Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1022/04.8PBOER.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
TRÂNSITO EM JULGADO
SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO
FÓRMULAS TABELARES
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário :

I - No concurso superveniente de infracções tudo se passa como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente com a sentença, todos os crimes praticados pelo arguido, formando um juízo censório único, projectando-o retroactivamente (cf. Ac. do STJ, de 02-06-2004, CJ STJ, Tomo II, pág. 221).
II - O cúmulo retrata o atraso da jurisdição penal em condenar o arguido, tendo em vista não se prejudicar o arguido por esse desconhecimento ao fixar limites sobre a duração das penas a fixar.
III - O legislador, na fixação da pena de conjunto, afastou-se da sua mera acumulação material, tendo como limite a sua soma, bem como do sistema de exasperação ou agravação pela adopção da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis. E não tendo optado pela acumulação material fornece, por isso, um critério que considere os factos e a personalidade do agente no seu conjunto.
IV - Sem discrepância tem sido pacífico o entendimento do STJ de que concurso de infracções não dispensa que as várias infracções tenham sido praticadas antes de ter transitado em julgado a pena imposta por qualquer uma delas, representando o trânsito em julgado de uma condenação penal o limite temporal intransponível no âmbito do concurso de crimes, excluindo-se do âmbito da pena única os crimes praticados posteriormente; o trânsito em julgado de uma dada condenação obsta a que se fixe uma pena unitária que englobando as cometidas até essa data se cumulem infracções praticadas depois deste trânsito.
V - O limite determinante e intransponível da consideração da pluralidade de crimes para o efeito de aplicação de uma pena de concurso é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente teve lugar por qualquer crime praticado anteriormente; no caso de conhecimento superveniente de infracções aplicam-se as mesmas regras, devendo a decisão que condene por um crime anterior ser considerada como se fosse tomada ao tempo da primeira, se o tribunal, a esse tempo, tivesse tido conhecimento da prática do facto, como se, por ficção de contemporaneidade, todos os factos que posteriormente foram conhecidos tivessem sido julgados conjuntamente no momento da decisão primeiramente transitada.
VI - Se os crimes agora conhecidos forem vários, tendo uns ocorrido antes da condenação anterior e outros depois dela, o tribunal proferirá duas penas conjuntas, uma a corrigir a condenação anterior e outra relativa aos factos praticados depois daquela condenação; a ideia de que o tribunal devia proferir aqui uma pena conjunta (realizando o chamado “cúmulo por arrastamento”) contraria expressamente a lei e não se adequaria ao sistema legal de distinção entre punição do concurso de crimes e da reincidência.
VII - Na decisão recorrida, ao arrepio da jurisprudência e doutrina seguidas, enumeram-se as condenações em rol, sem destacar com relação à pluralidade de condenações quais os crimes que com elas se cumulam ou não.
VIII - Sendo a decisão de cúmulo proferida em julgamento, não se mostrando imperiosa a fundamentação alongada com exigência no art. 374.º, n.º 2, do CPP, nem por isso a decisão deve deixar de evidenciar ante o seu destinatário e o tribunal superior os factos que servem de base à condenação, de per si, sem necessidade de recurso a documentos dispersos pelos vários julgados certificados.
IX - Não valem enunciados genéricos, como a simples referência à tipologia da condenação, fórmulas tabelares, ou seja remissões para os factos comprovados e os crimes certificados, a lei, juízos conclusivos, premissas imprecisas, pois vigora no nosso direito o dever de fundamentar as decisões judiciais, mais extenso em dadas situações, de que é paradigmática a sentença, menos exigente noutras, mas ainda assim de conteúdo minimamente objectivado, permissivo da possibilidade de se atingir o raciocínio lógico-dedutivo, o processo cognitivo do julgador, por forma a controlar-se o decidido e a afirmar-se que não procede de simples capricho, à margem do irrazoável – arts. 97.º, n.º 4, e 374.º, n.º 2, do CPP –, o que importa prevenir.
X - Seria um trabalho inútil e exaustivo exigir a menção dos factos de cada uma das sentenças pertinentes a cada pena, de reportar ao cúmulo, mas será sempre desejável que se proceda a uma explicitação por súmula dos factos das condenações, que servirão de guia, de referencial, ao decidido, em satisfação das exigências de prevenção geral, e bem assim os que se provem na audiência em ordem a caracterizar a personalidade, modo de vida e inserção do agente na sociedade.
XI - No acórdão recorrido não se vai além da alusão ao facto de os crimes em causa terem sido praticados nos anos de 2000 a 2005, que se reportam na totalidade a “crimes de furto qualificado e de roubo”, pecando esta seca enumeração por insuficiente, pois quem a lê queda-se por um estado de incerteza, não habilitando o destinatário da condenação e o tribunal superior a conhecer os factos na sua globalidade e nem mesmo a personalidade neles retratada, termos em que, por falta de fundamentação e inconsideração da metodologia de formação da pena de concurso, se anula o acórdão recorrido.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

