Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B4176
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
RECONSTITUIÇÃO NATURAL
PERDA DE VEÍCULO
DANOS MORAIS
Nº do Documento: SJ20601120041767
Data do Acordão: 01/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 1138/05
Data: 06/22/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1. A reconstituição natural é inadequada se for manifesta desproporção entre o interesse do lesado e o custo para o lesante que ela envolva, em termos de representar para o último um sacrifício manifestamente desproporcionado quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património.
2. Não basta para se aferir da onerosidade da reparação in natura de um veículo automóvel a consideração do seu valor venal ou de mercado, antes se impondo o seu confronto com o valor de uso que o lesado dele extrai pelo facto de dele dispor para a satisfação das suas necessidades.
3. Justifica-se, por não ser inadequada, a reparação do veículo automóvel matriculado em 1983, melhorado, bem conservado, com 111.410 quilómetros andados, cujo custo excede o seu valor de mercado em € 1.247.
4. A mera privação do uso de um veículo automóvel, sem qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, se dela não resultar um dano específico, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil.
5. Na determinação do quantum da compensação por danos não patrimoniais deve atender-se à culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, à flutuação do valor da moeda e à gravidade do dano, tendo em conta as lesões, as suas sequelas e o sofrimento físico-psíquico por ele experimentado, sob o critério objectivo da equidade, envolvente da justa medida das coisas, com exclusão da influência da subjectividade inerente a particular sensibilidade.
6. É adequada a compensação por danos não patrimoniais no montante de € 12.500 à lesada que sofreu lesões corporais múltiplas, dores persistentes e constantes, foi submetida a diversos exames, passou a ter insónias, cansaço, irritação, ansiedade e nervosismo, teve de se submeter a terapêutica de cura desses efeitos e a cerca de um mês de dolorosa fisioterapia, ficou com um doloroso nódulo fibroso e hipertrofia muscular numa perna e com cinco por cento de incapacidade permanente de âmbito geral.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I

"A", B e C intentaram, no dia 22 de Novembro de 2002, contra Empresa-D, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhes € 10.275,24, juros de mora à taxa legal a contar da data da citação e € 20 por dia desde 22 de Outubro de 2002 até à reparação efectiva do veículo automóvel com a matrícula nº ND ou à sua substituição por outro com as mesmas características, e só a C a quantia de € 21.746,96 e juros de mora à taxa legal desde a citação, com fundamento na danificação daquele veículo automóvel e nas lesões sofridas pela última na colisão com o veículo automóvel matriculado sob o nº E 7355, conduzido por E, por conta e no interesse de F, no dia 21 de Outubro de 2001, às 19.05 horas, na Rua Monsenhor Airosa, em Braga, ditas causadas exclusivamente por este último condutor.

A ré contestou a acção apenas quanto aos danos alegados pelos autores, afirmando ignorar alguns e que a restauração natural quanto ao veículo automóvel ser excessivamente onerosa, e, no dia 28 de Maio de 2001, foi concedido aos autores o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e dos demais encargos com o processo.
Realizado o julgamento, foi preferida sentença no dia 27 de Outubro de 2004, por via da qual a ré foi condenada a pagar aos autores € 2.006,27 e a C mais € 6.902,40, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a data da citação.
Apelaram os autores e, subordinadamente, a ré, e a Relação, por acórdão proferido no dia 22 de Junho de 1995, por um lado, julgou improcedente o recurso subordinado.
E, por outro, julgou parcialmente procedente o recurso principal, condenando a ré a pagar a A, B e C a quantia de € 2.992,79 pelos estragos do veículo, € 3.000 pela privação do respectivo uso, e só a C € 12.500 a título de danos não patrimoniais, com juros de mora à taxa legal, quanto aos primeiros valores desde a citação e quanto ao último desde a data do acórdão.

