Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B1938
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA INÊS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
CONDUTA NEGLIGENTE
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
Nº do Documento: SJ200209260019387
Data do Acordão: 09/26/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1345/01
Data: 10/18/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Área Temática: DIR PROC CIV - PROCED CAUT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 483 N1 ARTIGO 487.
CPC95 ARTIGO 388 N1 B N2 ARTIGO 390 N1.
Sumário : I. A obrigação de indemnizar fundada no disposto no art. 390º, n. 1, do CPC pressupõe que a providência chegue a ser decretada pelo tribunal e que, posteriormente, venha a ser julgada injustificada, seja em virtude de procedência de oposição nos termos do art. 388º, ns. 1, al. b) e 2, do CPC, seja de procedência de recurso, nos termos gerais.
II - Toma-se também necessário que o requerente da providência não tenha agido com a prudência normal, causando culposamente danos ao requerido.
III - O momento a atender para se julgar acerca da falta de normal prudência do requerente é, essencialmente, aquele em que o requerente intenta o procedimento cautelar, assim se determinando se ocultou intencionalmente factos, ou os deturpou conscientemente, ou agiu imprudentemente, ou com erro grosseiro ou, até, com culpa ofensiva da prudência exigível do bom pai de família.
IV - Não são fundamento de responsabilidade do requerente o instaurar a providência com ausência de fundamento de facto ou de direito, ou com fundamento em errada ou discutível interpretação do direito mas que, não obstante, conduza ao decretamento da providência (embora com posterior revogação da decisão):
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Dr. A e mulher B, instauraram, a 6 de Janeiro de 1999, acção declarativa, de condenação, contra C pedindo a condenação da ré:
a) a abster-se de praticar quaisquer actos ou de promover quaisquer diligências que perturbem a posse e o exercício de direitos que aos autores assistem como arrendatários do rés-do-chão do prédio sito na Rua do Rossio, n.º ....., em Serpa; e
b) a pagar aos autores indemnização de montante a liquidar em execução de sentença, mas que relativamente aos actos já praticados se estipulou em 2 000 000$00.
Para tanto, em síntese, os autores alegaram que o autor é arrendatário habitacional e para o exercício na profissão de advogado, desde 1 de Dezembro de 1997, do aludido rés-do-chão, tendo assumido o encargo de realizar as obras necessárias para tornar a casa habitável. Ora, a ré tem perturbado a posse dos autores, intrometendo-se com os trabalhadores, fazendo participações infundadas à Câmara Municipal de Serpa e intentando procedimento cautelar inominado contra os autores, intimando-os a pararem as obras, identificando o autor como promitente comprador do prédio e omitindo que ele é também arrendatário, onde obteve, sem audição dos autores, deferimento. Devido à actuação da ré, os autores estiveram privados de utilizar o arrendado, viram as obras atrasadas e sofreram perturbações e angústias.
A ré contestou pugnando pela improcedência da acção.
Para tanto, em síntese, a ré alegou, no que aqui e agora continua a interessar, que nunca incomodou, perturbou ou privou os autores da posse do rés-do-chão.
Por sentença de 13 de Fevereiro de 2001, o Tribunal Judicial de Serpa condenou a ré a abster-se de praticar quaisquer actos e de promover quaisquer diligências que perturbem a posse e o exercício dos direitos que aos autores assistem como arrendatários do rés-do-chão do prédio; e absolveu-a do pedido de indemnização.
Só os autores apelaram, pedindo a procedência da acção também quanto à indemnização.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 18 de Outubro de 2001, alterou a sentença, na parte respeitante ao pedido de indemnização, tendo, condenado a ré apagar, a título de indemnização, a quantia de 400 000$00 para ressarcimento de dano material, e a de 650 000$00 aos autores, por ressarcimento de danos não patrimoniais; com custas a meias.
Vem pedida revista pela ré e pelos autores, sendo o recurso destes subordinado.
A ré pretende que, revogando-se o acórdão recorrido, se decrete a sua total absolvição do pedido, seja enquanto foi condenada a abster-se de praticar actos que perturbem a posse dos autores, seja enquanto foi a condenada a indemnizar os autores.
