Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
617/09.8T2ETR.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: DIREITO DE REMIÇÃO
PROCESSO DE EXECUÇÃO
VENDA JUDICIAL
BENS COMUNS
Apenso:
Data do Acordão: 11/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO III/2010, P. 164
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADA
Sumário :

I – O direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda, nos termos do art. 912 do C.P.C., é um benefício de carácter familiar.

II – O direito de remição não é uma modalidade do direito de preferência, sendo antes direitos distintos, com diversa natureza, quer pela base em que assentam, quer pelo fim a que visam.

III – Tendo o processo de execução tido início após o casamento dos cônjuges e sendo o momento em que nasceu o concreto direito de remição do cônjuge marido (venda ou adjudicação) posterior à data da celebração do casamento, os bens adquiridos, nesse processo executivo, ao abrigo do indicado direito de remição pelo cônjuge marido, casado no regime da comunhão de adquiridos, ficam a revestir a natureza de bens comuns do casal, por terem sido adquiridos na constância do casamento, a título oneroso.

IV- Uma vez exercido o direito de remição, esgotou-se o benefício de carácter familiar que tal direito quis acautelar.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


AA instaurou a presente acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra o réu BB, pedindo se decrete o divórcio entre eles.

No âmbito da tentativa de conciliação, as partes manifestaram o propósito de se divorciarem e acordaram no seguinte:
1 – Não existem filhos menores.
2 – Prescindem mútua e reciprocamente de alimentos.
3 – O uso da casa de morada de família fica atribuído ao cônjuge marido, até à venda ou partilha.

No que respeita aos bens comuns do casal, as partes não lograram chegar a acordo.

Foi então proferido despacho ao abrigo do art. 1778-A, nº4, do C.C., nos termos do qual as partes foram convidadas a alegarem e a arrolarem prova sobre a matéria em que não haviam chegado a acordo, ou seja sobre a “relação especificada dos bens comuns”, tendo ambas as partes juntado alegações e documentos.

De tais alegações ressalta, por referência à relação especificada dos bens comuns junta pela autora de fls 30 a 35, o seguinte:
- Verbas 1, 2, 8, 12, 13 e 14 : mostram-se aceites por ambas as partes, pelo que não subsistem dúvidas sobre as mesmas;
- Verbas nºs 3, 4, 6 e11, 7 e 10 : a autora reclama a sua relacionação, enquanto o réu se opõe, invocando tê-las adquirido em virtude de um direito próprio anterior, pelo que não devem ser considerados bens comuns;
- Verba nº5 : A autora reclama a sua relacionação e o réu recusa tal relacionação, alegando que esse bem é propriedade da sociedade L...., pelo que não deve ser relacionado;
- verba nº9 : A autora reclama sua relacionação, enquanto o réu se opõe, alegando ter adquirido tal bem ainda em solteiro, pelo que deve ser considerado um bem próprio.

Em 28-5-10, foi proferida sentença que decidiu:

a) – Homologar os acordos alcançados pelas partes e constantes de fls 26 dos autos, sob os nºs 1,2 e 3.
b) – Manter na relação especificada dos bens comuns de fls 30 a 35, para além dos bens relativamente aos quais existe acordo das partes (ou seja, verbas nºs 1, 2, 8, 12, 13 e 14), ainda as verbas nºs 3, 4, 6 e 11, 7 e 10, por se considerarem bens comuns do casal.
c) – Determinar a exclusão da relação especificada de bens comuns de fls 30 a 35 as verbas nºs 5 e 9, por não serem bens comuns do casal.
d) - Decretar o divórcio entre AA e BB, com a consequente dissolução do seu casamento.


Inconformado com esta sentença, recorreu “per saltum” para este Supremo Tribunal de Justiça o réu BB, ao abrigo do art. 725, nº1, da actual redacção do C.P.C., na parte em que considerou bens comuns as verbas nºs 3, 4, 6, e 11, 7 e 10 da relação especificada dos bens comuns de fls 30 a 35.

