Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98B847
Nº Convencional: JSTJ00034938
Relator: MIRANDA GUSMÃO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PODERES DO TRIBUNAL
JUÍZO DE VALOR
INTERPRETAÇÃO DA LEI
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
Nº do Documento: SJ199811190008472
Data do Acordão: 11/19/1998
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N481 ANO1998 PAG405
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7786/97
Data: 02/19/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL. DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 661 N1 ARTIGO 664.
CCIV867 ARTIGO 1044.
CCIV66 ARTIGO 616 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1992/06/17 IN BMJ N418 PAG710.
Sumário : I - Julgada procedente a impugnação pauliana, resultam do disposto no n. 1 do artigo 616 do CCIV66, três direitos:
- o direito à restituição na medida do interesse do credor;
- o direito a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei;
- o direito de execução do património do obrigado à restituição.
II - Se o autor tiver requerido na acção de impugnação pauliana (que é um caso típico de ineficácia do acto jurídico) a declaração de nulidade do acto jurídico e o tribunal decretar (como deve decretar) a ineficácia do acto, não há violação do artigo 661 n. 1 do CPC, na medida em que o erro na qualificação jurídica do efeito prático que o autor pretende obter com a acção pauliana - que é a inutilização do acto lesivo, deve ser corrigido pelo juiz sem a mais ligeira ofensa do princípio dispositivo tal como o artigo 664 do mesmo diploma o concebe e define
- princípio da liberdade de aplicação do direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. No 2. Juízo Cível da Comarca de Lisboa, a Caixa
Geral de Depósitos, S.A., intentou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra
A, B, C e D, pedindo "se considere impugnado o acto que consubstancia a doação feita pelo 1. e 2. Recorrentes, sendo julgada ineficaz e de nenhum efeito, no que à
Autora concerne, com as consequências legais, nomeadamente de a fracção doada voltar a integrar o património dos doadores 1. e 2. Recorrentes e os donatários 3., 4. e 5. Recorrentes abrirem mão do imóvel que lhes foi transmitido, ordenando-se o cancelamento, na respectiva Conservatória do Registo
Predial do registo de aquisição a favor destes, para que a Autora possa nomear à penhora a fracção doada".
Fundamenta a sua pretensão no facto dos 1. e 2.
Recorrentes terem realizado a doação do imóvel identificado nos autos, apenas com o intuito doloso de diminuir a garantia patrimonial do crédito da Autora para com estes.
2. Os Réus não contestaram.
Consideram-se confessados os factos articulados pela
Autora.
Só os Réus apresentaram alegações nos termos do artigo
484 n. 2, do Código de Processo Civil.
3. Foi proferido despacho-saneador-sentença onde se declarou impugnada a doação feita pelo 1. e 2.
Recorrentes a favor dos 3., 4. e 5. Recorrentes, respeitante à fracção autónoma designada pelas letras
"AB", correspondente ao 8. Esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua Conde de
Almoster ns. 98 a 98 C, freguesia de Benfica, Lisboa, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número 294, julgando a mesma ineficaz em relação
à Autora.
4. Os Réus apelaram. A Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Fevereiro de 1998, julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
5. Os Réus pedem revista - revogação do acórdão recorrido, com a consequente improcedência da acção - formulando conclusões no sentido de: a) nos termos do artigo 661 do Código de Processo Civil a sentença não pode condenar em objecto diverso do que se pedir. b) Na presente acção a Autora não pediu - como se impunha - que lhe fosse reconhecido o direito de executar o bem, validamente doado, na medida do necessário à satisfação do seu crédito. c) Pediu, antes, coisa muito diferente, ou seja, que a doação fosse considerada "ineficaz e de nenhum efeito" e que o respectivo registo de aquisição fosse cancelado, para que a Autora pudesse vir a nomear à penhora o bem imóvel em questão.
6. A recorrida apresentou contra-alegações, onde salienta que: a) ainda que se conceda que o pedido não foi formulado nos melhores termos tendo em atenção as decorrências que retira da declaração de ineficácia do acto visado, a verdade é que o Tribunal não está adstrito às considerações de direito tecidas pelas partes, conforme decorre da conjugação dos artigos 661 e 664, ambos do
Código de Processo Civil. b) Em bom rigor a diferença existente entre o pedido formulado e o que formalmente deveria ter sido formulado é meramente quantitativo.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
Questões a apreciar no presente recurso.
A apreciação e a decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, passa pela análise da questão de saber "se o acórdão recorrido, a confirmar a sentença da 1. instância, não pode ser mantido por ter condenado em objecto diverso do que a
Autora pediu.
Abordemos tal questão.
III
Se o acórdão recorrido, a confirmar a sentença da 1. instância, não pode ser mantido por ter condenado em objecto diverso do que a Autora pediu.
1. Posição da Relação e dos recorrentes:
1a) A Relação de Lisboa confirmou a sentença da 1. instância por entender que, por um lado, da análise da matéria de facto resulta a existência de todos os requisitos para a verificação da impugnação pauliana - artigo 610, Código Civil, e, por outro lado, na petição inicial, os factos alegados integram, perfeita e totalmente, os fundamentos necessários para a qualificação da impugnação pauliana: o pedido mostra-se formulado em conformidade com esta causa de pedir, apenas se exceptuando o pormenor de se pretender o "cancelamento do registo", que a decisão em causa correctamente não seguiu.
1b) Os Recorrentes sustentam que a Autora não pediu - como se impunha - que lhe fosse reconhecido o direito de executar o bem, validamente doado, na medida do necessário, de sorte que a acção tem de ser julgada improcedente por o artigo 661 do Código de Processo
Civil não permitir condenação em objecto diverso do pedido.
Que dizer?
2. O Código Civil de Seabra dispunha (artigo 1044) que, julgada procedente a acção revogatória, "revertem os valores alienados ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores".
Embora a acção pauliana fosse considerada como acção pessoal, por depender da má fé das partes no acto impugnado ou do locupletamento do terceiro adquirente, a fórmula do artigo 1044 parecia reconhecer a natureza de uma acção de nulidade, visto que mandava reverter os bens alienados ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores.
VAZ SERRA, apreciando a natureza jurídica da acção pauliana e efeitos da mesma, escreveu:
"Que a acção pauliana deve ser uma acção pessoal... tratando de impugnar só porque prejudicam os credores, actos válidos, e apenas contra aqueles que procederam de má fé ou se locupletaram, a acção baseia-se numa relação obrigacional.
"Se fosse uma acção de anulação... o seu resultado seria a anulação do acto impugnado, de sorte que se destruiriam, com eficácia real, isto é, erga omnes, os seus efeitos mesmo passados, o que não pode ser... dado o exercício da acção estar subordinado a requisitos (má fé, locupletamento) que repelem aquele resultado:...
"A acção pauliana é dada aos credores somente para obterem, contra um terceiro, que procedeu de má fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o acto impugnado. Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional. O autor na acção exerce contra o Réu um direito de crédito, o crédito de eliminação daquele prejuízo.
"Entendidas assim as coisas, pode afirmar-se que a acção se destina a fazer valer o direito de eliminação do prejuízo causado pelo acto ou de restabelecimento da possibilidade de satisfação sobre os bens objecto desse acto".
E concluindo sobre a natureza da acção escreveu:
"Pode dizer-se que a acção pauliana é uma acção restituitória, no sentido de que o Réu deve assegurar ao Autor, na medida exigida pelo interesse deste, a reposição das coisas no estado anterior".