Para tanto, a ré alega que o acórdão recorrido é nulo, nos termos do art.º 668º, n.º 1, d), do Cód. de Proc.º Civil, por se ter fundamentado em facto novo, não alegado - o acórdão deste Tribunal de 3 de Outubro de 2000, proferido nos autos de procedimento cautelar movido pela ora ré aos ora autores e outros - e comprovado por documento indevidamente junto com a alegação dos autores na apelação; e a violação do preceituado nos art.ºs 868º, 1028º, n.º 2, 1029º, n.º 1, b), 1276º, 1277º e 1274º, n.º 1, do Cód. Civil, e 390º, n.º 1, 493º, n.º 3, 506º, n.º 1, e 716º, do Cód. de Proc.º Civil.
Por seu turno, os autores, invocando o disposto nos art.ºs 564º, n.ºs 1 e 2, 569º, 483º, 496º, do Cód. Civil, pretendem que a ré seja condenada a pagar-lhes indemnizações no montante de 4 525 000$00; e, atendendo ao disposto nos art.ºs 1278º, 1284º, n.º 1, e 569º, do Cód. Civil, que a totalidade das custas fique a cargo da ré.
O recurso principal, o da ré, não merece conhecimento quanto à quanto à questão da sua condenação a não perturbar a detenção dos autores sobre o rés-do-chão de que estes são arrendatários.
Está aqui em causa decisão proferida logo pela primeira instância, sendo certo que a ré não apelou da sentença.
Ora, nos termos do disposto no art.º 682º, n.º 2, do Cód. de Proc.º Civil,
se ambas as partes ficaram vencidas, cada uma delas terá de recorrer se quiser obter a reforma da decisão na parte que lhe seja desfavorável.
Assim, porque a ré não apelou, essa parte do decidido pela sentença, aquela que foi desfavorável à ré, ficou estabilizada, tendo-se tornado imperativa. Não pode ser agora impugnada na revista, como não o podia ter sido na contra alegação que a ré ofereceu na apelação. E isto não deixa de ser assim pela circunstância de a Relação se ter ocupado de tal questão, desnecessariamente.
O recurso dos autores, subordinado, não merece conhecimento pelo que respeita a condenação em custas com referência à apelação.
Na verdade, embora os autores hajam formulado uma conclusão a este respeito, a quinta da sua alegação, certo é que não a fundamentaram na motivação, com indicação das razões da sua discordância, nomeadamente com a indicação da norma ou das normas que regem a responsabilidade pelo pagamento de custas nos recursos que consideram violadas ou violadas, sua interpretação e aplicação.
Assim, o recurso dos autores acabou por ficar objectivamente restringido à questão da indemnização.
No mais, os recursos merecem conhecimento.
Assim, as questões que estão para apreciar e decidir são, quanto ao recurso independente, o da ré:
a) consideração, no acórdão recorrido, do acórdão deste Tribunal de 3 de Outubro de 2000;
b) obrigação de a ré pagar indemnização aos autores;
e, quanto ao recurso subordinado, o dos réus:
c) montante da indemnização devida pela ré aos autores;
Primeira questão: consideração, neste processo, do acórdão deste Tribunal de 3 de Outubro de 2000.
Com a alegação que os autores ofereceram na apelação foi junta fotocópia do acórdão deste Tribunal de 3 de Outubro de 2000, proferido nos autos de procedimento cautelar que a aqui ré requereu contra os aqui autores e outros, mediante a qual ela solicitara a proibição de os ali requeridos efectuarem qualquer negócio que alienasse ou onerasse o prédio acima referido, bem como de os requeridos .... efectuarem no respectivo rés-do-chão toda e qualquer obra. Por esse acórdão, este Tribunal confirmou o decidido pela Relação de Évora que julgara totalmente improcedente a pretensão da requerente.
No acórdão em revista, a Relação de Évora tomou em consideração esta decisão e o seu conteúdo.
A conduta da Relação não merece censura atento o disposto no art.º 514º, n.º 2, do Cód. de Proc.º Civil, segundo o qual não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.
As decisões judiciais devem considerar-se factos judicialmente notórios pelo que não carecem de alegação, podendo o tribunal delas conhecer, oficiosamente, desde que assegurado o contraditório.
Por isto, no acórdão recorrido não se violou o disposto no art.º 506º, n.º 1, do Cód. de Proc.º Civil.
Assim, a matéria de facto a tomar em consideração no julgamento da revista é a adquirida no acórdão recorrido para o qual aqui se remete, nos termos dos art.ºs 713º, n.º 6, e 726º, ambos do Cód. de Proc.º Civil.
Segunda questão: obrigação de a ré indemnizar os autores.
