Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
080720
Nº Convencional: JSTJ00014353
Relator: FERNANDO FABIÃO
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
VALIDADE
CONVALIDAÇÃO
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
ANULABILIDADE
REGIME APLICÁVEL
PROMITENTE-COMPRADOR
TRADIÇÃO DA COISA
DIREITO DE RETENÇÃO
CASO JULGADO
EFEITOS
TERCEIROS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
IMPUGNAÇÃO
Nº do Documento: SJ199203240807201
Data do Acordão: 03/24/1992
Votação: MAIORIA COM 2 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR OBG.
DIR PROC CIV - PROC EXEC.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 220 ARTIGO 410 N3 ARTIGO 442 N3 ARTIGO 605 ARTIGO 755 N1.
CPC67 ARTIGO 498 N2 ARTIGO 866 N3 N4.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ PROC77869 DE 1989/10/10.
Sumário : I - É inadmissível a revalidação formal dos negócios jurídicos.
II - São formalidades ad substantiam os requisitos formais do n. 3 do artigo 410 do Código Civil, na redacção dada pelo Decreto-Lei n. 236/80 (o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes em contrato- -promessa bilateral e a certificação, pelo notário, da existência da licença de utilização ou da construção do edifício).
III - A inobservância da forma legalmente prescrita origina nulidade, quando esta não seja a sanção legalmente prescrita na lei (artigo 220 do Código Civil) e esta neste último caso a inobservância do formalismo do dito n. 3 do artigo 410, que dá origem a uma anulabilidade atípica ou anómala, já que a forma foi ai estabelecida no estrito interesse do promitente-comprador e não por motivos de interesse público.
IV - A essa anulabilidade atípica não se pode aplicar o regime próprio das nulidades puras (artigo 286 do Código Civil), pelo que não é invocável por terceiros nem e susceptível de conhecimento oficioso pelo tribunal (artigo 287 do Código Civil).
V - O artigo 605 do Código Civil apenas tem em vista os actos nulos e já não os anuláveis nem os feridos da falada nulidade atípica do tipo sub-judice.
VI - O Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Novembro de 1989, não obsta a que se declare nulidade atípica a resultante da inobservância do formalismo do citado n. 3 do artigo 410.
VII - O promitente-comprador goza do direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato-promessa quando tenha havido tradição dessa coisa (n. 3 do artigo 442 do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n. 236/80, e, após o Decreto-Lei n. 389/86, alínea f) do n. 1 do artigo 755, do Código Civil), o qual prevalece sobre a hipoteca (artigo 759 n. 2 do Código Civil).
VIII - A sentença homologatória proferida em acção declarativa, posteriormente dada à execução, impõe-se aos reclamantes de créditos nesta execução, mau grado não terem sido partes naquela acção declarativa, por serem terceiros juridicamente indiferentes.
IX - No apenso de verificação e graduação de créditos, os credores reclamantes não podem impugnar o crédito exequendo, ao abrigo do artigo 866, ns. 3 e 4, do Código de Processo Civil, o qual tem de ser dado como certo, mas, mesmo que o pudessem fazer nos restritos limites defendidos por Lopes Cardoso (Manual da Acção Executiva
3. edição, 512 e 513), certo é que, se, de facto, o não impugnaram no prazo concedido pelo dito n. 3 do artigo 866, já não o podem fazer após a sentença de graduação de créditos, dado o princípio da preclusão que os obrigam a empregar todos os meios de defesa naquela fase processual.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 15 de Junho de 1984, A, celebrou com B - Apartamentos Turísticos,
Limitada, um contrato-promessa de compra e venda, pelo qual aquele prometeu comprar e esta vender um apartamento de um conjunto imobiliário urbano, mas a B não cumpriu tal contrato e por isso o
A e mulher C, ora recorridos, propuseram contra ela acção declarativa a pedir o cumprimento específico do contrato ou a receber o sinal dobrado, acção esta que terminou por transacção, em que a B se comprometeu, além do mais, a pagar a certa quantia ao A e mulher.
Porém, não tendo sido paga essa quantia, os ora recorridos instauraram contra a B execução de sentença, na qual foi penhorado o dito apartamento e, na fase devida, o Crédito Predial Português, ora recorrente, veio reclamar um crédito hipotecário sobre o mesmo apartamento, o qual, na respectiva sentença, veio a ser graduado em segundo lugar, antes do crédito exequendo.
