Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3407/15.5T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: CASO JULGADO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
CONTRATO-PROMESSA
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
CULPA IN CONTRAHENDO
INDEMNIZAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / VIGÊNCIA DA LEI – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÕES EM GERAL / TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS E DE DÍVIDAS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / CONSIGNAÇÃO DE RENDIMENTOS / PENHOR DE DIREITOS.
DIREITO CIVIL – PROCESSO EM GERAL / ATOS ESPECIAIS / CITAÇÕES E NOTIFICAÇÕES / CITAÇÃO DE PESSOAS SINGULARES.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 3, 581.º E 679.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 227.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 24-10-1995, CONSELHEIRO TORRES PAULO, IN WWW.DQSI.PT.
Sumário :
I – Formulados na PI dois pedidos, ambos julgados improcedentes na sentença, e apelando o autor apenas para obter a procedência do primeiro daqueles pedidos, a absolvição do pedido proferida quanto ao segundo forma caso julgado, pelo que não é abrangido pela absolvição da instância depois decretada pela Relação no julgamento da apelação.

II – Se numa ação é pedida pelo autor a condenação do réus a restituírem a quantia de € 110.000,00 paga no âmbito de um contrato-promessa nulo por falta de forma, sendo aí proferida sentença de absolvição do pedido, há identidade sujeitos e de pedido se em ação posterior o mesmo autor pede a condenação dos mesmos réus a pagarem-lhe os ditos € 110.000,00 a título de indemnização pelos danos resultantes de conduta daqueles integradora de responsabilidade pré-contratual.

III – Porque na primeira destas ações o facto jurídico gerador desse crédito teria sido a celebração de um contrato-promessa nulo por falta de forma, enquanto na segunda o facto jurídico gerador desse direito teria sido o comportamento dos réus durante as negociações frustradas, ao assumirem conduta contrária às regras da boa fé, fazendo-os incorrer em responsabilidade pré-contratual, não há entre ambas identidade de causa de pedir.

IV – Não se verifica, pois, a exceção de caso julgado que obste à apreciação da segunda destas ações.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA

2ª SECÇÃO



     I - AA, Ltd., sociedade de direito britânico, propôs no Tribunal Judicial de … uma ação contra BB e sua mulher CC, DD e EE – Confecções de Peúgas, Lda., pedindo que fosse declarado nulo, por falta de forma, um contrato-promessa celebrado entre a autora, como promitente compradora, e os réus como promitentes vendedores, com a subsequente condenação destes a restituírem-lhe a quantia de € 110.000,00 que pagara a título de princípio de pagamento com juros vencidos e vincendos à taxa legal; e, subsidiariamente, pediu que os réus BB e CC fossem condenados a restituir-lhe a mesma quantia de € 110.000,00, com juros vencidos e vincendos, à taxa legal.

      Na petição inicial apresentada nessa ação, que veio a receber o nº 1410/13.9TBVVD, enquadrando juridicamente a questão no não cumprimento do contrato-promessa, alegou, em síntese nossa, o seguinte:

- no seguimento de relações comerciais havidas durante alguns anos entre a autora e a ré sociedade, e sendo veiculada a hipótese de aquela adquirir 50% do capital desta, houve acordo quantos aos termos essenciais do negócio, que envolveria: a) a transmissão de uma quota, correspondente a 50% do capital social, do réu BB para a autora; b) a transmissão, para nome da sociedade ré, do imóvel onde funciona a sede social e a fábrica de confeção, imóvel esse pertencente ao réu BB; c) um aumento de capital da sociedade ré; d) o pagamento, pela autora, do valor total de € 665.000,00;

- em face desse acordo, nunca reduzido a escrito, e por a conclusão do negócio implicar a celebração de vários contratos, a autora entregou € 110.000,00 como princípio de pagamento, por transferência para uma conta pertencente ao réu BB;

- o contrato prometido acabou por não ser celebrado por os réus terem exigido o pagamento de € 465.000,00 em numerário, entregue em mão na data das escrituras, com vista a evitar a declaração de tais rendimentos e o pagamento dos respetivos impostos;

- a autora recusou-se a participar em tal ilegalidade e insistiu no sentido de que o pagamento fosse feito por cheque ou transferência bancária, o que os réus recusaram;

- apesar de diversos pedidos de restituição desta quantia, a mesma nunca lhe foi devolvida, assim se locupletando o réu BB com a mesma;

- a autora suportou várias despesas com vista à celebração do contrato projetado, com deslocações e estadias em Portugal, de montante não inferior a € 10.000,00.

