Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S3898
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CONTRATO DE TRABALHO
PROFESSOR UNIVERSITÁRIO
ENSINO
ENSINO PARTICULAR
REGIME JURIDICO
RETRIBUIÇÃO VARIÁVEL
Nº do Documento: SJ20080528038984
Data do Acordão: 05/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - Não existe uma configuração jurídico-material exclusiva para as relações de trabalho que tenham por objecto a prestação de docência (e/ou da investigação) em estabelecimentos de ensino superior particular ou cooperativo, nada impedindo o recurso a qualquer dos dois módulos contratuais em confronto: contrato de trabalho ou contrato de prestação de serviços.
II - Perante as consabidas dificuldades de que se reveste a qualificação da subordinação jurídica caracterizadora do contrato de trabalho (que o diferencia dos outros vínculos contratuais), o apuramento deste conceito não se alcança as mais das vezes através do recurso ao simples método subsuntivo, havendo que apelar ao método tipológico, conferindo os índices (internos e externos) susceptíveis de serem casuisticamente surpreendidos na relação em análise para, em função deles, emitir a final o pretendido juízo qualificativo.
III - No contrato de trabalho a prestação do trabalhador consiste no exercício de uma actividade (trata-se de uma simples obrigação de meios), bastando que o trabalhador cumpra a obrigação de se manter disponível para prestar a actividade.
IV - O correspectivo desta disponibilidade é representado pela retribuição, que constitui a obrigação primeira e essencial assumida pelo empregador e deve ser sempre assegurada, qualquer que seja o aproveitamento que o empregador faça da disponibilidade do trabalhador.
V - O ordenamento laboral evidencia a preocupação com um pagamento mínimo, pontual e permanente do salário, como factor essencial ao equilíbrio vinculístico.
VI - É incompatível com a existência de um contrato de trabalho subordinado, um sistema retributivo em que a retribuição do professor varia consoante a carga horária que lhe é atribuída, sendo que esta, por seu turno, depende do número de alunos que pontualmente se inscrevessem na disciplina por ele leccionada: é que um tal sistema consente, no limite, que não haja inscrições nem, consequentemente, carga horária, logo, retribuição.
VII - Cabendo ao professor provar a celebração de um contrato de trabalho, também lhe cabia, neste contexto, provar que as partes haviam configurado um período mínimo de leccionação e, por via disso, um montante mínimo de retribuição.
VIII - Se o recurso ao simples método subsuntivo permite afastar a qualificação do convénio como contrato de trabalho, são irrelevantes todos os índices coligidos que, não fosse o condicionalismo exposto, poderiam eventualmente confortar uma solução contrária.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


1 – Relatório

1.1
AA intentou, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra “Fundação BB – Cultura, Ensino e Investigação Científica”, pedindo que a Ré seja condenada a atribuir-lhe funções docentes compatíveis com as suas habilitações profissionais e a pagar-lhe, quer a título de omissão, quer a título de diminuição retributivas, as quantias referenciadas na P.I., acrescidas dos correspondentes juros moratórios.
Alega, em síntese, que:
- foi admitida ao serviço da Ré em 1/10/984, no âmbito de um contrato de trabalho, para desempenhar as funções de professora, o que a Autora vem fazendo desde então;
- durante o ano de 1994 e, mais recentemente, a partir do ano de 2000, a Ré diminuiu-lhe a retribuição;
- além disso, não lhe atribuiu qualquer serviço docente no ano lectivo de 2004/2005, tendo deixado de lhe pagar qualquer retribuição desde o final de Setembro de 2004, à excepção do pagamento – parcial – do subsídio de Natal daquele ano;
- as quantias em dívida ascendem ao montante global de € 96.917,12, sem prejuízo do que se vencer até decisão final.
Em sede contestatória, a Ré pugna pela improcedência total da acção, aduzindo, nesse sentido e em resumo, que:
- a Autora é docente do Departamento de História da Universidade CC desde Outubro de 1987, ao abrigo de um contrato de docência – que não de trabalho – reduzido a escrito em Outubro de 1986;
- anualmente, têm vindo a ser celebrados novos contratos em virtude da variabilidade da carga horária, pois todos os docentes da Ré sabem que o número de alunos em cada disciplina varia conforme os anos e os semestres;
- assim, se do aumento da carga horária resulta um aumento da remuneração, também da sua redução ou exclusão decorre necessariamente uma diminuição ou exclusão retributivas;
- jamais existiu subordinação jurídica entre a Ré e o seu corpo docente, onde se inclui a Autora;
- a Ré não teve candidatos para o curso de História relativamente ao ano lectivo de 2004-2005, pelo que teve de o suspender, verificando-se, desse modo, uma impossibilidade definitiva, absoluta e não imputável à Ré de atribuir qualquer carga horária à Autora, com a consequente omissão retributiva;
- verifica-se, assim, a caducidade do contrato – que não qualquer despedimento ilícito – pois a Ré viu-se objectivamente impossibilitada de receber a prestação da Autora;
- a presente acção foi proposta em Agosto de 2005, pelo que não poderá a Ré ser condenada a pagar as remunerações vencidas desde Setembro de 2004 até Julho de 2005.
A Autora respondeu à matéria exceptiva:
- reconhecendo que nunca houve qualquer declaração de despedimento, motivo por que – aliado à inexistência do exclusividade – jamais poderiam ser deduzidas, no cômputo debitório, eventuais remuneração percebidas pela Autora em outros empregos;
- dizendo que nunca a Ré lhe deu a conhecer a cessação do contrato com fundamento em caducidade pelo que, inobservada que foi a tramitação prevista nos arts. 423º a 425º do Código do Trabalho, sempre seria ilícita essa pretensa cessação.
1.2.
Instruída e discutida a causa, lavrou a 1ª instância sentença, cujo segmento decisório se transcreve:
“Pelo exposto, decide-se:
A) absolver a Ré do pedido de condenação a atribuir funções docentes à Autora, compatíveis com as suas habilitações profissionais;
B) condenar a Ré a pagar à Autora a quantia que vier a ser liquidada em conformidade com o disposto nos arts. 661º n.º 2 e 378º n.º 2 do C.P.C., a título de retribuições mensais, de subsídios de férias e de subsídios de Natal, devidos desde Outubro de 2004 inclusive até ao trânsito em julgado da decisão do Tribunal, acrescida dos juros de mora que se vencerem desde a data em que for proferida a sentença de liquidação;
C) condenar a Autora e a Ré nas custas, na proporção de ½ para cada (…)”.
