Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2605/20.4T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO
Sumário : Não existe, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, despacho de aperfeiçoamento.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA, instaurou ação declarativa, com processo comum, contra Fidelidade Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €66 831,47, a título de danos patrimoniais, e crescida de juros desde a citação e, a quantia de €16 811,58, a título de danos não patrimoniais igualmente acrescida de juros de mora desde a citação.

Alegou, em síntese, que:

- ocorreu um acidente de viação, entre o motociclo por si conduzido e o veículo automóvel segurado na Ré, consistente no embate deste último na lateral do seu motociclo;

- circulavam ambos os veículo na mesma rua, Rua ..., no mesmo sentido de trânsito;

- o veículo automóvel encontrava-se parado, encostado na hemifaixa da direita, sem sinalização de mudança de direção e, quando o seu motociclo iniciou a manobra de mudança à esquerda, devidamente sinalizada, foi embatido na lateral pelo automóvel segurado na Ré que inadvertidamente mudou de direção também para a esquerda;

- em consequência do embate, foi projetado ao solo, sofrendo lesões corporais, que descreve, sendo transportado ao hospital;

- teve alta hospitalar no mesmo dia mas, porque as dores se intensificaram, foi ao Hospital da ... onde lhe foram diagnosticadas fraturas, que descreve; foi submetido a fisioterapia; ficou incapacitado de exercer a sua atividade até 30/04/2019;

- ficou a padecer de uma acentuada redução de mobilidade, não inferior a 30%; continua a ter dores;

- tem de fazer esforços acrescidos para efetuar as suas tarefas diárias; esteve sem poder realizar atividade paralela como executante de guitarra até à data da alta, o que lhe acarretou prejuízo que quantifica;

- despendeu valores em tratamentos e medicamentos, que indica;

- pela reparação do motociclo despendeu €2 853,23 e de adquirir um capacete novo;

- pelo dano biológico requer a indemnização de €20 468,70; a título de dano patrimonial futuro tem direito a quantia não inferior a €34 960,16; requer indemnização por dano estético pela quantia de €5 745,60 e, pelas dores sofridas a quantia de €5 335,20.

2. Citada, a Ré veio contestar, impugnando:

- a versão do acidente dada pelo Autor e afirma que a responsabilidade exclusiva do embate dos veículos se deveu a culpa do Autor, dado que o condutor do veículo automóvel, que circulava na rua ..., ao pretender mudar de direção à esquerda, reduziu a velocidade, aproximou-se do eixo da via, sinalizou a manobra de mudança de direção, verificou que nenhum veículo circulava na via onde pretendia entrar nem vislumbrou que qualquer veículo o pretendesse ultrapassar e, ao iniciar a manobra foi embatido pelo motociclo.

- os danos alegados pelo autor.

3. Dispensada a audiência prévia foi elaborado despacho saneador, indicado o objeto do litígio, fixaram-se logo factos considerados assente e os temas da prova.

4. Foi realizada perícia médico-legal.

5.Veio a ser proferida sentença, sendo o dispositivo do seguinte teor:

“Termos em que se julga a acção improcedente e em consequência:

a) Se absolve a R. do pedido.

b) Se condena o A. no pagamento das custas”.

6. Não se conformando com a sentença, o Autor interpôs recurso de apelação.

7. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a proferir Acórdão, com um voto de vencido, decidindo: “Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso totalmente improcedente e, em consequência, mantém a sentença sob impugnação

Custas no recurso, pelo apelante, na vertente de custas de parte (as custas na vertente de taxas de justiça mostram-se previamente satisfeitas e não foram praticados actos, na instância de recurso, que impliquem tributação como encargos).”

8. Novamente inconformado, o Autor veio interpor recurso de revista, dita normal e, subsidiariamente, revista excecional (tendo o recurso de revista sido admitido), formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1) I – Do itinerário processual: o Autor/Recorrente instaurou a presente ação declarativa contra a Ré, a Ré/Recorrida contestou, realizou-se a perícia médico-legal, foi proferida a Sentença absolutória da Ré/Recorrida, o Autor/Recorrente apelou, impugnando não só a decisão da matéria de facto (com indicação das passagens da gravação da audiência), como também a decisão da matéria de direito, tendo sido proferido o Acórdão recorrido que julgou improcedente a Apelação;

2) II – Da Revista Normal, a título principal:

II A – Da admissibilidade do Recurso de Revista Normal :o presente Recurso de Revista Normal é admissível pois foi lavrado voto de vencido e uma vez que o Autor/Recorrente reage contra o não uso ou uso deficiente dos poderes da Relação sobre a matéria de facto, inexistindo dupla conforme;

3) IIB – Da identificação das questões suscitadas:

IIB.1 – Da alteração do ponto 9 dos factos provados: A 1.ª instância julgar como provado o ponto de facto n.º 9 supratranscrito, entendimento confirmado pela Relação, não obstante o Autor/Recorrente ter apelado no sentido de tal ponto dever ser dado como não provado, invocando o depoimento da testemunha BB (que referiu que não viu o condutor do veículo automóvel segurado pela Ré a fazer o sinal luminoso [pisca] para mudar de direção à esquerda) e também as suas declarações de parte;

4) Não se poderia ter dado como provada a conduta do condutor do veículo segurado pela Ré/Recorrida tal como está provada no ponto 9 dos factos provados, em face da globalidade da prova produzida, pois:

a. A fundamentação apresentada pela 1.ª instância é tão insuficiente que nunca deveria ter levado a 2.ª instância a considerar improcedente a impugnação da matéria de facto realizada;

b. As declarações do Autor/Recorrente também se afiguram coerentes e objetivas, pois este declarou, clara e seguramente, que o condutor do automóvel segurado pela Ré/Recorrida não fez pisca e, por isso, avançou com a sua manobra de mudança de direção à esquerda, tendo sido surpreendido pela manobra do condutor do automóvel segurado pela Ré/Recorrida, que também virou à esquerda e o embateu, não existindo razões para se dar mais crédito ao relato do condutor do veículo segurado pela Ré/Recorrida do que ao relato do Autor/Recorrente;

c. Em lado algum, se referiu às declarações prestadas pelo Autor/Recorrente, as quais não poderão ser desconsideradas, sob pena de violação do direito constitucional à prova consagrado no artigo 20.º CRP e sob pena de interpretação inconstitucional do artigo 466.º, n.º 3 CPC;