Desta sentença de graduação de créditos recorreram o
A e mulher a pedir que o crédito exequente fosse graduado antes do crédito hipotecário do Crédito Predial Português e a Relação deu-lhes razão.
Foi, então, a vez de o Crédito Predial Português interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
I - O contrato-promessa invocado na acção declarativa, que deu origem à sentença exequenda em que o Crédito
Predial veio reclamar o seu crédito, carece da forma prescrita pelo artigo 410 n. 3 do Código Civil
(redacção do Decreto-Lei 236/80), pelo que é nulo
(nulidade absoluta), nos termos dos artigos 220 e 286 do Código Civil;
II - Tal nulidade, não mera anulabilidade, se bem que tenha um registo misto de arguição (o promitente vendedor não a pode arguir salvo se o promitente-comprador lhe tiver dado directamente causa)
é invocável a todo o tempo, pode ser arguida pelos credores de uma das partes (artigo 605 do Código Civil) e de conhecimento oficioso do Tribunal no domínio das relações das partes e de terceiros de boa fé (artigos
220, 286 e 410, já citados), e, não obstante, a Relação não conheceu desta matéria;
III - Ocorrendo tal nulidade, os recorridos, promitentes-compradores, não podem invocar a favor dos seus créditos direito de retenção, sendo meros credores comuns da executada;
IV - O caso julgado formado pela sentença homologatória da transacção na acção declarativa proposta pelos ora recorridos contra a Algarviz não se estende ao credor hipotecário desta B, por ser terceiro estranho a tal acção;
V - O Acórdão recorrido violou ainda os artigos 442, n. 3 e 759, n. 2 do Código Civil.
Terminou pedindo a revogação do Acórdão recorrido e a confirmação da sentença da primeira instância, de modo a que os créditos dele, recorrente, sejam graduados com preferência sobre o dos exequentes.
O recorrente juntou um extenso parecer do Professor
Antunes Varela.
Os recorridos contra-alegaram a rebater a argumentação do recorrente e concluiram que o contrato não é nulo, é só anulável pelos recorridos e não pela promitente-vendedora ou quaisquer terceiros e não é de conhecimento oficioso, além de se encontrar plenamente sanado; por outro lado, a sentença exequenda em nada afecta ou cerceia a consistência jurídica do recorrente, pelo que o caso julgado lhe é oponível, e o direito de retenção não foi criado por estipulação dos contraentes, resultando sim dos factos.
Termina pedindo se negue provimento ao recurso e juntou
10 documentos (o contrato-promessa de compra e venda, 1 sentença e 8 acórdãos por fotocópia).
Notificado da junção destes documentos, o recorrente veio dizer que o contrato-promessa ora junto e já formalizado só vem dar razão ao recorrente, na medida em que se reconhece a falta desses requisitos formais na data da celebração do contrato-promessa, pelo que este é nulo.
O Ministério Público limitou-se a "consignar que os interesses do Estado não se mostram afectados pelo objecto do recurso".
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
A matéria de facto provada é a seguinte:
1 - Em 15 de Junho de 1984, o recorrido A e a B celebraram um contrato-promessa através do qual aquele prometeu comprar e esta vender um apartamento de um conjunto imobiliário urbano (v. folhas 70), mas, no documento escrito que titula este contrato, não houve reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes nem certificação, pelo notário, da existência da licença respectiva de utilização ou de construção, se bem que aquele reconhecimento presencial acabasse por vir a ser feito em 30 de Março de 1988 (v. folhas 181/v);
2 - Em 10 de Julho de 1987, na acção ordinária 4088, da segunda secção do 1. Juízo Civil da Comarca de Lisboa proposta pelos ora recorridos contra a B, fez-se uma transacção (folhas 59 e 60 deste processo), cujas cláusulas, além de outras, foram as seguintes:
- é reconhecida a celebração do contrato-promessa junto por fotocópia (folhas 70 deste processo) referente ao mencionado apartamento;
- é reconhecida a dívida de B aos ora recorridos no montante de 3699642 escudos, com dobro do sinal entregue, a pagar no prazo de 10 dias, contados de 10 de Julho de 1987;
- é reconhecido que o falado apartamento foi entregue aos ora recorridos em consequência do dito contrato-promessa, reconhecendo a B aos recorridos o direito de retenção sobre ele até serem pagos da quantia acima referida.
