podendo a recorrida fugir da sua responsabilidade, alegando que cumpriu, primorosamente, todas as normas jurídicas em vigor sobre o fabrico e comercialização de puxadores.
- Na verdade, ela furtou-se à exigível reflexão sobre as condições que a ciência e a técnica lhe proporcionavam de modo a assegurar que o seu produto não causasse os danos descritos nestes autos, em especial durante a sua normal utilização.
- Em tempos nos quais até os vidros dos automóveis são temperados de forma a evitar cortes em caso de quebra não é de supor que uma empresa introduza no mercado um puxador que se possa quebrar em forma cortante, especialmente durante uma utilização normal (é claro que este raciocínio apenas se aplica a pessoas sensatas!)
- É, no mínimo, bizarra, a tese de que o “defeito de informação” alegado pela recorrente conforma “matéria nova”.
- Só com elevado esforço de concentração pode a recorrente perceber que, erradamente, a Relação de Lisboa pensa que o “defeito de informação” não constitui um facto ilícito, no âmbito do regime da responsabilidade civil do produtor.
- Como, erradamente, pensa que esta matéria apenas foi alegada pela recorrente a titulo incidental, tal como demonstram os pontos 3 e 4 da matéria de facto dada como provada (página 21 do acórdão recorrido), quando sem grande esforço é possível encontrarem outros tantos pontos na matéria de facto assente (já indicados nestas conclusões) capazes de qualificarem este defeito;
- Como, erradamente ainda, pensa que no artigo 27° da PI, sob o texto “ (...) a rotura da maçaneta durante uma sua utilização normal deveu-se a uma ou mais das seguintes hipóteses (...)” a recorrente pretende esgotar o compêndio dos defeitos do produto alegados, confundindo, “a rotura da maçaneta” com “o defeito do produto deveu-se a uma ou mais das seguintes hipóteses”.
- Ao contrário do que é afirmado pela Relação de Lisboa, o artigo 27° da PI não consubstancia a totalidade dos defeitos do produto alegada pela recorrente como capazes de lhe terem causado os danos, pois este artigo apenas refere as causas directamente relacionadas com a “rotura da maçaneta” em si – o que o Prof. João Calvão da Silva (in "Responsabilidade Civil do Produtor", Colecção Teses, Almedina, Reimpressão 1999, pág. 659) denomina de vícios intrínsecos ao produto por contraposição aos extrínsecos, não ínsitos no produto.
- Com enorme gravidade apresenta-se uma afirmação da existência de factos num compartimento dos autos (o ponto 4 da matéria dada por provada e reproduzida no acórdão recorrido na página 21) onde eles não se acham (nem nunca se acharam) – naquele ponto não encontramos o texto “as instruções para o caso da porcelana se partir em condições extremas, caso batendo com uma ferramenta pesada na porcelana” (terceiro parágrafo da página 32 do acórdão recorrido).
- De acordo com os artigos 721º-A e 722°, do Código de Processo Civil, o recurso de revista em apreço tem fundamentos específicos que afloram, ao longo de toda a inquinada decisão da Relação de Lisboa, mas acima de tudo, o mais grosseiro, erro de interpretação ou de aplicação do Direito, consiste na deturpação substancial dos factos que o processo contém, trata-se de um erro inqualificável que ultrapassa os limites do razoável e que nem o legislador conseguiu prever no âmbito dos referidos fundamentos.
- “A decisão que se vem até agora mantendo vive cega, violentando o espírito da Directiva 85/374/CEE do Conselho, cuja preocupação é a protecção da integridade física do consumidor – TRATA-SE DE VERDADEIRA CEGUEIRA CRIMINOSA!” (sic).
- E no maior desprezo pelo postulado sob o artigo 60º, nº 1, da Constituição, onde se reconhecem os direitos à qualidade dos bens consumidos e à reparação de danos por estes causados, em especial quando se demonstrem ofensivos à saúde humana.
- Perpetuar a cegueira e o total alheamento, face à manifesta presença de um “defeito de informação” e do respectivo nexo de causalidade com os danos sofridos pela recorrente, é compactuar com uma violação dos direitos, constitucionalmente consagrados, à qualidade dos bens de consumo e ao ressarcimento dos danos decorrentes do atropelo desta – artigo 60º, nº 1 da Constituição.
- A omissão de informação, relativamente à possibilidade da porcelana partir-se no decorrer do seu uso normal, tendo até sido aconselhada pela recorrida a continuação do manuseamento apesar do risco de corte, estiveram na origem de todo o acidente.
- A recorrente sofreu a extensa descrição de danos na PI que foram, na sua maioria considerados provados, por não se encontrar devidamente informada – tal como era obrigação da recorrida de assegurar – sobre o risco da maçaneta de porcelana poder partir-se no decorrer do seu uso normal, e, consequentemente, cortar.