d. Apesar do condutor do veículo segurado pela Ré/Recorrida atuar processualmente na qualidade de testemunha, este tem um evidente interesse na versão do acidente que contou, pois foi um dos seus intervenientes;

e. Foi clara e coerente a prova testemunhal produzida pelo Autor/Recorrente, designadamente no que diz respeito às declarações da testemunha BB, o qual não viu o pisca do automóvel segurado pela Ré/Recorrida, tendo, antes, visto, isso sim, o pisca da moto do Autor/Recorrente;

f. Dizer que essa testemunha do Autor/Recorrente (BB) não se apercebeu de tal sinalização de manobra (pisca), é dar, erradamente à partida, como assente que tal sinalização (o pisca) foi acionada, o que constitui uma inversão do raciocínio que deve ser feito;

g. Se o embate ocorreu entre a lateral esquerda do veículo segurado pela Ré/Recorrida e a lateral direita da moto do Autor/Recorrente, então o embate não pode, de forma nenhuma, ter ocorrido quando o veículo automóvel segurado pela Ré/Recorrida já se encontrava a fazer a manobra de viragem à esquerda, pois, nesse caso, o embate, no que respeita à moto do Autor/Recorrente, teria sido com a parte da frente e não na lateral direita, como ocorreu;

h. O Autor/Recorrente, à data do acidente, tinha 65 (sessenta e cinco) anos de idade, era militar reformado, não sendo credível, em especial pela sua idade, que fosse um “acelera” que andasse em competições estradais à procura de fazer a manobra de mudança de direção antes do veículo que estava à sua frente, sabendo à partida que esse veículo também ia fazer essa manobra;

i. Resulta do depoimento do condutor do veículo segurado pela Ré/Recorrida, este morava a cerca de 100 metros do local do acidente, fazendo diariamente aquele percurso, circunstância que, geralmente, conduz ao aligeiramento dos cuidados com as manobras, maxime quanto à sinalização das mesmas;

5) Tal alteração da matéria de facto terá consequências quanto à matéria de direito, pois daí resulta a responsabilidade pelo risco, nos termos do artigo 506.º do Código Civil, devendo o presente Recurso de Revista ser julgado procedente, por via da repartição do risco, sendo, assim, fundamento do recurso o erro na fixação dos factos materiais da causa, que constitui matéria de direito por resultar da violação das regras de processo sobre a modificabilidade das decisões em matéria factual (cf. artigo 662.º do CPC) e das regras de direito probatório material (mormente as constantes dos artigos 349.º, 351.º do CC e artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC) e também o erro na interpretação e aplicação das regras substantivas de repartição de responsabilidade em matéria de colisão de veículos (cf. artigos 483.º, 487.º, 505.º e 506.º do CC);

6) IIB.2 – Da alteração dos pontos 44, 45, 46, 48, 50, 66 e 67 dos factos não provados: A 1.ª instância decidiu julgar como não provados os pontos 44, 45, 46, 48, 50, 66 e 67, tendo o Recorrente apelado no sentido de deverem ser dados como provados tais pontos, invocando o depoimento da testemunha BB , a participação da GNR e documentos juntos, como o croqui e também as suas declarações de parte, ficando demonstrado que o veículo segurado pela Ré/Recorrida, quando iniciou, sem acionar o sinal luminoso (pisca), a manobra de mudança de direção, não se encontrava no eixo da via, ao contrário do que sucedeu com a moto do Autor/Recorrente, a qual, não obstante ter sinalizado a sua mudança de direção e inclusive ter apitado, foi embatida quando se encontrava totalmente na hemifaixa de rodagem da esquerda e a iniciar a marcha na Rua ... daí que o embate tenha sido na traseira da lateral esquerda da moto do Autor/Recorrente;

7) O Autor/Recorrente, cumprindo os ónus que o oneravam nos termos do artigo 640.º CPC, e inclusivamente indicando com exatidão as passagens da gravação da audiência em que se fundou o seu recurso, requereu a revisão da matéria dos factos em causa, pedindo que fossem julgados como provados os até então pontos julgados como não provados com os n.ºs 44, 45, 46, 48, 50, 66 e 67, nos termos invocados e expressos nas suas Alegações de Recurso e que aqui se dão por integralmente por reproduzidos para os devidos efeitos legais (pp. 20-36 das Alegações do Recurso de Apelação), tendo a Ré/Recorrida exercido o contraditório;

8) A 2.ª instância não deu cumprimento ao dever de proferir Despacho de convite ao aperfeiçoamento quanto ao recurso da matéria de facto, sendo clara a lei processual ao impor o cumprimento do mesmo, nos termos a que obriga o artigo 639.º, n.º 3 CPC, aplicável por força do artigo 652.º, n.º 1, alínea a) CPC, de acordo com o dever previsto no artigo 590.º CPC, designadamente nos seus n.ºs 3 e 4 e à luz do princípio da tutela jurisdicional efetiva e da promoção do acesso à justiça, ambos consagrados no artigo 20.º, n.º 1 da CRP;

9) A Relação decidiu incorretamente ao concluir pela rejeição imediata da apreciação da impugnação da matéria de facto sub judice, e ao decidir não usar dos seus poderes-deveres sobre a matéria de facto, pois deveria ter emitido Despacho de aperfeiçoamento quanto ao recurso da matéria de facto não provada, dado o princípio geral do aproveitamento dos atos processuais (previsto, designadamente, no artigo 614.º CPC em matéria de correção de inexatidões e lapsos constantes de sentenças e despachos, mas aplicável aos atos das partes), o princípio da prevalência do fundo sobre a forma, o princípio da cooperação (previsto no artigo 7.º CPC), o princípio da proporcionalidade e adequação e o princípio da promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (artigos 6.º, n.ºs 1 e 2 e 411.º do CPC);

10) A lei processual civil só prevê a “imediata rejeição” no artigo 640.º, n.º 2, al. a) CPC, ou seja, quando o Recorrente não indica com exatidão as passagens da gravação da audiência em que funda o seu recurso, o que não sucedeu, logo, a cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b) e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria da alínea b), do nº 2, do artigo 640º, do CPC, a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso», não funciona, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o Recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação;

