Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9713/05.0TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: VONTADE DO TESTADOR
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
FACTOS CONCLUSIVOS
LOGRADOURO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, vol. III, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 206-207.
- Anselmo de Castro, Direito processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina 1982, p. 268.
- Antunes Varela, M Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, p.406.
- Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões, 6ª ed., (Reimpressão), Coimbra Editora, p. 119.
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, Lex, p. 312.
- Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra 1992, pp. 332/334, 337.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 204.º, N.º2, 236.º, 2179.º, N.º1, 2187.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.°, N.ºS 3, 4 E 5, 615.º, N.º1, AL. C), 662.º, N.º2, AL. C), 682.º, N.º3.
CÓDIGO DE REGISTO PREDIAL (CRGP): - ARTIGOS 82.º, N.º1, AL. B).
LEI N.º 41/2013, DE 26 DE JUNHO: - ARTIGO 7.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16.10.2012, PROC. N.º 649/04.2TBPDL.L1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 21.10.2014, PROC. N.º 1837/10.8TBCTB.C1.S1, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - A pretensa contradição entre a matéria de facto provada e a conclusão extraída pela Relação não integra a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC (2013), a qual apenas ocorre quando inexiste coerência lógica entre os fundamentos e a decisão, impedindo que esta seja corolário daqueles.

II - Os estados emocionais e os eventos do foro interno ou psíquico – como seja a vontade do testador – constituem realidades materiais que integram o conceito de matéria de facto que é passível de prova e não matéria de direito ou factos conclusivos.

III - Embora a vontade do testador possa ser apurada através de um conjunto de factos que a revelem, nada impede que a facticidade a ela atinente (complementada com a inserção de outros factos que lhe dão suporte, como sejam a determinação do alcance de um bem deixado em testamento) figure na base instrutória.

IV - O art. 2187.º do CC, ao exigir que o intérprete do testamento busque a vontade real do testador que tenha um mínimo de correspondência com o texto testamentário, consagra um critério marcadamente subjectivista, afastando-se assim da doutrina objectivista da impressão do destinatário.

V - Resultando da factualidade provada que, no testamento, o testador pretendeu referir-se a uma unidade predial composta por casa, jardim e terrenos adjacentes que queria conservar na mão da família (intenção já revelada até num outro documento), a palavra “logradouro” que dele consta não pode ser interpretada na sua acepção do art. 204.º, n.º 2, do CC, tanto mais que tal não se harmonizaria com o sentido técnico-jurídico da expressão “prédio misto”, que nele foi também empregue e que se reporta a um prédio composto por uma parte urbana e por uma parte rústica (cfr. art. 82.º, n.º 1, al. b), do CRgP).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

         I. Relatório:

AA[1] intentou, em 7 de Novembro de 2005, a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, no Tribunal Judicial de Braga, demandando BB e outros, pedindo se condenassem os réus a ver declarado:

a) que não é correcta nem exacta a relação dos legados deixados pelo testador tal como é apresentada pela cabeça de casal no processo de inventário que corre termos no 2º Juízo Cível da Comarca de Braga sob o nº …/2000;

b) que deve ser eliminada do teor da relação de bens a menção exarada na sua parte final, que diz que o legado efectuado ao autor incide apenas sobre a casa de habitação e um pequeno jardim ou logradouro;

c) que os legados constituem uma unidade predial formada pela “Quinta de CC” e pelos adjacentes Eidos da DD e da EE e respectivas casas, tudo delimitado por caminhos, por ter sido essa a intenção do testador ao instituir os ditos legados, prédio misto hoje com a descrição na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº … e que inclui os artigos matriciais urbanos nº 78, 82 e 83 e o rústico nº 458 da freguesia de Sequeira, Braga; é em conformidade com a descrita unidade predial que a cabeça de casal deve relacionar os bens e os legados no processo de inventário.

d) que a cabeça-de-casal, aqui segunda ré, deve relacionar os bens e os legados no referido processo de inventário.

Alegou, essencialmente, que por testamento outorgado em 18 de Maio de 1995 seu pai lhe legou a Quinta de CC, como unidade predial constituída pela casa, jardim e terrenos adjacentes, o que não foi considerado na relação dos legados apresentada pela cabeça-de-casal no processo de inventário instaurado na sequência do óbito do seu pai, Dr. FF.

Os réus BB e outros apresentaram-se a contestar, excepcionando a ilegitimidade passiva e alegando que a Quinta de CC, à qual o autor pretende ver alargado o legado testamentário, é um imóvel recente, nascido aquando da formação da nova matriz cadastral, cuja alteração foi levada a cabo pelo autor, pois a Quinta de CC era integrada por uma parcela diminuta daquela que o A pretende ver alargada na sua extensão (delimitada através de um muro e de uma cancela) encontrando-se os restantes prédios que o A considera integrados na Quinta de CC autonomizados entre si.

Deduziram pedido reconvencional no sentido de ser ordenado o cancelamento da descrição nº … que engloba os artigos matriciais urbanos nº 78,82 e 83 e o rústico nº 458, da freguesia de Sequeira, Braga, bem como a inscrição da mesma a favor do A.

Os réus GG e mulher contestaram e deduziram reconvenção em conformidade com o articulado apresentado pelos demais réus.

O A apresentou réplica, mantendo a posição defendida na petição inicial e pronunciam-se pela improcedência do pedido reconvencional.

Foi deduzida a intervenção principal provocada de HH, II, JJ e KK, que foi admitida.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, a qual, julgando a acção totalmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente, decidiu:

“1. condenar os réus a ver declarado que:

a) não é correcta a relação dos legados deixada pelo testador, tal como está apresentada pela cabeça de casal no processo de inventário n.º … que corre termos no 2º Juízo Cível desta comarca, na parte final da descrição da verba n.º12, quando a cabeça de casal refere que o testador instituiu o legado do usufruto a favor da interessada LL e o legado da raiz ou nua propriedade a favor do interessado AA, legados estes que incidem, apenas e somente, sobre a casa de habitação e um pequeno jardim de logradouro, tudo devidamente delimitado;

b) deve ser eliminada da verba nº 12 da relação dos legados a menção referida em a);

c) o legado ao A constitui uma unidade predial formada pela “Quinta de CC” composta pela casa referida no facto provado 8º, o jardim referido no facto provado 9º e os terrenos adjacentes que compreendem a bouça de dentro de mato e pinhal que têm a área de 7.206,00 m2, terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha em ramadas, o “Eido” da DD e o “Eido” da EE bem como as casas neles implantadas, devidamente delimitada por ser marginada de todos os lados por caminhos muito antigos, por ter sido essa a vontade do testador, descrito na CR Predial de Braga sob o nº … e que inclui os artigos matriciais urbanos nº 78, 82 e 83 e o rústico nº 458 da freguesia de Sequeira, Braga.

d) a cabeça de casal no processo de inventário deve relacionar o imóvel legado ao A em conformidade com o referido em c).

2. Absolver o A. do pedido reconvencional.”

Desta sentença apelaram os réus MM, GG e NN II – Imobiliária, SA, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 20 de Fevereiro de 2014, julgado o recurso improcedente e confirmado a sentença recorrida.

  De novo inconformados, recorreram de revista os mesmos réus.