- Pelo que deverão todos os danos resultantes da lesão pessoal da recorrente, neles se englobando quer os patrimoniais, quer os não patrimoniais, ou morais, estes desde que atendíveis à luz do artigo 496° do Código Civil, ser indemnizados ou compensados.
- À recorrente nunca foi oferecida a possibilidade de evitar este acidente!!!

A recorrida respondeu, a defender a manutenção do acórdão censurado.
II.
As instâncias fixaram a seguinte factualidade:
1 – O puxador adquirido pela A. não veio acompanhado de instrução ou advertência sobre o modo de utilização.
2 – Os puxadores com maçaneta em porcelana de marca BB têm um preço de venda mais elevado do que o praticado nos puxadores em geral.
3 – No interior das caixas de embrulho dos puxadores, com maçaneta de porcelana, da marca da R., actualmente à venda ao público, encontra-se um folheto informativo que apenas informa sobre a facilidade de colocação e manuseamento dos puxadores.
4 – Colocadas questões sobre a segurança dos puxadores com maçaneta em porcelana, foi respondido pela R., através do seu departamento de marketing, que “o único cuidado a ter prende-se com o facto de a porcelana partir” e que “uma vez partida deve ser manuseada com cuidado, porque zonas mais afiadas podem, eventualmente, cortar”.
5 – CC, nascido a 21.09.1999, e DD e EE, nascidos a 01.06.2001, são filhos da A..
6 – A A. nasceu a 26.05.1972.
7 – A R. é a empresa fabricante de puxadores de portas de interior com a designação BB, a maçaneta e referência 441.
8 – No dia 15.09.2002, quando a A. utilizava um puxador de porta de interior, de marca BB, a maçaneta de porcelana partiu-se.
9 - A A. aplicou uma pressão normal para conseguir abrir a porta através do movimento de torção necessário para o efeito.
10 – No entanto, permaneceu fixa ao espelho do puxador uma parte do material de porcelana.
11 – Que actuou sob a forma de lâmina afiada na mão da A..
12 – A A. é destra.
13 – O facto descrito em 8 deu-se com a sua mão direita.
14 – Em consequência do facto descrito em 8, verificou-se o corte da secção parcial do tendão dos músculos flexores do dedo indicador direito da A., ou seja, o corte do tendão profundo.
15 – Bem como o corte de uma extensão de 10 cm da mão, desde a palma até ao término do dedo indicador.
16 – Que implicou uma costura de 18 pontos.
17 – A A. deu entrada nas urgências do Hospital Garcia de Orta, em Almada, onde foi submetida a uma intervenção cirúrgica, com vista à reunião dos tecidos que haviam sido seccionados.
18 – No entanto, não foi possível unir as pontas do tendão flexor do dedo indicador direito que havia sido seccionado.
19 – O puxador BB tem a referência n.º 441/3/1.
20 – E foi fabricado pela R..
21 – Em consequência do facto descrito em 8, foi reconhecida à A. uma incapacidade temporária absoluta para o trabalho, desde o dia 15.09.2002 até ao dia 08.11.2002.
22 – A A. teve incapacidade genérica temporária parcial de 15 % entre 15 de Setembro de 2002 e 02 de Outubro de 2002 e de 10 % entre 03 de Outubro de 2002 e 09 de Setembro de 2003 e incapacidade profissional temporária parcial de 30 % entre 09 de Novembro de 2002 e 09 de Fevereiro de 2003.
23 – A A. ficou afectada de incapacidade geral permanente parcial de 3 %, a qual tem rebate negativo no exercício da sua profissão.
24 – A A. não consegue produzir o seu trabalho com a rapidez a que estava habituada, antes da data aludida em 8, pois na escrita manual e no teclado do computador deixou de ser fluente.
25 – Para assegurar a prestação dos cuidados básicos aos seus filhos e a si própria, bem como a limpeza da casa e a confecção dos alimentos familiares, a A. viu-se forçada a contratar uma pessoa.
26 – Cuja remuneração, entre o dia 17.09.2002 e o dia 08.11.2002, foi parcialmente suportada pela seguradora “FF – Companhia de Seguros, S.A.”, ao abrigo de seguro de acidentes de trabalho independente.
27 – Tendo contudo a A. sido obrigada a suportar uma diferença de € 188,76.
28 – Entre o dia 08.11.2002 e o dia 31.07.2003, a A. continuou a necessitar desta pessoa para coadjuvá-la na realização das referidas tarefas, por continuar a não possuir autonomia e destreza de movimento que, até à data aludida em 8, estava habituada a ter.
29 – Para tal, teve ainda de despender o montante de € 3.000,00.
30 – No intuito de recuperar a sensibilidade e o movimento do dedo, a A., no dia 12.03.2003, recorreu a uma consulta a um médico com a especialidade em cirurgia plástica reconstrutiva (Dr. GG), que lhe revelou a sua incapacidade em satisfazer a pretensão.