Para alcançar a solução firmada, entendeu-se, em suma, que:
- as partes celebraram entre si um contrato de trabalho, que se mantém em vigor;
- a diminuição da carga horária era legítima e tinha inerente repercussão no montante remuneratório, cujo princípio da irredutibilidade não foi, por isso e no caso, ofendido;
- que a Ré não violou o dever de ocupação efectiva e, consequentemente, não está obrigada a atribuir as funções docentes reclamadas pela Autora;
- que o montante retributivo em débito, a que não cabe fazer qualquer dedução, há-de ser necessariamente relegado para liquidação ulterior.
A Autora e a Ré apelaram da decisão: porém, debalde o fizeram, visto que o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou remissivamente – art. 713º n.º 5 do C.P.C. – a sentença da 1ª instância.
1.3.
Mantendo-se irresignadas, as duas partes podem revista do correspondente Acórdão a este Supremo Tribunal, alinhando, em síntese útil, as seguintes conclusões:

AUTORA
1- dúvidas não existindo que entre as partes existia um contrato de trabalho subordinado, como considerou a sentença recorrida, era vedado ao empregador diminuir a retribuição da A.;
2- e nos arts. 82º do RJCIT e 249º do C.T. estabelece-se a presunção de constituir retribuição tudo o que é pago pelo empregador do trabalhador;
3- o n.º 23 da matéria de facto considerou provadas as retribuições auferidas pela A. desde 1993 até Setembro de 2004 – de onde se extrai a existência das diminuições de retribuição nos termos invocados pela R. – mas, baseando-se nos factos provados sob os n.ºs 32 a 36, o tribunal recorrido considerou que se provara que a A. auferia de acordo com as horas lectivas que leccionava e que sabia que a retribuição podia aumentar ou diminuir de acordo com os alunos e aulas que tinha atribuídos;
4- daqui retirando a conclusão de que a A. não tinha direito aos diferenciais de retribuição que peticionava;
5- ora, tratando-se de retribuição variável, como concluiu a matéria de facto, para se calcular o valor da retribuição mensal, verificam-se as retribuições auferidas nos últimos 12 meses – arts. 84º do RJCIT e 252º do C.T.;
6- aquele primeiro normativo considerava retribuição todas as prestações cuja regularidade ou periodicidade conferiam ao trabalhador a expectativa legítima de continuar a recebê-las, sendo que o art. 249º n.º 4 do C.T. estabelece, uma vez definida a retribuição através do seu pagamento regular e periódico, que o trabalhador goza da garantia da sua não diminuição;
7- deste modo, o facto de a R. proceder à diminuição da retribuição da A., tem que ser aferido de acordo com as estipulações normativas citadas e não com o facto de a A. conhecer a prática ilegal da Ré de diminuir a retribuição em razão do número de inscrições dos alunos;
8- muito embora o RJCIT não fosse muito claro sobre essa questão, o seu art. 82º n.º 2 falava na distribuição da retribuição por retribuição de base e outras prestações regulares e periódicas pagas pelo empregador, dando assim a entender que a retribuição tem necessariamente que ter um valor fixo, a que pode acrescer o valor variável;
9- no domínio do C.T. (e este já era aplicável no caso dos autos), veio já estabelecer-se – art. 253º - uma imposição de a retribuição variável ser sempre acompanhada da consagração de uma parte fixa e uma parte variável, só esta última sendo dependente da rentabilidade/produtividade do trabalho prestado;
10- e compreende-se que assim seja pois, caso contrário, dificilmente se poderia configurar o conceito de trabalho suplementar, pois o empregador teria sempre a disponibilidade de exigir mais horas de prestação de trabalho, pagando essas horas pelo valor das horas normais, como horas normais que sempre eram quando se estabelecia a retribuição em razão das horas de trabalho atribuídas;
11- e, por isso, nos casos em que no contrato de trabalho subordinado se assiste ao pagamento de comissões, para que exista uma relação de subordinação, é estabelecida uma retribuição base, a que acrescem as comissões auferidas em razão da actividade do trabalhador;
12- não sendo assim, o regime legal remuneratório seria o do contrato de agência e não o do contrato de trabalho subordinado, subvertendo-se um dos princípios básicos do contrato de trabalho subordinado e que é o da assunção do risco da actividade pelo empregador;
13- é este princípio que a R. pretende ver eliminado, ao consagrar uma retribuição variável directamente dependente das inscrições dos alunos e das propinas pagas por estes, nenhum risco sendo assumido pelo empregador, que paga aos docentes, em cada semestre ou ano lectivo, uma mera percentagem dessas propinas;
14- a interpretação dada pelas instâncias legitimava, no limite, que a R. deixasse de pagar a um determinado docente a retribuição se, num semestre qualquer, não tivesse inscrição de qualquer aluno na disciplina, interpretação abusiva quando se sabe que a existência da retribuição é uma das características essenciais do contrato de trabalho subordinado;
15- ao absolverem a R. do pedido de diferenciais de retribuição, as instâncias violaram os arts. 21º n.º 1 al. c), 82º e 84º do RJCIT e os arts.122º al. D), 249º, 252º e 253º do C.T.;
16- as instâncias consideraram que entre as partes existia um contrato de trabalho subordinado, que se mantinha em vigor por não ter cessado por nenhuma das formas legalmente admissíveis;
17- a ser assim, se o contrato não cessou, a única consequência inevitável era o da manutenção de todos os direitos e deveres decorrentes dessa relação jurídica, incluindo a observância do direito/dever de ocupação efectiva, que decorre do art. 53º da Constituição;
18- no caso da presente acção, nunca a R. invocou a cessação do contrato de trabalho por não ter trabalho para dar à A. ou por qualquer outra razão, pois a R. pura e simplesmente deixou de atribuir funções docentes à A. e de lhe pagar a retribuição (o que só veio invocar quando foi aqui demandada em juízo);
19- se a R. tivesse invocado a caducidade do contrato de trabalho e a tivesse comunicado à A., na presente acção tinha a A. que impugnar essa caducidade, mas não o podia fazer se a R. nunca fizera cessar o contrato;
20- o que a R.,fez, foi levar ao limite o princípio da variabilidade da retribuição, por ela institucionalizado, e que era o de que a retribuição variava em razão do número de alunos inscritos e da consequente criação e distribuição de mais ou menos turmas aos docentes e, não tendo distribuído turmas à A., nada havia a pagar-lhe;
21- só na acção é que veio dizer que tinha deixado de lhe pagar porque não tinha tido inscrições de alunos no curso de História e que, por essa razão, se verificava a caducidade sem invocar ou provar que aquela razão fora comunicada à R. antes da contestação produzida nos autos;
22- ao contrário do que diz o Acórdão, não tinha, pois, a A. que impugnar na acção ou provar que aquela razão não legitimava a cessação do contrato, porque nunca a R. lhe comunicara a razão da cessação e nem sequer lhe comunicara qualquer cessação contratual;
23- o facto de a R. não ter previsivelmente alunos, na área de docência da A., no ano lectivo de 2006/2007, é facto alheio à decisão, pois a R. não só não fez cessar o contrato de trabalho com a A., como não seguiu a tramitação do despedimento colectivo ou por extinção do porto de trabalho;
24- não tendo a R. feito cessar o contrato por qualquer daquelas formas, a decisão não podia ter sido outra que não fosse a da condenação da R. na reintegração da A. e na atribuição de funções docentes;
25- após essa reintegração, a R. bem poderia seguir a tramitação da cessação do contrato através de despedimento colectivo ou por extinção do porto de trabalho, desde que os fundamentos fossem verídicos e fossem seguidos os procedimentos legalmente estabelecidos;
26- mas a decisão das instâncias, que não reconheceu a existência da cessação do contrato de trabalho com a A. por a R. não lhe fez comunicado essa cessação, não podia, razoavelmente, deixar de condenar a R. a reintegrá-la e a atribuir-lhe funções docentes, pois tal era o objecto do contrato;
27- não o fazendo, mostra-se violado o art.º 53º da C.R.P..