     Veio a ser proferido na Instância Central de … um despacho saneador que, conhecendo do mérito da causa, absolveu os réus do pedido, com fundamentação cujas linhas essenciais podem ser resumidas do seguinte modo:

- não foi celebrado um contrato-promessa;

- a situação inserir-se-á, antes, na problemática da responsabilidade pré-contratual, que difere nas suas consequências jurídicas e práticas do pedido de restituição formulado pela autora e que não pode ser atendida na mesma ação;

- existindo, por isso, um meio específico de desfazer a deslocação patrimonial em causa, e tendo o enriquecimento sem causa um carácter subsidiário, não se justifica que a ele se recorra nesta ação.


      AA, Ltd. veio, depois, propor na Instância Central do Tribunal da comarca de … uma nova ação contra os mesmos réus em que pediu a sua condenação a restituírem-lhe a quantia de € 110.000,00 prestada durante as negociações com vista à celebração do mesmo projetado contrato, bem como a indemnizá-la, em valor a apurar em execução de sentença e nunca inferior a € 10.000,00, pelas despesas incorridas durante as negociações e demais prejuízos provocados pela frustração do negócio.

Na p. i. apresentada nesta ação, que correu sob o nº 3407/15.5T8BRG, com enquadramento jurídico no regime da responsabilidade pré-contratual dada a violação culposa, pelos réus, do princípio da boa fé, a autora alegou, em síntese nossa, o seguinte:

- no seguimento de relações comerciais havidas durante alguns anos entre a autora e a ré sociedade, e sendo veiculada a hipótese de aquela adquirir 50% do capital desta, houve acordo quanto aos termos essenciais do negócio, que envolveria: a) a transmissão de uma quota, correspondente a 50% do capital social, do réu BB para a autora; b) a transmissão, para nome da sociedade ré, do imóvel onde funciona a sede social e a fábrica de confeção, imóvel esse pertencente ao réu BB; c) um aumento de capital da sociedade ré; d) o pagamento, pela autora, do valor total de € 665.000,00;

- em face desse acordo, nunca reduzido a escrito, e por a conclusão do negócio implicar a celebração de vários contratos, a autora entregou € 110.000,00 como princípio de pagamento, por transferência para uma conta pertencente ao réu BB;

- o contrato prometido acabou por não ser celebrado por os réus terem exigido o pagamento de € 465.000,00 em numerário, entregue em mão na data das escrituras, com vista a evitar a declaração de tais rendimentos e o pagamento dos respetivos impostos;

- a autora recusou-se a participar em tal ilegalidade e insistiu no sentido de que o pagamento fosse feito por cheque ou transferência bancária, o que os réus recusaram;

- os réus bem sabiam, ao procurarem convencer a autora a aceder a uma simulação de valor que defraudaria o Estado e demais contribuintes, que o objetivo que tinham em vista era proibido e punido por lei;

- apesar de diversos pedidos de restituição desta quantia, a mesma nunca lhe foi devolvida, assim se locupletando os réus com a mesma;

- a autora suportou várias despesas com vista à celebração do contrato projetado, com deslocações e estadias em Portugal, de montante não inferior a € 10.000,00.

      Na contestação, além de defenderem a improcedência da ação, os réus deduziram reconvenção, pedindo a condenação da autora a pagar:

- € 25.095,41 ao réu BB;

- à ré EE, Lda., € 93.299,12 como indemnização de prejuízos já calculados  e, ainda, o que viesse a ser liquidado em execução de sentença por perda de contratos e por prejuízos decorrentes de uma candidatura a fundos europeus.

      Veio a ser proferida sentença que julgou a ação e a reconvenção improcedentes, com absolvição dos pedidos formulados, tendo os réus sido condenados, como litigantes de má fé, na multa de 5 UCs.