31 –Tendo despendido a quantia de € 30,00 com a consulta.
32 – O médico cirurgião plástico que a A. consultou aconselhou-a a recorrer à “HH PLLC”, sedeada nos Estados Unidos da América, que goza de um reconhecimento e prestígio mundial, pelo sucesso conseguido em microcirurgias da mão.
33 – Consultada esta clínica, foi elaborado um orçamento estimativo para a realização da intervenção pretendida, que, no dia 05.12.2003, correspondia a € 18.388,35.
34 – A realização deste tipo de intervenção impõe outras despesas, tais como consultas e exames médicos preparatórios e de acompanhamento à posterior, tratamentos médicos, fisioterapia, deslocações, dormidas e comida.
35 – Acresce, ainda, uma perda de rendimentos, por absentismo no local de trabalho, durante o período da intervenção, sua preparação e recuperação.
36 – A A. aufere, no presente, um rendimento anual de € 34.732,57 (com referência à data da propositura da acção).
37 –“FF, Companhia de Seguros, S.A.”, considerou, na data aludida em 8, uma retribuição anual de € 29.927,80, de acordo com o vencimento declarado no momento da celebração do contrato de seguro e acidentes de trabalho.
38 – O capital de remição apurado foi de uma pensão anual de € 1.652,01.
39 – A A. viu a sua pensão remida no montante de € 27.749,46.
40 – O dia 15.09.2002, por ser dia de reabertura dos tribunais, impunha à A. a obrigação de cumprir os prazos que recomeçavam a correr e os que se iniciavam.
41 – O que lhe provocou um estado de enorme ansiedade, ao sentir-se impossibilitada de os cumprir, pois não era sequer capaz de produzir a sua própria assinatura.
42 – A lesão descrita em 8 causou à A. dores moderadas.
43 – E que permaneceram com grande intensidade, até Dezembro de 2002.
44 – A A. entrou em estado de choque, logo após o facto aludido em 8, manifestando palidez, suores frios e náuseas.
45 – A hemorragia sofrida pela A. traumatizou-a.
46 – O corte foi extenso e profundo, o que agravou o choque psicológico sofrido pela A..
47 – E que lhe provocou angústia e estado de ansiedade.
48 – Durante este período de tempo, a A. viu-se, na prática, privada do uso do dedo indicador direito.
49 – Privação essa que se estendeu a toda a sua mão e braço direito até ao final do mês de Dezembro de 2002.
50 – A ablação do tendão originou uma perda crónica da sensibilidade e uma redução de movimento do dedo indicador direito.
51 – Até Dezembro de 2002, a higiene íntima da A. (nomeadamente tomar banho, lavar os dentes e escovar o cabelo) não pôde ser assegurada por si de modo autónomo.
52 – Começando a recuperar a sua autonomia, de um modo lento e gradual, após Dezembro.
53 – A A. ficou impossibilitada de prestar cuidados básicos aos seus filhos (nomeadamente mudar fraldas, pegar ao colo, dar de comer, dar banho e vestir), desde a data do acidente até Fevereiro de 2003.
54 – O que lhe determinou um sofrimento e sentimento de frustração ainda maiores.
55 – Até Fevereiro de 2003, as refeições da A. foram preparadas por terceira pessoa, de um modo especial para que, simplesmente com o uso da mão esquerda e auxílio de um garfo, pudesse servir-se da comida até à boca.
56 – Não pôde preparar e confeccionar as refeições familiares como estava, diariamente, habituada e que lhe proporcionava satisfação.
57 – Não pôde escrever com a mão nem com o auxílio do teclado do computador.
58 – Devido à falta de flexibilidade e sensibilidade, que subsistem no dedo indicador direito, a A. enfrentou, diariamente, dificuldades para executar as tarefas manuais normais, as quais vão diminuindo com o passar do tempo.
59 – A A. teve de reaprender como beber líquidos de uma chávena ou caneca.
60 – A A. tem maiores dificuldades no uso da faca para as actividades domésticas normais.
61 – O modo específico com que manuseia a faca confunde-se com um comportamento desadequado às normas vulgarmente chamadas de “boas maneiras à mesa” que causa à A., em situações de convívio social, um sentimento de vergonha e uma ansiedade, que a leva a relatar sistematicamente o acidente consigo sucedido e as suas consequências.
62 – A A. teve de reaprender a escrever sem o auxílio do dedo indicador direito.
63 – A A. deixou de poder praticar um dos desportos de que mais gostava – o tiro ao alvo.
64 – Desporto que a A. praticava, frequentemente, como amadora, desde os 21 anos de idade.
65 – Mas nunca mais poderá voltar a atirar, o que lhe causa uma enorme tristeza e um sentimento diminutivo da sua própria personalidade.
66 – No caso da A. vir a ser submetida a uma nova intervenção cirúrgica, irá sofrer dores moderadas a consideráveis, incómodos e dificuldades decorrentes da imobilização da mão e do tempo de recuperação.