AA, foi condenado no P.º comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 1022/04.8 PBOER.L1 , do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, em 12 anos de prisão , em cúmulo jurídico , resultante das parcelares aplicadas :

1) No Acórdão de 06.10.2003 (Processo n.º 819/02.8PBOER, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras), pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelos artºs . 210º n.º 1 do C.P., praticado em 06.05.2002, na pena de 14 (catorze) meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa pelo período de 2 anos e que foi objecto de revogação por decisão proferida em 30.05.2006, determinando-se o cumprimento da mesma;

2) No Acórdão de 22.04.2005 (Processo n.º 907/02.0PBOER, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras), pela prática de oito crimes de furto qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs . 203º nº 1 e 204º nº 2 al e) do C.P., na pena de 2 (dois) anos e 6 meses de prisão por cada um deles e de três crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 203º n.º 1 e 204º nº 2 al e), do C.P, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um deles, todos praticados entre 9-10/05/2002 e 03/02/2003; operado cúmulo jurídico destas penas parcelares foi o arguido condenado na pena única de 5 (cinco) anos de prisão;

3) Por sentença de 04.07.2005 (Processo n.º 12/04.5PECSC, do 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais), pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art. ºs 203º nº 1 e 204 nº 1 al a) e nº 2 al e), com referência ao art. 202º al a) e e) , todos do CP., praticado no dia 05.01.2004, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

4) Por sentença de 20.10.2005 (Processo nº 1605/01.8PBOER, do 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais), pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs . 203º nº 1 e 204º nº 1, al f), ambos do CP, praticado no dia 30.11.2001, na pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão.

5) No Acórdão de 24.10.2005 (Processo n.º 24/05.1PFOER, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras), pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º n.º 1 do C.P., praticado a 16.01.2005, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

6) No Acórdão de 27.02.2006 (Processo n.º 2044/04.4PBOER, do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras), pela prática de dois crimes de roubo, p. e p. pelo art. 210º n.º 1 do C.P., praticados a 17.12.2004, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão por cada um deles e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 (dois) anos de prisão;

7) No Acórdão de 23.01.2007 (Processo nº 95/05.0PECSC, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras), pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º n.º 1 do C.P., praticado a 14.02.2005, na pena de 18 meses de prisão.

8) No Acórdão de 25.09.07 (Proc. 95/05, melhor identificado em 7), foi o arguido condenado na pena única de nove anos de prisão (englobadas as penas aplicadas nos processos supra identificados de 1 a 7).

9) Por sentença de 26.06.2007 (Processo nº 330/02.7 PFCSC do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais), pela prática de dois crimes de roubo, p. e p. pelo art. 210º n.º 1 do C.P., praticados em 27.03.2002 e 22/04/2002, na pena de 14 meses de prisão por cada um e em cúmulo na pena única de 19 meses de prisão.

10) Por sentença de 11.01.2007 (Processo nº 1786/00.8 PBOER do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras), pela prática, em 23/12/2000, de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º n.º 1 do C.P., na pena de 18 meses de prisão.

11) Por sentença de 20.07.2007 (Processo nº 311/04.6 PFCSC do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais), pela prática, em 22/04/2004, de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artºs 203º, nº1, 204º, nº 2, al. e), 22º, 23º e 73º, todos do C.P. na pena de dezoito meses de prisão; de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º n.º 1 e 2, al. b) do C.P., na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; em cúmulo, na pena única de 4 anos de prisão.