      Apelou a autora, tendo apresentado alegações onde pede a revogação da sentença e a sua substituição por decisão que condene os réus a restituírem-lhe a mencionada quantia de € 110.000,00, ou a título de responsabilidade pré-contratual, ou, subsidiariamente, a título de enriquecimento sem causa.

Na Relação de Guimarães foi proferido acórdão que oficiosamente considerou verificada a exceção do caso julgado, tendo, por isso, absolvido os réus da instância.

      A autora interpôs a presente revista, pedindo a revogação deste acórdão com remessa dos autos à Relação de Guimarães para que aí se conheça do mérito da apelação ou que este recurso seja conhecido pelo STJ.

        Para tanto, formulou as conclusões que passamos a transcrever:

I – O Tribunal da Relação de Guimarães julgou oficiosamente procedente a exceção de caso julgado, revogando a decisão de primeira instância e absolvendo os Réus da instância.

II – O douto Acórdão recorrido conduz a um resultado de tal maneira inusitado, que constitui uma absoluta surpresa não só para a Autora, como também para os próprios Réus, que jamais invocaram o caso julgado, e bem assim para o tribunal de primeira instância, o qual - tendo julgado o processo anterior na pessoa da mesma Mma. Juiz de Direito - não teve dúvidas em fazer o julgamento.

III – No primeiro processo, o tribunal decidiu que não podia julgar acerca do mérito da causa com base na responsabilidade pré-contratual dos Réus, uma vez que tal se fundava numa causa de pedir diferente daquela que fora invocada na ação, devendo a Autora propor nova ação para o efeito; tendo a Autora proposto a presente ação com base na responsabilidade pré-contratual dos réus, a Relação de Guimarães absolveu os réus da instância alegando que tal questão já foi decidida no processo anterior!

IV – Não existe identidade de pedido nem de causa de pedir entre a presente ação e a ação anterior, ao contrário do que entende o Tribunal da Relação de Guimarães.

V – Na primeira ação a Autora pediu a declaração de nulidade de um alegado contrato promessa, por vício de forma, e a consequente restituição do montante prestado no âmbito desse contrato, no valor de €110.000,00.

 VI – Subsidiariamente, a Autora pediu a devolução da quantia entregue com base no enriquecimento sem causa dos Réus, na medida em que o contrato por conta do qual tal montante havia sido entregue acabou por não se concretizar.

 VII – Já nesta ação, aquilo que a Autora peticiona é uma indemnização no valor de € 120.000,00, com base na responsabilidade pré-contratual dos Réus por violação dos deveres de boa-fé durante a fase de negociações, a fim de ser ressarcida da quantia entregue durante a fase de negociações, no valor de €110.000,00, bem como dos gastos incorridos por causa das mesmas, em valor não inferior a €10.000,00.

 VIII – Ao contrário do que vem dito no Acórdão recorrido, não foi por lapso que a Autora, na primeira ação, não peticionou o ressarcimento pelos prejuízos sofridos com deslocações e estadias durante a fase de negociações, em valor nunca inferior a €10.000,00.

IX – Foi antes porque, com base na declaração nulidade do contrato promessa por vício de forma, apenas podia peticionar a restituição das quantias entregues no âmbito desse suposto contrato, pois é essa a consequência decorrente da declaração de nulidade, nos termos do artigo 289º, nº 1.

 X – Do mesmo modo, com base no instituto do enriquecimento sem justa causa, a Autora apenas podia pedir as quantias com que a outra parte se locupletou e não uma indemnização pelos gastos por si incorridos durante as negociações.

 XI – E é assim porque, quer com base na declaração de nulidade do contrato promessa, quer com base no enriquecimento sem causa, a obrigação dos Réus devolverem à Autora a quantia desta recebida não decorre de qualquer dever indemnizatório pela prática de um ilícito e é independente de qualquer juízo de culpa ou censurabilidade, ao contrário do que sucede na presente ação, em que se peticiona uma indemnização com fundamento na violação de deveres de boa-fé pré-contratuais, na qual se pode peticionar uma indemnização pelos danos sofridos.

XII – Além do que vem dito, também não colhe o argumento invocado pela Relação de Guimarães de que o pedido feito nesta ação, se era inicialmente diferente, ficou igual a partir do momento em que a Autora não recorreu para a Relação de Guimarães da parte da indemnização referente aos gastos incorridos durante as negociações, em valor não inferior a €10.000,00.