11) III – Da Revista Excecional, a título subsidiário: IIA – Da identificação da questão suscitada: a título subsidiário apresenta-se o presente Recurso de Revista Excecional, nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alínea c) do CPC, prendendo-se a questão jurídica em causa com a (in)existência do poder-dever de proferir Despacho de aperfeiçoamento quanto ao Recurso da matéria de facto;

12) IIB – Da admissibilidade da Revista Excecional, em virtude de Acórdão em contradição com outro já transitado em julgado: O Exmo. Sr. Relator do Tribunal da Relação deveria ter emitido Despacho de aperfeiçoamento quanto ao recurso da matéria de facto não provada, dado o princípio geral do aproveitamento dos atos processuais (previsto, designadamente, no artigo 614.º CPC em matéria de correção de inexatidões e lapsos constantes de sentenças e despachos, mas aplicável aos atos das partes), o princípio da prevalência do fundo sobre a forma, o princípio da cooperação (previsto no artigo 7.º CPC) , o princípio da proporcionalidade e adequação e o princípio da promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (artigos 6.º, n.ºs 1 e 2 e 411.º do CPC);

13)Sucede que a Relação, no Acórdão recorrido, proferiu um entendimento divergente e frontalmente contraditório com a doutrina e jurisprudência ora invocadas, rejeitando imediatamente a impugnação da matéria de facto realizada pelo Autor/Recorrente, interpretação normativa ilegal e inconstitucional, desde logo pelo facto de a lei processual civil só prever a “imediata rejeição” no artigo 640.º, n.º 2, al. a) CPC, ou seja, quando o Recorrente não indica com exatidão as passagens da gravação da audiência em que funda o seu recurso, o que não sucedeu;

14)O artigo 640.º, n.ºs 1 e 2 do CPC estabelece que, no âmbito da impugnação sobre a matéria de facto, enquanto que “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”, devem ser, obrigatoriamente, especificados pelo Recorrente, sob pena de rejeição, já quanto aos meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que tenham sido gravados, incumbe ao Recorrente indicar, com exatidão, as passagens da gravação em que se funda o seu Recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, sob pena de imediata rejeição do recurso, logo, a cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b) e c) do nº 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria da alínea b), do nº 2, do artigo 640º, do CPC, a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso», não funciona, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o Recorrente, desde logo, a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação;

15) A correta leitura da lei implica a concessão de idêntico entendimento, em relação à previsão legal do convite ao aperfeiçoamento, quanto à matéria de facto e à matéria de direito, na decorrência do preceito geral comum, contido no n.º 1, do artigo 639.º CPC, não obstante inexistir uma disposição legal específica sobre a impugnação da decisão quanto à matéria de facto, onde, textualmente, se consagre a possibilidade da prolação do despacho de aperfeiçoamento, pois, faltando aquelas especificações quanto aos factos e aos meios probatórios, as conclusões revelam-se deficientes, o que confere cobertura legal ao sobredito convite de aperfeiçoamento, ainda com base no preceituado pelo artigo 639.º, n.º 3, 1.ª parte, uma vez que, então, as conclusões são deficientes, considerando o princípio da promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, a que se reportam o artigos 6.º, n.ºs 1 e 2 e 411.º do CPC;

16) Apenas a falta da indicação dos concretos pontos de facto na impugnação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida, ou sobre o sentido da decisão que defende, ou a indicação das normas jurídicas violadas, o sentido em que as mesmas deveriam ser interpretadas e aplicadas ou, em caso de erro, a norma jurídica que deveria ser aplicável, atento o estipulado pelos artigos 640.º, n.ºs 1 e 2 e 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPC, a rejeição do recurso só pode ser determinada, após prévio convite inconclusivo quanto ao aperfeiçoamento das alegações, exceto se o Tribunal «ad quem» e a parte contrária conseguem apreender as questões suscitadas pelo recorrente;

17) O Autor/Recorrente tem conhecimento de vários Acórdãos proferidos, os quais, sobre a mesma questão fundamental de direito acima identificada, decidiram de forma inversa e oposta ao decidido no acórdão recorrido, nomeadamente o Acórdão do STJ, de 26.05.2015, Processo n.º 1426/08.7TCSNT.L1.S1, o Acórdão do STJ, de 14.03.2006, Coletânea da Jurisprudência, tomo I, p. 124 e o Acórdão do STJ, de 01.10.1998, BMJ 480º/348, porém, na impossibilidade legal de se poder invocar os vários Acórdãos, nomeadamente os acima referidos, como Acórdão fundamento, sempre se opta por invocar somente o Acórdão do STJ, de 26.05.2015, proferido no âmbito do Processo n.º 1426/08.7TCSNT.L1.S1, cuja argumentação e posição ficou já devidamente explana, porque transcrita, e o qual, desde já e para os efeitos do presente Recurso de Revista Excecional, se junta como doc. n.º 1;

18) Confrontando o Acórdão recorrido com o Acórdão que serve fundamento ao presente recurso, referentes à questão fundamental de direito supra identificada, verificamos que, sobre a mesma matéria, se encontram em oposição direta quanto à interpretação de várias normas, nomeadamente o artigo 639.º, n.º 3 do CPC, do artigo 640.º CPC e do artigo 674.º, n.º 3 do CPC e, salvo melhor opinião, o Autor/Recorrente defende a ideia vertida no Acórdão fundamento ora junto, sendo firme e séria a sua convicção de que a posição correta e mais consentânea com a Lei é a do aqui Acórdão fundamento;

19)IV – Das nulidades do Acórdão recorrido: no Acórdão recorrido não se procedeu a uma correta interpretação dos elementos constantes dos autos, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como se efetuou uma incorreta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto, nomeadamente as supra expostas, sofrendo o Acórdão recorrido de nulidade por violação do disposto nas al. c) e d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, nulidade que aqui se invoca, com todos os efeitos legais;

20) Pela Relação não foi prolatado o Despacho de aperfeiçoamento nos termos do artigo 639.º, n.º 3 CPC, fundamentando-se, ainda, a presente Revista na invocação das nulidades previstas nos artigos 615.º e 666.º CPC (artigo 674.º 1, c) CPC);

21) No Acórdão recorrido não se fundamentou de facto e de direito a sua decisão e a Lei proíbe tal comportamento, violando-se, no Acórdão recorrido, o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 615.º do CPC, uma vez que não apreciou a totalidade das questões como o deveria ter feito, sendo por esse facto nula, tanto mais, que o direito do Recorrente é um direito legal e constitucional;

22)O Acórdão sob recurso violou:

a. O disposto nos artigos 349.º, 351.º, 483.º, 487.º, 505.º, 506.º CC;

b. O disposto nos artigos 154.º, 195.º, 466.º, n.º 3, 590.º, 607.º, n.ºs 4 e 5, 615.º, 639.º, 640.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 652.º, n.º 1, alínea c), 666.º, 662.º, 674.º, n.ºs 1 e 3, 682.º, n.º 2 do CPC;

c. O disposto nos artigos 13.º, 20.º, 202.º, 204.º e 205.º da CRP;

d. O direito fundamental da prova;

e. O princípio da tutela jurisdicional efetiva e da promoção do acesso à justiça:

f. O princípio do aproveitamento dos atos processuais (artigo 614.º CPC); g. O princípio da prevalência do fundo sobre a forma;

h. O princípio da cooperação (artigo 7.º CPC);

i. O princípio da proporcionalidade e adequação;

j. O princípio da promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (artigos 6.º e 411.º CPC).”

9. A Ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

10. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo A. / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- as nulidades do Acórdão;

- a apreciação da matéria de facto e a rejeição parcial da impugnação da matéria de facto por não cumprimento dos ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil.

III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1. No dia ....10.2018, pelas 17H 21M, na Rua ..., junto ao entroncamento com a Rua ..., freguesia de ..., ocorreu um embate entre o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de matrícula ..-QC-.. e o motociclo de matrícula ..-VJ-...

1.2. O veículo de matrícula ..-QC-.. pertence a CC e era por si conduzido e o motociclo de matrícula ..-VJ-.. pertence ao A. e era por si conduzido.

1.3. No local a estrada é uma recta com dois sentidos de trânsito, sem linha delimitadora das hemifaixas de rodagem.

1.4. A estrada tem uma faixa de rodagem com 5,60m de largura, com bermas de ambos os lados.

1.5. O pavimento de tipo betuminoso apresentava-se seco e limpo.

1.6. Estava bom tempo e existia boa visibilidade.

1.7. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-QC-.. encontrava-se, à data do sinistro, transferida para a R. através da apólice nº....89.

1.8. A colisão deu-se entre frente lateral esquerda do automóvel de matrícula ..-QC-.. e a parte lateral direita do motociclo de matrícula ..-VJ-...

1.9. Na ocasião referida em 1) o veículo de matrícula ..-QC-.. transitava na Rua do ... e ao aproximar-se do entroncamento com a R. ..., localizado à esquerda da R. ... atento o seu sentido de marcha, o seu condutor reduziu a velocidade, aproximou-se do eixo da via, verificou que não vinha trânsito de frente, nem da rua onde pretendia entrar, e iniciou manobra de mudança de direcção à esquerda, que assinalou accionando o pisca da esquerda.

1.10. Na mesma altura o A. transitava na Rua do ..., no mesmo sentido de trânsito do veículo de matrícula ..-QC-.. e a uma velocidade superior à dele.

1.11. Ao aproximar-se do entroncamento entre as ruas do ... e ..., onde pretendia ingressar, o A. alcançou o veículo de matrícula ..-QC-.., aproximou-se do eixo da via, e lateralmente àquele iniciou manobra de mudança de direcção à esquerda.

1.12. A colisão dita em 1) ocorreu na hemi-faixa de rodagem da Rua ... destinada ao sentido de trânsito oposto àquele em que transitavam os veículos de matrícula ..-QC-.. e ..-VJ-.., no momento em que ambos os veículos mudavam de direcção à esquerda.

1.13. O veículo de matrícula ..-QC-.. tinha a parte da frente no lado esquerdo da via, considerando o seu sentido de marcha, quando ocorreu o embate.

1.14. Na sequência do embate o A. e o motociclo que conduzia foram projectados, indo cair, imobilizados, fora da faixa de rodagem, no passeio direito da Rua ..., considerando a proveniência dos veículos.

1.15. Após o sinistro o A. foi assistido na urgência do Hospital de ... onde lhe foi diagnosticada escoriação do membro superior direito e contusão da anca e realizou RX ao tórax, grelha costal, coluna dorsal, lombar e lombo-sagrada, bacia e ombro esquerdo.

1.16. No Hospital de ...o A. fez analgesia e desinfecção de feridas.

1.17. O A. teve alta no próprio dia, medicado com analgésicos.

1.18. Em 8.10.2018, por ter dores, o A. dirigiu-se à urgência do Hospital das ....

1.19. Em 29.102018 o A. fez no Hospital da ..., em O..., Rx à coluna lombar e à bacia.

1.20. Em 22.11.2018, no mesmo hospital, o A. fez uma TAC que revelou: fractura cominutiva, com vários traços, no ramo ilio-púbico esquerdo, envolvendo pilar anterior do acetábulo, com extensão intra-articular e com ligeira separação de fragmentos, não consolidada. Fractura transversal do ramo isquio-púbico esquerdo, alinhada e com formação de discreto calo ósseo. Fracturas verticais sagradas envolvendo o corpo e a asa esquerda e estendendo-se aos buracos foraminais sagrados à esquerda, com ligeira separação e desalinhamento das vertentes ósseas destes. Calcificação com cerca de 6mm na inserção distal do glúteo médio à esquerda.

1.21. O A. foi assistido no Hospital das ..., onde fez tratamento médico associado a tratamento de fisiatria.

1.22. Em razão das lesões que sofreu o A. ficou portador de limitação da flexão da coluna lombar a 90º; cicatriz na região lombar direita, horizontalizada, vestigial, com cerca de 15cm; hipoestesias na região inguinal esquerda, dores na bacia e dor na rotação anterior do ombro.

1.23. A data de consolidação das lesões sofridas pelo A. é fixável em 29.4.2019.

1.24. Em razão das sequelas de que ficou portador o A. está afectado de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4,94 pontos.

1.25. O A. tem dificuldade em estar sentado ou em pé longos períodos.

1.26. O A. teve um período de 15 dias de défice funcional temporário total, entre 3.10.2018 e 17.10.2018.

1.27. O A. teve um período de 194 dias de défice funcional temporário parcial, entre 18.10.2018 e 29.4.2019.

1.28. O quantum doloris do A. é fixável num grau 4 de 7.

1.29. Autor antes do acidente não tinha problemas de mobilidade.

1.30. O Autor é militar reformado.

1.31. O A. toca guitarra portuguesa, actividade de que tira prazer e lhe proporciona momentos de convívio, designadamente em colectividades onde toca.