E sobre os efeitos da acção, o modo de se operar esta restituição, escreveu:
"Temos que a restituição se não faz sempre da mesma maneira, devendo adaptar-se às condições especiais de cada caso. Mas é sempre uma restituição: mesmo quando, na hipótese da acção pauliana individual, o Réu se limita a tolerar que o Autor execute os bens no seu património, pode dizer-se que há restituição, entendida esta palavra num sentido lato, pois, mediante aquela tolerância... consegue-se a restituição de determinado valor ao Autor. Esta forma de restituição é bastante para que se alcance a finalidade da acção e, portanto, não deverá ir-se mais longe" - RESPONSABILIDADE CONTRATUAL, in
Boletim Ministério da Justiça n. 75, páginas 280 a
288.
3. Foi esta linha de VAZ SERRA que o legislador veio a consagrar na versão final do Código de 66: rompeu decididamente com o figurino da acção pauliana, convertendo a antiga anulação em verdadeira ineficácia do acto em relação ao credor impugnante.
Julgada procedente a impugnação, resulta do disposto no n. 1 do artigo 616 do Código Civil, três direitos: o direito à restituição na medida do interesse do credor, o direito a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei e o direito de execução no património do obrigado à restituição.
A restituição significa duas coisas, conforme aponta
ANTUNES VARELA, ao escrever:
"o impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor, mas sem a concorrência dos demais credores deste, uma vez que a procedência da pauliana só ao impugnante aproveita;
"executando os bens alienados, como se eles tivessem retornado ao património do devedor e não se mantivessem na titularidade do adquirente, o impugnante pode executá-los, na medida do necessário para satisfação do seu crédito, sem sofrer a competição dos credores do adquirente -
DAS OBRIGAÇÕES EM GERAL, volume II, 6. edição, página 455.
HÉNRIQUE MESQUITA, versando o tema impugnação pauliana: natureza jurídica do direito do impugnante e efeitos da procedência da acção, depois de apontar que trata-se de uma acção pessoal com escopo indemnizatório - e não de uma acção de declaração de nulidade ou anulação, ou de uma acção resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor, conclui que se o pedido tiver sido de declaração de nulidade e nenhum efeito do contrato... a acção terá de improceder dado não se poder condenar "em objecto diverso do que se pedir" - artigo 661 n. 1 do Código de Processo Civil - REVISTA
LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA, ano 120, páginas 210 e
251.
4. ANTUNES VARELA ensina não haver violação do artigo
661 n. 1, do Código de Processo Civil se o Autor tiver requerido, na acção de impugnação pauliana (que é um caso típico de ineficácia do acto jurídico, diferente da figura da nulidade) a declaração de nulidade do acto jurídico e o Tribunal decretar (como deve decretar) a ineficácia do acto.
Não há violação do artigo 661 n. 1 do Código de
Processo Civil, na medida em que o erro na qualificação jurídica do efeito prático que ao Autor pretende obter com a acção de impugnação pauliana ( - que é a inutilização jurídica do acto, na parte em que a mesma atinge o direito do Autor) deve ser corrigido pelo Juiz sem a mais ligeira ofensa do princípio dispositivo, tal como o artigo 664, do Código de Processo Civil, o concebe e o define - REVISTA LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA, ano 122, páginas 252 a 255.
5. O artigo 664, do Código de Processo Civil define a relação entre a actividade do Juiz e a actividade das partes no tocante aos materiais de conhecimento. E define-a assim: pelo que respeita aos factos a sua acção está vinculada: só pode servir-se dos factos constitutivos, impeditivos ou extintivos das pretensões formuladas na acção alegados pelas partes; pelo que respeita ao direito, a acção do Juiz é livre na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito: tem os momentos livres na aplicação do direito, o que equivale a dizer que o Juiz não se encontra adstrito na qualificação jurídica dos factos efectuada pelas partes - cfr. ANTUNES VARELA, Manual de
Processo Civil, 2. edição, páginas 676 e 677.
A actividade do juiz foi sublinhada de forma elucidativa por A. dos REIS quando escreveu:
"O autor ou o Réu invoca determinada disposição legal; se o Juiz entende que tal disposição não existe, ou que, apesar de existir, não é a que mais se ajusta ao caso concreto em litígio, põe completamente de parte a indicação feita pela parte e vai buscar a regra de direito que, em seu modo de ver, regula a espécie de que se trata -
CÓDIGO PROCESSO CIVIL ANOTADO, volume V, página
93.