  Na respectiva alegação formularam as seguintes conclusões (sic):

«1. A motivação essencial do presente recurso reside na discordância relativamente à interpretação que o douto acórdão sufragou quanto à extensão do prédio objecto do referido legado, designadamente a interpretação relativa à composição da referida "Quinta de CC" que extraiu da declaração, casa de habitação e um pequeno jardim e logradouro tudo devidamente delimitado.

2. A douta sentença recorrida considerou que o testador ao identificar o "logradouro" se quis referir a uma "unidade predial com a área de 25.430,00 m2, em especial a parte agrícola, terrenos adjacentes que compreendem a bouça de dentro de mato e pinhal, terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha em ramadas, o Eido da DD e o Eido da EE bem como as casas neles implantadas." (cfr. pontos 19 e 21 da matéria de facto assente).

3. Dispõe o artº 722°, n" 1, do CPC (art° 674°, nº 1 no NCPC), que, em sede de recurso de revista, pode o recorrente alegar, além da violação de lei substantiva, a violação da lei de processo.

4. Assim, sendo da competência do STJ o julgamento da questão de direito, com base nos factos julgados pelas instâncias, cabe-lhe proceder ao expurgo da matéria conclusiva e de direito incluída nos pontos 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26 da matéria de facto, em violação das disposições do art° 607°, nºs 3, 4 e 5 do NCPC (art°s 264°, n? 1 e 2, 664° e 666°, nº 4 no anterior CPC), para julgar, apenas, com base em "factos", designadamente declarando como não escritas as referidas respostas, na esteira do princípio contido nos art° 646°, nº 4 e 666° do anterior CPC.

5. Tais respostas afiguram-se como de carácter conclusivo, uma vez que, nos seus próprios termos, pré-determinam, em sede de resposta a matéria de facto, a interpretação da vontade do testador.

6. Ilegalidade e consequente pedido de desconsideração que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos decorrentes da mesma, nos termos previstos no artº 674° do NCPC (anteriores art°s 721°, nº 2,722°, nº 1).

7. No douto acórdão recorrido concluiu-se "como o tribunal recorrido, que não existe qualquer delimitação física entre os terrenos".

8. Conforme se refere no douto acórdão recorrido, em jeito de fundamentação para tal conclusão, "a Mmª" Juíza refere na decisão sobre essa matéria o que viu no local, tendo referido que "na inspecção ao local foi possível constatar que a parte do terreno que os réus (aqui recorrentes) alegam ter sido legada ao A. (casa de terreno até à fossa de tis. 675) termina com um socalco suportado, em parte. por um muro acedendo-se ao socalco inferior através de umas escadas".

9. Acrescentando-se ainda no mesmo acórdão que "do depoimento da testemunha OO, resulta que existia um socalco que tinha como função o suporte de terras".

10. Isto posto, verifica-se que aquela conclusão está em absoluta contradição com a referida fundamentação uma vez que a negada existência de delimitação física é evidenciada pela reconhecida existência de um muro e um socalco.

11. Para além disso, o douto acórdão recorrido revela ainda falta de adequada e errada fundamentação, na parte em que refere que "não existe qualquer delimitação entre o jardim e o terreno que a recorrente diz dever ser considerado como logradouro" e quando refere que "também dos referidos depoimentos não resulta que haja qualquer delimitação entre o jardim e o terreno que os réus (aqui recorrentes) dizem ser o logradouro".

12. Ora, é manifesto que a delimitação que estava em causa e que importava apurar se existia ou não, não era a que existisse entre o jardim e o terreno que os recorrentes dizem ser o logradouro.

13. A delimitação em causa nos presentes autos é a que separa o jardim e terreno que os recorrentes entendem corresponder ao logradouro, dos restantes terrenos que o Autor (recorrido) diz fazerem parte do logradouro.

14. Tal é o que resulta do auto de inspecção ao local, que consta da audiência de julgamento do dia 24/09/2012 e que é do seguinte teor:

- O local que os RR. consideram como sendo o legado ao A., termina com um socalco, suportado em parte, por um muro ( ... )

- Prosseguindo no socalco junto à casa em direcção ao muro que confronta com o caminho, existem junto a esse muro, quatro degraus que permitem o acesso ao terreno de baixo e que se encontram no mapa topográfico na sequência da linha que passa junto à fossa.

- Tais escadas, também constam do plano topográfico junto à linha que termina junto ao tanque

15. Por isso que se verifica que os fundamentos invocados no acórdão recorrido para justificar a conclusão da inexistência de delimitação física dos prédios em causa, estão em contradição com a referida conclusão, sendo que deveriam ter conduzido logicamente a conclusão oposta.

16. Assim, a conclusão expedida no douto acórdão no sentido da negação da existência de delimitação física entre os terrenos em causa padece de um vício real no raciocínio do julgador, concretizado em erro notório nos pressupostos de apreciação da questão em causa.

17. Padece ainda do vício de fundamentação contraditória, por omissão de fundamentos de facto e de direito adequados, revelando-se, ademais, contraditórios nos seus termos e com os elementos probatórios constantes dos presentes autos, designadamente o teor do referido auto de inspecção ao local.

18. O que constitui vício gerador de NULIDADE do acórdão, nos termos previstos no art° 615°, nº 1, c) do NCPC (anterior art" 668°, c)), o que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais (cfr., Ac. do STJ de 10/10/2012 - Revista n.º 196/09.6TBAGD.C1.S1 -1.a Secção).

19. Acresce que se verifica que o testador teve o cuidado de especificar o que considerava como incluindo a "Quinta de CC", referindo que aquele prédio era composto por "casa.; de habitação, pequeno jardim e logradouro tudo devidamente delimitado".

20. Com a referida especificação, o testador quis claramente esclarecer e identificar o que incluía aquele prédio, por isso declarou "composto de casa de habitação e um pequeno jardim e logradouro tudo devidamente delimitado", deste modo excluindo do legado outras designações de áreas próximas, como seria o caso dos Eidos da DD e da EE e casas neles implantadas, da Bouça de dentro de mato e pinhal e o terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha e ramadas.

            21. Caso a vontade do testador fosse a de incluir no referido legado mais do que a casa, o jardim e o logradouro, teria certamente tido o cuidado de ser tão preciso como o foi na identificação da composição do prédio em causa.

22. Caso a vontade do testador fosse coincidente com a que lhe foi atribuída na douta sentença recorrida, teríamos certamente uma declaração que, na identificação da composição do legado, para além do jardim e do logradouro, incluiria também uma referência à bouça de dentro de mato e pinhal, o terreno de cultivo, e os Eidos da DD e da EE e respectivas casas.

23. Caso a vontade do testador fosse a de incluir no referido legado mais do que a casa de habitação, o jardim e o logradouro, teria certamente o cuidado de ser tão preciso como o foi na identificação da composição do prédio em causa, designadamente incluindo as restantes casas que integram os Eidos da DD e EE.

24. O testador refere-se apenas a uma casa e não a outras casas.

25. Caso a sua vontade fosse a de incluir no legado as referidas casas dos Eidos da DD e da EE, para além da mencionada "casa de habitação", teria certamente identificado o legado em causa em termos distintos, referindo-se, então, a casas e não apenas à casa de habitação.