XIII – Não é pelo facto de a Autora não ter recorrido de parte do pedido que o pedido feito no processo deixa de ser o mesmo, pois a Autora, em momento algum, requereu a modificação do pedido ou desistiu de parte deste nos autos.

 XIV – A Autora não recorreu dessa parte do pedido indemnizatório pura e simplesmente porque não logrou fazer prova suficiente das despesas incorridas durante o julgamento.

 XV – Logo, os pedidos formulados nas duas ações são diferentes, até porque se baseiam em causas de pedir diferentes.

 XVI – Na primeira ação, a causa de pedir, o facto jurídico, produtor de efeitos jurídicos, era a nulidade do contrato promessa por vício de forma - consubstanciado no facto concreto de o contrato não ter sido reduzido a escrito - na qual se fundava o pedido de declaração de nulidade, donde resulta o direito à restituição das quantias prestadas, nos termos do nº 1 do artigo 289º.

 XVII – Tal decorre inequivocamente da norma constante do nº 4 do artigo 581º do Código de Processo Civil, que dispõe expressamente o seguinte: "Há identidade de causas de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (...) nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido"

 XVIII – Ao invés, na presente ação, o que constitui a causa de pedir, o facto jurídico é a violação do dever de boa fé durante as negociações, donde decorre a responsabilidade pré-contratual dos Réus e a obrigação de indemnizar a Autora pelos prejuízos daí decorrentes - entre os quais se inclui a quantia entregue aos Réus, bem como os demais gastos incorridos durante a fase de negociações.

 XIX – Ao contrário do que parece resultar do teor do douto Acórdão recorrido, o tribunal da comarca de Braga, que julgou quer a primeira, quer a segunda ação, não assentou a sua decisão com base na teoria da individualização da causa de pedir, de acordo com a qual o tribunal estaria vinculado à norma abstracta da lei e à qualificação jurídica dada pelas partes.

 XX – Tal como se transcreve, a decisão proferida no primeiro processo refere literalmente o seguinte: "Uma tal indemnização - resultante da violação, no âmbito das negociações, de dever derivado da boa-fé - é, porém, diferente nas suas consequências jurídicas e práticas do pedido de restituição formulada. pela Autora, que se baseia na nulidade decorrente de vicio de forma de um suposto contrato-promessa. Daí que, como se escreveu relativamente a situação semelhante, no Acórdão do S.T.J., de 24.10.95, assinado pelo Conselheiro Torres Paulo e acessível em www.dqsi.pt, sendo certo que "a qualificação, ou seja, a recondução de certa realidade a um determinado conceito jurídico pertence ao juiz e não à parte", a verdade é que "o juiz não pode substituir a causa de pedir, facto jurídico, facto produtor de efeitos jurídicos, invocada pela Autora por uma outra".

 XXI – Esta é a interpretação mais consentânea com a norma constante do nº 4 do artigo 5819 do Código de Processo Civil, que delimita a causa de pedir através do conceito de "facto jurídico", concretizando, por exemplo, que nas ações de anulação, o facto jurídico é a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.

 XXII – Conclui-se, portanto, que tanto o pedido como a causa de pedir são diferentes, pelo que deve o Acórdão recorrido ser revogado e ordenada a remessa dos autos para a Relação de Guimarães, a fim deste douto Tribunal conhecer do mérito do recurso interposto pela Autora da decisão de primeira instância.

 XXIII – Acresce que, independentemente da interpretação que no segundo processo se faça do conceito de causa de pedir, a verdade é que no primeiro processo o tribunal recusou-se expressamente apreciar o mérito do caso com base na responsabilidade pré-contratual dos Réus.

XXIV – Logo, não existe qualquer decisão judicial transitada em julgado que aprecie a responsabilidade pré-contratual dos Réus, causa na qual a Autora fundamenta o pedido indemnizatório formulado na presente ação.

 XXV – Pelo que não existe qualquer decisão transitada em julgado que aprecie a responsabilidade pré-contratual dos Réus neste caso, e que se imponha fora do processo, nos termos do artigo 619º, nº 1do CPC.

 XXVI – Pelo contrário, o que existe é uma decisão judicial transitada em julgado que se abstém expressamente de apreciar do mérito de tal questão!