12) Por sentença de 12.12.2007, proferida no âmbito do presente Processo nº 1022/04.8 PBOER do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelos arts. 210º n.º 1, 73º e 74º do C.P. ex vi do artº 4º do D.L. 401/82, de 23/09, praticado em 16.06.2004, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão; de um crime de furto, praticado em 15/06/04, p. e p. pelos artºs. 203º, nº 1, 73º e 74º do C.P. ex vi do artº 4º do D.L. 401/82, de 23/09, na pena de 6 (seis) meses de prisão; em cúmulo na pena única de um ano e seis meses de prisão.

Provou-se , ainda , que :

13) O arguido foi adoptado com cerca de 4 anos de idade.

14) O seu percurso escolar foi marcado por dificuldades comportamentais e fraco envolvimento nas tarefas lectivas, contexto agravado, durante a frequência do 2. ° Ciclo, por absentismo. Aderiu a grupo de pares com o mesmo tipo de condutas, iniciando-se, neste contexto, no consumo de haxixe, com cerca de 11 anos de idade. Aos 13 anos, após a frequência de vários estabelecimentos de ensino, ingressou na Casa Pia de Lisboa, onde frequentou um curso de relojoaria.

15) Contrariando a vontade familiar, abandonou aquela instituição aos 16 anos, estando habilitado com o 7. ° Ano de escolaridade. Iniciou então actividade laboral, caracterizando-se pela indiferenciação, inconstância e elevada mobilidade entre postos de trabalho.

16) A comunicação com as suas referências familiares foi-se degradando e o arguido passou a frequentar a casa de forma intermitente, regressando ao agregado apenas para efeitos de satisfação de necessidades pessoais prementes. Apesar dos esforços dos familiares, a vontade do mesmo em permanecer na rua, sem nenhum tipo de regras e supervisão, inviabilizaram qualquer mudança do seu estilo de vida, culminando na sua saída definitiva de casa, em Abril de 2001.

17) À data da reclusão, o arguido subsistia há cerca de 4/5 anos num quadro existencial de mera sobrevivência, caracterizado pelo desenquadramento sócio-familiar e laboral pela precariedade generalizada e pela ausência de estruturas de supervisão ou de monitorização do seu comportamento. Recorria a expedientes para assegurar as despesas necessárias à sua manutenção quotidiana e mantinha hábitos de consumo regular de haxixe.

18) Num plano mais pessoal apresenta características de imaturidade e impulsividade, revelando baixa auto-estima, fraca capacidade de resistência a situações de frustração emocional e baixo índice de persistência face à prossecução dos seus objectivos. Denota uma deficiente interiorização dos mecanismos de interacção social convencionalmente aceites, que facilmente negligencia, especialmente quando em contextos de maior vulnerabilidade.

19) Vindo a revelar, na globalidade, um percurso prisional marcado por alguns episódios de desadequação às normas, ainda que pouco expressivos em termos de gravidade e frequência, verificou-se um agravamento recente da sua conduta, o que justificou a actual transferência institucional cumprindo pena em regime de separação da restante população prisional. Frequentou, com subsequente desistência, o ensino escolar em meio prisional revelando actualmente motivação pela frequência de actividades formativas ou laborais, que não lhe foram ainda proporcionadas por razões comportamentais.

O arguido , inconformado com o decido, interpôs recurso , dizendo nas conclusões que :

O acórdão condenatório é nulo , pois peca por defeito de fundamentação por se limitar a referenciar a ilícitos e penas cominadas , nos termos do art.º 379.º n.º 1 a) , do CPP .

A pena de 12 anos é pouco criteriosa face aos factos e direito aplicável .

O tribunal recorrido não procede a uma actualização da personalidade do arguido pois que o relatório social de 6.4.2009 reproduz um de 26.11.2007 .

Não foi tida em causa a sua reinserção social . Conta actualmente com 24 anos e 4 de reclusão . Ainda lhe não foi dada a hipótese de se reinserir socialmente .

Está arrependido e não tem processo crime contra ele pendente .

Mostram-se violados os art.ºs 71.º , 77.º , do CP .