1- vem a presente revista interposta do Acórdão da Relação que, negando provimento à apelação da ora recorrente, confirmou a sentença da 1ª instância, a qual, por sua vez, na procedência parcial da acção, condenou a R. a pagar à A. a quantia que vier a ser liquidada;
2- Com efeito, esse Acórdão confirmou a parte da sentença que considerou existir entre as partes em contrato de trabalho subordinado, bem como a parte em que concluiu que tal contrato se matem em vigor, vindo a condenar a R. a pagar a quantia que vier a ser liquidada, a título de retribuições mensais, de subsídios de férias e de Natal, desde Outubro de 2004 inclusivé até ao trânsito em julgado da decisão, acrescida de juros moratórios;
3- a recorrente não se conforma com a decisão relativa às questões enunciadas no ponto anterior;
4- entende a recorrente que a Relação não decidiu tais questões da forma juridicamente devida, violando respectivamente, os arts. 1º da L.C.T., 1152º e 1154º do C.C., 330º a 335º do C.T., 790º do C.C. e 292º a 295º do Reg. Aprovado pela Lei 35/04, de 29/07;
5- da matéria dada por provada jamais poderá resultar que estamos perante a existência de um contrato de trabalho subordinado;
6- sendo embora certo que a “subordinação jurídica” é hoje considerada o critério fundamental para a qualificação daquele contrato, isto não significa que seja fácil apurar a sua existência;
6- com efeito, esse critério consente graduações subtis, que nem sempre levam a resultados esclarecedores;
7- na verdade, o trabalho autónomo é muitas vezes compatível com a orientação e fiscalização alheias, é muitas vezes inserido numa organização e organizado no espaço e temporalmente (como decorre no caso do médico pago por avença) e é inidentificável como obrigação de resultado (acompanhamento de litígio por advogado avençado);
8- por isso, o apuramento da subordinação não pode ser encontrado através do método subsuntivo, devendo sê-lo através do método tipológico, que consiste na procura de indícios aproximativos do modelo típico;
9- antes de mais, impõe-se proceder à identificação do objecto principal do contrato – a docência universitária – ou seja, determinar se se trata de uma obrigação de facere ou de uma obrigação de resultado;
10- à 1ª vista, a obrigação assumida pela R. poderia aproximar-se mais de uma obrigação de facere do que de uma obrigação de resultado – o docente obriga-se a ensinar e a avaliar os alunos, e não a que estes obtenham aproveitamento;
12- todavia, a obrigação de leccionar deve ser encarada como obrigação de resultado, não no sentido do resultado final (a aprovação dos alunos) mas antes no de resultado intermédio: o objecto do contrato é constituído pela prelecção de uma determinada disciplina num determinado número de aulas;
13- ainda que assim se não entenda, é preciso considerar que, tendo embora de dar aulas num estabelecimento universitário e num horário pré-fixado, o trabalho de docente não se esgota nisso, tendo subjacente o estudo e preparação das aulas, a correcção dos trabalhos e, mais importante, a própria investigação (art. 63º al. d) do ECDU, aprovado pelo D.L. 448/79, de 13/11, conjugado com o art. 25º n.ºs 1 e 2 do D.L. 16/94, de 22/01, que aprovou o EESPC) que de forma alguma está sujeita àqueles condicionalismos de tempo e lugar e cuja gestão cabe inteiramente ao próprio docente, sem controlo da Universidade;
14- sendo essa também uma parte significativa da prestação devida pelo docente, não pode considerar-se que o seu objecto seja um facere, que implique a disponibilidade, mas antes o resultado do trabalho intelectual, cuja conformação de modo, tempo e lugar fica na esfera da sua autonomia, sendo tal prestação, nessa medida, inequivocamente de resultado;
15- independentemente dessa questão, no esboço das relações efectivamente estabelecidas entre A. e R. surgem alguns factores que, em termos gerais, são susceptíveis de indiciar subordinação jurídica, tais como a sujeição a um horário, a prestação nas instalações da R., com instrumentos fornecidos por esta, a remuneração em função do tempo, o desconto das faltas e o pagamento de subsídios de férias e de Natal;
16- em princípio, dados deste tipo são associados a relações de trabalho, mas não são irrefutáveis;
17- no que se refere à determinação do lugar da prestação, a actividade docente universitária tout court só pode ter lugar, naturalmente, numa estabelecimento universitário;
18- a própria sujeição a horário, porque não pode deixar de existir, não é suficiente para caracterizar a subordinação jurídica;
19- no que se refere à remuneração em função do tempo, ela assume, no caso da A., uma particularidade que, em regra, não se verifica no contrato de trabalho: ela é medida pelo trabalho efectivamente prestado, ou seja, pelo número de horas lectivas acordadas em cada ano, e não pela mera disponibilidade abstracta, como sucede com os professores com vínculo, que recebem o vencimento correspondente à categoria, independentemente da carga horária que possam ter;
20- na verdade, a preparação das aulas, avaliações, atendimento a alunos e correcção de provas não são medidos pelos tempos de leccionação, já que o docente, na realização dessas tarefas, faz uma gestão pessoal do seu tempo;
21- no que respeita à utilização dos meios de produção, é do conhecimento público que os docentes do ensino superior se valem de todo um equipamento, bibliografia e material próprio e pessoal não pertencente à instituição universitária;
22- os próprios subsídios de férias e de Natal não são indícios suficientes de hetero-determinação: nada obsta a que num contrato de prestação de serviços, as partes acordem num pagamento em prestações mensais com prestações adicionais por ocasião das férias e do Natal;
23- ademais, o facto de a A. ser docente da Universidade CC pressupõe que contribua para a própria gestão democrática universitária, desempenhando funções nos colégios institucionais de onde saem os vários órgãos, sendo chamada, por vezes, a exercer funções nesses órgãos, o que não pode constituir objecto de contrato de trabalho;