26. Caso a vontade do testador fosse coincidente com a que lhe foi atribuída na douta sentença e no acórdão recorrido, teríamos certamente uma declaração que, na identificação da composição do legado, para além do jardim e do logradouro, incluiria também uma referência à bouça de dentro de mato e pinhal, o terreno de cultivo, e os Eidos da DD e da EE e respectivas casas.

27. Por essa razão, verifica-se que a interpretação sufragada na sentença não possui, no contexto, um mínimo de correspondência (art° 2187°, nº 2 do Código Civil).

28. Ademais note-se que, conforme já foi referido e ficou provado, "o testador era pessoa culta e licenciada em letras, sabia falar e escrever e tinha plena consciência do significado das palavras" (cfr. ponto 41 dos factos provados), por isso era pessoa que não tinha qualquer dificuldade em expressar com clareza o sentido da sua vontade.

29. Assim sendo, a interpretação sustentada na douta sentença - na medida em que encerra um juízo contrário à provada capacidade de expressão e significação das palavras do testador - não se pode considerar conforme com a sua vontade

30. Também não se pode aceitar que a pretexto de prova complementar alegadamente produzida se venha a ultrapassar o processo de interpretação para alterar ou modificar o teor do próprio testamento.

31. A interpretação da vontade do testador acolhida da douta sentença recorrida permite" "transformar" um prédio composto de casa de habitação, pequeno jardim e logradouro (conforme descrito no testamento) numa unidade predial composta de casa, jardim e os terrenos adjacentes que compreendem a bouça de dentro de mato e pinhal, terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha em ramadas e ainda os Eidos da DD e da EE, bem como as casas neles implantadas, com á área de 25.430,00 m2.

32. Um logradouro não é manifestamente uma Bouça (de mato e pinhal), nem pode compreender Eidos com casas neles implantadas.

33. Na ausência de definição legal, por logradouro pode entender-se "o terreno contíguo a prédio urbano que é ou pode ser fruído por quem se utilize daquele, constituindo um e outro uma unidade" - cfr.Ac. STJ de 28/02/2008, in www.dgsi.ptl. Proc. 08A075.

34. "Um logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício com o qual constitui uma unidade predial' - Ac. STJ de 6.7.1993, in BMJ, 429-761.

35. "Quanto à expressão "logradouro", civilisticamente, ela tem assento no n02 do artigo 2040 do Código Civil; aí se diz que se entende por "prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro". Daqui decorre que o logradouro sendo, basicamente, terreno, não é edifício; juridicamente, faz parte da unidade predial mas, fisicamente, tem diferença e autonomia; serve o edifício, ou seja, é complementar e serventuário do edifício. - Cfr. Ac. STJ de 28/02/2008, supra referido.

36. De resto, segundo o consignado no referido art° 204°, do Código Civil sempre o logradouro se integra num prédio urbano, nunca podendo abranger outros quaisquer prédios urbanos e muito menos terreno, ou terrenos alguns de natureza rústica.

37. Por assim ser, não se consideram rústicos os logradouros de prédios urbanos, como os pátios e quintais (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. 1°, pág. 131).

38. Acresce que, um terreno que ultrapassa a unidade de cultura da região para efeito de exploração agrícola (que no caso é de 2.000m2), não pode ser considerado mero logradouro (componente de prédio urbano) - cfr. Portaria n.º 202/70, de 4/04.

39. A interpretação declarada na douta sentença recorrida, achada com recurso a elementos externos, acabou por criar uma disposição testamentária nova, que notoriamente se encontra para além da vontade do testador e dos limites estabelecidos no nO 2, do art? 2187°, do Código Civil.

40. Em face disto, considera-se que a interpretação da vontade do testador sustentada na douta sentença recorrida, violou o disposto na citada norma do n.º 2, do art° 2187° do Código Civil, na medida em que tal interpretação - designadamente atento o teor da declaração e o facto do testador ser uma pessoa culta e licenciada em letras, que sabia falar e escrever e tinha plena consciência do significado das palavras - não possui no contexto um mínimo de correspondência.

41. Por outro lado, terá de presumir que o testador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, uma vez que o testamento em causa foi lavrado por Notário Público (neste sentido, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, in Lições de Direito das Sucessões, 4a edição, vol. 1°, pág. 199), que sabe a noção jurídica de logradouro

 42. Aliás, a disposição testamentária em causa está redigida com clareza, vedando, nos seus próprios termos, a interpretação que foi considerada na douta sentença recorrida.

43. No sentido sustentado pelos aqui recorrentes, designadamente quanto à identificação da "delimitação" a que alude a referida declaração do testador, concorrem os factos assentes sob o nºs 8 e 9.

44. E, no que à mesma "delimitação" diz respeito, o auto de inspecção ao local, realizado no dia 24 de Setembro de 2012, que consta da acta de audiência de julgamento dessa data ("O local que os RR. consideram como sendo legado ao A. termina com um socalco, suportado em parte por um muro").

45. Ao que acresce o facto dado como provado no ponto 41 ("o testador era pessoa culta e licenciada em letras, sabia falar e escrever e tinha plena consciência do significado das palavras"),

46. Foram violadas as normas dos art-s 674°, 607°, n.ºs 3, 4 e 5 e 615°, n.º 1 c) do CPC e art°s 204° e 2187° do Código Civil

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO

Deve o presente recurso ser julgado procedente por provado pelas razões de facto e de direito supra expostas, revogando as decisões das Instâncias e decretando improcedência da acção

Contra-alegou o autor, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Fundamentos:

De facto:

   As Instâncias julgaram provada a seguinte facticidade:

1. Correu termos sob o n.º …/2000 do 2º juízo cível da comarca de Braga processo de inventário requerido por PP e mulher, QQ, por óbito de FF, com carimbo de entrada de 28 de Abril de 2000, ali se mencionando o óbito do inventariado como tendo ocorrido em 9 de Janeiro de 1997 e identificando-se o requerente como filho do inventariado (cfr. doc. de fls. 31 a 33, cujos demais termos aqui se dão por reproduzidos) - al. A dos Factos Assentes (FA).

2. Do auto de declarações de cabeça de casal datado de 29.09.2000, que é parte do processo aludido em 1º, consta declarado que o inventariado FF, natural da freguesia de Passos (S. Julião), concelho de Braga, faleceu no dia 9 de Janeiro de 1997 na casa da sua última residência, no estado de viúvo de RR, com testamento a favor de três filhos, tendo deixado por seus herdeiros legitimários onze filhos, assim identificados: BB, casada com SS; LL; AA, casado com TT; UU, casada com VV; PP, casado com QQ; XX, casada com ZZ; AAA, casado com BBB; CCC, casado com DDD; EEE, casado com FFF; MM, casada com GGG e GG, casado com HHH (cfr. doc. de fls. 34 a 37, cujos demais termos aqui se dão por reproduzidos) – al. B dos FA.

