Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
699/09.2TBOAZ.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
REGISTO CIVIL
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário : O art. 1848.º, n.º 1, do CC não obsta à admissibilidade do pedido de reconhecimento judicial em contrário da filiação que consta do registo de nascimento desde que seja simultaneamente deduzido o pedido de impugnação de paternidade e de cancelamento do respectivo registo.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA em acção declarativa com processo ordinário demandou, no dia 18-3-2009, BB, CC, que é daquela progenitora, DD, EE, FF, GG, HH, estes enquanto herdeiros juntamente com a demandada CC de II, falecido em 26-3-2000.

Deduziu os seguintes pedidos:

- Que seja reconhecido e declarado que não é filha de II e, em consequência, que seja ordenada a eliminação da paternidade constante do seu assento de nascimento, bem como a respectiva avoenga paterna.

- Que seja reconhecida e declarada a paternidade da autora relativamente ao réu BB, devendo, em consequência, ordenar-se o respectivo averbamento no seu assento de nascimento.

2. Cumulou a A. dois pedidos: o de impugnação de perfilhação e o de investigação de paternidade.

3. A A. nasceu em 15-9-1953 tendo sido registada como filha de CC e veio a ser perfilhada por II no dia 6-2-1957 com o qual a mãe contraíra matrimónio no dia 11-2-1956.

4. No entanto, o seu pai não é o perfilhante, mas o réu BB.

5. Os réus foram absolvidos da instância no despacho saneador por se considerar, com base no disposto no artigo 1848.º/1 do Código Civil, que se verifica excepção dilatória inominada de falta de pressuposto de prévia acção de impugnação de paternidade constante do registo de nascimento da autora pois ocorre uma precedência necessária entre acções ou questões - há que impugnar o que está registado, já que esta impugnação é condição de eficácia de tudo o que em contrário vier a ser reconhecido.

6. Desta decisão de 1ª instância foi interposto pelo autor recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça.

7. Sustenta o recorrente que ao propor a acção nos termos em que o fez não prejudica nem faz mal a ninguém, sendo certo que ninguém que esteja registado como filho de alguém pode registar-se como filho de outrem sem ter obtido cancelamento do registo anterior, não se compreendendo que se obriguem as partes, as testemunhas, os demais sujeitos do processo e o tribunal a um novo processo inteiramente desnecessário. Há um salto lógico quando a sentença estabelece uma precedência de questões para acabar a falar em acções, através de uma equiparação extensiva desses termos.

8. Sustenta também que a invocação do artigo 3.º/1 do Código de Registo Civil é desajustada ao caso vertente uma vez que a ratio legis da norma somente pretende salvaguardar que o registo da filiação apenas poderá ser efectuado caso não exista outro registo que ainda subsista, o que, naturalmente, implica o cancelamento de registo anterior (caso exista). Ora a presente acção judicial em nada contende com a norma acima referida já que, sendo obtida a declaração de que a autora não é filha de quem consta com seu pai no registo, isso motiva a consequente eliminação desse registo e, seguidamente, o reconhecimento e registo do verdadeiro pai.

9. A procedência da impugnação é base e pressuposto da investigação sendo certo que, reconhecida a impugnação (primeiro), nada impede que a investigação produza os seus efeitos (depois), sem que isso tenha que fazer iniciar um novo processo com tudo o que isso implica, de inconvenientes e dispêndios para o Tribunal, as testemunhas e para as partes, com a agravante de estas repetirem todo o seu calvário, todo o sofrimento que um processo como este traz consigo.

10. A decisão sob recurso não assenta em qualquer base legal e, a manter-se, obrigaria a uma duplicação da investigação dos factos (que são basicamente os mesmos) e a uma duplicação na busca da solução de direito.

11. Existem inúmeras acções judiciais exactamente iguais às destes autos (isto é: impugnação de perfilhação cumulada com pedido de reconhecimento de paternidade) que percorrem desembaraçadamente o seu percurso nos nossos tribunais sem que, nunca por nunca, a questão que origina a douta sentença seja minimamente aflorada sequer, ou constitua empecilho de qualquer espécie, sinal da naturalidade e pertinência de serem intentadas na forma como a autora o fez.