O Exm.º Procurador Geral- Adjunto neste STJ aponta a inobservância das regras de realização do cúmulo jurídico , por nele se não distinguir entre factos ocorridos antes da primeira condenação e depois desta obrigando a um outro cúmulo , sem deixar de destacar a omissão de factos na fundamentação decisória , alguns dos quais podem extrair-se das certidões de sentença condenatória , sem embargo de concluir que a pena de 12 anos é justa e adequada , no que diverge do EXm.º Magistrado do M.º P.º , em 1ª instância propenso à redução da pena de prisão a 10 anos , além de sublinhar a exiguidade factual , que só a consulta de documentos dispersos no processo permite atingir e suprir ( terá de procurá-los fora do acórdão em crise , disse , na sua sugestiva opinião , a fls . 518) .

Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

A atribuição legal da competência ao tribunal da última condenação – aquele de onde emerge o recurso - para determinação da pena de conjunta deriva da circunstância de ser ele que detém a melhor e mais actualizada perspectiva do conjunto dos factos e da personalidade do agente , de considerar por força do art.º 77.º n.º 2 , do CP , retratada no conjunto global das condenações e no trajecto de vida do arguido , concebida como “ o mais idóneo substracto a que pode ligar-se o juízo de culpa jurídico-penal “ , “ a forma viva fundamental do indivíduo humano por oposição a todos os outros “ , na definição que dela se colhe em Liberdade , Culpa , Direito Penal , da autoria do Prof. Figueiredo Dias , pág. 171 .

No concurso superveniente de infracções tudo se passa como se , por pura ficção , o tribunal apreciasse , contemporâneamente com a sentença , todos os crimes praticados pelo arguido , formando um juízo censório único , projectando –o retroactivamente ( cfr. Ac. deste STJ , de 2.6.2004 , CJ , STJ , II , 221 ) .

A formação da pena conjunta é , assim , a reposição da situação que existiria se o agente tivesse sido atempadamente condenado e punido pelos crimes à medida em que os foi praticando ( cfr. Prof. Lobo Moutinho , in Da Unidade à Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português , ed. Da Faculdade de Direito da UC , 2005 , 1324 ) ; o cúmulo retrata , assim , o atraso da jurisdição penal em condenar o arguido , tendo em vista não prejudicar-se o arguido por esse desconhecimento ao fixar limites sobre a duração das penas a fixar .

O legislador, na fixação da pena de conjunto, afastou-se da sua mera acumulação material , tendo como limite a sua soma , bem como do sistema de exasperação ou agravação pela adopção da pena mais grave , através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis .

E não tendo optado pela acumulação material fornece , por isso , um critério que considere os factos e a personalidade do agente no seu conjunto.

Propondo-se o legislador sancionar os factos e a personalidade do agente no seu conjunto , em caso de cúmulo jurídico de infracções , de concluir é que o agente é punido , de certo que pelos individualmente praticados , mas não como um mero somatório , em visão atomística , mas antes de forma mais elaborada , dando atenção àquele conjunto , numa dimensão penal nova fornecendo o conjunto dos factos a gravidade do ilícito global praticado , no dizer do Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português , As Consequências Jurídicas do Crime , págs . 290 -292 ; cfr. os Acs . deste STJ , in P.ºs n.º s 776/06 , de 19.4.06 e 474/06 , este daquela data , levando –se em conta exigências gerais de culpa e de prevenção , tanto geral como de análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente ( exigências de prevenção especial de socialização ) .

Sem discrepância tem sido pacífico o entendimento neste STJ de que o concurso de infracções não dispensa que as várias infracções tenham sido praticadas antes de ter transitado em julgado a pena imposta por qualquer uma delas , representando o trânsito em julgado de uma condenação penal o limite temporal intransponível no âmbito do concurso de crimes, excluindo-se do âmbito da pena única os crimes praticados posteriormente ; o trânsito em julgado de uma dada condenação obsta a que se fixe uma pena unitária que englobando as cometidas até essa data se cumulem infracções praticadas depois deste trânsito . Cfr. , neste sentido , os Acs. deste STJ , de 7.2.2002 , CJ , STJ , Ano X, TI, 202 e de 6.5.99 , proferido no P.º n.º 245/99 .