25- ficou provado que a A. procedia a preparação pedagógica e científica dos alunos como melhor entendia, de acordo com programa por si elaborado, sendo da sua responsabilidade a avaliação dos seus alunos;
26- sendo certo que o contrato celebrado em 1/10/89 refere que a R. deverá acompanhar estritamente o programa desenvolvido nas aulas teóricas e actuar sempre sob a orientação directa do respectivo regente;
27- nada se provou quanto ao exercício concreto de tal direcção e orientação, tanto quanto à sua ocorrência efectiva, como quanto à sua natureza;
28- e, embora conste do referido contrato que a A. tinha de exercer as suas funções de harmonia com os regulamentos e instruções em vigor na Universidade CC, tais regulamentos e instruções, pelo que ficou provado, só podiam estar relacionados com a organização dos tempos lectivos, das regras de marcação de exames e de publicação das notas – o que tudo se reconduz a uma conformação da actividade em função das exigências da unidade da Universidade e da sua própria gestão - ;
28- não ficou provado que a R. desse ordens concretas à A., que lhe conformasse a sua actividade lectiva ou de avaliação, que a obrigasse a dar estas e estas aulas, marcando-lhe faltas e exigindo-lhe a sua justificação, e exercendo sobre elas o poder disciplinar, impondo-lhe sanções;
29- toda esta matéria, que seria o cerne da subordinação jurídica, não ficou apurada, cabendo a sua prova à A.;
30- assim, os factos apurados apenas permitem estabelecer um quadro de referência geral da actividade da A., o que não se traduz numa verdadeira subordinação jurídica;
31- também a esta conclusão teremos de chegar se analisarmos o quadro geral em que se move o ensino superior particular e cooperativo, o qual nos aponta para um regime que não se integra nos cânones do direito do trabalho;
32- com efeito, implicando a carreira Universitária a obrigatoriedade de prestação de provas e a aquisição de determinados graus académicos em determinados limites temporais, isso não é compatível com a estabilidade própria do contrato de trabalho;
33- conforma resulta do art.º 40º n.º 2 do D.L. 271/89, de 19 de Agosto, que aprovou inicialmente o ESSPC, “… o Regime laboral aplicável aos docentes de estabelecimentos de ensino superior particular constará de diploma próprio”;
34- estatuição idêntica consta do art.º 24º n.º1 do já referido D.L.16/94, que aprovou o novo ESSPC, revogando o citado D.L. 271/89;
35- é certo, contudo, que tais diplomas ainda não foram publicados;
36- apesar disso, resulta dos diplomas citados que é expressamente reconhecida a especificidade do Ensino Superior, com sujeição da actividade docente a regras próprias, as quais impõem um desvio ao regime jurídico laboral;
37- aquele art. 24º n.º 1 apenas confirma o óbvio, ou seja, que existe uma lacuna legislativa quanto ao regime profissional dos docentes universitários privados, situação que, aliás, não era sequer contemporânea da Lei e que esta não podia prever(não existia ensino superior privado em Portugal à data da publicação da Lei);
38- tais disposições são um sinal inequívoco de que o Regime geral de contrato de trabalho è inadequado à actividade universitária e não se coaduna com a equiparação qualificativa do ensino superior particular ao público, pois a estabilidade dos vínculos, sem a mesma exigência quanto à prestação de provas e progressão na carreira, não contribuirá certamente para favorecer a qualidade do ensino;
39- acresce que o D.L. n.º 441-A/82, de 6/11, que estabelece disposições relativas às Cooperativas de Ensino, refere sempre o pessoal docente de tais cooperativas como prestadores, sinal de que o legislador reconhece não ser o contrato de trabalho adequado a este tipo de actividade;
40- assim, é forçoso concluir que não existe, no caso, um contrato de trabalho subordinado, mas sim um contrato de prestação de serviços, como tem sido, de resto, posição maioritária do S.T.J.;
41- ao decidir em contrário, o Acórdão impugnado violou os arts. 1º da LCT e 1152º e 1154º do C.C.;
42- por outro lado, esse Acórdão, confirmando a sentença da 1ª instância, concluiu que o contrato se mantém em vigor, operando a condenação da R. nos termos já referidos (2-);
43- considerou o Acórdão que, no tocante à não aplicabilidade do regime da suspensão do contrato de trabalho, tal regime não foi aplicado na sentença recorrida, apenas, se fazendo ali referência aos preceitos daquele regime para o caso de a R. entender que podem vir a estar reunidos os requisitos dessas vicissitudes contratuais e delas pretender fazer uso;
44- porém, entende a recorrente que não é isso que resulta daquela sentença;
45- considera a recorrente que a Ex.ma Juíza, mais do que sugerir, julga aplicando o referido regime legal;
46- por isso, o Acórdão também violou os arts. 330º e segs. do C.T. e ainda os arts. 790º e segs. do C.C.;
47- ao caso dos autos não é aplicável aquele 1º bloco normativo, nem o disposto nos arts. 292º a 295º do respectivo regulamento, aprovado pela Lei n.º 35/04, de 29/7, porque não existe um contrato de trabalho, mas sim um contrato de prestação de serviços;
48- mas, ainda que se entenda estarmos perante um contrato de trabalho subordinado, a verdade é que não se verificam, no caso, os pressupostos da aplicação do referido regime legal;
49- a sentença da 1ª instância remete para o regime legal de suspensão do contrato de trabalho sem, contudo, fazer o enquadramento jurídico daquele regime à situação concreta de impossibilidade superveniente e temporária verificada nos autos;
50- da sentença não resulta o juízo de prognose que a levou a considerar verificados os pressupostos do regime de suspensão, por motivo respeitante ao empregador;
51- aliás, a recorrente entende, como já referiu, que não se verificam esses pressupostos, sendo que não se pode subsumir uma situação jurídica concreta ao regime de suspensão sem que esses pressupostos concorram;
52- no caso dos autos, verifica-se uma situação de impossibilidade superveniente e temporária de cumprimento da prestação por causa inerente à esfera do empregador, sem que nessa impossibilidade concorram conveniências de viabilização da empresa ou de manutenção dos postos de trabalho;