67 – O puxador fabricado pela BB, com a referência 441, foi lançado no mercado, há mais de 20 anos.
68 – Tendo sido retirado do mercado há cerca de 5 anos, por já se encontrar desactualizado, face às actuais tendências de mercado.
69 – Na data da propositura da presente acção já haviam decorrido mais de 10 anos sobre a data em que a R. colocou em circulação o produto em causa.
70 – A R. fabricou e comercializou centenas de milhar de puxadores, com a referência 441, em vários mercados, num total de 21 países e cerca de 600 clientes.
71 – Tais puxadores eram constituídos por uma parte de latão (a base) e outra em porcelana (a maçaneta).
72 – A R. produzia a parte de latão e adquiria a outras empresas a parte de porcelana.
73 – Essas outras empresas fabricavam a parte de porcelana com os requisitos normais para serem utilizadas como maçanetas de porta.
74 – A montagem final era realizada nas instalações da R..
75 – Os puxadores com a referência 441 foram sujeitos pela R. aos testes que na altura eram usuais.
76 – Nunca tendo sido detectada qualquer anormalidade no produto em causa.
77 – Nem tendo a R. recebido qualquer reclamação sobre tais puxadores, quer de fornecedores quer de clientes.
78 – Não se tem revelado necessário a inserção de instruções de uso porque em condições normais de utilização o modo de manuseamento dos puxadores em geral é igual.
79 – A peça de porcelana a incorporar no puxador é verificada uma a uma, aquando da montagem.
III.
Quid iuris?
O caso que nos é apresentado, em recurso, leva-nos a revisitar o instituto da responsabilidade civil do produtor.
Com efeito, a presente acção foi dirigida pela A. contra a R., com vista a obter a indemnização pretendida, precisamente pelo facto de ter sido esta a entidade fabricante do puxador que esteve na base do acidente por aquela sofrido e, alegadamente, aquele sofrer de defeitos, seja de fabrico, seja de informação.
Rege, a este respeito, o Decreto-Lei nº383/89, de 06 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidos pelo Decreto-Lei nº 131/2001, de 24 de Abril.
Assim, desde logo, o artigo 1º daquele primeiro diploma legal prescreve que “o produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação”.
Importante é referir, desde já, que, nos termos do nº 1 do artigo 4º daquele diploma legal, “um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação”.
Confrontada com os danos, de natureza patrimonial e não patrimonial, sofridos em consequência do acidente provocado pela utilização de um puxador fabricado pela R./recorrida, a A./recorrente veio a juízo apontar defeitos de fabrico e de informação, ligando os mesmos àqueles danos.
Ao propor a presente acção, a A./recorrente teve bem a consciência de que, para lograr êxito, necessitava de provar os três elementos constitutivos da responsabilidade civil do produtor: os danos, os defeitos, e o nexo causal entre estes e aqueles.
Instruída que foi a causa, com a realização do julgamento, veio apenas à tona da prova a verificação de danos sofridos em consequência do acidente, não tendo a A./recorrente logrado provar os defeitos de fabrico e, consequentemente, o nexo causal entre estes e aqueles.
Por isso mesmo, a acção acabou por ser julgada improcedente.
Isto mesmo ficou escrito na respectiva sentença: “atenta a factualidade acima descrita, a Autora não logrou provar a existência do defeito que, na sua perspectiva, teria sido causador do acidente e dos consequentes danos”.
Posta perante esta realidade, a A., apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, sublinhando duas notas com vista a obter provimento do recurso: por um lado, defendeu a aplicação ao caso do regime estatuído nos artigos 483º e 493º, nº 2, do Código Civil; por outro, proclamou como suficiente para obter a indemnização pretendida a matéria constante das alíneas A), B), e C), tendo por base a omissão do dever de informação devido pela R., enquanto produtora (“consubstanciam a existência de um defeito de informação, bem como o nexo de causalidade entre este e os danos sofridos”).
Se, em relação ao primeiro ponto assinalado, a Relação primou pela omissão, já em quanto ao segundo ponto, avisada pela apelada, acabou por dizer que o conhecimento do mesmo não poderia ali, em sede de recurso, ser apreciado porquanto se tratava de “questão nova”.
Aqui chegados, estamos em perfeitas condições para compreender a crítica que a A. dirigiu ao aresto da Relação de Lisboa.
Deixando para trás qualquer referência à omissão relativa à possibilidade de aplicação ao caso dos normativos constantes dos artigos 483º e 493º, nº 2, do Código Civil, a recorrente esforça-se, agora, no recurso de revista, por demonstrar ter logrado fazer prova de todos os elementos constitutivos da obrigação de indemnização, a cargo da R./recorrida, no âmbito limitado da omissão dos deveres de informação por parte da R..