1.32. Após o sinistro o A., por dificuldade em permanecer sentado longos períodos e em razão de dores, tem de fazer interrupções quando toca guitarra.

1.33. Em 15.10.2018 o A. adquiriu um elevador de sanita no valor de € 37,90.

1.34. Após 3.10.2018 o A. despendeu em analgésicos e anti-inflamatórios, 1 par de joalheiras elásticas e 1 par de canadianas € 150.

1.35. Em consequência do sinistro o motociclo de matrícula ..-VJ-.. sofreu estragos.

1.36. O A. despendeu a quantia de € 2 853,23 com a reparação do motociclo.

1.37. O A. teve dores em razão das lesões que sofreu e dos tratamentos fisiátricos que realizou.

1.38. O A. nasceu a 27.3.1953.

1.39. À data do acidente o A. auferia uma pensão no valor mensal de € 1 697,80.

1.40. O Autor é casado com DD.

1.41. À data do sinistro a cônjuge do A. recebia por mês uma pensão no valor de €1 371,62.

2. E foram julgados como não provados os seguintes factos:

2.42. Que, quando o veículo de matrícula ..-VJ-.. se aproximou do entroncamento com a Rua ..., o veículo de matrícula ..-QC-.. se encontrasse parado junto à berma, a ocupar a hemi-faixa de rodagem mais à direita da via, a menos de 5m do entroncamento.

2.43. Que ao constatar a situação referida em 42) o A. tenha abrandado e apitado, colocando-se ao meio da faixa de rodagem.

2.44. Que quando o A. se encontrava a par do veículo de matrícula..-QC-.. este tenha iniciado a marcha e simultaneamente a manobra de mudança de direcção à esquerda a fim de virar para a Rua ....

2.45. Que o A. circulasse a cerca de 40Km/h.

2.46. Que o veículo de matrícula ..-QC-.. não tenha accionado o sinal luminoso de mudança de direcção à esquerda.

2.47. Que a colisão tenha ocorrido a meio da hemi-faixa de rodagem por onde o A. transitava.

2.48. Que em consequência do sinistro o A. tenha sofrido lesões no cotovelo esquerdo e joelho direito.

2.49. Que, em razão das lesões que sofreu em decorrência do sinistro, o A. tenha ficado portador de alterações degenerativas em L4-L5 e L5-S1 e na margem interior das sacro-ilíacas; entesopatia com componente calcificante dos tendões glúteos e no grande trocânter à esquerda e nas asas dos ilíacos; entesopatia com componente calcificante da inserção proximal da epitróclea, menos evidente no epicôndilo umeral externo; volumosos ossículos na topografia do trajecto trícipe braquial/bursa retroolecraniana, com irregularidade do olecrânio propriamente dito; derrame articular; discreta diminuição da entrelinha articular femuro-tibial no compartimento interno do joelho direito; esclerose sucondral; agudização das espinhas tibiais; gonartrose; e osteofitose patelar.

2.50. Que as lesões que o A. sofreu em consequência do acidente se encontrem consolidadas desde 30.4.2019.

2.51. Que em razão das lesões que sofreu o A. esteja afectado de uma acentuada redução da mobilidade e de uma incapacidade parcial permanente não inferior a 30%.

2.52. Que antes do sinistro o A. corresse todos os dias ao longo do paredão entre O... e C..., andasse regularmente de bicicleta e jogasse futebol com os amigos.

2.53. Que actualmente, por causa das sequelas de que padece, o A. não possa correr, nem andar de bicicleta ou jogar futebol.

2.54. Que o A. não consiga flectir totalmente o joelho direito e que tenha ficado com os movimentos das pernas limitados.

2.55. Que o A. tenha muita dificuldade em movimentar-se, só o fazendo a passo ligeiro.

2.56. Que o A. não se sinta nunca bem por causa das dores que continua a ter na zona do coxis, do joelho e do cotovelo.

2.57. Que o A. não consiga andar de bicicleta, quer por não conseguir flectir totalmente o joelho, quer por não suportar o selim da bicicleta.

2.58. Que em razão das sequelas de que ficou portador o A. tenha dificuldade em andar, vestir-se, calçar-se e tomar banho, tarefas que actualmente lhe exigem um esforço acrescido.

2.59. Que em razão das sequelas de que ficou portador o A. tenha dificuldade em tocar guitarra portuguesa.

2.60. Que o A. retirasse proveitos económicos como instrumentista de guitarra portuguesa e que sinta orgulho pelo reconhecimento social associado a tal actividade.

2.61. Que as dores que o A. sente se agravem com a mudança de temperatura.

2.62. Que fosse costume o A. tocar guitarra portuguesa no restaurante típico S... em ..., onde ganhava €60 por noite (programa), numa média de 4 noites por semana, num total de €960 por mês

2.63. Que aos fins de semana, cerca de 2 vezes por mês, o A. tocasse guitarra em espectáculos organizados por colectividades, juntas de freguesia e câmaras municipais, auferindo €100 por cada participação.

2.64. Que em razão da sua actividade musical, em média por mês, o A. retirasse €1 160.

2.65. Que entre 4.10.2018 e 30.4.2019 o A. tenha estado impossibilitado de participar nos referidos programas e espectáculos de fado, não tendo por isso auferido €7 932,49.

2.66. Que a aquisição das joelheiras elásticas, canadianas e elevador de sanita referida em 33) e 34) seja consequência directa das lesões sofridas pelo A.