3. Por testamento manuscrito outorgado no dia 18 de Maio de 1995, FF, perante a notária adjunta do segundo Cartório Notarial de Braga, disse fazer o seu testamento pela forma ali descrita, ali se referindo, além do mais, que lega a sua filha LL, consigo residente, a plena propriedade do seu prédio urbano onde se encontra, sua casa de residência, bem como o usufruto do respectivo recheio e ainda o usufruto da garagem do prédio urbano e o usufruto do seu “prédio misto denominado “Quinta de CC”, composto de casa de habitação e um pequeno jardim e logradouro tudo devidamente delimitado, sito no Lugar de …, freguesia de Sequeira, concelho de Braga”, bem como do recheio que constitui a parte urbana deste prédio; lega a seu filho AA “a raiz ou nua propriedade do prédio misto atrás legado em usufruto a sua filha LL” e ainda a propriedade plena do prédio rústico denominado “Bodalho de …”, sito no lugar de Penavoente, freguesia de Sequeira; “que os legados feitos à LL e ao AA são imputados quanto a trinta por cento na quota disponível dos bens dele testador e quando à restante parte na legítima de cada um; o legado feito à MM é imputado quanto a dez por cento na quota disponível do testador e quanto à restante parte na sua legítima” (cfr. doc. de fls. 38 a 42, cujos demais termos aqui se dão por integralmente reproduzidos) – al. C dos FA.

4. No âmbito do inventário aludido em 1º, LL, na qualidade de cabeça-de-casal, apresentou relação de bens, na qual, além de outros bens, relacionou, como verba n.º12 (imóveis) o seguinte prédio: Quinta de CC, prédio misto situado no lugar de …, a confrontar de todos os lados com caminho público, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Sequeira sob os artigos 78º, 82º e 83º e na matriz predial rústica sob o artigo 458º e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º…/Sequeira, com o valo patrimonial de trezentos e oito mil cento e vinte e nove escudos, mais identificando como prédios que fazem parte do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Sequeira sob o artigo 458º descrito sob a aludida verba n.º12 os seguintes:

- Prédio rústico denominado Bouça de …, de terra de mato, sito no lugar de Sá, freguesia de Sequeira, a confrontar do nascente e sul com caminho e do norte e poente com FF, inscrito na matriz como parte do artigo 458º (artigo 271º da anterior matriz da mesma freguesia) e descrito na Conservatória de registo Predial sob o n….;

- Prédio misto, composto de casa e eido da III, sito no lugar de …, freguesia de Sequeira, a confrontar do norte e nascente com caminho e do sul e poente com FF, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 81º e na matriz predial rústica como parte do artigo 458º (art. 272º da anterior matriz da mesma freguesia) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … – al. D dos FA.

5. Na parte final da descrição da verba n.º 12 aludida em 4º referiu a cabeça-de-casal que no tocante à referida verba o testador instituiu o legado do usufruto a favor da interessada LL e o legado da raiz ou nua propriedade a favor do interessado AA, legados estes que incidem, apenas e somente, sobre a casa de habitação e um pequeno jardim de logradouro, tudo devidamente delimitado (cfr. doc. de fls. 43 a 52, cujos demais termos aqui se dão por integralmente reproduzidos) – al. E dos FA.

6. Com data de 12 de Janeiro de 2001, o interessado AA apresentou, no inventário aludido em 1º, impugnação das declarações de cabeça de casal e reclamação contra a relação de bens, alegando, além do mais, que foram omitidos bens que existiam na herança do inventariado, que existem incorrecções na descrição da verba n.º10 e na identificação das verbas n.º11 e 12, que foi omitida a relacionação de um prédio e que foi mal interpretada a intenção do testador no que respeita à designação Quinta de CC, requerendo que seja eliminada a menção exarada na parte final da relacionação da verba n.º12 na parte em que se diz que os legados incidente apenas sobre a casa de habitação e um pequeno jardim ou logradouro, visto tais deixas terem por objecto a Quinta de CC na sua totalidade, com a composição que o reclamante indica no ponto 8.3 do seu requerimento – casa, logradouro, terrenos de lavradio e bouça que a circundam, formando uma unidade predial composta pela Quinta de CC e pelos eidos adjacentes da DD e da EE e respectivas casas, tudo delimitado de todos os lados por caminhos muito antigos (cfr. doc. De fls. 57 a 65, cujos demais termos aqui se dão por integralmente reproduzidos) – al. F dos FA.

7. Por despacho datado de 27 de Fevereiro de 2002 foi apreciada a reclamação apresentada e aludida em 6º, bem como a reclamação apresentada pelos demais interessados, tendo-se concluído, no que respeita à interpretação da vontade real do testador relacionada com os legados instituídos por referência à Quinta de CC, que não existiam elementos suficientes que permitissem a decisão da questão, decidindo-se remeter nessa parte os interessados para os meios comuns (cfr. doc. de fls. 76 a 87, cujos demais termos aqui se dão por integralmente reproduzidos) – al. G dos FA.

8. É do conhecimento de todos que a “casa de habitação” aludida em 3º era a casa de residência do seu proprietário, com o eixo orientado NNE/SSW, com cinco quartos, uma quarto de banho, uma sala de jantar, uma sala de estar ou visitas, um corredor, uma cozinha e um anexo superior mirante, com áreas de adega e celeiro e outras arrecadações agrícolas no rés-do-chão (lojas) e com adjacentes típicos de casa agrícola da região, alpendres destinados a arrecadações e a quarto de criados de lavoura, lagar, lagareta para vinho, fornos de cozer broa, cozinha para os animais, cortes de gado, um alpendre para arrecadação de lenhas, zona de lazer, galinheiros, um espigueiro e espaço envolvente de desfolhadas, secagem de cereais e palhas e lenhas, pátio ou terreiro, um tanque grande e quatro tanques pequeno servidos por água de mina – al. H dos FA.

9. Também se encontra devidamente delimitado um pequeno jardim, estando-o a nascente pelo muro que dá para o caminho 13.19.1, do sul pela casa e do ponte e norte por caleiros em granito para condução de água, tendo o mesmo jardim canteiros com marcações em murta e plantas e árvores típicas desses espaços, havendo acesso do jardim à casa através de escadaria em granito com dois lanços e três patamares e havendo dele acesso ao socalco a norte por escada de quatro degraus em pedra encostada ao muro de nascente – al. I dos FA.

10. O testador tinha em seu poder, como documento de título base das suas propriedades, uma certidão da Conservatória do Concelho de Braga, datada de 29 de Agosto de 1877, documento oficial que o próprio encimou, por seu punho e manuscrito, com a expressão “Registo da Quinta de CC”, com o que assim se reportava a todo o dito conjunto alargado de propriedades a que era dado genericamente o nome de Quinta de CC, ali se referindo que a mesma é composta de um conjunto de propriedades, referindo-se a primeira como uma morada de casas com suas lojas e um eido junto, que produz pão, vinho e mato e tem água de rega e lima, confina do nascente e norte com o caminho que vai para o lugar de Traz do …, pelo sul com dito para o lugar do C… e pelo poente com dito que vem da Quintam Velha (cfr. doc. de fls. 91 a 103, cujo teor aqui se tem por reproduzido) – al. J dos FA.

11. Em 28.08.1925, as então donas da Quinta de CC transmitiram à sua criada, JJJ, por alcunha “DD”, uma das parcelas, destacando-a do conjunto, que passou a tomar o nome de “Eido da DD”, obtendo autonomia registral – al. K dos FA.

12. As referidas donas transmitiram ainda aos seus afilhados, ditos “Maiatos”, em 01.06.1928, uma outra parcela, que passou a tomar o nome de “Eido da EE”, obtendo autonomia registral – al. L dos FA.

13. O testador, na geração seguinte, readquiriu aquelas duas parcelas que, com a autonomia registral referida, voltaram a integra-se na unidade predial da Quinta de CC a que anteriormente pertenciam – al. M dos FA.

14. A intenção de transmitir a Quinta de CC ao ora autor foi revelada pelo testador num escrito pessoal, através de apontamento ou rascunho de seu punho, efectuado numa agenda de 1986, sendo hábito do falecido tomar notas em agendas dos assuntos que considerava importantes, sem referência cronológica – al. N dos FA.

15. No seu apontamento pessoal referiu o testador o seguinte: "Encontrando-me nesta data em perfeita lucidez e reconhecendo que a vida além dos oitenta anos já é excepção, entendo que é tempo de dispor dos bens que possuo (…) Tenho 11 filhos que muito estimo e a todos quero igualmente (…) Porém reconheço que é o AA o que mais se tem interessado pela Quinta de CC sem qualquer benefício e que é o único capaz, pelo que demonstrado, conservar essa relíquia que já vem dos seus trisavós. Mais referiu que na impossibilidade de conservar toda a quinta unida porque não quero prejudicar os seus irmãos, determino que a casa de Sá, com terrenos juntos sejam para o AA, limitados a norte por com. n.º, sul e poente caminho que vai do n.º.. ao número …, passando pela Quintã Velha e casas em ruínas denominadas da III e EE, com todas as suas pertenças, águas casa e eido da EE em ruínas e casa da DD, bem como o direito …ao subsolo das bouças de Sá e bodalho: para limpeza e também prolongamento das minas que conduzem a água para a casa e terras de Sá pomar, laranjal e leirões(…) Se na divisão da herança se verificar que esta não chega para que a parte referida caibam ao meu filho AA fica este com o direito de utilizar da cota disponível” – terça – da parte necessária para que ele fique com esta parte (cfr. doc. de fls. 104 a 106) – al. O dos FA.

16. No escrito aludido em 15º o testador justificou a deixa de usufruto à filha LL referindo que “enquanto viva ficará com o direito de usufruir o jardim de Sá e viver na casa se assim o desejar” – al. P dos FA.

17. Sob o artigo rústico 458º encontra-se inscrito um prédio denominado como Quinta de CC, sito em Sá, Sequeira, composto por terreno de cultivo, vinho em ramada e enforcado, pomar, fruteiras, pinhal e mato, a confrontar do norte, sul e nascente com caminho público e do poente com o próprio, sendo o titular do direito ao rendimento FF (cfr. doc. de fls. 107 e 108, cujos demais termos aqui se dão por reproduzidos) – al. Q dos FA.

18. Sob o n.º467 da Conservatória de registo Predial de Braga, freguesia de Sequeira, encontra-se descrito o prédio misto denominado Quinta de CC, ali identificado como composto por casa sobradada, com área coberta de 474m2 e descoberta de 370m2, casa térrea com a área coberta de 64m2, casa sobrada com a área coberta de 75m2 e descoberta de 10m2 e terreno de cultivo, vinho, ramada e enforcado, pinha e mato com 25.400m2, sito em Sá, a confrontar do norte, sul, nascente e poente com caminhos públicos, correspondente aos artigos urbanos 78º, 82º e 83º e rústico 458º, estando o referido prédio inscrito em nome do ora autor por apresentação datada de 10 de Fevereiro de 2000, por aquisição por legado de FF, estando o usufruto inscrito a favor de LL (cfr. doc. De fls. 115 a 119, cujos demais termos aqui se dão por reproduzidos) – al. R dos FA.

19. No testamento referido em 3º, o testador pretendeu referir-se ao prédio misto composto pela casa referida em 8º, o jardim referido em 9º e terrenos adjacentes, com a área total de 25.430,00 m2, constituindo, à data de elaboração do testamento, uma unidade predial marginada por todos os lados por caminhos muito antigos – resp. 1º a 6º da BI (Base Instrutória).

20. À data do testamento, a denominação Quinta de CC reportava-se a tal unidade predial e anteriormente havia sido aplicada a uma maior extensão na posse da família da falecida mulher do testador há mais de 200 anos – resp. 7º e 8º da BI.

21. A unidade predial que compõe a Quinta de CC contém a casa, o jardim e os adjacentes terrenos que compreendem a bouça de dentro de mato e pinhal têm a área de 7.206,00 m2, terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha em ramadas, o “Eido” da DD e o “Eido” da EE bem como as casas neles implantadas – resp. 9º a 14º da BI.

22. A Quinta de CC, enquanto unidade predial marginada por todos os lados por caminhos, corresponde a uma área global de, pelo menos, 22.000 m2, encontra-se devidamente delimitada e é como tal conhecida de todos, designadamente A. e RR, o que ocorre por ser marginada de todos os lados por caminhos muito antigos – resp. 15º a 18º da BI.

23. A delimitação global da Quinta permite distinguir a unidade predial por ela formada das demais propriedades do casal do testador, que a envolvem – resp. 19º da BI.

24. As propriedades que envolvem a Quinta de CC eram originariamente consideradas Quinta de CC ou Terras de Sá – resp. 20º da BI.

25. Em vida o testador denominava como “Quinta de CC” a área composta de casa, jardim e terrenos adjacentes aludidos em 21º e 22º e quis transmiti-la ao A tal como a denominava, distinguindo tal denominação daquela que era dada em tempos anteriores a um vasto conjunto de prédios – resp. 22º, 23º e 27º da BI

26. A primeira verba aludida em 10º correspondia à Quinta de CC na acepção restrita considerada pelo testador e incluía duas parcelas mais tarde autonomizadas com as denominações de DD e EE – resp. 24º e 25º da BI.

27. O testador promoveu a integração matricial das duas parcelas aludidas em 11º e 12º num mesmo artigo matricial designado com o restante como Quinta de CC – resp. 26º da BI.

28. Sendo essa sua intenção conhecida de todos os seus filhos e de estranhos – resp. 28º da BI.

29. O A. foi sempre aquele que mais se interessou pela Quinta de CC, foi o único dos filhos do testador que manifestou aptidão, interesse e disponibilidade para a exploração agrícola do prédio Quinta de CC e essa disponibilidade era para o prédio no seu todo – resp. 29º a 31º da BI.

30. O A. explorava o prédio Quinta de CC no seu todo em vida do pai e por incumbência deste, o que sucedia desde 1978 – rep. 32º e 33º da BI.

31. O A. era o único dos irmãos que habitava a casa nas férias e fins-de-semana com a família – resp. 34º da BI.

32. O testador pretendia conservar na mão de uma só família a relíquia que vinha dos trisavós do A e considerava como tal a Quinta de CC que constituía a unidade predial marginada por todos os lados por caminhos muito antigos, com a área total de 25.430,00 m2, em especial a parte agrícola – resp. 35º a 37º da BI.

33. Era intenção do testador entregar a Quinta de CC a quem dava garantias de bem cuidar dela – resp. 39º da BI.

34. Os factos referidos em 32º e 33º constituíram as justificações para o legado instituído a favor do A. – resp. 40º da BI.

35. Com a menção à inclusão do direito ao subsolo das bouças de Sá e bodalho aludida em 15º o testador pretendia sobretudo garantir o aproveitamento da água para a agricultura da parte da Quinta de CC que são os seus terrenos unificados – resp. 41º da BI.