- esta transacção foi homologada por sentença de 28 de
Julho de 1987, transitada em julgado;
- posteriormente, os ora recorridos instauraram contra a B execução para pagamento daquela quantia de 3699642 escudos;
- E foi por apenso a esta execução que o Crédito
Predial Português veio reclamar o crédito de 2930000 escudos, com hipoteca registada sobre o apartamento em causa, crédito este que, como já se disse a sentença da primeira instância graduado em segundo lugar, antes do crédito exequendo, graduado em terceiro lugar, mas que a Relação, ao decidir o recurso interposto, graduou ao inverso, isto é, em segundo lugar o crédito exequendo e em terceiro lugar o crédito reclamado pelo Crédito
Predial Português.
A primeira questão a resolver é a de averiguar se foram observados os requisitos formais do contrato-promessa.
Cabe, desde, logo dizer que nada adiantou aos recorridos o posterior reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes no contrato-promessa
(folhas 118 verso), porquanto é inadmissível a realização formal dos negócios jurídicos (Manuel
Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, ed. de 1953,
431; Rui Alarcão, B.M.J 89; 222).
De resto, sempre faltaria esse segundo requisito formal, que é a certificação, pelo notário, da existência da licença de utilização ou de construção do apartamento.
É, pois, indiscutível, a inobservância da forma legal do contrato-promessa, pois inexistem os dois requisitos exigidos no artigo 410, n. 3: o reconhecimento presencial das assinaturas dos promitentes e a aludida certificação notarial.
Outra questão é a de saber quais as consequências resultantes da inobservância do formalismo legal, designadamente sob o ponto de vista de o recorrente, neste processo, a poder invocar e de ser susceptível de conhecimento oficioso.
Antes de mais, importa frisar duas regras: uma segundo a qual as formalidades legais de qualquer declaração são, em princípio, formalidades ad substantiam e outra que determina que a inobservância da forma legal origina nulidade quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei, de harmonia com o preceituado no artigo 220 do Código Civil (Pires de
Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4. edição,
1. vol., 211; Meneses Cordeiro, B.M.J 306; 34; Castro
Mendes, Teoria Geral, 1979, III, 136).
Assim sendo, o que é preciso é analisar a lei, o regime jurídico legalmente estabelecido quanto à forma, para, depois, se poder qualificar o vício resultante da sua violação, e não extrair ilações dos conceitos de
"nulidade" e "anulabilidade".
Pois bem, o n. 3 do artigo 410 não fala em nulidade nem em anulabilidade, seja na versão do Decreto-Lei 379/86, de 11 de Novembro, seja na versão do Decreto-Lei
236/80, de 18 de Julho (este último é o aplicável, quanto ao formalismo do contrato-promessa, atentos os princípios da aplicação de lei no tempo do artigo 12 de
Código Civil).
No entanto, não deixa de nos dar uma segura indicação no sentido de que se não trata de uma nulidade pura, típica, ortodoxa, porquanto firma que a omissão dos requisitos formais não é invocável pelo promitente-vendedor, salvo no caso de ter sido o promitente-comprador que directamente lhe deu causa
(versão do Decreto-Lei 236/80), o que contraria o regime da nulidade estabelecida pelo artigo 286 do
Código Civil, segundo o qual um tal vício pode ser invocado por qualquer interessado.
Mas, para melhor alcançar o sentido do texto em causa, há que recorrer à ratio legis, ao fim e objectivos sociais da lei.
Embora adeptos da teoria objectivista - actualista na interpretação da lei, sem dúvida seguida pela grande maioria dos autores, não nos repugna o auxílio da mens legislatoris, desde que minimamente consagrado no texto da lei, e, neste caso, assim acontece.
Com efeito, de todo o arrazoado do preâmbulo do
Decreto-Lei 236/80 ressalta, com nitidez, que o legislador quis proteger os interesses do promitente-comprador, que estava a ser vítima de abusos propiciados pelo situar da inflação crescente e pelo passar da construção clandestina, circunstâncias estas que constituíram a occasio legis e que, ainda hoje, mais ou menos acentuadamente se mantêm.