53- o que ocorreu foi um facto que não é subjectivamente imputável ao empregador, mas que o impede temporariamente de receber a prestação da A., que ficou numa situação de inactividade total;
54- ainda que se entenda estarmos perante uma lacuna, a ser suprida segundo normas semelhantes às do C.T., ainda assim o referido regime não é aqui aplicável;
55- o regime de suspensão do contrato de trabalho encontra-se sujeito à observância de exigências processuais e temporais – arts. 336º a 340º do C.T.;
56- no caso em apreço, nenhuma dessas exigências foi cumprida, o que impede a aplicação do dito regime, segundo o qual o empregador continua obrigado a pagar a retribuição e os demais direitos do trabalhador, como sejam o direito a férias e ao pagamento do respectivo subsídio e o de Natal;
57- neste contexto, a situação deverá ser solucionada nos termos gerais de direito, isto é, em moldes semelhantes ao regime comum da impossibilidade do cumprimento não imputável ao devedor, constante dos arts. 790º e segs. do C.C., aplicável por virtude do seu art.º 10º;
58- ora, para que exista impossibilidade temporária, nos termos do art. 792º do C.C., é necessário que ocorra uma circunstância que não permita ao devedor a efectivação da prestação, que essa circunstância seja alheia ao devedor e que, tendo em conta a finalidade da obrigação, se mantenha o interesse do credor;
59- está demonstrado que a R., por motivo que não lhe é imputável, está temporariamente impossibilitada de receber a prestação da A., que mantém interesse em prestá-la;
60- essa impossibilidade temporária implica a suspensão do contrato mas, porque não existe mora da R., no cumprimento das suas obrigações, dessa suspensão não decorre a obrigação de pagar qualquer retribuição à A. ou de lhe satisfazer os demais direitos que lhe assistiam;
61- mal andou, por isso, o Acórdão em crise, que deve ser revogado, por violação dos preceitos citados, sendo a recorrente absolvida do pagamento das quantias em que foi indevidamente condenada.
1.4.
Cada uma das partes contra-alegou na revista da parte contrária, sustentando a sua improcedência.
1.5.
Também o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto sugere, sem reacção das partes, a negação das revistas.
1.6.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2-FACTOS

As instâncias fixaram pacificamente a seguinte factualidade:
1- a Ré prossegue fins culturais e científicos, incluindo os de carácter educacional, mediante a promoção do ensino em todos os graus, mormente o superior, da investigação científica e de todas as demais actividades conexas, cabendo-lhe, em especial, assegurar a manutenção e o funcionamento regular da Universidade CC;
2- a Ré foi instituída mediante transformação da Cooperativa de Ensino Universidade CC (CEUL) C.R.L.;
3- a Ré mantém a universidade dos bens da CEUL, com todos os seus direitos, deveres, posições e relações jurídicas;
4- a Ré possui, entre outros estabelecimentos, a Universidade CC;
5- a Ré admitiu a Autora para o desempenho de funções de docente do Curso de História, na Universidade CC, em 1/10/86;
6- desde 1/10/86, a Autora passou a desempenhar as funções de Professora no Curso de História na Universidade CC e tinha a categoria profissional de assistente, com regência, pelo menos, nos anos lectivos de 2002-2003 e 2003-2004, categoria essa que teve também quanto à disciplina de Epigrafia Portuguesa nos anos lectivos de 1987-1988, 1989-1990, 1992/1993;
7- a Autora desempenhava as suas funções docentes de acordo com a estrutura curricular do curso de História elaborada pela U. CC;
8- a Autora elaborava os programas das disciplinas que leccionava mas que eram submetidos a aprovação do director do departamento – actualmente director de faculdade – e do Conselho Escolar da Universidade CC;
9- depois de aprovados os programas pelo director de departamento – actualmente director de faculdade – e pelo Conselho Escolar, a Autora tinha de os entregar na secretaria da Universidade CC;
10- os horários de cada disciplina são organizados no início de cada ano lectivo, geralmente uma semana antes do início das aulas, pelos serviços da secretaria da Universidade CC, mas os docentes podem acordar entre si trocar os horários das respectivas disciplinas, a fim de os conciliarem com a sua disponibilidade e conveniência, após o que é comunicado à secretaria, ficando definitivamente organizados;
11-a Autora tinha de cumprir os horários, depois de definitivamente fixados, das disciplinas por si leccionadas;
12- o cumprimento dos horários era controlado pela Ré;
13- a Autora realizava exames e avaliações;
14- é a Secretaria da Universidade CC que comunica aos docentes as datas da realização dos exames e o prazo para afixar as notas;
15- a Autora tinha de realizar os exames escritos e orais nas datas que lhe eram comunicadas pela Secretaria da U. CC mas, no caso dos exames orais, era possível alterar a data com autorização do director de departamento, no caso de não haver inconveniente, e isso era comunicado à secretaria;
16- os docentes têm indicações da U. CC para lançar os sumários – dantes em livro e, actualmente em sistema informático – através dos quais a Universidade controla as suas faltas e o cumprimento do programa da disciplina que leccionam;
17- a Autora, tal como os demais docentes, tinha de justificar as faltas ao director de departamento – actualmente director de faculdade – através de um impresso entregue na secretaria e, não sendo as faltas consideradas justificadas ou ultrapassando 5% relativamente à carga horária que lhe estava atribuída, eram-lhe descontadas na remuneração;
18- quando pretendia fazer visitas de estudo com os alunos, a Autora solicitava autorização ao director do departamento – actualmente director de faculdade – da U. CC;
19- a Ré fez retenção na ponte de descontos a título de IRS, referente a trabalho dependente, nas remunerações que pagou à Autora nos anos de 1993 a 2004 inclusive;