12. Referencia o recorrente acções que correm termos nos tribunais e que foram levadas a instâncias superiores, Tribunal Constitucional e Relação do Porto, em que foram deduzidos pedidos em termos similares aos que aqui apresentou.

Apreciando:

13. A questão que se suscita nos presentes autos é a de saber se o artigo 1848.º/1 do Código Civil proíbe que seja proposta acção de investigação de paternidade sem que previamente à sua instauração tenha sido rectificado, declarado nulo ou cancelado o registo de filiação contrária que conste do registo de nascimento.

Diz este preceito:

Artigo 1848.º

(Casos em que não é admitido o reconhecimento)

1- Não é admitido o reconhecimento em contrário da filiação que conste do registo de nascimento enquanto este não for rectificado, declarado nulo ou cancelado.

2- O disposto no número anterior não invalida a perfilhação feita por alguma das formas mencionadas nas alíneas b), c) e d) do artigo 1853.º, embora ela não produza efeitos enquanto não puder ser registada.

De igual modo, o artigo 1815.º do Código Civil prescreve:

Artigo 1815.º

( Caso em que não é admitido o reconhecimento)

Não é admissível o reconhecimento de maternidade em contrário do que consta do registo de nascimento.

14. O artigo 1848.º do Código Civil (redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro) corresponde ao anterior artigo 1826.º com a mesma epígrafe - casos em que não é admitido o reconhecimento - que prescrevia assim:

Artigo 1826.º

(Casos em que não é admitido o reconhecimento)

1- Não é admitido o reconhecimento em contrário da filiação que consta do assento de nascimento enquanto não houver rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento deste assento pelos meios próprios.

2- O disposto no número anterior não invalida a perfilhação feita por alguma das formas mencionadas nas alíneas c), d) e e) do artigo 1830.º embora ela não produza efeitos enquanto não puder ser registada.

15. Na origem deste preceito encontramos o artigo 36.º do Anteprojecto de Pires de Lima (ver “Filiação, Poder Paternal, Tutela de menores, Emancipação e Maioridade. Projecto de Reforma”, B.M.J., nº 89, Outubro de 1959, pág. 49):

Em nenhum caso é admitida a perfilhação de pessoa que figure como filho legítimo ou ilegítimo de outrem no respectivo registo de nascimento enquanto a declaração desse estado não for cancelada pelos meios legais.

16. Não está aqui em causa - a decisão proferida no despacho saneador assim o sublinha - uma questão de inadmissibilidade de cumulação de pedidos.

17. Com efeito, não se vê impedimento à cumulação do pedido de impugnação de perfilhação com o pedido de investigação de paternidade, pedidos que estão entre si numa relação de dependência (artigo 30.º do C.P.C.). Veja-se sobre esta questão o Ac. do S.T.J. de 21-5-1992, (Figueiredo de Sousa) B.M.J., 417-743.

18. A questão é, portanto, outra: considerar-se inadmissível a instauração de acção de investigação de paternidade sem que previamente tenha sido rectificado, declarado nulo ou cancelado a filiação que consta do registo de nascimento.

19. E, com esta formulação, assim se deve entender: não é de admitir acção de investigação de paternidade que tenha em vista obter uma decisão judicial que reconheça filiação contrária à que consta do registo sem que seja posto em causa por via de acção de estado ou de registo a filiação que do registo consta.

20. No entanto, havendo cumulação de pedidos, então, porque está posta em causa por via de acção de estado a filiação que do registo consta, a decisão que julga procedente a impugnação de paternidade levará a que o registo seja cancelado e, agora, face a esse cancelamento, pode lavrar-se registo com a nova filiação.

21. O aludido preceito não obsta a este entendimento que não colide com a regra constante do artigo 3.º do Código do Registo Civil sob a epígrafe “Valor probatório do registo” que diz:

1- A prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de estado e nas acções de registo.

2- Os factos não podem ser impugnados em juízo sem que seja pedido o cancelamento ou a rectificação dos registos correspondentes.