 XXVII – Para constituir caso julgado material, não basta que o mérito de uma determinada causa já pudesse ter sido apreciado no processo anterior, é preciso que o tenha sido.

 XXVIII – Por conseguinte, a absolvição da instância nos presentes autos, com fundamento em caso julgado, significaria, afinal, que a questão da responsabilidade pré-contratual dos Réus não seria apreciada em nenhum dos dois processos.

 XXIX – Tal resultado é obviamente intolerável e constituiria a mais flagrante violação do direito de acesso aos tribunais e à justiça, em violação ostensiva do disposto no artigo 2º do CPC e do artigo 20º da CRP.

XXX – Acresce que, no presente caso, conduziria a um resultado verdadeiramente chocante!

 XXXI – Encontra-se provado que os Réus tentaram exigir da Autora o pagamento da quantia de € 465.000,00 em numerário para fugir ao pagamento dos respetivos impostos, como resulta do e-mail subscrito pelo Réu DD e que se transcreve: «Cara …, Nós não queremos pagar impostos, não achamos que seja justo dar uma parte substancial do valor ao Estado quando, no final, os políticos metem o dinheiro ao bolso e ninguém se importa... Não espero que vocês entendam isto, talvez seja uma coisa cultural, mas em Portugal é perfeitamente normal pagar uma parte do preço em dinheiro...»

XXXII – Está igualmente provado que, tendo-se a Autora recusado entregar € 465.000,00 em numerário, exigindo, para celebrar o negócio, que o pagamento fosse feito através de cheque ou transferência bancária, os Réus se recusaram celebrar o negócio em tais condições.

XXXIII – Tendo em conta que os Réus pretendiam fazer uma simulação negocial, e, perante a recusa da Autora, se negaram a celebrar o negócio declarando o seu valor real, cabe-lhes o dever legal de restituir as quantias recebidas da Autora durante a fase das negociações.

XXXIV – Aliás, basta pensar que se o negócio se tivesse efetivamente concluído, cabia igualmente à Ré o dever de restituir à Autora todas as quantias por esta prestadas, uma vez que o mesmo estaria ferido de nulidade em virtude da simulação, nos termos da norma constante do n5 2 do artigo 240º do Código Civil.

 XXXV – Ora, se a Autora mantinha o direito em receber as quantias prestadas mesmo que tivesse comparticipado na simulação, é por demais evidente que nunca pode perder tal direito pelo facto de se ter recusado a fazê-lo!

 XXXVI – Doutra forma, estar-se-ia a premiar aquele que viola a lei e a punir aquele que a cumpre, ou dito mais claramente: estar-se-ia premiar aquele que tentou praticar um crime e a castigar aqueloutro que o evitou!

 XXXVII – Pelo que, ainda que não se verificasse a responsabilidade pré-contratual dos Réus - sendo certo que se verifica - a Autora mantinha o direito em, pelo menos, exigir dos Réus restituição da quantia por estes recebida por conta do negócio que não se efectivou, ao abrigo do instituto do enriquecimento sem justa causa.

 XXXVIII – Aliás, não pode esquecer-se que foi precisamente por causa da eventual existência de responsabilidade pré-contratual dos Réus, que o tribunal, no âmbito do primeiro processo, se viu impedido de condenar imediatamente os Réus por enriquecimento sem justa causa, devido ao carácter subsidiário deste instituto.

 XXXIX – Os Réus só não foram condenados no primeiro processo com base em enriquecimento sem justa causa devido à necessidade, de acordo com a decisão aí proferida, de se apurar primeiro da eventual responsabilidade pré-contratual destes, através da presente ação; pelo que julgar esta ação inadmissível com o argumento de que o caso já foi decidido na ação anterior, não só impediria a apreciação da responsabilidade pré-contratual dos Réus, de cuja decisão a aplicação do enriquecimento sem justa causa ficou pendente, como afastaria a condenação dos Réus com base nesse instituto.

XL –   Paradoxalmente, a pretexto de fazer uma aplicação mais material do direito - fundada na teoria da substanciação em vez da teoria da individualização da causa de pedir - a Relação de Guimarães proferiu uma decisão cujo único resultado material é o de impedir a apreciação do mérito da causa e negar à Autora a satisfação de um direito absolutamente notório e incontestável.