Alegando no recurso, o recorrente conclui:
1- A decisão da 1ª instância, na parte em que decidiu considerar bens comuns do casal as verbas nºs 3, 4, 6 e 11, 7, e 10 da relação especificada viola o regime do art. 1722, nº1, al.c) e nº2, al. d) do C.C.
2 – Relevante para a interpretação da norma do art. 1722, nº1, al. c) do C.C., é o elemento ou critério de natureza pessoal da qualidade de sucessor, em que se funda da faculdade de exercício do direito de remição.
3 – Importante para a interpretação da norma não é o elemento ou critério de natureza patrimonial do tempo ou oportunidade do exercício do direito, acolhido na decisão recorrida.
4 – A decisão recorrida, ao interpretar e aplicar a norma do art. 1722, nº1, al. c) do C.C. pelo critério patrimonial da temporalidade do exercício do direito violou o regime dos bens próprios dos cônjuges consagrado no mesmo artigo, concedendo ao casamento e ao direito de remição um efeito patrimonial sem fundamento legal .
5 – A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que declare excluídos da relação de bens comuns as verbas nºs 3, 4, 6 e 11, 7 e 10, as quais devem ser qualificadas como bens próprios do recorrente.

A recorrida contra-alegou em defesa do julgado.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A sentença considerou provados os factos seguintes, na parte que agora interessa considerar:

1 – A presente acção foi instaurada em 29-10-09.

2 – A autora e réu contraíram casamento entre si, sem convenção antenupcial, no dia 28-10-78.

3 – No que tange às referidas verbas nºs 3, 4, 6 e 11, 7 e 10 da relação especificada dos bens comuns :

Verba nº 3 - Encontra-se descrito a favor da autora e do réu, na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha, sob o nº 0000000/000000 e inscrito na matriz urbana sob o art. 103, o prédio urbano destinado a habitação de dois andares, com a área coberta de 100 m2, com duas dependências, com 27 m2, logradouro com 60 m2, sito na Rua .............., freguesia e concelho de Albergaria-a-Velha, a confrontar do norte com CC, do Sul com DD, do nascente com FF e do poente com Estrada nacional nº 10, por adjudicação em venda judicial em 9-2-2000, no processo de execução fiscal nº 00000000/00000, autuado em 2-3-1992, em que era executada “CC, Herdeiros”, por força do exercício do direito de remição ;

Verba nº 4 – Encontra-se descrito a favor da autora e do réu, na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha, sob o nº 0000000000, e inscrito na respectiva matriz sob o art. 110, o prédio urbano composto de casa de rés do chão e 1º andar destinada a comércio e serviços, com a área coberta de 268 m2 e descoberta de 354 m2, sito na Rua 00000000000, freguesia e concelho de Albergaria-a-Velha, a confrontar do norte com Largo .........., do sul com BB, do nascente com EE e do poente com Rua d............. .
Tal prédio resultou da anexação de dois prédios, um deles adjudicado em 9-2-2000 ao réu, no processo de execução fiscal 0000000000, autuado em 2-3-92, em que era executada “CC, Herdeiros, por força do exercício do direito de remição, e outro adquirido por compra, por escritura de 4-8-2000, pelo réu.

Verbas nºs 6 e 11 : Encontra-se descrito a favor do réu, na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob o nº 000000000000, e inscrito na respectiva matriz urbana sob o art. 921 e na respectiva matriz rústica sob o art. 5203, o prédio misto sendo a parte urbana composta por habitação do rés do chão e 1º andar com a área coberta de 293 m2, dependências e piscina com 240 m2, e a parte rústica por terreno de cultura, com a área de 13.830 m2, sito em Cavada Nova, freguesia e concelho de Albergaria-a-Velha, a confrontar do norte com proprietário, do sul e poente com caminho público e do nascente com Estrada nacional nº1, adquirido pelo réu por adjudicação em venda judicial em 9-2-2000, no processo de execução fiscal 00000000000000, autuado em 2-3-92, em que era executada “CC, Herdeiros”, por força do exercício do direito de remição.