22. Se o autor pede, em cumulação de pedidos, processualmente admissível, como vimos, a impugnação da perfilhação e o cancelamento do respectivo registo, o autor está , por via de acção de estado, a pretender ilidir a prova resultante dos factos em contrário constantes do registo civil.

23. A regra da prioridade do registo é respeitada; a regra constante do artigo 1848.º/1 do Código Civil é igualmente respeitada, pois o reconhecimento em contrário da filiação é admitido na sequência de decisão que ordena o prévio cancelamento do registo.

24. Se o pedido de impugnação improcede, o pedido de reconhecimento da paternidade tem de improceder, pois se fica assente que A é filho de B, não pode reconhecer-se que A é filho de C. Um absurdo que prova precisamente a compatibilidade substancial dos pedidos. A paternidade de C só pode ser reconhecida, impugnando-se com sucesso a paternidade de B.

25. Não se nos afigura que este entendimento não esteja em harmonia com o que escrevem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira ( Ver Curso de Direito da Família, 2006, com a colaboração de Rui Moura Ramos, pág. 296 § 391:

O artigo 1848.º, nº1, estabelece uma regra de prioridade de registo: estabelecida a paternidade por qualquer dos modos tipificados na lei, essa paternidade prevalece sobre qualquer tentativa de criar um estado incompatível, enquanto o primeiro não for impugnado com êxito. Trata-se de um corolário do princípio mais amplo, segundo o qual os factos obrigatoriamente sujeitos a registo, uma vez registados - e por isso invocáveis para todos os efeitos - gozam de uma certeza formal e pública que os defende contra prova de facto incompatível que não seja apresentada na competente acção de estado (cf. o artigo 3.º do Código do Registo Civil). Se for registada uma segunda perfilhação, ela será nula por contrariar esta regra imperativa de prioridade.

26. O Supremo Tribunal de Justiça admitiu que tais pedidos sejam deduzidos simultaneamente. Assim, no Ac. de 3-7-2003 (Quirino Soares)(P. 03B 2273) in www.dgsi.pt estando em causa acção de investigação de paternidade sem que tivesse sido pedida a impugnação de paternidade, referiu-se o seguinte:

O que se passa é que a paternidade atribuída a D. não pode ser investigada sem que, antes, ou, pelo menos, em simultâneo, seja impugnada a paternidade constante do registo. Proíbe-o o art.º. 1848º, 1, CC.

Mas, não se trata, aqui, como é óbvio, de nulidade do processo por contradição entre o pedido e a causa de pedir, tal como foi sentenciado em 1ª. instância.

Ou de qualquer outra nulidade processual.

A preterição daquela prévia diligência (de impugnação da paternidade presumida) constitui, sim, uma excepção dilatória (as excepções dilatórias são as que obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa - 493º, 2, CPC), e, como tal, de conhecimento oficioso (495º, CPC), importando, no caso, a absolvição da instância (493º, 2, citado, e 288º, 1, e, CPC).

A decisão de absolver o réu da instância deve manter-se, mas por razões bem diferentes da adoptada no acórdão recorrido, visto que se não verifica a incompetência do tribunal, em razão da matéria, mas antes a excepção dilatória de registo de paternidade diferente da investiganda.

27. A lei já prescreveu a inadmissibilidade de perfilhação sem o cancelamento do registo de nascimento por força de sentença judicial passada em julgado.

28. Assim, prescrevia o artigo 23.º§3º do Decreto n.º 2 de 25 de Dezembro de 1910:

É expressamente proibida a perfilhação de pessoa que figure como filho legítimo de outrem no respectivo registo de nascimento, enquanto a declaração desse estado não for cancelada por força de sentença judicial transitada em julgado.

E o artigo 40.º do mesmo Decreto determinava:

Quando a mãe era inábil, pelo facto de estar casada com outrem nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do filho ilegítimo, a acção de investigação de paternidade ilegítima só poderá ser recebida em juízo, quando uma sentença passada em julgado tiver declarado, nos termos dos artigos 10.º-12.º, que o filho não é de matrimónio.