36. O que concretizou ao legar ao A. a propriedade plena do prédio rústico que fez constar do testamento referido em 3º como sendo Bodalho de Cima – resp. 42º da BI.

37. É no subsolo do Bodalho de Baixo que se localizam as nascentes que fornecem a água do tanque da bouça de dentro que é canalizada para consumo da casa e a água para irrigação da Quinta e Sá vem de outras nascentes – resp. 43º da BI.

38. Sem essa água a exploração agrícola da Quinta de CC seria inviável – resp. 44º da BI.

39. O A. e a 2ª R. tiveram, até à morte do pai de ambos, uma boa relação – resp. 45º da BI.

40. O testador procedeu pessoalmente ao processo de emparcelamento da Quinta de CC e integrou por requerimento seu a Quinta de CC, o Eido da III e o Eido da EE num artigo matricial rústico único referido em 17º que substituiu um maior número de matrizes – resp. 49º a 51º da BI.

41. O testador era pessoa culta e licenciada em letras, sabia falar e escrever e tinha plena consciência do significado das palavras – resp. 60º e 62º da BI.

    De direito:

Traçados os limites do objecto do recurso pelas conclusões das alegações dos recorrentes e não havendo matérias de conhecimento oficioso a apreciar, são três as questões nucleares a dilucidar e que passam a enunciar-se:

- nulidade do acórdão recorrido fundada em contradição entre a matéria de facto provada e a conclusão extraída no sentido da negação da existência de delimitação física entre os terrenos em causa;

- eliminação da matéria de facto provada os pontos 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e 26 por conterem  matéria conclusiva e de direito, em violação das disposições dos artigos 607°, nºs 3, 4 e 5 do NCPC (art°s 264°, nºs 1 e 2, 664° e 666°, nº 4 no anterior CPC);

- interpretação da vontade do testador.

1. As causas de nulidade da sentença, despacho ou acórdão estão expressamente consignadas, de forma taxativa, no artigo 615º do actual Código de Processo Civil, vigente na data em que foi proferido o acórdão recorrido e, por isso, aplicável, conforme decorre do disposto no artigo 7º nº 1 da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.

Aquelas nulidades afectam a validade do acórdão en­quanto acto processual, não se aplicando à decisão de facto.

A invocada contradição entre a matéria de facto provada e a conclusão extraída no sentido da negação da existência de delimitação física entre os terrenos em causa não cabe no elenco dos vícios geradores da nulidade do acórdão recorrido.

Efectivamente, só a contradição ou oposição entre os fundamentos e a decisão é susceptível de integrar a nulidade prevista no artigo 615º nº 1 al. c) do Código de Processo Civil, vício que só ocorre quando falta coerência ou nexo lógico entre ambos, impedindo que o segmento decisório se assuma como necessário corolário lógico da respectiva fundamentação. 
No caso que nos ocupa, a alegação dos recorrentes não integra oposição entre a fundamentação e a decisão, mas uma pretensa contradição entre o juízo probatório formulado acerca de dois segmentos ou pontos da matéria de facto.

A oposição, a existir, cairia na previsão da parte final da al. c) do nº 2 do artigo 662º nº 2 al. c) e do artigo 682º nº 3 do Código de Processo Civil, não sendo reconduzível ao vício resultante da oposição entre os fundamentos e a decisão.

Não ocorre, por conseguinte, a invocada causa de nulidade do acórdão recorrido.

2. Defendem os recorrentes que os pontos 19º a 26º da matéria de facto provada devem ser eliminados por conterem matéria conclusiva e de direito, em violação das disposições dos artigos 607° nºs 3, 4 e 5 do novo Código de Processo Civil (artigos 264° nºs 1 e 2, 664° e 666°, nº 4 do anterior Código de Processo Civil).

De harmonia com o disposto no artigo 511º nº 1 do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, em vigor ao tempo em que foi elaborada a base instrutória nos presentes autos, nesta peça processual deviam incluir-se apenas os factos controvertidos alegados pelas partes com relevância para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, expurgados de conceitos de direito, sob pena de se considerarem não escritos, conforme estatuído no nº 4 do artigo 646º do mesmo código.

No caso vertente, a matéria de facto em causa é a seguinte:

«19. No testamento referido em 3º, o testador pretendeu referir-se ao prédio misto composto pela casa referida em 8º, o jardim referido em 9º e terrenos adjacentes, com a área total de 25.430,00 m2, constituindo, à data de elaboração do testamento, uma unidade predial marginada por todos os lados por caminhos muito antigos – resp. 1º a 6º da BI (Base Instrutória).

20. À data do testamento, a denominação Quinta de CC reportava-se a tal unidade predial e anteriormente havia sido aplicada a uma maior extensão na posse da família da falecida mulher do testador há mais de 200 anos – resp. 7º e 8º da BI.

21. A unidade predial que compõe a Quinta de CC contém a casa, o jardim e os adjacentes terrenos que compreendem a bouça de dentro de mato e pinhal têm a área de 7.206,00 m2, terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha em ramadas, o “Eido” da DD e o “Eido” da EE bem como as casas neles implantadas – resp. 9º a 14º da BI.

22. A Quinta de CC, enquanto unidade predial marginada por todos os lados por caminhos, corresponde a uma área global de, pelo menos, 22.000 m2, encontra-se devidamente delimitada e é como tal conhecida de todos, designadamente A. e RR, o que ocorre por ser marginada de todos os lados por caminhos muito antigos – resp. 15º a 18º da BI.

23. A delimitação global da Quinta permite distinguir a unidade predial por ela formada das demais propriedades do casal do testador, que a envolvem – resp. 19º da BI.

24. As propriedades que envolvem a Quinta de CC eram originariamente consideradas Quinta de CC ou Terras de Sá – resp. 20º da BI.

25. Em vida o testador denominava como “Quinta de CC” a área composta de casa, jardim e terrenos adjacentes aludidos em 21º e 22º e quis transmiti-la ao A tal como a denominava, distinguindo tal denominação daquela que era dada em tempos anteriores a um vasto conjunto de prédios – resp. 22º, 23º e 27º da BI

26. A primeira verba aludida em 10º correspondia à Quinta de CC na acepção restrita considerada pelo testador e incluía duas parcelas mais tarde autonomizadas com as denominações de DD e EE – resp. 24º e 25º da BI.»

Esta questão prende-se com a fronteira entre matéria de facto e matéria de direito, vexata questio sobre a qual a doutrina e a jurisprudência se vêm debruçando.

Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei» (Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, págs. 206-207).

Para Miguel Teixeira de Sousa, «A selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica (Estudos sobre o Processo Civil, Lex, p. 312).

Na expressão de A. Varela, M Bezerra e Sampaio e Nora, factos são as ocorrências concretas da vida real, os acontecimentos concretos da realidade (Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, p.406).

Como faz notar Anselmo de Castro, para o efeito de distinguir facto e direito “é indiferente a natureza do facto: são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos. Do conteúdo que deve revestir decidirá apenas a norma legal” (Direito processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina 1982, p. 268).

Também a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que a intenção, o convencimento, enquanto realidades do mundo psicológico, fazem parte das realidades de facto.