Verba nº 7 – Encontra-se descrito a favor do autor e do réu, na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha, sob o nº 000000000000, e inscrito na matriz urbana sob o art. 108, o prédio urbano composto de casa térrea para indústria com a área coberta de 75 m2, sito no Largo............., freguesia e concelho de Albergaria–a-Velha, a confrontar do norte com Largo............., do sul com GG, do nascente com FF e do poente com proprietário, adquirido pelo réu por adjudicação em venda judicial em 9-2-2000, no processo de execução fiscal nº 0000000000, autuado em 2-3-1992, em que era executada “CC, Herdeiros”, por força do exercício do direito de remição.

Verba nº 10 : Encontra-se inscrito a favor da autora e do réu, na matriz rústica de Albergaria-a-Velha, sob o art. 4834, omisso na Conservatória do Registo Predial, o prédio rústico composto de terreno de cultura de sequeiro e eucaliptal, com a área de 20.000 m2, sito em Gaia, freguesia e concelho de Albergaria-a-Velha, a confrontar do norte com Fábrica Alba e Outros, do sul com caminho, do nascente com Estrada e do poente com HH e Outros, prédio adquirido pelo réu por adjudicação em venda judicial no ano de 2000, no processo de execução discal 000000000 , autuado em 2-3-92, em que era executada “CC, Herdeiros”, por força do exercício do direito de remição.

A questão a decidir consiste em saber se os imóveis relacionados nas referidas verbas nºs 3, 4, 6, e 11, 7 e 10 da “relação especificada de bens comuns” de fls 30 a 35 dos autos, devem ou não ser considerados bens comuns do casal, com vista a futura partilha.


O recorrente interpôs o presente recurso por entender que a sentença recorrida não aplicou correctamente o direito, alegando que viola o regime do art. 1722, nº1, al. c) e nº2, al. d) do Cód. Civil.
Na sua óptica, por tais bens terem sido adquiridos por ele, por adjudicação em venda judicial, no exercício do direito de remição, tais verbas devem ser qualificadas como bens próprios do recorrente e não como bens comuns do casal.

Mas sem razão.

O recorrente e a recorrida casaram um com o outro em 28-10-78, sem convenção antenupcial, pelo que se encontram casados no regime supletivo da comunhão de adquiridos, nos termos do art. 1717 do Cód. Civil.

No regime da comunhão de adquiridos fazem parte da comunhão todos os bens ou valores que constituam o produto do trabalho dos cônjuges, bem como os bens ou valores adquiridos por qualquer dos cônjuges na constância do matrimónio que não sejam exceptuados por lei – art. 1724, al. a) e b), do mesmo diploma.

Por sua vez, o art. 1722, nº1, dispõe:
1- São considerados próprios dos cônjuges:
a) – Os bens que cada um deles tiver ao tempo do casamento;
b) – os bens que lhes advierem depois do casamento, por sucessão ou doação;
c) – Os bens adquiridos na constância do matrimónio, por virtude de direito próprio anterior.
2 – Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum:
a) – Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele;
b) – Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento;
c) – Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade;
d) – Os bens adquiridos no exercício do direito de preferência fundado em situação existente à data do casamento.

Tal como resultou provado, parte da verba nº4, foi adquirida pelo réu, a título oneroso, por escritura de compra e venda de 4-8-2000, na constância do casamento, pelo que esta parte não pode deixar de ser considerada bem comum.
A verba nº3, a restante parte da verba nº4, e as verbas nºs 6 e 11, 7 e 10 foram adquiridas na constância do casamento do recorrente e da recorrida, por adjudicação em venda judicial, no ano de 2000, no âmbito de um processo de execução fiscal, iniciado em 2-3-92, e no exercício de direito de remição de que o mesmo recorrente era titular.
No entanto, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, não é pelo facto destas verbas terem sido adquiridas pelo recorrente, no exercício de um direito de remição, que tais imóveis adquirem a natureza de bens próprios deste.
Com efeito e tal como foi julgado na sentença, tais bens são antes de considerar bens comuns do casal, por terem sido adquiridos na constância do casamento, não resultando de qualquer direito (nomeadamente de preferência) pré-existente à data do casamento.
A lei prevê que ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda – art. 912 do C.P:C.
Tal direito de remição pertence em primeiro lugar ao cônjuge, em segundo lugar aos descendentes e em terceiro lugar aos ascendentes do executado – art. 915, nº1, do C.P.C.