O diploma em causa não teve, pois, qualquer intuito de protecção do interesse público, nem mesmo no tocante ao combate à construção clandestina. Esta finalidade teve-a, sim, o artigo 44; da Lei 46/85, de 20 de
Setembro, e, antes, o artigo 13 do Decreto-Lei 148/81, de 4 de Junho, os quais, na verdade, visaram, em nome do interesse público, combater a construção clandestina, no momento da celebração do contrato definitivo, exigindo um controlo notarial.
Mas se é assim e se, por outro lado, o regime das nulidades é determinado por motivos de interesse público (Manuel Andrade, ob. cit., 431; Mota Pinto,
Teria Geral do Direito Civil, edição de 1973, 699) segue-se que não estamos em presença de uma nulidade típica a que possa aplicar-se, em toda a linha, o regime do citado artigo 286 do Código Civil.
Trata-se é de uma invalidade mista, que os autores vêm preferindo designar por anulalibidade atípica ou anómala. E, porque estabelecida apenas no interesse de um dos contraentes, não é invocável por terceiros nem é susceptível de reconhecimento oficioso pelo tribunal, coisa que, de resto, nos não surpreende, uma vez que o artigo 285 do Código Civil admite que possa haver casos a que não se ajusta, em toda a sua inteireza, nem o regime próprio da nulidade nem o regime próprio da anulabilidade.
Em perfeita consonância com esta orientação, estão
Calvão da Silva (Sinal e contrato-promessa, 46 e seguintes e Galvão Teles, Direito das Obrigações, 6. edição, 102 e seguintes; e ac. do Supremo Tribunal da
Justiºa de 6 de Fevereiro de 1992, proferido no processo n. 81281, da 2. secção e o acórdão do S.T.J. de 10 de Outubro de 1989 proferido no processo n. 77869, citado por aquele, nenhum deles publicado).
Já Almeida Costa se mostra algo hesitante, se bem que propenda para a invocabilidade do vício por terceiros interessados e para o seu conhecimento oficioso pelo
Tribunal, ao menos quando o requisito formal faltoso foi o da certificação pelo notário, atento está em causa a protecção do interesse público; mas, como já supra se referiu, não foi, o Decreto-Lei 236/80 que teve o escopo de protecção do interesse público, pelo que se nos afigura não se justificar a hesitação deste ilustre jurista.
E Antunes Varela, quer no parecer junto quer nesse estudo (Sobre o contrato-promessa, 50 a 52) defende que a sanção para a inobservância da forma é a nulidade, que pode ser invocada a todo tempo por terceiros interessados (titulares de relações jurídicas afectado na sua consistência jurídica ou mesmo só económica) e ser decretada oficiosamente pelo tribunal, apenas a não podendo invocar o promitente-vendedor, muito embora, de jure constituto, critique esta solução decorrente da lei, na medida em que, tratando-se de "formalidades prescritas no restrito interesse do promitente-comprador do imóvel", se não justifica que a omissão deles pudesse ser invocada por terceiros interessados ou conhecida oficiosamente pelo tribunal.
Se bem entendemos, o insigne Professor parte da ideia de que a falta da forma legalmente prevista só não gera nulidade, quando outra seja a sanção especialmente prevista na lei (artigo 220 do Código Civil), coisa que, no caso do n. 3 do artigo 410, não acontece, já que apenas se refere à limitação para arguir o vício, pelo que a sanção correspondente é a nulidade.
Salvo o devido respeito, não podemos concordar.
Certo que, como o artigo 285 do Código Civil pressupõe, tanto a nulidade com a anulabilidade comportam modalidades típicas e atípicas, sendo as primeiras sujeitas ao regime-regra, quer da nulidade quer da anulabilidade (artigos 286 e seguintes do Código Civil) e sendo as últimas sujeitas a um regime especial, com características das duas figuras, como será o caso da nulidade não invocáveis por certas pessoas ou de anulabilidades invocáveis por qualquer interessado (Rui Alarcão, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1983, III, 616 e seguintes).