Como se assinala no Acórdão deste Supremo Tribunal de 16.10.2012, Proc. nº 649/04.2TBPDL.L1.S1, (acessível em www.dgsi.pt/jstj) «já no Assento de 19-10-1954 se escrevia que “averiguar a intenção dos outorgantes ou do testador é averiguar um fenómeno psicológico o que, à evidência, não constitui matéria de direito, mas pura matéria de facto” (R.L.J., Ano 87º, n.º 3035, pág. 224); assim se entendeu no Ac. do S.T.J. de 4-10-2001 (Simões Freire), revista n.º 2485/01- 2ª secção [2] que "são quesitáveis os actos de foro interno e os juízos de facto, entendidos estes como dirigidos ao "ser", ontologicamente concebido, e não ao dever ser normativo" e, no âmbito de acção de simulação, considerou -se no Ac. do S.T.J. de 7-3-2002 (Ferreira de Almeida), revista n.º 4129/01- 2ª secção que "a determinação da intenção dos contraentes, designadamente do animus decipiendi, integra matéria de facto cujo apuramento é apanágio exclusivo das instâncias e cujo ónus de dedução e de prova impende sobre o demandante - arguente". De igual modo se considerou no Ac. do S.T.J. de 18-12-2003 (Ferreira de Almeida) P. 3794/2003 que a determinação da intenção dos contraentes, designadamente o intuito de enganar terceiros, bem como a questão de saber se o declaratário conhecia a vontade real do declarante constitui matéria de facto cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, satisfeitos que sejam - é claro - o ónus da alegação e da prova da banda do demandante. O Supremo, como tribunal de revista, só conhece, em princípio, de matéria de direito, limitando-se a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido».

Factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais, os eventos do foro interno, psíquico. Realidades como dores, sofrimento moral, conhecimento da vontade real do declarante ou a intenção do testador integram o conceito de matéria de facto processualmente relevante, sendo passíveis de prova.

Assim considerando, os pontos que os recorrentes pretendem ver expurgados da matéria de facto provada podiam ser integrados, como foram, na base instrutória e ser objecto de prova por incidirem sobre realidade material de facto.

Com efeito, os pontos 20 a 26 constituem, indubitavelmente, matéria de facto, reportando-se à evolução da “Quinta de CC”, também conhecida por “Terras de Sá”, denominação dada em tempos a um vasto conjunto de prédios, cuja extensão e composição se foi alterando, sendo na data em que foi outorgado o testamento constituída por uma área composta de casa, jardim e terrenos adjacentes, compreendendo a bouça de dentro de mato e pinhal com a área de 7.206,00 m2, terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha em ramadas, o “Eido” da DD e o “Eido” da EE, bem como as casas neles implantadas (respostas aos artigos 9º a 14º da base instrutória). Mais esclarecendo que a aludida “Quinta de CC”, enquanto unidade predial marginada por todos os lados por caminhos, corresponde a uma área global de, pelo menos, 22.000 m2, encontra-se devidamente delimitada e é como tal conhecida de todos, designadamente autor e réus, o que ocorre por ser marginada de todos os lados por caminhos muito antigos (respostas aos artigos 15º a 18º da base instrutória).

Trata-se de facticidade concretizadora da composição e extensão da “Quinta de CC” na data em que foi lavrado o testamento e reveladora do sentido que lhe era atribuído pelo testador como o evidenciam o segmento inicial do ponto 25 ao referir que «Em vida o testador denominava como “Quinta de CC” a área composta de casa, jardim e terrenos adjacentes aludidos em 21º e 22º» e o ponto 26, no qual se refere que «A primeira verba aludida em 10º correspondia à Quinta de CC na acepção restrita considerada pelo testador e incluía duas parcelas mais tarde autonomizadas com as denominações de DD e EE».

Já o ponto 19 e a segunda parte do ponto 25 se predem com a intenção do testador, com o elemento volitivo, uma vez que ali se julgou provado, em resposta aos artigos 1º e 6º da base instrutória, que «No testamento referido em 3º, o testador pretendeu referir-se ao prédio misto composto pela casa referida em 8º, o jardim referido em 9º e terrenos adjacentes, com a área total de 25.430,00 m2, constituindo, à data de elaboração do testamento, uma unidade predial marginada por todos os lados por caminhos muito antigos» e, em resposta aos artigos 22º, 23º e 27º da mesma base instrutória, que o testador quis transmitir ao autor a “Quinta de CC” «tal como a denominava, distinguindo tal denominação daquela que era dada em tempos anteriores a um vasto conjunto de prédios».

Esta facticidade, sendo essencial ou nuclear, contempla realidade material de facto, já que incide sobre a vontade do testador, e mostra-se complementada com a alegação de outros factos, que lhe dão suporte, os quais, tendo sido incluídos na base instrutória, resultaram igualmente provados.

É o caso dos demais pontos de facto cuja supressão os recorrentes defendem e que são reveladores de que a denominada “Quinta de CC” não correspondeu sempre à mesma realidade física, permitindo discernir qual a sua extensão e composição na data em que foi lavrado o testamento e conduzir, em conjunto com outros, à vontade do testador.

Não sendo imperiosa a inserção autónoma de factos essenciais na base instrutória, como a vontade ou a intenção do testador, a qual pode derivar de um conjunto de factos que a revelem, nada impede que tal suceda (cfr. citado Acórdão deste Supremo Tribunal de 16.10.2012).

Ainda que se questionasse a admissibilidade da formulação de quesitos referentes a estados psíquicos ou à intenção ou a qualquer estado de espírito quando desacompanhados de quaisquer outros pontos de facto coadjuvantes alegados como reveladores da vontade interior, tal objecção não teria cabimento, no caso vertente, uma vez que a base instrutória contemplou factos susceptíveis de integrar e contextualizar a manifestação exterior dessa vontade, nomeadamente, os respeitantes ao entendimento que o testador tinha da “Quinta de CC” à data do testamento e os constantes dos pontos 29 a 38 e 40.

Com efeito, resultou também provado que o autor foi sempre o que mais se interessou pela “Quinta de CC”, foi o único dos filhos do testador que manifestou aptidão, interesse e disponibilidade para a exploração agrícola desse prédio no seu todo, o que fez em vida do pai e por incumbência deste desde 1978, e que o testador pretendia conservar na mão de uma só família a relíquia que vinha dos trisavós do autor e considerava como tal a “Quinta de CC”, que constituía a unidade predial marginada por todos os lados por caminhos muito antigos, com a área total de 25.430,00 m2, em especial a parte agrícola.

Também ficou demonstrado que com a menção à inclusão do direito ao subsolo das bouças de Sá e bodalho o testador pretendia garantir, sobretudo, o aproveitamento da água para a agricultura da parte da “Quinta de CC”, que são os seus terrenos unificados, o que concretizou ao legar ao autor a propriedade plena do prédio rústico que fez constar do testamento como sendo Bodalho de Cima, uma vez que é no subsolo do Bodalho de Baixo que se localizam as nascentes que fornecem a água do tanque da bouça de dentro que é canalizada para consumo da casa e a água para irrigação da Quinta e Sá vem de outras nascentes, sendo que sem essa água a exploração agrícola da “Quinta de CC” seria inviável.

Resultou provado ainda que o testador procedeu pessoalmente ao processo de emparcelamento da “Quinta de CC” e integrou por requerimento seu a Quinta de CC, o Eido da III e o Eido da EE num artigo matricial rústico único que substituiu um maior número de matrizes, o que era do conhecimento dos filhos.

Não suscitam, por conseguinte, qualquer reparo os pontos de facto, cuja supressão os réus pretendem, por versarem sobre factos materiais respeitantes ao foro interno do testador, uns, e à determinação do alcance material ou da identidade física da denominada “Quinta de CC”, outros, na data do testamento e na perspectiva do autor do testamento.

3. Posto isto, resta apreciar se a interpretação da vontade do testador sustentada no acórdão recorrido violou o disposto no n.º 2 do artigo 2187° do Código Civil, como sustentam os recorridos, defendendo que a interpretação perfilhada no acórdão recorrido não possui, no contexto, um mínimo de correspondência atento o teor da declaração inserta no testamento e o facto de o testador ser uma pessoa culta e licenciada em letras, que sabia falar e escrever e tinha plena consciência do significado das palavras, conforme resultou provado, sendo de presumir que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, uma vez que o testamento em causa foi lavrado por notário público, que sabe a noção jurídica de logradouro, querendo com a utilização desta palavra delimitar o legado instituído em benefício do autor, incluir no legado apenas o terreno que “termina com um socalco, suportado em parte por um muro".

De harmonia com o conceito inserto no artigo 2179º nº 1 do Código Civil, testamento é “o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles”. Trata-se de um acto de disposição patrimonial, mortis causa, que reveste a natureza de um negócio jurídico unilateral não receptício, fruto da vontade exclusiva do autor da sucessão, livremente revogável, que não confere ao seu beneficiário mais do que uma mera expectativa de suceder, posto que o herdeiro ou legatário só à morte daquele adquire um verdadeiro direito sobre os bens deixados, ingressando, então, no seu património (cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões, 6ª ed., (Reimpressão), Coimbra Editora, p. 119, e Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra 1992, pp. 332/334).

A instituição de sucessor – herdeiro ou legatário – por via de disposição testamentária implica uma tarefa de interpretação e outra de qualificação, em que importa descobrir, em primeiro lugar, a voluntas testatoris, segundo os critérios legais de hermenêutica testamentária.

Constituindo um acto da vontade exclusiva do testador, que só produz efeitos com a sua morte, a interpretação do sentido da vontade expressa no testamento há-de ser feita com base no estatuído no artigo 2187º do Código Civil, não lhe sendo aplicáveis os critérios interpretativos estabelecidos no artigo 236º do mesmo código para os negócios jurídicos em geral.

De acordo com o nº 1 do citado artigo 2187º “na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento” (nº 1), estabelecendo o seu nº 2 que “é admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa”.

À luz deste normativo e seguindo o ensinamento de Pereira Coelho, “O intérprete deve procurar descobrir a vontade real do testador, mesmo através de prova complementar ou extrínseca ao testamento, e é com esse sentido que ele deve valer, contanto que tal vontade tenha no contexto do testamento «um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa».” (loc. cit., p. 337).

O legislador afastou-se neste domínio da doutrina objectivista da impressão do destinatário, consagrando um citério subjectivista centrado na vontade real do testador, ou seja, na sua intenção, embora esta vontade tenha de encontrar apoio num mínimo de formalização, como se dá nota no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2014, proferido no Proc. 1837/10.8TBCTB.C1.S1 (acessível em www.dgsi.pt/jstj).

No caso em análise e no que ora releva, o testador legou ao autor a raiz ou nua propriedade do prédio misto denominado “Quinta de CC”, composto de casa de habitação e um pequeno jardim e logradouro tudo devidamente delimitado, sito no Lugar de Sé, freguesia de Sequeira, concelho de Braga.

Os réus entendem que com a referida especificação o testador quis claramente esclarecer e identificar o que incluía aquele prédio, excluindo do legado outras designações de áreas próximas, como seria o caso dos Eidos da DD e da EE e casas neles implantadas, da Bouça de dentro de mato e pinhal e o terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha e ramadas.

Contudo, os factos provados mostram que o testador pretendeu referir-se no testamento ao prédio misto composto pela casa, o jardim e terrenos adjacentes, com a área total de 25.430,00 m2, ou seja, à unidade predial que à data formava a “Quinta de CC” tal como era conhecida por todos, incluindo autor e réus, e era designada pelo de cujus na data em que lavrou testamento público. Unidade predial marginada por todos os lados por caminhos, compreendendo os terrenos adjacentes a bouça de dentro de mato e pinhal, terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha em ramadas, o “Eido” da DD e o “Eido” da EE, bem como as casas neles implantadas.

Essa intenção de transmitir a “Quinta de CC” ao autor fora já revelada pelo testador num escrito pessoal, através de apontamento ou rascunho de seu punho, efectuado numa agenda de 1986, sendo hábito do falecido tomar notas em agendas dos assuntos que considerava importantes, sem referência cronológica.

O testador pretendia conservar na mão de uma só família a relíquia que vinha dos trisavós do autor, sendo sua intenção entregar a “Quinta de CC” a quem dava garantias de bem cuidar dela, no caso, o autor, como explicitou no texto que deixou escrito.

Esta interpretação do testamento feita pelo autor e sufragada pelas Instâncias encontra suporte no contexto do testamento, ao contrário do que defendem os réus, argumentando que a mesma extravasa o conceito jurídico de logradouro, na acepção que lhe é dada pelo nº 2 do artigo 204º do Código Civil, do qual se retira que o conceito de logradouro, é privativo dos prédios urbanos, e que o testador, sendo pessoa culta e licenciada em letras, sabia falar e escrever e tinha plena consciência do significado das palavras.

Note-se que o testador legou a raiz ou nua propriedade do prédio misto denominado “Quinta de CC”, composto de casa de habitação e um pequeno jardim e logradouro. A utilização da palavra logradouro entendida com o sentido técnico-jurídico que os réus lhe atribuem na interpretação que fazem da vontade do testador, com apelo ao nível cultural e intelectual do mesmo, não se harmoniza com o sentido técnico-jurídico da expressão prédio misto igualmente utilizada pelo testador para se referir à “Quinta de CC” por si legada ao autor, sabido como é que esta designação corresponde a um prédio constituído por uma parte urbana e uma parte rústica (cfr. artigo 82º nº 1 al. b) do Código do Registo Precial), que não um mero logradouro no sentido de terreno afecto a um prédio urbano.

Perante a globalidade da prova produzida, a referência a logradouro inserta no testamento não permite, por si só, interpretar a vontade real do testador com o sentido ou alcance restritivo que os réus lhe atribuem.

No contexto em que foi utilizada, reportada ao prédio misto denominado “Quinta de CC”, entendido por todos, incluindo o de cujus na data em que lavrou testamento, como a unidade predial marginada por todos os lados por caminhos constituída por casa, jardim e terrenos adjacentes, compreendendo a bouça de dentro de mato e pinhal, terreno de cultivo com horta, pomar, laranjal, vinha em ramadas, o “Eido” da DD e o “Eido” da EE, bem como as casas neles implantadas, tem de concluir-se pelo acerto da interpretação da vontade do testador realizada pelas Instâncias.

3. Nesta conformidade, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 7 de Maio de 2015

Fernanda Isabel Pereira (Relatora)



Pires da Rosa

Maria dos Prazeres Beleza

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[1] E não Manuel José da Cunha Osório Ferreira de Araújo, como por lapso se consignou na sentença e no acórdão recorridos.