A obrigação de a ré indemnizar os autores vem fundada no disposto no art.º 390º, n.º 1, do Cód. de Proc.º Civil, segundo o qual se a providência for considerada injustificada (...), responde este (1) pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal.
Esta responsabilidade pressupõe que a providência chegue a ser decretada pelo tribunal; e que, posteriormente, venha a ser julgada injustificada, seja em virtude de procedência de oposição nos termos do art.º 388º, n.ºs 1, al. b), e 2, do Cód. de Proc.º Civ., seja de procedência de recurso, nos termos gerais.
Estes pressupostos ocorrem na presente espécie.
Mas é preciso, ainda, que o requerente da providência não tenha agido com a prudência normal, causando culposamente danos ao requerido.
O momento a atender para se julgar acerca da falta de normal prudência do requerente é aquele em que este age (tenha agido, diz a lei), ou seja, é, essencialmente, aquele em que o requerente intenta o procedimento cautelar; é este o momento em que o requerente age.
É em relação ao tempo em que o requerente agiu, essencialmente intentando a acção (podendo relevar ainda a conduta, no tempo em que se realizou a audiência), que haverá que determinar se o requerente ocultou intencionalmente factos, ou os deturpou conscientemente, ou agiu imprudentemente, ou com erro grosseiro ou, até, com culpa ofensiva da prudência exigível do bom pai de família.
Não são fundamento de responsabilidade do requerente, nos termos deste preceito legal, o requerer a providência com ausência de fundamento de facto ou de direito, ou com fundamento em errada ou discutível interpretação do direito mas que, não obstante, conduza ao decretamento da providência (embora com posterior revogação da decisão). Os erros de julgamento são do tribunal, não justificam a responsabilização do requerente da providência.
Cfr., a propósito, Lebre de Freitas, in "Código de Processo Civil Anotado", II, pág. 59 a 61, e Miguel Teixeira de Sousa, in "Estudos Sobre o Novo Processo Civil", pág. 253 a 255.
Na espécie em julgamento, censura-se a ré por, ao instaurar o procedimento, ter qualificado o autor apenas e exclusivamente como promitente comprador do prédio, omitindo o facto de os autores serem inquilinos do rés-do-chão.
Aqui estaria a deturpação da realidade consciente, intencional, grosseiramente errada ou, ao menos, censuravelmente culposa da ré.
Tal entendimento não pode ser acolhido.
É que vem adquirido o facto de a ora ré, no momento em que intentou o procedimento, não saber que o autor havia celebrado com D contrato de arrendamento, por escrito particular (facto n.º 6).
Este desconhecimento, por parte da ré, não merece censura.
Tendo a ré sabido, pelo registo predial, que o ora autor, mediante contrato-promessa celebrado com o aludido D, havia ajustado comprar-lhe o prédio, recebendo logo a sua posse (ainda que precária), não seria de esperar ou suspeitar que o autor também fosse arrendatário do rés-do-chão do prédio objecto do contrato prometido, nem exigível que a ora ré, antes de requerer a providência, andasse a investigar uma tal hipótese. Trata-se de facto não sujeito a registo que lhe dê publicidade. Nem tinha a ora ré que suspeitar que as obras que os ora autores levavam a cabo no prédio as realizavam ao abrigo de cláusula do contrato de arrendamento.
A matéria de facto adquirida não revela que a ora ré, ao intentar o procedimento cautelar, haja alegado qualquer facto falso, nem que haja deturpado a realidade com consciência de o fazer, nem que a sua actuação tenha sido grosseiramente errada ou negligente.
A providência decretada na primeira instância veio a ser considerada injustificada, sim, mas por razões que se prendem com a interpretação do direito (aliás, sem coincidência entre a Relação e o Supremo). Esta circunstância não justifica a responsabilidade da requerente da providência, ora ré, nos termos do art.º 390º do Cód. de Proc.º Civil.
A responsabilização da ré vem, também, decretada no acórdão recorrido com invocação do disposto do art.º 483º, n.º 1, do Cód. Civil, segundo o qual aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem (...) fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Os danos que os autores pretendem ver indemnizar são:
a) os resultantes da paragem das obras a qual atrasou a utilização, pelos autores, do rés-do-chão para habitação e, pelo autor, de parte do mesmo espaço, para o exercício da advocacia;
b) não patrimoniais, pelos incómodos, perturbações, contrariedades, angústias, frustrações e incómodos provocadas pela actuação da ré.
Ora, quanto aquela paragem das obras, já se viu que a ré não pode ser responsabilizada em relação à decorrente de a providência cautelar ter sido concedida pela primeira instância.
E, por outro lado, não se provou que a restante actuação da ré haja provocado paragem ou atraso das obras. Nomeadamente, as diligências feitas pela ré junto da Câmara Municipal de Serpa, além de não se revelarem ilícitas, não se prova que hajam provocado atraso na obra, atenta a resposta de não provado dada ao quesito décimo-quinto em que se perguntava se aquelas participações atrasavam as obras por um período de cinco dias.
O autor, no seu novo articulado, de 9 de Janeiro de 2000, nos art.ºs 42º a 45º, alega um outro prejuízo, no montante de 400.000$00 que entregou ao primeiro pedreiro que contratou.
E o acórdão recorrido acabou por condenar a ré a indemnizar os autores por este prejuízo. Aliás, é este o único dano material que a ré foi condenada a indemnizar.
Acontece, todavia, que a Relação não o podia ter feito por nunca ter sido formulado pedido nesse sentido (art.ºs 3º, n.º 1, e 661º, n.º 1, do Cód. de Proc.º Civil).
Este pedido de indemnização não foi formulado pelos autores na petição inicial.
O pedido nunca foi alterado ou ampliado.
Naquele novo articulado, o autor alegou o prejuízo mas nada pediu, tendo concluído tal articulado pedindo a condenação da ré em conformidade com o concluído na petição inicial.
Por isto, esta condenação não se pode manter, sem necessidade de se apurar se poderia ou não ter cabimento face aos factos apurados e ao direito.
Restam os danos não patrimoniais.
Os autores pediram, a este título, a condenação da ré a pagar-lhes indemnização em montante não inferior a 1.000.000$00.
No julgamento ficou provado que o procedimento cautelar, os requerimentos dirigidos à Câmara Municipal e a intromissão da ré com os pedreiros causaram frustrações e incómodos ao autor; e que a altercação da ré com o pedreiro D, no dia 20 de Março de 1999, provocou irritação no autor (respostas aos quesitos décimo-sétimo e vigésimo).
Todavia, no acórdão recorrido ampliou-se largamente a justificação da condenação da ré a indemnizar ambos os autores (e não apenas o autor a que se referem aquelas respostas), indicando-se outras razões.
Daí o ter-se condenado a ré a pagar aos autores indemnização no montante de 650.000$00.
Esta condenação vem fundamentada no disposto nos art.ºs 483º e 496º (esta segunda norma implicitamente) do Cód. Civil.
Consoante expressamente se dispõe no primeiro destes preceitos (e no art.º 487º do Cód. Civil), só a violação ilícita e culposa do direito de outrem é causa da obrigação de indemnizar.
Não é o caso, como já se viu, dos incómodos, trabalhos e aborrecimentos sofridos pelos autores quer com os requerimentos que a ré dirigiu à Câmara Municipal, dada a sua licitude, quer com a instauração do procedimento cautelar acerca do qual, apesar de ter acabado por improceder, se não descortina actuação culposa da ré.
Quanto ao restante, as intromissões e altercação com os pedreiros ao serviço do autor, com os consequentes padecimentos morais do autor, entende-se merecer indemnização, mas de montante muito inferior ao que vem atribuído.
Fixa-se, agora, o respectivo montante em cento e cinquenta euros, só a favor do autor.
Terceira questão (recurso subordinado): montante da indemnização devida pela ré aos autores.
Esta questão já foi apreciada e ficou decidida a propósito da segunda questão.
Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
a) em não tomar conhecimento do recurso principal quanto à questão da manutenção da posse;
b) em não tomar conhecimento do recurso subordinado quanto à questão das custas;
c) em, concedendo, em parte, revista à ré, alterar o acórdão recorrido pelo que toca à indemnização, a qual será paga pela ré apenas ao autor e pelo montante de cento e cinquenta euros, ficando a ré absolvida quanto aos restantes montantes;
d) em negar revista aos autores;
Custas do recurso principal pelos autores e pela ré, na proporção de uma terça parte pela ré e de duas terças partes pelos autores; custas do recurso subordinado pelos autores.

Lisboa, 26 de Setembro de 2002
Sousa Inês
Nascimento Costa
Dionísio Correia
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(1) O requerente do procedimento cautelar.