O limite determinante e intransponível da consideração da pluralidade de crimes para o efeito de aplicação de uma pena de concurso é , como dito , o trânsito em julgado da condenação que primeiramente teve lugar por qualquer crime praticado anteriormente ; no caso de conhecimento superveniente de infracções aplicam-se as mesmas regras , devendo a decisão que condene por um crime anterior ser considerada como se fosse tomada ao tempo do trânsito da primeira , se o tribunal , a esse tempo , tivesse tido conhecimento da prática do facto – cfr. Ac. deste STJ , de 17.3.2004 , in CJ , STJ , I , 2004 , 229 e segs . e de 15.3.2007 , in Rec.º n.º 4796 /06 , da 5.ª Sec. , de 11.10.2001, P.º n.º 1934/01 e de 17.1.2002 , P.º n.º 2739/01 –como se , por ficção de contemporaneidade , todos os factos que posteriormente foram conhecidos tivessem sido tivessem sido julgados conjuntamente no momento da decisão primeiramente transitada. Se os crimes agora conhecidos forem vários , tendo uns ocorrido antes de condenação anterior e outros depois dela , o tribunal proferirá duas penas conjuntas , uma a corrigir a condenação anterior e outra relativa aos factos praticados depois daquela condenação ; a ideia de que o tribunal devia proferir aqui uma só pena conjunta , contraria expressamente a lei e não se adequaria ao sistema legal de distinção entre punição do concurso de crimes e da reincidência , é a doutrina do Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português –As Consequências Jurídicas do Crime , § 425, dando lugar a cúmulos separados e a pena executada separada e sucessivamente , neste sentido , também , Paulo Pinto de Albuquerque , Comentário ao Código Penal , pág. 247 .

Orientação diversa , de todas as penas ponderar , sem dicotomizar aquela situação , é a que se acolhe no chamado “ cúmulo por arrastamento “ , seguida em data anterior a 1997 , mas hoje inteiramente rejeitada por este STJ , desde logo pelo Ac. de 4.12.97 , in CJ , STJ , V, III, 246, podendo , actualmente , reputar-se unânime o repúdio da tese do cúmulo reunindo indistintamente todas as penas, “ por arrastamento “ , assinalando-se que ele “ aniquila a teleologia e a coerência interna do ordenamento jurídico-penal , ao dissolver a diferença entre as figuras do concurso de crimes e da reincidência ( Comentário de Vera Lúcia Raposo , RPCC , Ano 13.º , n.º 4 , pág. 592) “ ,abstraindo da conjugação dos art.ºs 78.º n.º 1 e 77.º n.º 1 , do CP .

E as razões por que a pena aplicada depois do trânsito em julgado , à partida , não deve ser englobada no cúmulo , aplicando-se , antes , as regras da reincidência , resulta do facto de ao assim proceder o arguido revelar maior inconsideração para com a ordem jurídica do que nos casos de inexistência de condenação prévia , deixando de ser possível proceder à avaliação conjunta dos factos e da personalidade , circunstância óbvia para afastar a benesse que representa o cúmulo , defende Vera Lúcia Raposo , in R e v . cit . , págs 583 a 599 ; idem Germano Marques da Silva , in Direito Penal Português , Parte Geral , II , 313 e Paulo Dá Mesquita , Concurso de Penas , pág. 45 e segs . Cfr. , ainda , Ac. deste STJ , de 15.3.2007 , P.º n.º 4797/06-5.ª Sec.

Ora o trânsito em julgado primeiramente ocorrido regista –se em relação ao P.º n.º 819/02 , em 21.10.03 , com relação a factos de 6.5.2002 , mas antes dessa condenação transitada o arguido praticou factos aos quais se reportam os P.ºs n.ºs 907 /02, 1605/ 01 e 1786/00 levando a que ali se haja que proceder ao competente cúmulo , respeitando aqueles processos ; o percurso sequente é o da perscruta da seguinte condenação mais antiga e dos factos anteriormente praticados , que não foram abrangidos no primeiro cúmulo , procedendo-se aos cúmulos necessários.

E assim a condenação transitada sequente , em 19.9.2005 , é a que respeita ao P.º n.º 12/04 , respeitando a factos de 5.1.2004 , abrangendo este segundo cúmulo as penas impostas nos sobrantes processos crimes , ou seja 24/05 , 2044/04 , 95/05, 311/04 e 1022 /04 , ou seja de 2 anos e 6 meses , 1 ano e 6 meses , 1 ano e 6 meses , 1 ano e 6 meses , 18 meses e em cúmulo de todas 9 anos , 18 meses e 3 anos e 6 meses , 1 ano e 3 meses , 6 meses , em cúmulo 1 ano e 6 meses , de prisão , respectivamente .

Esse não foi o critério usado na decisão recorrida ao arrepio da jurisprudência e doutrina seguidas , não se discernindo , distinguindo –se do modo como se deixa dito, enumerando-se as condenações em rol, com o devido respeito, sem destacar com relação à pluralidade de condenações quais os crimes que com elas se cumulam ou não .

De mencionar que sendo a decisão de cúmulo proferida em julgamento não se mostrando imperiosa a fundamentação alongada com exigência no art.º 374.º n.º 2 , do CPP , nem por isso a decisão deve deixar de evidenciar ante o seu destinatário e o tribunal superior os factos que servem de base à sua condenação , de per si , sem necessidade de recurso a documentos dispersos pelos vários julgados certificados.

Não valem enunciados genéricos , como a simples referência à tipologia da condenação , fórmulas tabelares , ou seja remissões para os factos comprovados e os crimes certificados , a lei , juízos conclusivos , premissas imprecisas , pois vigora no nosso direito o dever de fundamentar as decisões judiciais , mais extenso em dadas situações , de que é paradigmática a sentença , menos exigente noutras , mas ainda assim de conteúdo minimamente objectivado, permissivo da possibilidade de se atingir o raciocínio lógico-dedutivo , o processo cognitivo do julgador , por forma a controlar –se o decidido e a afirmar-se que não procede de simples capricho , à margem do irrazoável –art.ºs 97.º n.º 4 e 374.º n.º 2 , do CPP – e que importa prevenir .

Seria um trabalho inútil e exaustivo exigir a menção dos factos da cada uma das sentenças pertinentes a cada pena ,de reportar ao cúmulo , mas será sempre desejável que se proceda a uma explicitação por súmula dos factos das condenações , que servirão de guia , de referencial, ao decidido , em satisfação das exigências de prevenção geral , e bem assim os que se provem na audiência em ordem a caracterizar a personalidade , modo de vida e inserção do agente na sociedade , como se decidiu nos Acs. deste STJ , de 5.2.09 , Rec.º n.º 107/09 -5.ª e de 21.5.09 , Rec.º n.º 2218/05 .OGBABF.S1 -3.ª .

No acórdão recorrido não se vai além da alusão ao facto de os crimes em causa terem sido praticados nos anos de 2000 a 2005, que se reportam na totalidade a “ crimes de furto qualificado e de roubo “ , pecando esta seca enumeração por insuficiente pois quem a lê queda-se por um estado de incerteza , ignorando , por ex.º a sua gravidade patrimonial e ofensividade pessoal , não habilitando o destinatário da condenação e o tribunal superior , a conhecer os factos na sua globalidade e nem mesmo a personalidade neles retratada , sendo que um e outro não estão forçados à consulta dos documentos dispersos nos autos , pois que a decisão , nesse aspecto , há-de bastar-se por si , ser autosuficiente , sem recurso a elementos que lhe sejam extrínsecos , incumbindo à instância recorrida fornecer-lhos .

A propósito da medida da pena vale sobremaneira reflectir sobre as oportunas considerações do Prof. Eduardo Correia sobre a duração da pena “ O significado antropológico da medição do tempo alterou-se radicalmente nos nossos dias . A vida adquiriu um ritmo tão rápido que não suporta penas tão pesadas como as praticadas anteriormente . .O limite a partir do qual a pena prejudica ou inutiliza a recuperação social do delinquente tende a diminuir “ , citado in A Parte Especial do Código Penal , da autoria do Exm.º Cons.º Lopes Rocha , Jornadas de Direito Criminal , CEJ , I , pág. 350 .

E mais ainda se escreveu já que um período de consecutiva reclusão superior a 10 anos acarreta um irrecuperável desfasamento com o mundo exterior .

Se se atender ao facto de o M.º P.º em 1.ª instância impetrar a redução da pena algum cabimento terá a citação daqueles eminentes penalista e magistrado .

Termos em que por falta de fundamentação e inconsideração da metodologia de formação da pena de concurso , extraindo-se , ainda , a conclusão de que o tribunal recorrido não ponderou , como deve , as questões apontadas se anula –art.ºs 374.º n.º 2 e 379.º n.º 1 c) , do CPP , o acórdão recorrido , provendo-se ao recurso .

Sem tributação .

Lisboa, 13 de Janeiro de 2010


Armindo Monteiro (Relator)
Santos Cabral