20- a Ré efectuou descontos para a C.G.A. nas remunerações que pagou à Autora nos anos de 1993 a 2004 inclusive;
21- a Ré concedeu à Autora férias anuais remuneradas e pagou-lhe subsídios de férias e de Natal;
22- no ano lectivo de 2004-2005, a U. CCnão atribuiu qualquer serviço docente à Autora, não lhe tendo pago qualquer remuneração após Setembro, com excepção do subsídio de Natal, que lhe pagou em Dezembro, no montante ilíquido de € 617,82 e líquido de € 516,04, após, deduções para a C.G.A. e para IRS;
23- desde 1993, a Autora recebeu da Ré as seguintes remunerações anuais:
1993 – 1.962.100$00 ( € 9.786,91)
1994 – 1.803.327$00 (€ 8.994, 96)
1995 – 3.522.569$00 (€ 17.570,50)
1996 – 4.285.484$00 (€ 21.375,90)
1997 – 5.903.178$00 (€ 29.444,93)
1998 – 6.320.634$00 (€ 31.527,19)
1999 – 6.661.201$00 (€ 33.525,93)
2000 – 4.029.077$00 (€ 20.096,95)
2001 - € 19.253,18
2002 - € 18.696,60
2003 - € 17.043,93
2004 - € 9.720,12 (até Setembro + subsídio de Natal);
24- a Autora celebrou com a CEUL – Cooperativa de Ensino Universidade CCCRL – os acordos escritos intitulados “contrato de docência”, cujas cópias constam como docs. 195 de fls. 67 a 80;
25- os docentes da U. CCsão escolhidos pelo regente da cadeira, sendo essa escolha submetida ao director do departamento – actualmente director de faculdade – e ao Conselho Escolar, mas quem formaliza o contrato é a Direcção da Ré e é o Director do Departamento quem faz a proposta à Direcção da Ré para a cessação do contrato do docente;
26- é o Conselho Escolar, sob proposta do director do departamento – agora director da faculdade – que distribui o serviço docente pelos docentes;
27- era o Conselho Escolar que atribuía à Autora a carga horária, em função do serviço docente que lhe era distribuído;
28- a secretaria da U. CC faz os horários, relativamente a cada docente, em função da carga horária que é atribuída a cada um no Conselho Escolar;
29- a Autora dava as aulas sem que alguém interferisse quanto à forma como leccionava;
30- a Autora fazia os enunciados das provas escritas das disciplinas que leccionava e fazia a avaliação dos alunos sem que alguém interferisse sobre a forma como o fazia;
31- a Autora tinha assento no Conselho Escolar do Departamento de História;
32- a Autora auferia uma remuneração estipulada em função do número de horas de aulas dadas;
33- a Autora tinha de fazer a vigilância dos exames escritos das disciplinas que leccionava, presidir aos júris das disciplinas que leccionava e fazer parte dos júris dos exames orais de outras disciplinas, quando era designada;
34- a carga horária dos docentes da U. CC está directamente e intrinsecamente relacionada com o número de discentes que se inscrevem em cada disciplina, em cada ano ou em cada semestre, e com a distribuição de serviço docente efectuada pelo respectivo Departamento;
35- todos os docentes da U. CC, incluindo a Autora, sabem que o número de alunos em cada disciplina varia conforme os anos e os semestres;
36- todos os docentes da U. CC, incluindo a Autora, sabem que o montante da sua remuneração varia em função da carga horária que lhes é atribuída em cada ano lectivo;
37- para o ano lectivo de 2004-2005, a U. CC não teve candidatos para o Curso de História, curso em que a Autora era docente;
38- o Curso de História na U. CC passou a ser um curso de frequência muito pouco procurada nos últimos anos;
39- o curso de História, nos anos lectivos de 2004-2005 e de 2005-2006, não se iniciou na U. CC devido à inexistência de candidatos para o 1º ano;
40- apesar disso, a U. CC não extinguiu o Curso de História e todos os anos o tem publicitado e vai publicitá-lo para o ano lectivo de 2006-2007;
41- a Autora efectuou pagamentos para a segurança Social, como trabalhadora independente, desde Outubro de 2004 até Outubro de 2005.
São estes os factos.

3- DIREITO

3.1.
À luz dos núcleos conclusivos recursórios, verifica-se que ambas as partes recuperam, na presente revista, as questões que já haviam colocado nas precedentes apelações.
Essas questões, tendo em atenção a ordem da sua precedência lógica, são as seguintes:
1ª- qualificação do contrato celebrado pelas partes;
2ª- eventual suspensão do referido contrato;
3ª- violação, pela Ré, do dever de ocupação efectiva;
4ª- violação, pela Ré, do princípio da irredutibilidade da retribuição.

3.2.
Estabelece o art. 8º n.º 1 da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto – diploma aprovador do Código do Trabalho – que os contratos laborais celebrados antes da sua entrada em vigor (1 de Dezembro de 2003) ficam sujeitos ao novo regime, “… salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”.
Deste modo, a pretendida qualificação do vínculo terá de ser feita à luz do direito anterior – Regime do Contrato Individual de Trabalho aprovado pelo D.L. n.º 49.408, de 24 de Novembro de 1969 (L.C.T.) – do mesmo passo que o seu aduzido incumprimento por banda da Ré, porque ocorrido na vigência da nova lei, deve ser apreciado de acordo com o respectivo regime.
Porém, em sede de qualificação jurídica do contrato, a aplicação de um ou de outro regime não assume qualquer relevância prática, tanto quanto é certo que a definição introduzida pelo art. 10º do Código do Trabalho corresponde, na sua essência, à que já constava do art.º 1º da L.C.T. e do art. 1152º do Código Civil.
3.3.1.
Já sabemos que as partes divergem, desde logo, sobre a qualificação do contrato aprazado: para a Autora, com o aplauso das instâncias, estamos perante um contrato de trabalho; para a Ré, trata-se de um contrato de prestação de serviços.
Vejamos.
No que concerne ao Ensino Superior Particular e Cooperativo, reconhece expressamente o seu Estatuto – aprovado pelo D.L. n.º 16/94, de 22 de Janeiro –, que os objectivos prosseguidos pelo sistema do ensino superior, incluindo o particular, justificam um regime próprio para a contratação dos respectivos docentes, cujas regras tanto poderão consubstanciar desvios ao regime jurídico-laboral comum, como justificar o recurso ao regime contratual da prestação de serviços.
Neste contexto, o seu art. 24º n.º 1 logo anuncia a oportuna publicação de diploma próprio – que se aguarda – contendo o regime específico de contratação daqueles docentes: renova-se, assim, uma promessa que já remonta ao anterior Estatuto, aprovado pelo D.L. n.º 271/89, de 19 de Agosto, cujo art. 40º n.º 2 também aludia a semelhante bloco normativo, nunca publicado.
Aquele anunciado diploma – esclarece o n.º 2 do mesmo art. 24º - irá disciplinar “o regime de contrato de trabalho dos docentes, bem como as condições em que se poderá recorrer ao contrato de prestação de serviços”.
Como se vê, o legislador não obstaculiza, neste domínio, o recurso a qualquer dos dois módulos contratuais em confronto.
Também a jurisprudência, praticamente uniforme, deste Supremo vem sustentando que não existe uma configuração jurídico-material exclusiva para as relações de trabalho quando o vínculo ou, mais precisamente, o seu objecto se reporta à prestação de docência (e/ou investigação) em estabelecimentos de ensino superior particular ou cooperativo – cfr., entre outros, os Acórdãos de 14/1/04 e 23/2/05, respectivamente nos recursos n.ºs 652/03 e 2268/04.
Nesses casos, a contratação opera-se num contexto de liberdade contratual – art.º 405º do Código Civil – podendo a instituição universitária e o docente recorrer, quer ao contrato de trabalho, quer ao contrato de prestação de serviços, optando pelo modelo que melhor se ajustar aos seus interesses.
3.3.2.
Contrato de trabalho é aquele mediante o qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta (cfr. arts. 1º da L.C.T., 10º do Código do Trabalho e 1152º do Código Civil).
É pacífico que a “subordinação jurídica” do trabalhador à sua entidade patronal constitui o elemento essencialmente caracterizador do contrato de trabalho, que o diferencia de outros vínculos afins, designadamente do contrato de prestação de serviços.
Refere, a este propósito, Monteiro Fernandes:
“Para que se reconheça a existência de um contrato de trabalho, é fundamental, que na situação concreta, ocorram as características da subordinação jurídica por parte do trabalhador (…).
A subordinação jurídica consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem” (in “Direito do Trabalho”, 11ª edição, página 131).
Perante as consabidas dificuldades de que se reveste a qualificação da “subordinação jurídica”, entende-se que o apuramento deste conceito não se alcança, as mais das vezes, através do recurso ao simples método subsuntivo, havendo que apelar ao método tipológico, conferindo os índices, internos e externos, susceptíveis de serem casuisticamente surpreendidos na relação em análise para, em função deles, emitir, a final, o pretendido juízo qualificativo.
Contudo, e em necessária decorrência do que se deixa dito, pode acontecer que o método subsuntivo seja bastante para a almejada qualificação: tudo depende da forma como as partes contratualizam, desde logo, as respectivas prestações, tendo em devida conta que o contrato de trabalho é, por essência, sinalagmático e oneroso.
3.3.3.
Estamos perante um negócio jurídico bilateral, que pressupõe duas declarações de vontade contrapostas.
Por banda do trabalhador, a obrigação que ele assume reconduz-se a uma prestação de facto – exercício de uma actividade humana, manual ou intelectual – sendo que tal prestação se esgota nesse mero exercício, posto que diligente e zeloso.
Trata-se, por isso mesmo, de uma simples obrigação de meios, como é típico de uma actividade subordinada: a validade do contrato e a sua perfeita execução não dependem do resultado alcançado, cujo risco corre por conta da entidade patronal.
Acresce que o trabalhador não se compromete a prestar necessariamente a actividade contratada: apenas assume a obrigação de se manter disponível para o efeito, cabendo ao empregador conformar o seu concreto exercício.
O correspectivo desta disponibilidade é representado pela retribuição, que constitui a obrigação primeira e essencial assumida pelo empregador.
Estas recíprocas obrigações, sendo nucleares no vínculo laboral, projectam-se no desenvolvimento da correspondente relação jurídica, coexistindo durante todo o período da sua vigência.
Porém, enquanto o trabalhador se limita, como se disse, a manter a sua disponibilidade prestacional, já o correspectivo remuneratório carece de ser permanentemente assegurado, qualquer que seja o aproveitamento que o empregador faça dessa disponibilidade.
A obrigação retributiva mantém-se, inclusivamente, durante o período de uma eventual suspensão do contrato de trabalho por facto respeitante à entidade patronal, a quem cabe assegurar ao trabalhador uma retribuição mensal não inferior à retribuição mínima legalmente garantida, sem prejuízo da “Compensação retributiva” – arts. 78º n.º 1 da L.C.T. e 341º n.º 1 al. A) e 343º do Código do Trabalho.
Compreende-se a preocupação legal com o pagamento remuneratório.
Nos termos dos arts. 93.º n.º 1 da L.C.T. e 265º n.º 1 do Código do Trabalho, “a obrigação de satisfazer a retribuição vence-se por períodos certos e iguais que, salvo estipulação ou usos diversos são a semana, a quinzena ou o mês do calendário”.
A “regularidade” e a “periodicidade” desse pagamento são tão relevantes que a própria lei manda atender a essas características para integrar no conceito de retribuição algumas prestações, de duvidosa qualificação, realizadas pelo empregador – arts. 82º n.º 2 da L.C.T. e 249º do Código do Trabalho.
Este último diploma condensou abundantes princípios, a maioria dos quais já vindos dispersamente do pretérito, todos eles tributários de uma concepção de retribuição primacialmente destinada à satisfação das necessidades pessoais e familiares do trabalhador.
Assim se entende o regime da remuneração mínima garantida (aliás, de raiz constitucional – art. 59º n.º 1 da C.R.P.) – inicialmente vertido no D.L. n.º 217/74, de 27 de Maio e, actualmente, enunciado no art. 266º - a regra da inadmissibilidade da compensação integral da retribuição em dívida com créditos da entidade patronal sobre o trabalhador – art. 270º - o benefício de privilégio creditório conferido à retribuição – art. 377º - a existência de um Fundo de Garantia Salarial – art.º 380º - e, sobretudo, todo o regime que disciplina o não pagamento pontual do salário, erigido como causa autónoma de resolução contratual, quer o incumprimento seja culposo – art. 441º n.º 2 al. A) – quer o não seja – art. 364º.