Interpôs a Empresa-D recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- deverá ser reduzida para € 1.546,27 a quantia relativa ao estrago do veículo automóvel dos recorridos;
- deverá a recorrente ser absolvida do pagamento de € 3.000 pela privação do uso do veículo, porque não há prova do dano;
- deve ser fixada em € 1.000 a quantia devida a C a título de danos não patrimoniais;
- o acórdão recorrido violou os artigos 483º, 562º e 566º do Código Civil.

Responderam os recorridos, em síntese de conclusão de alegação:
- a excessiva onerosidade da restituição natural depende do valor venal do veículo e do uso que o seu proprietário dele extrai;
- não tendo podido usar o veículo automóvel por estar estragado, disso lhes resultou prejuízo;
- a incapacidade permanente da recorrida C, as lesões que sofreu e as respectivas sequelas justificam a compensação que lhe foi arbitrada.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:

1. F, por um lado, e representantes da ré, por outro, declararam, antes de 21 de Outubro de 2001, em documento escrito consubstanciado na apólice nº 088010000007, a última, mediante prémio a pagar pelo primeiro, assumir a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veículo automóvel com a matrícula nº E.

2. No dia 15 de Setembro de 1997 faleceu G, no estado de casado com a autora A, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros aquela e os seus filhos B e C.

3. G era o dono do veículo ligeiro de passageiros da marca Alfa Romeu Giulieta 2.0, matriculado no dia 1 de Fevereiro de 1983 sob o nº ND, com 1 962 de cilindrada, a gasolina, com 111.410 quilómetros percorridos, valendo € 1.745,79, muito bem conservado, com jantes especiais, manete e volante em osso, motivo de grande estima por parte dos autores que, por força do decesso do primeiro, lhes ficou a pertencer em comum e sem determinação de parte ou direito.

4. No dia 21 de Outubro de 2001, por volta das 19 horas e 05 minutos, a. autora C conduzia o veículo automóvel mencionado sob 3 pela Rua Monsenhor Airosa, Braga, sentido norte/sul, pela direita, a cerca de 40/50 quilómetros por hora, numa altura em que o piso estava molhado, pois caía chuva miudinha, e a visibilidade era deficiente, porque não se avistava a faixa de rodagem em toda a sua largura a uma distância de mais de 40 metros.

5. A Rua Monsenhor Airosa era ladeada de habitações, existia uma passadeira para peões sinalizada com o respectivo sinal de perigo no sentido de marcha do veículo com a matrícula nº E, imediatamente a seguir à zona de intercepção do entroncamento, lado Sul deste, e tinha a largura de cerca de 8,4 metros, com sensivelmente 2,8 metros destinados a cada faixa de rodagem e inclinação ligeiramente descendente segundo o sentido de marcha dos veículos.

6. E conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matricula nº E- por conta e no interesse do dono, F, que detinha a sua direcção efectiva e obrigação de conservação - na Rua do Fujacal, sentido Nascente-Poente, a cerca de 70/80 quilómetros por hora e, ao chegar ao àquele entroncamento, pretendendo mudar de direcção para a esquerda, entrou repentinamente na Rua Monsenhor Airosa, transpôs, sem abrandar a marcha e em trajectória oblíqua, as hemi-faixas da esquerda e, logo de seguida, a hemi-faixa direita, afectas ao trânsito no sentido Norte-Sul, separadas entre si, nesse local, por uma linha longitudinal contínua, ao ponto de interceptar nesta última faixa, a cerca de 12 a 14 metros do entroncamento, o veículo dos autores que, nessa ocasião se apresentava pela sua direita, embatendo-lhe com a parte da frente do lado esquerdo na parte lateral traseira, fazendo-o perder a direcção e rodopiar no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.