2.67. Que em consequência do sinistro tenha ficado totalmente danificado o capacete que o A. utilizava.

2.68. Que com a aquisição de um capacete novo para substituir o danificado o A. tenha despendido a quantia de €428,99.

2.69. Que o dano estético de que o A. ficou afectado seja avaliável em 5 pontos.

2.70. Que o A. tenha sido sujeito a intervenção cirúrgica em razão das lesões que sofreu, padecendo por isso dores.

2.71. Que após a alta hospitalar tenha tido de andar em cadeira de rodas e depois com muletas.

2.72. Que o condutor do veículo de matrícula ..-QC-.. tenha olhado para a esquerda através dos espelhos retrovisores.

2.73. Que o veículo de matrícula ..-VJ-.. circulasse a velocidade superior a 50Km/h.

3. Das nulidades do Acórdão

O Autor/Recorrente veio arguir a nulidade do Acórdão recorrido, referindo expressamente: “IV – Das nulidades do Acórdão recorrido: no Acórdão recorrido não se procedeu a uma correta interpretação dos elementos constantes dos autos, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como se efetuou uma incorreta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto, nomeadamente as supra expostas, sofrendo o Acórdão recorrido de nulidade por violação do disposto nas al. c) e d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, nulidade que aqui se invoca, com todos os efeitos legais;

20) Pela Relação não foi prolatado o Despacho de aperfeiçoamento nos termos do artigo 639.º, n.º 3 CPC, fundamentando-se, ainda, a presente Revista na invocação das nulidades previstas nos artigos 615.º e 666.º CPC (artigo 674.º 1, c) CPC);

21) No Acórdão recorrido não se fundamentou de facto e de direito a sua decisão e a Lei proíbe tal comportamento, violando-se, no Acórdão recorrido, o disposto nas alíneas b), c) e d) do artigo 615.º do CPC, uma vez que não apreciou a totalidade das questões como o deveria ter feito, sendo por esse facto nula, tanto mais, que o direito do Recorrente é um direito legal e constitucional”.

Convoca (pelo menos invocando as disposições legais), assim, o Recorrente as nulidades previstas nas alíneas b), c) e d) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

3.1. Enquadramento preliminar

A violação das normas processuais que disciplinam, em geral e em particular (artigos 607.º a 609.º do Código de Processo Civil), a elaboração da sentença - do acórdão - (por força do n.º 2 do artigo 663.º e 679.º), enquanto ato processual que é, consubstancia vício formal ou error in procedendo e pode importar, designadamente, alguma das nulidades típicas previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (aplicáveis aos acórdãos ex vi n.º 1 do artigo 666.º e artigo 679.º do Código de Processo Civil).

De harmonia com o disposto no artigo 608.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o juiz na sentença – Acórdão, por força do disposto no n.º2 do artigo 663.º do Código de Processo Civil - deve conhecer, em primeiro lugar, de todas as questões processuais (suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, e não se encontrem precludidas) que determinem a absolvição do réu da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.

Seguidamente, devem ser conhecidas as questões de mérito (pretensão ou pretensões do autor, pretensão reconvencional, pretensão do terceiro oponente e exceções perentórias), só podendo ocupar-se das questões que forem suscitadas pelas partes ou daquelas cujo conhecimento oficioso a lei permite ou impõe (como no caso das denominadas exceções impróprias), salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras questões, de acordo com o preceituado no n.º 2 do mesmo artigo 608.º.

Nesta linha, constituem questões, por exemplo, cada uma das causas de pedir múltiplas que servem de fundamento a uma mesma pretensão, ou cada uma das pretensões, sob cumulação, estribadas em causas de pedir autónomas, ou ainda cada uma das exceções dilatórias ou perentórias invocadas pela defesa ou que devam ser suscitadas oficiosamente.

Todavia, já não integram o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido portanto numa questão de mérito.

No que concerne à nulidade prevista na línea b) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil (a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão): esta nulidade corresponde à omissão de cumprimento do dever (contido no artigo 205º, nº1, da CRP) que impende sobre o juiz de indicar as razões de facto e de direito que sustentam a sua decisão, pois só assim as partes ficam cientes das razões factuais e jurídicas que conduziram ao sucesso ou fracasso das suas pretensões e a decisão constitui a concretização abstrata da vontade da lei no caso concreto.

Só a falta absoluta de fundamentação – e não a fundamentação insuficiente ou deficiente – integra a nulidade referida.

- Ac. do STJ, de 30 de junho de 2014, in Sumários, set./2014, pág.35, consultável em www.stj.pt

No caso da nulidade típica prevista na alínea c) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Prescreve esta disposição legal que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

Assim, verifica-se a nulidade invocada (oposição entre os fundamentos e a decisão) quando a construção da sentença se mostra viciosa, pois os fundamentos invocados pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto, isto é, verifica-se quando os respetivos fundamentos estejam em oposição com a decisão: trata-se da deficiência em que o silogismo em que se analisa a decisão, contém fundamentos que levam logicamente a um juízo em determinado sentido, mas em que a decisão efetivamente adotada é a de sentido oposto

- Acórdão do STJ, de 4/02/2014, in Sumários, Fevereiro/2014, consultável em www.stj.pt

Ou, no dizer do Acórdão do STJ, de 17/12/2014 (in Sumários, 2014, consultável em www.stj.pt), a contradição entre os fundamentos e a decisão existe quando a fundamentação aponta para um sentido, que lógica e formalmente não é comportado pela decisão, estando com ela em frontal colisão.

A omissão de pronúncia quanto às questões atrás referidas constitui fundamento de nulidade do Acórdão, por força do disposto na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 666.º, n.º1, do mesmo diploma).

Após esta sumária indagação e interpretação das normas jurídicas relevantes, importa agora reverter ao caso concreto:

3.2. O caso concreto

O Recorrente veio arguir a nulidade do Acórdão por falta de fundamentação.

Prescreve a alínea b) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Da análise do Acórdão sob recurso resulta, com clareza, que estão especificados os fundamentos de facto que justificam a decisão.

O Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão sob recurso, pronunciou-se sobre diversos pontos da impugnação da matéria de facto, fez constar todos os factos que as instâncias consideraram provados e procedeu à subsunção jurídica aos factos provados e concluiu da mesma forma do Tribunal de 1.ª instância, afirmando que, com os factos provados e elencados, ficou demonstrado que foi o Autor o único culpado na ocorrência da colisão, pois a sua conduta estradal foi violadora das regras contidas no artigo 35.º, n.º1, do Código da Estrada e que nenhuma censura era merecedora a condução do segurado da Ré.

Assim, não se verifica a nulidade arguida.

Quanto à nulidade prevista na alínea c) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (contradição entre os fundamentos e a decisão).

O Recorrente não esclarece a invocada contradição entre os fundamentos e a decisão; podemos afirmar que não existe qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.

No seu Acórdão sob recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa foi extramente claro, apontando um raciocínio lógico, analisando o comportamento do Autor, como interveniente no acidente de viação, que considerou como violando as regras estradais e que o comportamento estradal do segurado na Ré não era merecedor de censura, e concluindo pela culpa exclusiva do Autor na ocorrência do acidente de viação, tendo terminando logicamente na improcedência da ação.