Por outro lado, ainda que a remuneração possa ser certa, variável ou mista – arts. 83º da L.C.T. e 251º do Código do Trabalho – a verdade é que “… o trabalhador não pode, em cada mês de trabalho, receber montante inferior ao da retribuição mínima garantida aplicável” – art. 252º n.º 4 daquele Código.
Conforme salienta Joana Vasconcelos (in “Código do Trabalho Anotado” por Pedro Romano Martinez e outros, 5ª edição, página 485), este transcrito preceito acaba por consagrar a “… impossibilidade, que alguma doutrina sustentava já no direito anterior, de uma retribuição totalmente variável (no mesmo sentido, cfr. Júlio Gomes in “Direito do Trabalho”, vol. I, 2007, página 779).
A maioria esmagadora destes princípios constitui, de há muito, aquisição firme do nosso ordenamento laboral e evidencia a preocupação, que nele se confere, a um pagamento mínimo, pontual e permanente do salário, como factor essencial ao equilíbrio vinculístico.
3.3.4.
É altura de reverter ao concreto dos autos.
No que se refere à componente retributiva contratada, resulta da factualidade assente que:
- a Autora auferia uma remuneração estipulada em função do número de aulas dadas – ponto n.º 32;
- a carga horária dos docentes da U. CCestá directa e intrinsecamente relacionada com o número de discentes que se inscrevem em cada disciplina, em cada ano ou em cada semestre – ponto n.º 34;
- todos os docentes da U. CC, incluindo a Autora, sabem que o número de alunos em cada disciplina varia conforme os anos e os semestres – ponto n.º 35;
- todos os docentes da U- CC, incluindo a Autora, sabem que o montante da sua remuneração varia em função da carga horária que lhes é atribuída em cada ano lectivo – ponto n.º 36;
- para o ano lectivo de 2004-2005, a U. CCnão teve candidatos para o Curso de História, curso em que a Autora era docente – ponto n.º 37;
- o curso de História, nos anos lectivos de 2004-2005 e de 2005-2006, não se iniciou na U. CC devido à inexistência de candidatos para o 1º ano – ponto n.º 39;
- apesar disso, a U. CC não extinguiu o Curso de História e todos os anos o tem publicitado e vai publicitá-lo para o ano lectivo de 2006-2007 – ponto n.º 40.
Como se vê, a retribuição da Autora variava consoante a carga horária que lhe fosse atribuída, sendo que esta, por seu turno, dependia, “directa e intrinsecamente”, do número de alunos que pontualmente se inscrevessem na respectiva disciplina.
Não havendo notícia nos autos de que as partes se tivessem vinculado a um número mínimo de horas lectivas nem, tão-pouco, que esse número mínimo tivesse constituído elemento essencial para a vinculação contratual da Autora, está bom de ver que o referido sistema retributivo consentia, no limite, que pudesse inexistir sequer carga horária, desde que motivada pela ausência de inscrições e que, por via disso, não houvesse, tão-pouco, lugar a retribuição.
Um tal sistema é totalmente incompatível com a existência de um contrato de trabalho subordinado, cujo regime pressupõe, como vimos, uma necessária remuneração, ainda que seja a “mínima legalmente garantida”, durante todo o período vinculístico.
Esse sistema retributivo permite, por seu turno, extrair uma outra conclusão:
- o que à ré interessava não era, final, a disponibilidade prestacional da Autora mas, tão simplesmente, que ela desse o número de aulas que se mostrasse necessário ou, dito de outro modo, o que lhe interessava era que, havendo alunos, alguém lhes desse as aulas correspondentes.
É dizer, enfim, que a Ré pretendia obter um resultado – a leccionação que se mostrasse necessária – sem garantir uma prestação laboral contínua.
Não se ignora que a 1ª instância deu expressamente como “Não provado” que a Autora, quando começou a leccionar na Universidade CC, soubesse que a sua carga horária podia ser excluída e, consequentemente, excluída a sua remuneração (arts. 124º e 127º da contestação).
Mas, por evidente, a omissão probatória desse acervo factual não tem a virtualidade de demonstrar o contrário, ou seja, que a Autora não tinha conhecimento de poder vir a ocorrer a dita omissão retributiva.
Cabendo à Autora, “in casu”, provar a celebração de um contrato de trabalho, também lhe cabia, neste contexto, provar que as partes haviam configurado um período mínimo de leccionação e, por via disso, um montante mínimo de retribuição.
Sendo assim, irreleva de todo a falada omissão probatória, subsistindo o juízo anteriormente alcançado, ou seja, o de que as partes não celebraram um efectivo vínculo laboral.
Como se vê, este é um caso em que o recurso ao simples método subsuntivo permite afastar a qualificação do convénio como contrato de trabalho, tornando decisivamente irrelevantes todos os índices coligidos e que, não fosse o condicionalismo exposto, poderiam eventualmente confortar uma solução contrária.
Divergimos, pois, das instâncias quanto a esta questão nuclear.
De resto, e com o devido respeito, também se nos afigura que a qualificação do vínculo, tal como as instâncias a operaram, não se harmoniza de todo com a solução, a que ali também se chegou, de que, não obstante a existência de um contrato de trabalho, a Ré não era obrigada a conferir funções efectivas à Autora nem a assegurar-lhe uma retribuição equivalente à dos últimos doze (12) meses de pagamento efectivo.
3.5.
Aqui chegados, já se vê que resulta prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nas duas revistas.
Com efeito, não se logrando qualificar o contrato como laboral, também irreleva saber se concorriam, ou não, os pressupostos de uma eventual suspensão do vínculo aprazado, para cujo conhecimento, aliás, sempre este foro carecia da necessária competência material.
Por outro lado, todas as pretensões da Autora só lograriam eventualmente proceder se, a montante, o convénio fosse qualificado como contrato de trabalho.
4- DECISÃO

Em face do exposto, acordam:
A- em conceder a revista, da Ré, nos termos e com os fundamentos aduzidos;
B- em revogar o Acórdão impugnado, absolvendo a Ré do pedido e ficando assim prejudicado o conhecimento da revista da Autora.
Custas pela Autora, nas instâncias e no Supremo.
Lisboa , 28 de Maio 2008

Sousa Grandão (relator)
Pinto Hespanhol
Vasques Dinis