7. Na sequência do referido embate, o veículo dos autores foi projectado para a berma esquerda, a cerca de 28 metros do entroncamento e a 13 metros do local do embate, atento o seu sentido de marcha, onde veio a embater violentamente em dois veículos automóveis ligeiros de passageiros com as matrículas nºs OL e NE, que ali se encontravam estacionados em sentido perpendicular - Nascente-Poente - àquele que até então prosseguia, ficando com estragos na parte dianteira e estragando a parte traseira dos veículos atingidos, os quais, por sua vez, com o impacto do último embate, foram projectados para a frente, transpondo e ocupando praticamente em toda a largura o passeio destinado a peões, ficando com a parte da frente a cerca de 10 a 20 centímetros da montra do estabelecimento comercial aí existente com o nº 29 de polícia.

8. Em consequência dos embates, o veículo dos autores ficou imobilizado na berma esquerda, a cerca de 28 metros do entroncamento, com a parte lateral esquerda praticamente paralela e junto à linha lateral da hemi-faixa desse lado, atento o seu sentido de marcha, e com a parte da frente voltada para Norte, ou seja, orientada para o sentido inverso àquele que até então prosseguia, e os outros dois referidos veículos imobilizaram-se a cerca de dois metros, paralelamente um ao outro, com a parte da frente praticamente encostada ao nº 29 de polícia, e o veículo automóvel com a matrícula nº E imobilizou-se a escassos metros do local do embate.

9. As traseiras dos veículos automóveis com as matrículas nºs NE e OL ficaram, respectivamente, a distar cerca de 2,1 e 3,05 metros da parte lateral direita do primeiro, e a berma do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do último dos referidos veículos tinha cerca de quatro metros de largura e o passeio cerca de dois metros.

10. Em virtude do referido embate, ficou o veículo dos autores com diversos estragos, isto é, com a parte dianteira praticamente destruída e o guarda-lamas direito e a porta lateral esquerda estragados, cuja reparação foi orçada em € 2.992,79, valendo os salvados € 199,52.

11. Dada a estima que por ele nutriam, os autores pretendiam repará-lo e conservá-lo, mas a ré, argumentando que o seu valor venal era de € 1.745,70 e que os salvados valiam e 199,52 recusou-se a ordenar a sua reparação por a considerar bastante onerosa e injustificada, situação que os obrigou, por serem de parcos recursos económicos e sem possibilidades de custarem a reparação, a mantê-lo imobilizado e ainda por reparar.

12. Só possuíam aquele veículo, que era habitualmente usado pela autora C nas suas deslocações pessoais, nomeadamente para o trabalho, e ainda para transportar A e B em excursões de lazer e para fazer compras, e, em razão da paralisação, deixaram os autores de o poder usar e fruir e, por isso, tiveram de recorrer muitas vezes aos serviços e empréstimos de terceiros, suportando os respectivos custos e retribuindo os favores, mormente para fazer as suas deslocações habituais, dentro e fora da cidade de Braga, e o aluguer de um veículo com características idênticas importaria, pelo menos, em € 20 diários.

13. A violência dos sucessivos embates foi tal que a autora C teve de ser transportada de urgência ao Hospital de Braga, onde recebeu os primeiros cuidados médicos e medicamentosos e, para além de enorme susto, sofreu várias escoriações no corpo, traumatismo na perna direita com exuberante hematoma, e na parede torácica anterior e no cotovelo direito e vários hematomas nos membros superiores e na zona lombar.

14. Nos dias que se seguiram ao sinistro, face às persistentes e constantes dores, ela foi submetida a diversos exames e a um estudo clínico radiológico, e para aliviar as dores foi medicada com fármacos analgésicos e anti-inflamatórios.

15. Era bastante saudável, passou a dormir muito mal desde as lesões, sendo frequente passar noites inteiras acordada, o que lhe provoca cansaço, irritação, ansiedade e nervosismo

16. Algum tempo depois das lesões e por indicação da sua médica assistente, iniciou terapêutica médica apropriada para a ansiedade e insónia, à qual ainda tem necessidade de se submeter e, na sequência das observações clínicas, foi-lhe detectado um nódulo com, pelo menos, 5 centímetros de diâmetro na perna direita, compatível com uma zona de contusão.