Quanto à natureza do direito de remição, concorda-se com Alberto dos Reis (Processo de Execução, Vol. II, pág. 477), quando escreve :
Analisando o art. 912 do C:P.C., verifica-se que o direito de remição é nitidamente um benefício de carácter familiar.
Dá-se ao cônjuge do executado e aos descendentes e ascendentes deste o direito de adquirir para si os bens adjudicados ou vendidos, pelo preço da adjudicação ou da venda.
Na sua actuação prática, o direito de remição funciona como um direito de preferência : tanto por tanto os titulares desse direito são preferidos aos compradores ou adjudicatários.
A família prefere aos estranhos.
Porque admitiu a lei esta preferência a favor da família?
A razão é clara.
Quis-se proteger o património familiar ; quis-se evitar que os bens saíssem para fora da família”.
O insigne Mestre acrescenta logo a seguir ( pág. 478) :
Quando se afirma que o direito de remição se comporta como um direito de preferência, não se quer significar que o direito de remição se confunda com o direito de preferência a que se refere o art. 892º; direito de remição e direito de preferência são noções e conceitos nitidamente diferenciados.
O art. 914º vinca a distinção, declarando que o direito de remição prevalece sobre o direito de preferência.
O efeito prático do exercício do direito de remição é igual ao do exercício do direito de preferência ; mas os dois direitos têm natureza diversa, já pela base em que assentam, já pelo fim a que visam.
Diversidade de fundamento: ao passo que o direito de preferência tem por base uma relação de carácter patrimonial, o direito de remição tem por base uma relação de carácter familiar .
No direito de preferência, a razão da titularidade é o condomínio, ou o desdobramento da propriedade; no direito de remição a razão da titularidade é o vínculo familiar criado pelo casamento ou pelo parentesco (a qualidade de cônjuge, de descendente ou ascendente).
Diversidade de fim : enquanto o direito de preferência obedece ao pensamento de transformar a propriedade comum em propriedade singular, ou de reduzir a compropriedade, ou de favorecer a passagem da propriedade imperfeita para a propriedade perfeita, o direito de remição inspira-se no propósito de defender o património familiar do executado para as mãos de pessoas estranhas”.
Podemos, pois, concluir que o direito de remição não é uma modalidade do direito de preferência.
Tal como se estabelece no art. 914, nº1, do C.P.C., o direito de remição prevalece sobre o direito de preferência.
Mesmo que se considerasse que o direito de remição é uma modalidade do direito de preferência, a norma do art. 1722, nº2, al. d) do C.C. (para efeitos de se poder considerar adquiridos por virtude de direito próprio anterior ao casamento) exige que o direito de preferência se funde em situação já existente à data do casamento.
O que manifestamente não acontece no caso em apreciação, onde quer o processo de execução, quer o momento em que nasceu o concreto direito de remição do cônjuge marido (venda ou adjudicação) são muito posteriores à data da celebração do casamento, tendo esses bens sido adquiridos na constância do casamento.
E, uma vez exercido o direito de remição, esgotou-se o benefício de carácter familiar que tal direito quis acautelar.
Assim, a aquisição de tais imóveis não derivou de direito próprio do cônjuge marido, anterior ao seu casamento, pelo que os indicados bens adquiridos por remição, em venda judicial executiva, não podem considerar-se bens próprios do mesmo, mas antes bens comuns do casal.
Neste sentido, já se decidiu no Acórdão do S.T.J.de 10-2-1974, relatado pelo Cons. Garcia da Fonseca, constante de www.dgsi.pt.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso.

Termos em que negam provimento ao recurso per saltum e confirmam a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 02 de Novembro de 2010

Azevedo Ramos (Relator)
Silva Salazar
Nuno Cameira