29. Ora, tendo sido proposta acção decidida pelo S.T.J. em 25 de Abril de 1947 em que a autora deduziu dois pedidos, pretendendo com um obter declaração judicial de não ser filha legítima de B., casado com a sua mãe e pretendendo com o outro ser declarada filha ilegítima de C., o Supremo Tribunal, revogando o acórdão da Relação, julgou inepta a petição.

30. Se, do ponto de vista processual, o caso não se afigurava como de ineptidão da petição inicial pois os pedidos manifestamente eram congruentes e compatíveis, já do ponto de vista substantivo, Alberto dos Reis (“Cumulação do Pedido de Impugnação de Legitimidade de Filho com o de Investigação de Paternidade Ilegítima”, R.L.J, 80.º Ano, 1947/1948, pág. 321/331) sustentava que, face à redacção do referido artigo 40.º, a interpretação das instâncias brigava claramente com o texto da lei. É que

onde o artigo diz a acção de investigação de paternidade não pode ser recebida em juízo, o juiz de 1ª instância e a Relação puseram: o pedido de investigação não pode ter andamento, a investigação não pode começar. E como a investigação propriamente dita só começa com a produção da prova, segue-se que o artigo 40.º não obsta a que a acção de investigação se receba: obsta unicamente a que se iniciem as diligências de prova tendentes a averiguar se o autor é filho de homem cuja paternidade ilegítima vindica.

Forçou-se manifestamente o comando legal.

O comando é este: proíbe-se que a acção de investigação seja recebida em juízo, enquanto não houver sentença definitiva a dizer que o filho não é legítimo.

Ora, em que consiste o recebimento duma acção em juízo?

[…]

Porque as coisas são rigorosamente assim, segue-se que onde a lei disser “ a acção não pode ser recebida em juízo”, esta proibição equivale, sem dúvida alguma, a esta outra: a acção não pode ser proposta ou não pode ser intentada.

Eis o sentido nítido do artigo 40.º do Decreto n.º2, de 25 de Dezembro de 1910. O que aí se determina é que a acção de investigação de paternidade ilegítima só poderá ser proposta depois de se obter sentença definitiva a dizer que o investigante não é filho de matrimónio.

31. Alberto dos Reis (loc. cit.) dá-nos a razão de ser de uma tal proibição:

Compreende-se perfeitamente que o legislador quisesse proibir não só que a produção de prova começasse, mas até, que a pretensão fosse apresentada em juízo.

O que está na base do artigo 40.º é este pensamento: não é admissível que alguém pretenda judicialmente ser filho ilegítimo, enquanto tem a condição jurídica de filho legítimo.

O filho está inscrito no registo civil como legítimo? Pois bem, a lei diz-lhe: faça primeiro desaparecer esse estado civil e venha depois com a acção de investigação de paternidade. E, nada repugna que seja precisamente esta a vontade da lei […]

Na base da proibição exarada no artigo 40.º só pode estar esta ideia: repugna admitir que se cumule o pedido judicial de investigação de paternidade ilegítima, enquanto subsistir o estado de filho legítimo.

Se é esta a razão de ser do artigo - e não vemos que possa ser outra - é claro que nada importa que a impugnação de paternidade parta do pai ou parta do filho; num e noutro caso a existência de legitimidade do filho constitui obstáculo legal ao ingresso, em juízo, da acção de investigação de paternidade.

32. Alberto dos Reis referia que “ se é chocante que comece a produzir-se prova sobre a paternidade ilegítima antes de destruído o estado de filho legítimo, não é menos chocante que o filho apresente em juízo a sua pretensão à paternidade ilegítima enquanto estiver de pé a paternidade legítima”.

33. Assim sendo as coisas, certo é que a partir da Constituição de 1976 os filhos nascidos fora do casamento deixaram de ser, por esse motivo, objecto de qualquer discriminação (artigo 36.º/4) e, por isso, tal razão de ser deixou de relevar.

34. Se uma tal distinção se encontrava ainda na base do texto do artigo 1826.º do Código Civil (correspondente ao actual artigo 1848.º) apesar de agora a lei já não mencionar, como expressamente o fazia o artigo 40.º do Decreto n.º2 que ” a acção de investigação de paternidade ilegítima só poderá ser recebida em juízo, quando uma sentença passada em julgado tiver declarado, nos termos dos artigos 10.º-12.º, que o filho não é de matrimónio”, a permitir , portanto, uma interpretação conforme a esta visão tradicional, a partir da Constituição de 1976 seguramente que esta a razão deixou se encontrar na base de uma tal proibição.