17. Submeteu-se a 40 sessões de fisioterapia e de reabilitação, à razão de uma por dia, com início em Dezembro de 2001 e conclusão em Janeiro de 2002, que lhe provocaram dores.

18. Actualmente apresenta como sequela lesional um nódulo fibroso na face antero-lateral da perna direita, terço médio, de contornos mal definidos, com 4/5 centímetros de maior diâmetro e hipotrofia dos músculos dessa perna com cerca de 2 centímetros, que lhe provoca dores.

19. As lesões que sofreu determinaram-lhe 120 dias de doença, os primeiros 30 com incapacidade absoluta para o trabalho profissional, e como sequela permanente delas, ficou afectada de uma incapacidade permanente parcial, de âmbito geral ou anátemo-funcional de 5%.

20. Exerceu as funções de recepcionista num ginásio, auferindo a esse título uma remuneração base mensal de cerca de € 374, acrescida de subsídio de alimentação, e ainda em consequência do sinistro despendeu € 400 em honorários médicos e mediamentos.

21. Frequentava diariamente um ginásio, e, por virtude das lesões sofridas e suas sequelas, deixou de praticar exercício físico, o que a entristeceu e contribuiu para que aumentasse significativamente de peso, e o quadro de ansiedade e insónias, associado às dores, provocaram-lhe diminuição da auto-estima.

22. Ainda hoje tem insónias, sofre de ansiedade e irrita-se com frequência, por vezes com estigmas fóbicas, para o que mantém medicação adequada e, desde a data do evento, face ao enorme susto que sofreu, nunca mais conseguiu conduzir qualquer viatura automóvel.

23. A ré reconheceu, antes da propositura da acção, que o seu segurado era o único culpado pela produção do acidente e, consequentemente, declarou assumir a responsabilidade pela reparação dos danos resultantes, e foi interpelada por diversas vezes para resolver a situação, e, por carta datada de 13 de Novembro de 2001, propôs-se pagar uma indemnização de € 1.995,19 pelo veículo sinistrado, invocando a perda total, mas alegando que a avaliação dos danos morais apenas podia ser feita pelo tribunal.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se deve ou não mantido o montante da indemnização lato sensu que aos recorridos foi fixada no acórdão recorrido.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e dos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação do objecto do recurso;
- têm ou não os recorrentes direito a impor à recorrente o pagamento da reparação do veículo automóvel?
- têm ou não os recorrentes direito a indemnização pela privação do uso do veículo automóvel?
- deve ou não fixar-se em € 1.000 a compensação devida a C por danos não patrimoniais?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei aplicável.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela delimitação do objecto do recurso.
Tendo em conta as conclusões de alegação da recorrente, importa delimitar negativamente o objecto do recurso.
O âmbito da decisão do recurso é limitado pelas questões colocadas nas respectivas conclusões (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A recorrente só põe em causa no recurso a sua obrigação de indemnizar por via da reparação do veículo automóvel e no que concerne à privação do seu uso e o montante da compensação por danos não patrimoniais sofridos pela recorrida C.
Não estão, por isso, em causa no recurso a danificação do veículo automóvel dos recorridos nem as das lesões e sequelas sofridas por C, nem o nexo de causalidade adequada entre o acto de condução automóvel ilícito de culposo de Rui Souto e aquele resultado, nem a obrigação de indemnização da recorrente em razão do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Não nos pronunciaremos, por isso, sobre os referidos pressupostos da obrigação de indemnização.