XLI – As normas referentes ao conceito de caso julgado, constantes do artigo 580º do CPC, aos requisitos do caso julgado, constantes do artigo 581º do CPC, bem como ao valor do caso julgado, constantes do artigo 619º e 620º, interpretadas, tal como foram no Acórdão Recorrido, no sentido de que a decisão transitada em julgado que recuse expressamente de condenar os Réus por responsabilidade pré-contratual, por entender que tal decisão pressuporia uma causa de pedir diferente da invocada nos autos, possa constituir caso julgado material oponível à ação subsequente intentada especificamente para esse efeito, viola o Princípio Constitucional do Acesso ao Direito e da Tutela Jurisdicional Efectiva, consagrado no artigo 209 da CRP.

 XLII – Pelo exposto, deve o Acórdão recorrido ser revogado e ordenada a remessa dos autos para o Tribunal da Relação de Guimarães a fim de que este julgue do mérito do recurso interposto pela ora Recorrente.

           

    Houve contra-alegações sustentando o acerto do acórdão recorrido.


     Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questão única sujeita à nossa apreciação a de saber se existe caso julgado que obsta ao conhecimento do mérito da causa, como se afirmou no acórdão sob recurso.


 II - Os elementos processuais com interesse para a decisão a proferir são os enunciados em sede de relatório.


  III – Com se referiu já, no acórdão da Relação de Guimarães entendeu-se que obsta ao conhecimento do mérito da causa a exceção dilatória de caso julgado formado na decisão proferida no processo nº 1410/13.9TBVVD, uma vez que entre esse processo e o presente se verifica a tríplice identidade prevista no art. 581º do CPC[1] - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.

     Os elementos sobreditos permitem, sem dúvida, afirmar a identidade de sujeitos; num e noutro processo estamos perante pessoas que, agindo em nome próprio, têm a mesma individualidade física e jurídica.

       Já a formação de juízo quanto à identidade de pedido e de causa de pedir reclama maior atenção e cuidado.

         Quanto à identidade de pedido, importa atentar no seguinte.

         No processo nº /13.9TBVVD a autora pediu:

 - que se declarasse nulo o contrato-promessa;

  - e os réus fossem condenados a restituir a quantia de € 110.000,00, com juros vencidos e vincendos;

 - subsidiariamente, que  os réus BB e CC fossem condenados a devolver essa mesma quantia, também com juros vencidos e vincendos, a título de enriquecimento sem causa.

         Já nestes autos a autora pediu:

 - que os réus fossem condenados a restituir, com juros vencidos e vincendos, os € 110.000,00 recebidos durante as negociações do contrato cuja outorga se veio a frustrar;

 - que os réus fossem condenados a indemnizá-la, em medida a apurar em execução de sentença, pelas despesas em que incorreu durante as negociações e pelos prejuízos provocados pela frustração do negócio.

    Quanto ao primeiro dos pedidos formulado nesta ação – condenação dos réus a restituírem à autora a quantia de € 110.000,00, com juros vencidos e vincendos – pode, por confronto com o deduzido na primeira ação, afirmar-se a identidade de pedido.

      Com efeito, sendo embora diverso o fundamento jurídico invocado para a existência do correspondente crédito, não há dúvidas de que respeita à mesma entrega de dinheiro feita pela autora durante as negociações havidas.

      O segundo dos pedidos feitos nesta ação está já definitivamente julgado no sentido da improcedência, o que exclui a sua ponderação na análise que ora nos ocupa.

      Com efeito, ao apelar contra a sentença absolutória proferida na 1ª instância, a autora, aí apelante, apenas pediu a procedência do pedido de restituição de € 110.000,00 e respetivos juros, assim se conformando com a absolvição dos réus quanto ao pedido de indemnização por despesas e prejuízos, tendo a sentença transitado em julgado nessa parte.

     Tendo ficado definitivamente decidido, tal pedido não foi naturalmente abrangido pela declarada absolvição da instância, não estando por isso em causa a sua consideração em sede da presente revista.

      Concluindo, o único pedido subsistente nesta ação é idêntico a pedido que fora formulado no processo nº 1410/13.9TBVVD.