Para tanto, parte do princípio de que ficou demonstrada a perigosidade do puxador e de que não foi dado nenhum alerta acerca da mesma, por parte da recorrida, enquanto produtora, aferindo-a através do facto de ter ficado provado que “o único cuidado a ter prende-se com o facto de a porcelana partir, ancorando este último na prova de que “o puxador adquirido pela autora não veio acompanhado de instrução ou advertência sobre o modo de utilização”.
Nas palavras da A./recorrente estão aqui, nestes dois sublinhados pontos, a razão que sobra para a R./recorrida ser responsabilizada pelos danos por si sofridos: “ENCONTRA-SE MAIS DO QUE DEMONSTRADO o defeito por falta de informação/advertência” – proclama na conclusão 5ª.
Ao mesmo tempo, critica a desconsideração desta “evidência”, à luz do que considera ser violação do artigo 60º, nº 1, da Constituição.
Fixados os parâmetros do nosso poder cognitivo, pelo que, de útil, foi trazido às conclusões (estas, nas palavras sábias de Rodrigues Bastos, “consistem na enunciação, em forma abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter provimento” – Notas ao Código de Processo Civil, 3ª edição, página 329), cumpre-nos, ora, apreciar a bondade da argumentação da recorrente, face à decisão da Relação de Lisboa que confirmou, na íntegra, o julgado pela 1ª instância.
Comecemos pelo plano da constitucionalidade.
O artigo 60º da Constituição prescreve, no seu nº 1, que “os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos”.
Interessa-nos, em particular, o direito à reparação.
Fácil será compreender que não é pelo simples facto de tal direito ter foros de consagração constitucional que, de forma automática, o lesado tem direito a ser indemnizado pelo produtor.
Necessário se torna, como é óbvio, que alegue e, de seguida, prove, os já assinalados factos constitutivos da obrigação de indemnizar, o mesmo é dizer do direito alegado.
Ora, como ficou bem expresso na sentença da 1ª instância, à A., enquanto lesada, cabia a alegação e prova não só da verificação do defeito, como também dos danos e, ainda, do nexo causal entre aquele e estes (João Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, páginas 712 e 713).
Só cumprindo este ónus, imposto pela lei ordinária, terá o lesado direito a reclamar do produtor a indemnização devida pelos danos sofridos.
Daí que a verdadeira questão que importa solucionar consista em saber se
a A., enquanto consumidora, cumpriu os ónus de alegação e de prova referidos.
Só se pode colocar o problema da violação de norma constitucional se, perante a prova evidente do direito, o mesmo não é reconhecido.
A Relação entendeu, tal como a 1ª instância, que a A. não provou factos suficientes para se poder concluir pela responsabilidade da R., enquanto produtora do puxador “causador” dos danos.
Desta forma, o nosso problema resume-se, tão-só, em procurar saber se a Relação decidiu bem, se, na realidade, ou seja, se o material fáctico apurado não permite a conclusão desejada pela A./recorrente.
Desde já uma tomada de posição é possível: não é pelo simples facto de a A. ter provado o elemento constitutivo “dano” que o Tribunal lhe pode conferir o direito de indemnização desejado.
Se assim fosse – e não é – os Tribunais limitar-se-iam a controlar a verificação daquele requisito, num papel de meros supervisores, e não de órgãos julgadores, desnecessário se tornando a apreciação/interpretação dos factos provados e/ou não provados e a aplicação àqueles das regras de direito atinentes.
Não foi isto, seguramente, o que o legislador constitucional quis.
Pelo contrário, ele limitou-se a afirmar o que já resultava da lei infraconstitucional ou ordinária: perante a verificação dos elementos constitutivos da responsabilidade, qualquer que ela seja – contratual ou delitual, nesta abrangendo a do produtor e a resultante de actos lícitos – é inegável que o lesado (neste caso, o consumidor) tem de ser indemnizado.
É, pois, nesta perspectiva, que somos confrontados com a questão de saber se os factos alegados e provados permitem chegar à conclusão de que a A./recorrente cumpriu a sua missão processual, alegando e provando o que é necessário para que a R./recorrida, enquanto produtora, possa ser responsabilizada, nos termos peticionados.

Antes, porém, importa saber se a alegação levada à consideração da Relação constitui, na verdade, uma “questão nova”.
Colocou a A./recorrente o acento tónico da causa de pedir nos defeitos de fabrico que enumerou no artigo 27º da petição inicial, sem deixar, contudo, de referir os defeitos de informação como tendo sido (também) os causadores dos danos sofridos.
Com efeito, sob a epígrafe “Do Manifesto Defeito do Puxador”, a A. começou, no artigo 16º, por dizer que o dito puxador se partiu enquanto desempenhava a função para que foi concebido, avançando, logo depois, no artigo 19º, para a conclusão de que “é facto notório que um puxador de porta interior não é considerado um produto perigoso e que implique especiais cautelas de manuseamento”, adiantando nos artigos 22º e 23º que o puxador adquirido não veio acompanhado de nenhuma instrução, “o que pressupõe um modo de manuseamento igual aquele que é exercido nos puxadores de porta em geral”, para concluir, no citado artigo 27º, que “a rotura da maçaneta durante a sua utilização normal deveu-se a uma ou mais das seguintes hipóteses … natureza ou defeito de um dos materiais, …, forma dos materiais, … forma que os materiais componentes assumem, … método da junção dos materiais componentes, … no momento da junção dos materiais componentes …”.
Desta matéria alegada resulta que a A. pôs o acento tónico da responsabilidade do produtor do puxador nos denominados defeitos de fabrico.
Estes defeitos de fabrico “são defeitos que surgem na fase propriamente dita de laboração, produção ou fabrico, em execução do projecto ou design perfeito, defeitos típicos da moderna produção da massa industrial, autonomizada e estandarlizada, e devido a falhas mecânicas ou/e humanas de organização empresarial” (A. e obra citada, página 658).
Aqueles factos, levados à base instrutória, por via da impugnação da R., acabaram por ser dados como não provados (respostas aos quesitos 14º e 14-A), de que resultou, inexoravelmente, a desresponsabilização da R., com base neste tipo de insinuações (defeitos de fabrico).

Tendo aceite como boa esta posição da 1ª instância – o juízo probatório firmado nem sequer foi objecto de impugnação, em sede de apelação –, levantou a A., então, perante a Relação de Lisboa, a questão da responsabilização da R., na base de defeitos de informação já aludidos.
E a verdade é estes defeitos são também de considerar em termos de responsabilidade civil do produtor.
É que, como assevera João Calvão da Silva, “um produto pode ser ilegitimamente inseguro por falta, insuficiência ou inadequação de informações, advertências ou instruções sobre o seu uso ou perigos conexos”.
Estes defeitos não são em si mesmo defeitos, “porque bem concebido e fabricado, o produto pode, todavia, não oferecer a segurança legitimamente esperada porque o seu fabricante o pôs em circulação sem as adequadas instruções sobre o modo de emprego, sem as advertências para os perigos que o seu uso incorrecto comporta, sem menção das contra-indicações da sua utilização, sem as informações da sua actividade perigosa – v.g. toxicidade, inflamabilidade – e efeitos secundários, etc.” (obra citada, página 659).
Ora bem.
Tomemos, pois, posição sobre a eventual “questão nova”.
Os recursos, como é sabido, são meios de apreciação de decisões proferidas pelos tribunais inferiores e já não instrumentos com vista à apreciação de questões colocadas ex novo.
Através deles colocam as Partes, aos tribunais superiores, as críticas tidas por pertinentes, com vista a obterem a alteração do por aqueles julgado, em função das questões vertidas nas respectivas peças processuais. Só perante questões de conhecimento oficioso podem e devem os tribunais de recurso intervir (facto que, como é evidente, não inibe as Partes de as colocarem).
Será que a A., perante a Relação, deixando de lado os defeitos de fabrico, e enfatizando os defeitos de informação, colocou uma “questão nova”, tal como ficou há pouco desenhada?
Entendemos que não.
Vejamos.
Em boa verdade, a A./recorrente não deixou de alegar, na petição inicial, os factos que entendeu serem integradores da violação do dever de informação do produtor (a R.) e, tanto assim, que os mesmos foram, directamente, colocados nos factos assentes, à falta de impugnação, por parte da R./recorrida.
E sendo assim como, na realidade é, a exigência feita pela apelante não podia nunca ser vista como integradora de uma “questão nova”, o mesmo é dizer que competia à Relação a sua apreciação, debruçando-se sobre se, de facto, o juiz da 1ª instância teve em consideração, como devia ter tido, a matéria dada como provada, à luz das várias soluções plausíveis, do ponto da chamada “questão-de-direito”, tal como o exige o artigo 511º, nº 1, do Código de Processo Civil, pois caso contrário, não se compreenderia a inclusão da dita matéria no elenco dos factos dados como provados.
E, nesta precisa medida, não podemos deixar de dar de razão à A./recorrente: a 1ª instância não fez uma apreciação exaustiva dos factos provados, antes, pelo contrário, se limitou, face ao que ficou não provado, a negar o direito reclamado por aquela, desprezando, por completo, os demais factos provados.
Exigia-se, pois, que algo fosse dito, ou da sua irrelevância ou da sua insuficiência.
Nada, porém, como referido, foi dito a seu respeito.
Se, na realidade, tivesse omitido pronúncia sobre uma determinada questão, então sim, o Tribunal de 1ª instância teria cometido uma nulidade por omissão de pronúncia, resultante da infracção ao estatuído no nº 2 do artigo 660º do Código de Processo Civil, cujo tratamento estava dependente de arguição (nº 3 do artigo 668º do Código de Processo Civil).
Repare-se que a A. verteu na sua petição inicial toda uma panóplia de factos para, depois, no capítulo da subsunção jurídica, terminar por defender a responsabilização da R., enquanto produtora do dito puxador, pelos seus defeitos, fossem eles de fabrico ou resultantes de falta de informação (cfr. artigo 100º).
Ora, face às respostas negativas dadas aos quesitos 14º e 14º-A, o Tribunal de 1ª instância cumpriu perfeitamente a sua obrigação, isentando de qualquer responsabilidade a R., pelos alegados defeitos de fabrico.
Contudo, competia-lhe, ainda, face ao que estava, ainda, em jogo, aplicar o direito ao restante material fáctico provado (e provado, repete-se, desde a condensação), dizendo se o mesmo era suficiente ou irrelevante para se poder catalogar a conduta da R., enquanto produtora, como defeituosa na informação que era devida.
Mas o juiz de 1ª instância não considerou tais factos, relativos à eventual omissão de informação, por parte da R., como sendo constitutivos do direito da A., pela singela razão de os ter desprezado, considerando-os irrelevantes ou incapazes de, por si só, produzirem o efeito pretendido pela A..
Para ele, a responsabilidade imputada à R. pela A. limitou-se apenas aos chamados defeitos de fabrico.
Colocados os factos, todos eles na “especificação, ou dados, ulteriormente, como provados, por via da instrução, cabe ao julgador a sua apreciação, sob pena de subversão não só da letra como, sobretudo, do espírito do artigo 511º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Com isto pretendemos apenas significar que a A./recorrente, confrontada com a improcedência da acção, por não ter logrado fazer a prova dos factos relacionados com o alegado defeito de fabrico, lançou mão do restante material fáctico dado como provado, com vista a obter o ganho de causa pretendido.
Ao fazê-lo, nestes exactos termos, não lançou à Relação uma questão nova, portanto.
Se o tivesse feito, na base da não apreciação da mesma por parte do juiz da 1ª instância, teria, então e previamente, de lançar mão da arguição de nulidade por omissão de pronúncia.
Mas, como vimos, não foi esse o problema.
Prova evidente disso resulta do facto de a A./recorrente nem sequer questionar, no recurso de revista, a natureza da questão, antes apenas e só a não aplicação das regras jurídicas atinentes à matéria de facto dada como provada e, por ela defendida, como sendo integradora do já aludido “defeito de informação”.
Não podemos, pois, deixar de dar razão à recorrente, neste ponto concreto, dizendo, simplesmente, que à Relação competia, na verdade, o conhecimento da questão sublinhada na minuta de recurso e, devidamente, sintetizada nas respectivas conclusões.
Com isto não fica, definitivamente, decidido o objecto do recurso, na sua parte mais nobre.
É que, postas as cousas nos termos que nos parecem correctos, surge a verdadeira dificuldade: será que tais factos, os constantes das três primeiras alíneas da especificação, são, de per se, suficientes para responsabilizar a R., nos termos precisos pretendidos pela recorrente?
Equacionado assim o problema, eis-nos confrontados com questão idêntica à que o juiz da 1ª instância devia ter resolvido, qual seja a de, mau grado não se ter feito prova dos factos alegados no artigo 27º da petição e vertidos nos artigos 14º e 14º-A da base instrutória, saber se a referida matéria é suficiente para conceder à A. a desejada indemnização.
Vejamos.
A pergunta que se nos afigura pertinente é esta: a petição inicial, retirados aqueles factos constantes do artigo 27º da petição, é apta a produzir os efeitos pretendidos pela A.?
Entendemos que não, como tentaremos demonstrar.
A solução do problema passa, verdadeiramente, não pela falta de causa de pedir, mas antes pela sua insuficiência, ou seja, temos como certo que os mencionados factos, convocados pela A./recorrente para fundamentar a tese dos defeitos de informação, não são de molde a poder imputar responsabilidades à R., nos termos por aquela almejados.
No fundo, tudo se resume, pois, a saber se a petição inicial apresentada era apta ou inepta.
Pela nossa parte, aderindo às teses defendidas por Mariana França Gouveia que, acolhendo a lição de Ramos Méndez (“há que descer do terreno meramente dogmático e examinar caso a caso os institutos sobre os quais tem repercussão a noção de objecto de processo”), entendemos que a causa de pedir não pode ser perspectivada de modo unívoco, antes, pelo contrário, de acordo com os institutos que a utilizam, sejam a ineptidão, a litispendência, o caso julgado, etc., etc.
Nesta perspectiva, “causa de pedir para efeitos de ineptidão da petição inicial deve, pois, ser definida como aquelas razões de facto e de direito, ou se quiser, aqueles factos jurídicos que, analisados na lógica jurídica da petição inicial, ou se esta não for suficiente, numa outra que o tribunal entenda levar à produção do efeito jurídico pretendido, permitem a sua compreensão ou pelo réu, possibilitando-lhe contestar, ou, em caso de revelia, pelo tribunal, permitindo-lhe proferir já uma decisão de mérito” (A Causa de Pedir Na Acção Declarativa, páginas 103 a 126 e 147 a 157).