2.
Atentemos agora na problemática de saber se a recorrente deve ou não indemnizar os recorridos relativamente à danificação do veículo automóvel por via do pagamento do valor da sua reparação.
A Relação, secundando quase integralmente o que entendido fora na sentença proferida no tribunal da 1ª instância, decidiu esta sub-questão no sentido positivo, para o que considerou o valor estimativo do veículo automóvel e a circunstância de os recorridos não poderem adquirir por 1.745,79 um veículo automóvel com as mesmas características do veículo automóvel sinistrado e que lhes permita os mesmos cómodos, acrescentando que em termos absolutos o acréscimo para a recorrente não era considerável.
A recorrente entende que os recorrentes só têm direito ao valor do veículo, abatido do valor dos salvados, ou seja, ao montante de € 1.546,27.
Descrevamos os factos provados e ponderemos o regime jurídico que lhes é aplicável.
Trata-se de um veículo ligeiro de passageiros da marca Alfa Romeu Giulieta 2.0, matriculado no dia 1 de Fevereiro de 1983, a gasolina, com 1.962 centímetros cúbicos de cilindrada, movido a gasolina.
Era o único veículo automóvel dos recorridos e habitualmente usado pela autora C nas suas deslocações pessoais, nomeadamente para o trabalho, e para transportar A e B em excursões de lazer e para fazer compras
Percorrera até ao dia da referida danificação 111.410 quilómetros, estava nessa altura muito bem conservado, tinha jantes especiais e manete e volante em osso e valia € 1.745,79, ficou com a parte dianteira praticamente destruída e o guarda-lamas direito e a porta lateral esquerda estragados.
Os salvados valiam € 199,52, a reparação foi orçada em € 2.992,79, os recorridos têm por ele estima e, por isso, pretendem a sua reparação e conservação.
Face a este quadro de facto, não tem apoio legal a afirmação da recorrente de que o veículo automóvel está no limite da sua vida útil enquanto meio utilização quotidiana.

A responsabilidade civil é uma modalidade da obrigação de indemnizar, ou seja, de eliminar o dano ou prejuízo reparável, que pode ser patrimonial ou não patrimonial, conforme seja ou não atinente a interesses avaliáveis em dinheiro.
A lei prescreve que a indemnização é fixada em dinheiro quando a restituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (artigo 566º, nº 1, do Código Civil).
Resulta do referido normativo que a indemnização em dinheiro é subsidiária, porque o fim da lei é o de prover à remoção do dano real à custa do responsável, por ser este o meio mais eficaz de garantir o interesse da integridade das pessoas, dos bens e dos direitos.
Assim, é do lesante a obrigação de ressarcir os danos causados a outrem, reconstituindo a situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento, em regra, mediante a restauração natural, efectuando ou mandando efectuar a reparação do veículo danificado no acidente.
Com efeito, consistindo o dano real em estragos produzidos em coisas, como aconteceu no caso vertente, a reconstituição natural consistirá na sua reparação ou substituição por conta de quem deve indemnizar.
A reconstituição natural é impossível, por exemplo, no caso de destruição ou desaparecimento de coisa não fungível, e é insuficiente se não cobre todos os danos e
inadequada se excessivamente onerosa para o devedor, ou seja, quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado e o custo para o lesante que ela envolve.
Para se aferir da excessiva onerosidade da reparação in natura importa colocar em confronto o valor necessário à satisfação do interesse do credor lesado e, por outro, o inerente custo financeiro, e o referido excesso pressupõe que a reconstituição natural traga algum benefício acrescido ao lesado e se revele iníqua ou contrária aos princípios da boa fé.
A reparação só é excessivamente onerosa na medida em que represente um sacrifício manifestamente desproporcionado para o responsável quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património.
Não basta, pois, para se aferir da referida onerosidade da reparação in natura de um veículo automóvel, a consideração exclusiva do seu valor venal ou de mercado, porque se impõe o seu confronto com o valor de uso que o lesado dele extrai pelo facto de o ter à sua disposição para a satisfação das suas necessidades.
O valor de mercado dos veículos automóveis depende não só do seu estado de conservação e de funcionamento, mas também da própria dinâmica dos construtores de automóveis no âmbito da evolução dos respectivos modelos.
Não resulta dos factos provados, por um lado, que a reconstituição natural do dano real do apelado por via da reparação do veículo seja impossível ou insuficiente para o fim a que se destina, que é a satisfação do quadro de necessidade de utilização, designadamente por razões técnicas.
E, por outro, não resulta dessa factualidade que a reparação da viatura em causa não garanta que ela fique em condições de segurança para circular, ou seja, que ela esteja degradada em termos de a sua reparação se tornar inviável.
Assim, não tem apoio nessa factualidade a afirmação da recorrente no sentido de que a dimensão dos danos anteciparia a obsolência do veículo automóvel ainda que bem consertado.
Ademais, dela não resulta, por um lado, à luz do valor do mercado do veículo automóvel, do custo estimado para a sua reparação e do quadro de necessidades que ele proporcionava aos recorridos que a reparação em causa se revele iníqua à luz dos princípios da boa fé.
Nem, por outro, revela que os recorridos, com o valor venal do veículo automóvel em causa e dos salvados, pudessem adquirir um veículo automóvel com o mesmo estado de conservação e de melhoramento em que se encontrava o veículo sinistrado e que lhes garantisse o mesmo nível de satisfação de necessidades.
Perante este quadro de facto e de direito, sobretudo tendo em conta o estado do veículo automóvel em causa ao tempo do sinistro, o seu valor venal ao tempo e o da sua reparação, no confronto com o nível de necessidades que ele proporcionava aos recorridos, a conclusão é no sentido de que a reparação por aqueles pretendida não é excessivamente onerosa para a recorrente.