Mas, na hipótese das modalidades atípicas, o facto decisivo para se averiguar se estamos perante uma nulidade atípica ou uma anulabilidade atípica reside nos motivos determinantes da distinção entre nulidade e anulabilidade: o regime das nulidades é determinado por motivos de interesse público, é um regime dirigido a salvaguardar o interesse público ao passo que o regime das anulabilidades é determinado por motivos de interesse particular, é um regime destinado à tutela de interesses particulares (Manuel Andrade, loc. cit.; Mota Pinto, loc. cit.).
Mas, como já se demonstrou e o próprio Professor Antunes Varela reconhece, nos casos sub-judice, o formalismo foi estabelecido no exclusivo interesse do promitente-comprador e daí que a lógica aponte, na hipótese de inobservância do formalismo do n. 3 do artigo 410, para o regime das anulabilidades com a subsequente impossibilidade de invocação do vício por qualquer terceiro interessado e do seu conhecimento oficioso pelo tribunal (artigo 287 do Código Civil).
Contra a propugnada orientação poder-se-á ainda argumentar, como o faz o recorrente, com o disposto no artigo 605, n. 1 do Código Civil, segundo o qual os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor... mas sem êxito, dado que este texto tem apenas em vista os actos nulos e não os anuláveis nem os feridos de nulidade atípica, como resulta da história deste preceito e, o que mais importa, de sua letra e ratio (Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, 2. vol., 479 e 480; Almeida Costa, ob. cit., 711; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., 621), além de que se trata de norma de carácter geral, para a quantia geral das obrigações, e anterior à norma especial que é o n. 3 do artigo 410, pelo que deve ceder perante esta.
Objectar-se-á ainda que o Assento do S.T.J, de 29 de
Novembro de 1989 (Diário da República de 23 de
Fevereiro de 1991) contraria a dita orientação, na medida em que considera nulo o contrato-promessa bilateral de compra e venda de imóvel vasado em documento assinado apenas por um dos contraentes.
Mas não é assim.
Em primeiro lugar, o Assento reporta-se ao texto primitivo do n. 2 do artigo 410, portanto a um período anterior ao começo da vigência do Decreto-Lei 236/80, e, em segundo lugar, não esclarece se a nulidade é típica ou atípica, e, em terceiro lugar, não se debruçou propriamente sobre a questão da qualificação da invalidade, questão esta vagamente abordada na fundamentação, mas sim sobre a possibilidade de valer como contrato-promessa unilateral o contrato-promessa bilateral exarado em documento apenas assinado por um dos contraentes.
Face a todo o exposto, tem de concluir-se que o contrato-promessa controvertido, mau grado a inobservância da forma legal, continua válido e de pé.
Como válido é o direito de retenção sobre a coisa que é objecto do contrato-promessa de que goza o promitente-comprador, uma vez que houve tradição dessa coisa de acordo com o preceituado no n. 3 do artigo 442 do Código Civil, na redacção do citado Decreto-Lei
236/80, e, após o início da vigência do Decreto-Lei
379/86, de 11 de Novembro, na alínea f) do n. 1 do artigo 755 do mesmo Código.
Direito de retenção este que, nos termos do n. 2 do artigo 759 do Código Civil, prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente, como, de facto, foi, não obstante se conceder de bom grado que este preceito legal é passível de crítica, no plano da política legislativa, ao menos quanto às hipotecas anteriormente registadas. E nem se diga que pode levantar-se a questão da constitucionalidade dos artigos 755 n. 1 alínea f) e 759 n. 2, uma vez que a hipoteca em causa foi constituída após 18 de Julho de
1980, data da publicação do Decreto-Lei 236/80 (Meneses
Cordeiro Col. de Jurisprudência, XII, Tomo 2, 18).
Eis quanto basta para se poder concluir, com segurança que o recurso não merece provimento.
Mas, supondo que o recorrente podia invocar a inobservância da forma do contrato-promessa e que tal vício podia ser oficiosamente conhecido, ainda assim seria de negar a revista.
Estamos a entrar na questão de saber se a sentença homologatória da transacção constitui caso julgado material oponível ao reclamante Crédito Predial
Português, questão esta também ligada à eventual preclusão dos meios de defesa atribuídos aos reclamantes de créditos pelos ns. 3 e 4 do artigo 866 do Código de Processo Civil, no apenso de graduação de créditos.