Aqui chegados, eis-nos, pois, na posição (natural) do juiz da 1ª instância.
Tal como ele, nós temos assim de decidir se, não obstante não se ter provado a matéria dos quesitos 14º e 14º-A, a acção pode ou não ser julgada procedente, na base do que consta das três primeiras alíneas da especificação.
Por outras palavras: o que consta destas alíneas é suficiente para a procedência da acção?
Para o resolvermos o “nosso” problema, teremos, novamente, de trazer à colação a matéria respeitante ao ónus probatório.
Id est, teremos de nos preocupar em saber se aqueles factos, trazidos à luz pela A., são suficientes para podermos concluir pela prova do defeito, dos danos e do nexo causal entre estes e aquele.
Era à A., enquanto como lesada e credora do direito à indemnização reclamado à R., que competia a alegação de todos os factos integradores da causa de pedir, que pudessem suportar o pedido, em resultado da exigência contida no artigo 467º, nº 1, alínea d), em homenagem ao princípio dispositivo que está consagrado no artigo 264º, ambos do Código de Processo Civil.
É que, como verdadeiramente justifica José Lebre de Freitas, “a atribuição às partes do monopólio da alegação dos factos principais da causa correspondente antes à ideia de que, melhor de que ninguém, elas podem trazer ao conhecimento do tribunal, em contraditório, os factos relevantes no âmbito das relações jurídicas que lhes respeitam” (Introdução Ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais À Luz do Código Revisto, página 131).
Terá isso acontecido?
Analisando o elenco dos factos apurados, definitivamente, pelas instâncias, a resposta não pode deixar de ser negativa, como já ficou dito.
Lendo e relendo a petição inicial, não vislumbramos facto algum dos alegados e dados como provados que possa ser considerado como integrador do dever de informação (“defeito de informação”), na perspectiva de terem sido causadores dos danos sofridos pela A./recorrente.
Note-se, até, que a própria A. despreza – e com razão – este argumento, ao convocar a notoriedade para justificar que o uso de um puxador não é considerado um produto perigoso, em contradição nítida com o que verteu na 5ª conclusão.
E, pensamos que é, de todo, legítimo pensar que não foi a primeira vez que a A. utilizou aquele concreto puxador, antes o terá utilizado inúmeras vezes, isto apesar de ela não ter fornecido ao Tribunal qualquer elemento circunstancial de tempo, sobre este ponto concreto de duração do uso do puxador, ou seja, desde a aquisição até ao acidente, certo que o mesmo foi lançado no mercado há mais de vinte anos, tendo sido retirado do mesmo há cerca de cinco, por se encontrar desactualizado.
Mas mesmo que essa matéria fosse suficiente para podermos concluir que houve, de facto, violação do dever de informação, ou seja, mesmo que se considerasse ter havido “defeito de informação”, sempre ficaria por provar, porque nem sequer foi alegado, o nexo causal entre aquele dever, hipoteticamente omitido, e os danos causados.
Indo mais directamente ao assunto: está provado que os danos sofridos pela A./recorrente foram causados pelo facto de o puxador ter sido posto no mercado desacompanhado de instruções ou advertências sobre o seu uso?
A resposta só pode ser uma: não está.
Definitivamente, temos de concluir que, mesmo que se considerasse ter havido o tal “defeito de informação”, o que, como já referido, não ficou provado, sempre a pretensão da A./recorrente depararia com a barreira intransponível da falta de prova do nexo causal, como elemento constitutivo do seu direito.
Isto, mesmo ponderando, como o faz João Calvão da Silva, que a prova do nexo causal se afigura, não raramente, muito difícil, certo que “as regras da experiência de vida, o id quod plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada – teoria que reconduz a questão do nexo causal a um juízo de probabilidade – poderão permitir a preponderância da evidência que, no fundo, é uma espécie de causalidade” (obra citada, página 713).
Esta reflexão está já bem patente nos juízos de valor emitidos supra.

Ficam-nos, por fim, os danos. Estes provados, sem dúvida.
Mas, surge-nos, necessariamente, uma perplexidade: danos causados como e por quem?
Pelo que ficou dito e redito, a este respeito nada ficou provado.
Razão de sobra para a acção improceder.

Pelo que fica dito, não há razões para alterar o sentido do acórdão da Relação de Lisboa, mui embora as razões determinantes não sejam inteiramente coincidentes.
IV.
Ex positis, nega-se a revista e condena-se a recorrente no pagamento das respectivas custas.

S.T.J., aos 25 de Março de 2010
Urbano Dias (Urbabo Dias)
Paulo Sá
Mário Cruz