3.
Vejamos agora se os recorridos têm ou não direito a exigir da recorrente indemnização pela privação do uso do referido veículo automóvel.
O tribunal da 1ª instância absolveu a ora recorrente do pedido formulado pelos recorridos relativo à indemnização pela privação do uso do veículo automóvel com fundamento na falta de prova de factos relativos ao prejuízo dela decorrentes.
A Relação, por seu turno, sob a motivação da utilização de juízos de equidade, fixou a indemnização devida pela recorrente aos recorridos a esse título no montante de € 3.000.
Atentemos no quadro de facto que releva na decisão desta questão.
O veículo dos autores, único de que os recorridos dispunham, ficou com a parte dianteira praticamente destruída e o guarda-lamas direito e a porta lateral esquerda estragados.
Era habitualmente usado pela recorrida C nas suas deslocações pessoais, nomeadamente para o trabalho, e para transportar A e B em excursões de lazer e para fazer compras.
Deixaram de o poder usar e fruir em razão da sua paralisação e, por isso, recorreram muitas vezes aos serviços e empréstimos de terceiros, mormente para fazer as suas deslocações habituais na cidade de Braga e fora dela, suportando os respectivos custos e retribuindo os favores.
O aluguer de um veículo com características idênticas importaria, pelo menos, em € 20 diários.
Apenas resulta do mencionado quadro de facto que muitas vezes recorreram aos serviços e empréstimos, suportando os custos retribuindo favores. Os referidos custos são, naturalmente, os relativos à circulação dos veículos emprestados ou conduzidos pelas pessoas a que os recorridos se referem, porventura o combustível necessário para o efeito, que também seria necessário para a circulação do veículo automóvel se não fosse a sua forçada imobilização..
Assim, não revelam os mencionados factos que os recorridos tenham tido algum prejuízo específico em resultado da impossibilidade de circulação do seu veículo automóvel.
Visa o instituto da responsabilidade civil, para o caso de afectação de bens materiais, a reconstituição da situação que existiria se não tivesse o evento causador do prejuízo, ou seja, indemnizar os prejuízos sofridos por uma pessoa (artigo 562º do Código Civil).

É certo que, em regra, por um lado, goza o proprietário de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (artigo 1305º do Código Civil).
E, por outro, dever o agente que, ilicitamente, com dolo ou mera culpa, ou mesmo no quadro do risco, como ocorre em matéria de acidentes de viação, violar aquele direito deve indemnizá-lo dos danos que lhe causar (artigos 483º e 499º a 510º do Código Civil).
Todavia, a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil também depende da existência de danos e pressupõe, como é natural, a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito lato sensu (artigos 563º do Código Civil).
Também expressa também a lei que o tribunal deverá julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provado se não puder averiguar o valor exacto dos danos (artigo 566º, nº 3, do Código Civil).
Isso significa que os juízos de equidade não suprem a inexistência de factos reveladores do dano ou prejuízo reparável derivado de facto ilícito lato sensu, porque o referido suprimento só ocorre em relação ao cálculo do respectivo valor em dinheiro.
Por outro lado, prescreve a lei que, em regra, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566º, nº 2, do Código Civil).
Assim, face ao referido normativo, a indemnização pecuniária deve corresponder à diferença entre a situação patrimonial efectiva do lesado aquando da decisão da matéria de facto e a sua situação provável nessa altura se a causa do dano não tivesse ocorrido.
A referida regra de cálculo da indemnização em dinheiro, inspirada pelo princípio da diferença patrimonial, não dispensa, como é natural, o apuramento de factos que revelem a existência de dano ou prejuízo na esfera patrimonial da pessoa afectada.
Assim, face ao nosso ordenamento jurídico, a mera privação do uso de um veículo automóvel, isto é, sem qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, se dela não resultar um dano específico, emergente ou na vertente de lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil.
Em consequência, deve proceder a pretensão da recorrida no sentido de ser absolvida na parte em que foi condenada a pagar aos recorridos, pela privação do uso do veículo automóvel, a quantia de € 3.000.

4.
Vejamos agora a sub-questão do cálculo da compensação do dano não patrimonial sofrido pela recorrida C, começando pela sintética descrição do concernente quadro de facto..
Era bastante saudável, e além do enorme susto decorrente do embate de veículos, sofreu por via dele várias escoriações no corpo, traumatismo na perna direita - com exuberante hematoma - e na parede torácica anterior e no cotovelo direito, e vários hematomas nos braços e na zona lombar.
Transportada de urgência para o hospital, lá recebeu os primeiros cuidados médicos e medicamentosos; nos dias seguintes, face às persistentes e constantes dores, foi submetida a diversos exames e um estudo clínico e radiológico, tendo as referidas dores sido aliviadas com analgésicos e anti-inflamatórios.
Passou a dormir muito mal desde as lesões, sendo frequente passar noites inteiras acordada, o que lhe provoca cansaço, irritação, ansiedade e nervosismo, e, algum tempo depois, por indicação médica, iniciou terapêutica médica contra a ansiedade e insónia, à qual ainda tem necessidade de se submeter.
Na sequência das observações clínicas, foi-lhe detectado, na perna direita, um nódulo com não menos de cinco centímetros de diâmetro compatível com uma zona de contusão, e submeteu-se a quarenta sessões de fisioterapia e de reabilitação, diárias, que lhe provocaram dores.
Apresenta como sequela lesional um nódulo fibroso na face antero-lateral da perna direita, terço médio, de contornos mal definidos, com cerca de cinco centímetros de maior diâmetro e hipotrofia dos músculos dessa perna com cerca de dois centímetros, o que lhe provoca dores e ficou afectada de incapacidade permanente de cinco por cento de âmbito geral ou anátemo-funcional.
Certo é que os factos provados não revelam que a incapacidade permanente de cinco por cento de que a recorrida C ficou afectada tenha repercussão negativa no seu rendimento de trabalho normal ou que lhe implique maior esforço no exercício da sua actividade profissional ou outra.
Mas trata-se de uma limitação biológica, diminuta embora, mas que vai acompanhar a recorrida ao longo do tempo e que, pela sua natureza, assume gravidade, merecedora da tutela do direito (artigo 496º, nº 1, do Código Civil).
Na sentença proferida no tribunal da 1ª instância foi fixada a compensação ora em causa no montante de € 7.500, a Relação aumentou-a para € 12.500, incluindo a vertente da incapacidade permanente de cinco por cento, e a recorrente entende que a mesma deve ser fixada na quantia de € 1.000.
Ponderemos, ora, sobre o critério legal de cálculo da compensação do dano não patrimonial sofrido pela recorrida.
Os danos não patrimoniais não são avaliáveis em dinheiro, certo que não atingem bens integrantes do património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom nome e a beleza, pelo que o seu ressarcimento assume uma função essencialmente compensatória, embora sob a égide de uma certa vertente sancionatória.
Expressa a lei que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, aferida em termos objectivos, mereçam a tutela do direito (artigo 496º, n.º 1, do Código Civil).
O montante pecuniário da compensação deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias a que se reporta o artigo 494º do Código Civil (artigo 496º, n.º 3, 1ª parte, do Código Civil).
Na determinação da mencionada compensação deve, por isso, atender-se ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e às demais circunstâncias do caso, nomeadamente à gravidade do dano, sob o critério da equidade envolvente da justa medida das coisas (artigo 494º do Código Civil).

A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar, como é natural, no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade.
A recorrida sofreu lesões corporais múltiplas, dores persistentes e constantes, foi submetida a diversos exames, passou a ter insónias, cansaço, irritação, ansiedade e nervosismo, teve de se submeter a terapêutica de cura desses efeitos e a cerca de um mês de dolorosa fisioterapia, ficou com um doloroso nódulo fibroso e hipertrofia muscular numa perna e com cinco por cento de incapacidade permanente de âmbito geral.
Trata-se se um quadro de sofrimento físico-psíquico que, pela sua gravidade, merece a tutela do direito.
O grau de culpa de Rui Souto no desencadear do evento danoso em causa é intenso.
Como a recorrida, a quem foi concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, tem parcos
recursos económicos, a conclusão é no sentido de que a sua situação económica está abaixo da mediania.
Nada se sabe sobre a situação económica Rui Souto nem sobre a situação económica do dono do veículo que aquele conduzia, mas essas circunstâncias não relevam no caso espécie, porque o segundo outorgou com a recorrente seguradora um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que abrange o dano em análise.
Perante o referido quadro de facto, envolvido de um juízo de equidade, a conclusão é no sentido de que a compensação de € 12.500 fixada à recorrida C pela Relação não se revela exagerada.

5.
Vejamos, finalmente, a síntese para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Não tendo sido provado pelos recorridos o dano específico resultante da privação do uso do veículo automóvel em causa, não pode manter-se a indemnização de € 3.000 que a Relação fixou a seu favor a esse título.
Dado o estado de conservação do referido veículo automóvel e o quadro de utilidades que os recorridos dele extraem, a circunstância de o valor da reparação exceder em € 1.247 o seu valor de mercado não obsta à condenação da recorrente no pagamento do custo da mencionada reparação.
O sofrimento físico-psíquico da recorrida C e as sequelas derivadas das lesões que sofreu, incluindo a sua incapacidade geral permanente de cinco por cento justificam a fixação da compensação que lhe é devida pela recorrente no montante de € 12.500.

Procede, por isso, parcialmente, o recurso.
Vencidos, são os recorridos, por um lado, e os recorrentes, por outro, responsáveis pelo pagamento das custas respectivas, na proporção do vencimento, nos recursos e na acção (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, porque os recorridos são beneficiários do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, considerando o disposto nos artigos 15º, n.º 1, alínea a), 37º, n.º 1 e 54º, n.ºs 1 e 3, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nºs 1 e 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste fundamento legal para que sejam condenados no pagamento das custas do recurso.


IV
Pelo exposto, dá-se parcial provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido no que concerne ao segmento condenatório da recorrente ao pagar aos recorridos três mil euros e os juros correspondentes, mantêm-se em tudo o mais o conteúdo do referido acórdão, e condena-se a recorrente no pagamento das custas dos recursos e da acção na proporção do vencimento.

Lisboa, 12 de Janeiro de 2006
Salvador da Costa. (Relator)