Como se sabe, o princípio fundamental é o da eficácia relativa do caso julgado, isto é, a sentença só tem força de caso julgado entre as partes (artigo 498, n. 2 do Código de Processo Civil). Simplesmente, quanto aos não intervenientes na acção, também se tem entendido que a sentença transitada se impõem aos chamados terceiros juridicamente indiferentes (todos aqueles a quem a sentença não causa qualquer prejuízo jurídico, porque deixa intacta a consistência jurídica do seu direito, embora lhes possa causar prejuízo económico, por sair afectada a solvabilidade do devedor) mas já se não impõe aos chamados terceiros juridicamente interessados (todos aqueles a quem a sentença causa um prejuízo jurídico, invalidando a existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito, e não apenas determinando ou abalando a sua existência prática ou económica) (Manuel Andrade, Noções Elementares de
Processo Civil, edição de 1963, 288 e seguintes;
Antunes Varela, J. Miguel Bezerra Sampaio e Nora,
Manual de Processo Civil, segunda edição, 726 e seguintes).
Tudo muito claro em teoria, mas a dificuldade aparece quando se trata de enquadrar num dos dois grupos os casos da vida real.
Pois bem, no caso concreto, nós vemos no recorrente
Crédito Predial Português, e reclamante com hipoteca registada sobre o apartamento apenas um terceiro juridicamente indiferente, porém, não sem bastante hesitação.
Na verdade, com o reconhecimento do direito de retenção aos credores exequentes e a subsequente baixa de lugar na escala de graduação de créditos do Crédito Predial
Português, o direito deste não é afectado juridicamente, pois que o direito continua o mesmo com o mesmo conteúdo e a mesma quantia hipotecária.
É afectado, é certo, na prioridade da graduação por passar a ficar a seguir ao crédito dos exequentes, mas esta descida não representa um prejuízo de natureza jurídica, mas tão só, bem no fundo um prejuízo de ordem económica, na medida em que o património do devedor pode não chegar para se pagar.
Que assim é bem o demonstra o facto de, havendo bens suficientes no património do devedor, pode obter satisfação integral do seu crédito o que é sinal certo e seguro de que o seu direito, juridicamente, não foi afectado, antes se manteve igual, com o mesmo conteúdo jurídico, garantia hipotecária inclusivé - embora economicamente mais vulnerável - coisa que não aconteceria se tivesse sido destruído ou tão somente reduzido, por bem pouco que fosse na consistência jurídica que tinha antes do reconhecimento do direito de retenção aos exequentes-recorridos.
Importa lembrar que Manuel Andrade dá como exemplo de terceiros juridicamente indiferentes precisamente os
"credores relativamente às sentenças proferidas nos pleitos em que seja parte o seu devedor" (loc. cit,
288).
Parece-nos, pois, de concluir, sem grandes certezas repete-se, que a baixa de posição do crédito do Crédito
Predial Português na escala hierárquica da graduação dos créditos não se traduz num prejuízo jurídico mas sim e apenas num prejuízo económico.
Aliás, no presente caso, até pode vir a suceder que tal direito de crédito nem sequer economicamente venha a ser afectado, dado que, além do apartamento em causa, outros imóveis foram hipotecados (V. docs. juntos com a petição).
Nesta conformidade, entendemos poder concluir que se impõe ao Crédito Predial Português a sentença homologatória proferida na acção declarativa, pelo que não pode, agora, vir discutir o crédito dos exequentes e a respectiva garantia. Contra esta orientação estão o parecer junto e o cit. ac. de 6 de Fevereiro de 1992.
Concedendo, porém, por hipótese académica, que a dita sentença homologatória não era oponível ao recorrente, restaria ainda saber quando e onde este podia atacar o direito de Crédito dos recorridos e o respectivo direito de retenção.
Vejamos se o poderia ter feito no apenso de verificação e graduação de crédito e quando.
Alberto dos Reis, escutado na letra do artigo 866 do
Código de Processo Civil antes da reforma de 1961 e no respeito pelo caso julgado, defendia que o crédito do exequente não podia ser impugnado pelos reclamantes, opinião esta que, de facto, melhor se harmonizava com a letra deste artigo (Processo de Execução, vol. 2, 270 e
271).
Hoje, porém, a letra do artigo 866 n. 3 já não é a mesma e diz assim: Dentro do prazo concedido ao exequente, podem os restantes credores impugnar os créditos garantidos por bens sobre os quais também invocado também qualquer direito real de garantia.
Contudo, este preceito continua a oferecer dúvidas sobre se os credores reclamantes podem ou não impugnar o crédito exequendo quando garantido por bens sobre os quais também eles tenham invocado qualquer direito real de garantia.
Na verdade, enquanto Anselmo de Castro defende que os credores reclamantes não podem atacar o crédito exequendo, que se deve dar como certo (Acção Executiva,
269 e seguintes). Já Lopes Cardoso opina o contrário, pois entende que os credores reclamantes podem impugnar o crédito exequendo, muito embora, estando o crédito titulado por sentença, só possam fazê-lo pelos fundamentos mencionados nos artigos 813 e 814 do Código de Processo Civil (parte final do n. 4 do artigo 866) e ainda, quando o crédito está titulado por sentença homologatória de transacção, conciliação ou confissão, pelos fundamentos que podem servir de base à impugnação desses negócios, nos termos do artigo 301 do Código de
Processo Civil (Manual de Acção Executiva, 3. edição,
512 e 513; neste sentido o parecer junto e o cit. ac. de 6 de Fevereiro de 1992).
A razão parece estar do lado de Anselmo de Castro, mas para o fim aqui pretendido, não é necessário tomar partido na controvérsia.
Admitir-se-á como certa a orientação de Lopes Cardoso, que é a mais favorável à pretensão do recorrente, porém, sem adoptar, como este pretende, a interpretação da parte final do n. 4 do artigo 866, segundo a qual limitação da impugnação aos fundamentos dos artigos 813 e 814 só valeria quanto ao executado e não quanto aos credores reclamantes, dado que semelhante interpretação não tem o menor suporte nem na letra nem no espírito do texto legal em apreço.
Ora, aceite a orientação de Lopes Cardoso ou mesmo a do recorrente, como hipóteses académicas, o certo é que o
Crédito Predial Português nenhuma impugnação fez ao crédito exequendo, no prazo que lhe foi concedido pelo n. 3 do artigo 866. Assim, deixou passar, ao menos neste processo, o momento adequado para impugnar o crédito exequendo, pelo que, em nome do princípio da preclusão dos meios de defesa, lhe é vedado fazê-lo depois, após a sentença de graduação de créditos
(Manuel Andrade Noções Elementares de Processo Civil, edição de 1963, 135 e 354 e seguintes; Antunes Varela,
J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo
Civil, 2. edição, 310 e seguintes).
E não se diga em contrário, como acontece no parecer junto, que, não obstante o acabado de referir sempre o tribunal estava obrigado a conhecer da questão por a nulidade em causa ser do conhecimento oficioso.
Nós, porém, não pensamos assim, pois que, como acima consta, entendemos que a falta de forma legal do contrato-promessa originou uma anulabilidade atípica, que não é de conhecimento oficioso.
Importa ainda referir que o recorrente só levantou as questões (vício da falta de forma do contrato-promessa e impossibilidade da sentença homologatória da transacção) nas contra-alegações de recurso para o
Tribunal da Relação.
Mas, como é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal da Justiça, este só aprecia as questões decididas pelos tribunais inferiores que as partes hajam suscitado, salvo se forem de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 713 n. 2 referido ao artigo 660 n. 2, ambos do
Código de Processo Civil (acs. do S.T.J., B.M.J. 364,
849, 373, 462, 378, 728). Ora, não tendo as questões sido suscitadas pelas partes na 1. instância, a não ser nas faladas contra-alegações de recurso, parece que nem a Relação nem este Supremo podiam conhecer delas, ao menos da questão da inobservância da forma legal, dado o caso julgado ser de conhecimento oficioso.
Por tudo o exposto, nega-se a revista e confirma-se o douto acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 24 de Março de 1992.
Fernando Fabião,
César Marques: (com a declaração de que a sentença homologatória da transacção não constitui caso julgado em relação ao recorrente).
Ramiro Vidigal (com a mesma declaração).
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 5 de Dezembro de 1988 do 1. Juízo
Cível de Lisboa;
II - Acórdão de 6 de Dezembro de 1990 da Relação de
Lisboa.