Tem sido esta a doutrina firmada por este Supremo
Tribunal de Justiça (entre outros, o acórdão de 17 de
Junho de 1992 - B.M.J., n. 418, página 710).
6. Perante o que se deixa exposto sobre a natureza da acção pauliana e efeitos da mesma, a não violação do artigo 661 n. 1 do Código de Processo Civil quando se requer a declaração de nulidade do acto jurídico (na acção de impugnação pauliana) e o Juiz decreta a ineficácia do mesmo, e a relação entre a actividade do
Juiz e a actividade das partes, permite-nos precisar que não merecem censura as decisões proferidas nas instâncias (- a da 1. instância, a declarar impugnada a doação... e a julgar a mesma ineficaz em relação à
Autora; a da 2. instância, a de confirmar a decisão da
1. instância), face ao pedido formulado pela Autora: o de se considerar impugnado o acto que consubstanciou a doação feita... sendo julgado ineficaz e de nenhum efeito, no que à Autora concerne, com as consequências legais... (que enunciou nos seguintes termos: nomeadamente de a fracção doada voltar a integrar o património dos doadores... e os donatários abrirem mão do imóvel que lhes foi transmitido, ordenando-se o cancelamento na respectiva Conservatória... do registo de aquisição a favor destes, para que a Autora possa nomear à penhora a fracção doada".
Correcto foi o pedido formulado (o de se considerar impugnado o acto que consubstanciou a doação feita... sendo julgado ineficaz...) incorrectas foram as consequências de se julgar ineficaz... (o de se julgar a doação de nenhum efeito; o de a fracção doada voltar a integrar o património dos doadores; o dos donatários abrirem mão do imóvel; e o de se ordenar o cancelamento do registo de aquisição).
E por incorrectas as Instâncias não as aceitaram, nem tinham que as aceitar, dado que apenas se encontravam vinculadas ao objecto da acção - identificado pelo pedido e causa de pedir - tal como do mesmo dispôs o
Autor.
As instâncias consideraram impugnado o acto que consubstanciou a doação feita (ou seja, considerou a procedência da acção com base nos fundamentos (causa de pedir) invocados) e apontaram os efeitos dessa procedência, tendo em vista a disposição correcta aplicável, precisamente o disposto no artigo 616 n. 1, do Código Civil.
As instâncias não ofenderam o disposto no artigo 661 n.
1 do Código de Processo Civil, pela simples razão de que, considerando impugnado o acto... nada mais fizeram do atribuir à impugnação o efeito jurídico definido no artigo 616 n. 1, do Código Civil.
Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido, a confirmar a sentença da 1. instância, deverá ser mantido por não ser condenado em objecto diverso do que a autora pediu.
IV
Conclusão
Do exposto, poderá extrair-se que:
1) Na acção pauliana o pedido a formular pelo Autor é o de declaração de ineficácia do acto que impugna e não o pedido de anulação ou de declaração da sua nulidade.
2) A errada qualificação jurídica do pedido que o Autor pretende obter com a acção de impugnação pauliana não impede o juiz de, observado o princípio dispositivo, qualificar diferentemente o pedido, por permitida pelo artigo 664 e conforme ao artigo 661 n. 1, ambos do
Código de Processo Civil.
Face a tais conclusões, poderá precisar-se que: "o acórdão recorrido, a confirmar a sentença da 1. instância, deverá ser mantida por não ser condenado em objecto diverso do que a Autora pediu.
Termos em que se nega a revista.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 19 de Novembro de 1998
Miranda Gusmão,
Sousa Inês,
Nascimento Costa.
2. Juízo Cível de Lisboa - Processo n. 481/95 - 3.
Secção.
Tribunal da Relação de Lisboa - Processo n. 7786/97 -
6. Secção.