35. A letra da lei (artigo 1848.º do Código Civil) não encerra comando idêntico ao do artigo 40.º, como já não o encerrava o artigo 1826.º; deixou de subsistir, como se disse, a razão de ser que justificava proibir-se a formulação de pedidos em simultâneo; o interesse do investigante é, aliás, o de que a sua situação real seja definida, preponderando o seu interesse relativamente ao interesse dos demandados, a progenitora, o perfilhante, o investigado. O interesse do investigante é aquele que o recorrente salienta na sua minuta. E é um interesse que merece acolhimento, pois não vemos razão que justifique actualmente que o investigante tenha de propor duas acções.

36. Antunes Varela considera, no entanto, que o reconhecimento a que se refere o preceito é o reconhecimento judicial e, por isso, entende que “ a norma não pode naturalmente deixar de ser interpretada como uma proibição de instauração da acção de investigação de maternidade ( dentro ou fora do casamento) sem prévia rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do assento pelos tais meios próprios - em perfeita conformidade com a doutrina expressa no antigo texto do n.º1 do artigo 1826.º” (Código Civil Anotado, 1995, Vol V, pág. 76) considerando que a formulação do artigo 1826.º “ deu intencionalmente à proposição contida no n.º1 uma formulação mais genérica”, isto é, “ a disposição deixou de ser apenas uma peça integrante do sistema defensivo da paternidade legítima e passou a constituir um simples corolário do princípio geral dos actos primeiro levados a registo” (loc. cit., pág. 229).

37. Nesta linha de pensamento, a razão de ser do preceito já não tinha a ver com a aludida distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, mas com o valor probatório do registo.

38. Ainda que assim seja, para que os objectivos visados com a lei sejam assegurados, não se vê que proibição de reconhecimento judicial ( a lei, no entanto, fala apenas em reconhecimento) em contrário da filiação que conste do registo se traduza numa proibição absoluta de instauração de acção, como sucedia com o Decreto n.º 2, bastando a proibição de instauração de acção em que a decisão de reconhecimento judicial da paternidade não seja precedida necessariamente de decisão a ordenar o cancelamento da filiação que consta do registo de nascimento.

39. Afigura-se, assim, que é aceitável uma interpretação do preceito no sentido de que apenas não é admitido o reconhecimento judicial em contrário da filiação que consta do registo do nascimento quando este não seja cumulado com o pedido de impugnação com cancelamento do registo de nascimento efectuado.

Ou, se quisermos, numa formulação positiva, é admissível o reconhecimento judicial em contrário da filiação desde que este seja cumulado com pedido de impugnação e de cancelamento do registo de nascimento efectuado.

40. Esta interpretação justifica-se, como se disse, por várias razões:

- Porque a razão de ser que levou à formulação dos mencionados artigos constantes do Decreto n.º2 cessou com a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos

- Porque, formulado tal pedido numa acção de estado, o registo civil admite que a prova quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil possa ser ilidida.

- Porque a lei admite a cumulação de pedidos, não existindo obstáculo de ordem processual.

- Porque a regra constante do artigo 3./2º do actual Código do Registo Civil não é atingida, ou seja, o cancelamento decorre sempre de uma decisão que é lógica e necessariamente prévia à decisão que importa o reconhecimento da paternidade contrária à que consta do registo de nascimento.

Concluindo:

O artigo 1848.º/1 do Código Civil não obsta à admissibilidade do pedido de reconhecimento judicial em contrário da filiação que consta do registo de nascimento desde que seja simultaneamente deduzido o pedido de impugnação de paternidade e de cancelamento do respectivo registo.

Decisão: concede-se a revista e, consequentemente, revogada a decisão proferida, devem os autos prosseguir seus termos.

Sem custas

Lisboa, 16 de Março de 2010

Salazar Casanova (Relator)

Azevedo Ramos

Silva Salazar