Também, não se verifica a alegada nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão

No que concerne à nulidade da omissão de pronúncia (alínea c) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil).

Da alegação do Recorrente resulta que existiria omissão de pronúncia pois “pela Relação não foi prolatado o Despacho de aperfeiçoamento nos termos do artigo 639.º, n.º3 CPC…” e “uma vez que não apreciou a totalidade das questões como o deveria ter feito, sendo por esse facto nula”.

O Recorrente, no seu recurso de apelação, suscitou as seguintes questões:

Nulidades da sentença;

A impugnação da matéria de facto (alterando-se esta, a revogação da sentença, com a procedência da ação).

No Acórdão sob recurso foram apreciadas:

As nulidades da sentença;

A impugnação da matéria de facto: considerando que, relativamente, a alguns factos impugnados, deviam os mesmos ser mantidos e quanto aos restantes impugnados (que consistiam em factos que o Tribunal de 1.ª instância havia considerado como não provados) concluiu “que, à luz dos ónus de impugnação impostos pelo art.º 640º do CPC, que não foram cumpridos, deve ser rejeitada a apreciação da impugnação da matéria de facto quanto aos factos dados como não provados pela 1.ª instância). Também concluiu que não tendo ocorrido a alteração da matéria de facto, a decisão de improcedência da ação não devia ser modificada.

Deste modo, torna-se claro que o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão recorrido, não omitiu pronúncia sobre as questões que o Recorrente suscitou no seu recurso de apelação.

- A questão suscitada pelo Recorrente de que o Tribunal da Relação devia ter proferido despacho de aperfeiçoamento nos termos do artigo 639.º, n.º3, do Código de Processo Civil, não configura qualquer nulidade prevista no artigo 615.º do Código de Processo Civil e será apreciada posteriormente -

Deste modo, temos de concluir que não se verifica qualquer das nulidades do Acórdão recorrido, invocadas pelo Recorrente.

4. A apreciação da matéria de facto e a rejeição parcial da impugnação da matéria de facto por não cumprimento dos ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil

4.1. A apreciação da matéria de facto

O Recorrente, no recurso de apelação, veio impugnar a matéria de facto, pretendendo que se modifique a decisão sobre a matéria proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, no que concerne aos pontos 1, 8, 9, 10 e 13 dos factos e os pontos 44, 45, 46, 48, 50, 66 e 67 dos factos não provados.

Factos Provados:

No Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa, no que respeita aos factos dados como provados, analisou toda a prova, e manteve a decisão do Tribunal de 1.ª instância.

Vem agora o Recorrente impugnar essa decisão, manifestando a sua discordância, mormente quanto ao facto provado sob o ponto 9, e com “fundamento do recurso o erro na fixação dos factos materiais da causa, que constitui matéria de direito por resultar da violação das regras de processo sobre a modificabilidade das decisões em matéria factual (cf. artigo 662.º do CPC) e das regras de direito probatório material (mormente as constantes dos artigos 349.º, 351.º do CC e artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC) e também erro na interpretação e aplicação das regras substantivas de repartição de responsabilidade em matéria de colisão de veículos (cf. artigos 483.º, 487.º, 505.º e 506.º do CC)”.

A Recorrida, nas suas alegações, refere que o Autor visa desencadear uma nova reapreciação da matéria de facto.

Será assim?

Consabido é que o Supremo Tribunal de Justiça, não "julga de facto" mas tão-só "de direito". Ou seja: por regra, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (cf. artigo 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 24 de outubro).

Nessa conformidade:

- Em regra, ao Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, compete somente a aplicação, em definitivo, do regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (cf. n.º 1 do artigo 682.º do Código de Processo Civil);

- À Relação comete-se o dever de modificar a decisão sobre a matéria de facto, sempre que os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Código de Processo Civil.

- Assim, em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto (nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil), em decorrência do que dispõe este nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil, a Relação pode e deve formar e formular a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.

Ou seja, face a esta autonomia decisória, a Relação há-de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação de provas, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida.

Por sua vez, o nº 2 do mesmo artigo 662º do Código de Processo Civil impõe o dever à Relação de, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

Todavia, excecionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça:

i) Pode corrigir qualquer "erro na apreciação das provas ou na fixação dos factos materiais da causa" se houver ofensa pelo tribunal recorrido de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (prova tarifada ou legal), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 682.º, n.º 2, e 674.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil;

ii) Intervém na decisão sobre a matéria de facto, quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, nos termos do nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil;

iii) Tem intervenção na decisão sobre a matéria de facto se considerar que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, nos termos do referido nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil.

Em síntese:

- Às instâncias compete apurar a factualidade relevante;

- Com carácter residual, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça destina-se a averiguar da observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

Contudo, o STJ pode censurar o mau uso que o tribunal da Relação tenha eventualmente feito dos seus poderes sobre a modificação da matéria de facto, bem como pode verificar se foi violada ou feita aplicação errada da lei de processo (alínea b) do n.º1 do artigo 674º do Código de Processo Civil).

No caso presente, verifica-se que o Autor se limita a impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, utilizando o subterfúgio de que estaríamos em presença de um mau uso dos poderes da Relação.

Este caso é simples:

O Recorrente impugnou a decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria, no caso concreto, o ponto 9 da matéria de facto, por no seu entendimento, ter apreciado mal um depoimento de uma testemunha (BB) e no depoimento do Autor.

O Tribunal da Relação, no Acórdão recorrido, analisou os dois depoimentos, bem como da testemunha EE e a participação do acidente à GNR, e concluiu pelo bem fundado da decisão do Tribunal de 1.ª instância.

Insiste, agora, o Autor, mas perante a impossibilidade legal de recorrer desta decisão da Relação, invocar os maus usos dos poderes da Relação.

Estamos evidentemente em presença de impugnação da matéria de facto e em que está em causa prova sujeita a livre apreciação, pelo que este Supremo Tribunal não tem competência para apreciar.

Deste modo, improcede esta pretensão do Recorrente.

4.2. A rejeição parcial da impugnação da matéria de facto por não cumprimento dos ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil

O Recorrente, no seu recurso de apelação, impugnou a decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, quanto a determinados pontos dos factos não provados.

O Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão recorrido, concluiu que “à luz dos ónus de impugnação impostos pelo art.º 640.º do CPC, que não foram cumpridos, deve ser rejeitada a apreciação da impugnação da matéria de facto quanto aos factos dados como não provados”.

O Recorrente, não questionando que não deu cumprimento aos ónus de impugnação impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, como se refere no Acórdão recorrido, entende que o Tribunal da Relação deveria ter ordenado o aperfeiçoamento das alegações, possibilitando que o Autor/Recorrente cumprisse os ónus referidos, invocando o disposto no n.º3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil.

O Tribunal da Relação considerou que o Recorrente não indicou os concretos meios de prova que impunham uma solução diversa da fixada na sentença e, por isso, não conheceu da impugnação solicitada.

Para assim decidir o Tribunal da Relação explicitou o regime da impugnação da matéria de facto, convocando o artigo 640.º do Código de Processo Civil, explicando os ónus que aí estariam previstos, sob pena de rejeição do recurso, e ainda as dúvidas que o Tribunal teve sobre quais os concretos pontos que o recorrente pretendia ver reanalisados.

O Recorrente entende que a decisão está errada, porque a interpretação da norma jurídica convocada não impunha que no recurso figurassem as exigências indicadas pelo Tribunal, sob cominação de, na sua falta, haver imediata rejeição do recurso. Entende que deveria haver despacho de convite ao aperfeiçoamento.

Tratando-se de saber se a norma jurídica em causa deve ser interpretada como o fez o Tribunal da Relação ou como indica o Recorrente – e sabendo que a interpretação que se propugne influencia o modo como o Tribunal da Relação exerceu os poderes compreendido no artigo 662.º do Código de Processo Civil, vejamos.

O exercício efetivo pelo Tribunal da Relação do duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto, incluindo a eventual reapreciação de depoimentos gravados e de outros meios de prova tem como contrapartida a imposição aos recorrentes de um rigoroso ónus de impugnação.

Dispõe o artigo 640.º do Código de Processo Civil que:

“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

Sobre esta norma já o STJ teve oportunidade de se pronunciar em diversos arestos, como o Ac. do STJ, de 30/11/2023 (Processo 556/21.4T8PNF.P1.S1) que refere:

Como tem sido enunciado pela jurisprudência deste STJ - ver por todos o ac. de 29.10.2015 no processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1 in dgsi.pt – este regime consagra um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. O ónus primário é integrado pela exigência de concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do nº1 do citado art.640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. O ónus secundário traduz-se na exigência de indicação das exatas passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640 tendo por finalidade facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência.

De acordo com esta delimitação entende-se que, não sendo consentida a formulação ao recorrente de um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, deverá ter-se atenção se as eventuais irregularidades se situam no cumprimento de um ou outro ónus uma vez que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1 do referido art. 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, enquanto a falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) terá como sanção a rejeição apenas quando essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo do tribunal de recurso – vd. Abrantes Geraldes in “ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , págs. 169 a 175.

A leitura interpretativa do art. 640 do CPC processa-se seguindo a ideia base de no cumprimento dos ónus, reportando sempre a um caso concreto, preferir o mérito e a substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais, não esquecendo nunca que estes requisitos de forma devem ser respeitados de forma a permitirem, sem necessidade de serem completados por qualquer esforço interpretativo da responsabilidade do julgador( e do recorrido), um acesso fácil e direto ao objeto da impugnação: aos concretos factos que se impugnam; aos concretos meios de prova e razões que impunham decisão diversa; e a decisão que diversamente se protesta dever ser proferida.

Não se extraindo diretamente do enunciado do art. 640 do CPC que o recorrente quando impugne a matéria de facto tenha de replicar uma fundamentação igual ou semelhante à que que deve ser observada pelo julgador nos termos do art. 607 nº4 primeira parte do CPC - que reporta à análise crítica da prova e à especificação dos fundamentos decisivos para a convicção -, a aparente inexistência desta obrigação apenas pode ser entendida como advertência para que a impugnação que realize deva ser precisa, clara e completa, de acordo com o que a lei lhe exige e a finalidade a que se destina. Deve indicar quanto a cada facto impugnado os concretos meios de prova em que baseia a sua discordância, sendo que “concreto meio de prova” no que se refere às testemunhas não é a transcrição de todo o depoimento, mas apenas o segmento decisivo e relevante quanto ao facto singular impugnado, do mesmo modo que, quanto aos documentos, não é apenas a identificação do mesmo. Podemos então ver como contrapartida à obrigação de o tribunal fazer a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), aquela outra que impende sobre o recorrente ao ter de enunciar sobre cada concreto facto os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa – não esquecendo a necessidade de o julgador perceber das alegações a análise (necessariamente crítica) que o recorrente faz não bastando reproduzir um ou outro segmento dos depoimentos.

Sendo mais ou menos exigível, segundo o caso, que o recorrente explicite a sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considere incorretamente julgados, certo é que as insuficiências, discrepâncias ou deficiências da prova produzida têm de resultar do que e como se alegue e conclua, no confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado. …..” (sublinhados nossos)

No presente recurso o Recorrente não contesta que não cumpriu integralmente os ónus a que se reporta o n.º1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, mas tão só o dever do Tribunal formular um convite ao aperfeiçoamento.

Como houve já oportunidade de indicar, a melhor interpretação da norma jurídica em causa, à luz da pretensão dos recorrentes e dos deveres impostos ao julgador, pressupõe um equilíbrio entre os ónus de um e os deveres do outro, não estando previsto na lei que se proceda a nenhuma convite ao aperfeiçoamento, nem sendo a sua falta motivo de qualquer interpretação inconstitucional da norma, uma vez que não ocorre desproporção desrazoável na consequência legal imposta na falta de cumprimento do ónus.

- No sentido de não existência de convite ao aperfeiçoamento, cf.:

Acórdão do STJ, de 14/07/2016 (Processo n.º111/12.0TBAVV.G1.S1);

Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 3.ª edição, p. 95;

Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, p. 141;

Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, p.770 -

Isso significa que a questão colocada no recurso improcede, tal como a invocada inconstitucionalidade.

Deste modo, o recurso tem de improceder

IV. Decisão
Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, e, consequentemente, em manter o Acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 23 de janeiro de 2024

Pedro de Lima Gonçalves (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Jorge Arcanjo