      Importa saber, então, se esse pedido é fundado numa e noutra ação em idêntica causa de pedir.

      Escreveu-se no acórdão recorrido, depois de discorrer proficientemente sobre o conceito de causa de pedir, o seguinte:

 “(…) aplicando os princípios enunciados ao caso dos autos, verificamos que também entre as duas acções intentadas pela A. existe identidade de causas de pedir: em ambas as acções é invocado o facto jurídico concreto donde emana o pretenso direito da A - a entrega da quantia de € 110.00,00, pela A. aos RR, em vista de um negócio gizado entre ambas as partes, que não chegou a concretizar-se.

E a isso não obsta, como deixamos bem frisado (com suficiente apoio doutrinário e jurisprudencial), a diferente qualificação jurídica que a parte dê aos factos invocados – considerando a A. na 1ª acção estar-se perante a celebração de um contrato-promessa nulo por vício de forma e considerando nesta acção que a questão é de responsabilidade pré-contratual.

O que releva, como se disse, para a identidade de causas de pedir não é a qualificação jurídica dos factos feita pela parte – qualificação jurídica, de resto, não vinculativa para o tribunal (artº 5º nº 3 do CPC); o que releva são os próprios factos alegados, as tais ocorrências da vida que fundamentam o pedido formulado.

Ora, a esta luz, a causa de pedir invocada pela A. em ambas as acções é a mesma – a entrega da quantia ora reivindicada aos RR para um negócio que não ocorreu, alegadamente por culpa dos RR -, mesmo que naquela acção se tenha enquadrado a situação num determinado instituto jurídico – um alegado contrato promessa nulo por vício de forma e, subsidiariamente, no instituto do enriquecimento sem causa – enquadrando-se nesta acção aqueles factos no instituto da responsabilidade pré-contratual.

É verdade que, como bem se salienta no acórdão sob recurso, a qualificação jurídica dos factos não releva para um juízo sobre a existência, ou não, de identidade da causa de pedir.

Mas, em nosso entender, é redutora a afirmação aí proferida, segundo a qual o facto concreto em que a autora faz assentar o direito que invoca é a entrega por ela feita aos réus da quantia de € 110.000,00.

Sendo a causa de pedir o ato ou facto jurídico de que emana a pretensão que se pretende fazer valer, não é correto, salvo o devido respeito, dizer-se que o crédito invocado pela aqui recorrente num e noutro processo procede do facto de esta ter entregado a quantia de € 110.000,00, havendo, por isso, identidade de causa de pedir.

Nos termos do alegado pela autora, não foi a entrega desse valor que, por si só considerada, gerou a obrigação de restituir por parte dos réus; só em momento posterior terá ocorrido um circunstancialismo que, com ela conjugado, tem a virtualidade de gerar a obrigação de restituição da mesma quantia.

No primeiro processo o facto jurídico gerador desse crédito teria sido a celebração de um contrato-promessa nulo por falta de forma tendo em vista um contrato que não foi concretizado.

No presente processo o facto jurídico gerador desse direito de crédito terá sido o comportamento dos réus durante as negociações frustradas, ao assumirem conduta contrária às regras da boa fé, fazendo-os incorrer em responsabilidade pré-contratual.

Foi para preencher este requisito legal exigido no art. 227º do CC que a autora, aqui recorrente, alegou na p. i. da presente ação que os réus bem sabiam, ao procurarem convencê-la a aceder a uma simulação de valor que defraudaria o Estado e demais contribuintes, que o objetivo que tinham em vista era proibido e punido por lei.

Estes factos integram a causa de pedir desta ação e não foram alegados na primeira ação, o que exclui a identidade das causas de pedir que num e noutro processo estribaram idêntico pedido.

Daí que o acórdão impugnado não possa subsistir, impondo-se a sua revogação e que na Relação de Guimarães se proceda à apreciação do mérito da apelação, dado o disposto no art. 679º.


  IV – Nos termos expostos, concede-se provimento à revista e revogando-se o acórdão recorrido, determina-se que a Relação de Guimarães prossiga a apreciação do recurso de apelação.

        Custas conforme o que a final vier a ser fixado.


Lisboa, 9 de Novembro de 2017


Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho (Relatora)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos

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[1] Diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência.