Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B1762
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: FARMÁCIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
CONTRATO DE CESSÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
CESSÃO DE CRÉDITO
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO
TRESPASSE
NULIDADE DO CONTRATO
TRANSMISSÃO DE DÍVIDA
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
Nº do Documento: SJ200306120017627
Data do Acordão: 06/12/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1221/02
Data: 01/09/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1. São nulos os contratos de transferência de farmácias e de cessão da sua exploração fora dos casos legalmente previstos na lei da propriedade das farmácias ou que produzam ou sejam susceptíveis de produzir um efeito prático igual ao que a lei quis proibir.
2. Não obstante o posto farmacêutico depender de determinada farmácia, não é nulo o contrato celebrado entre o proprietário da segunda e outrem encarregado da sua autónoma gestão comercial, comprando e vendendo os concernentes produtos farmacêuticos e disso auferindo determinada remuneração.
3. Ainda que o contrato mencionado sob 2 estivesse afectado de nulidade, ela não envolveria a nulidade do contrato de compra e venda de produtos farmacêuticos celebrados entre o encarregado do posto farmacêutico e outrem.
4. Os efeitos primários e secundários do acto de citação para a acção não equivalem ou substituem em termos de efeitos jurídicos o acto de notificação ao devedor do contrato de cessão de créditos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"Perfumaria A, Lda." intentou, no dia 22 de Junho de 2000, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra B e C, pedindo a condenação destes a pagar-lhe 38.742.596$, juros vincendos e compulsórios, com fundamento na falta de pagamento de 17.525.610$ relativos ao preço de produtos farmacêuticos adquiridos pela ré a "D, Lda." e na cessão por esta do mencionado crédito.
Na sequência da contestação dos réus, réplica da autora e tréplica dos primeiros e da realização do julgamento, foi proferida sentença absolutória dos réus do pedido, com fundamento em ser um terceiro o responsável pelo pagamento pretendido pela autora, esta apelou e a Relação negou-lhe provimento ao recurso.

A autora interpôs recurso de revista, no qual formulou, em síntese, as seguintes conclusões da alegação:
- as facturas acompanhavam as mercadorias, por ser necessária a indicação correcta do local da sua entrega para efeito de controle pelas entidades competentes da necessidade de existência e eficácia do posto de medicamentos para servir determinada população;
- os postos farmacêuticos não têm existência autónoma da farmácia de que são mera extensão;
- embora os fornecimentos fossem feitos ao posto, a relação creditícia estabelecida em cada um deles era com os recorridos que tinham personalidade e capacidade jurídicas para se obrigar a título de proprietários da farmácia;
- a E estava vedada, para além da propriedade, a exploração e gestão do posto farmacêutico, não sendo mais do que encarregado de um balcão deslocalizado da sede do negócio;
- impunha-se que o tribunal concluísse que a recorrente ao dirigir-se E, não o considerava dono do negócio do posto, mas mero encarregado, subordinado à farmácia titular;
- admitir poder E explorar um posto farmacêutico de modo autónomo em relação à farmácia é validar um acto nulo, seja cessão de exploração ou qualquer forma inominada de passagem da gestão e exploração do negócio farmacêutico em causa;
- o negócio pelo qual E exploraria o posto farmacêutico é nulo, dele não podendo resultar consequências jurídicas;
- se E assumiu a dívida respeitante aos fornecimentos, isso constitui co-assunção dela, porque nem "D, Lda." nem a recorrente desoneraram os recorridos do pagamento dos fornecimentos;
- a referida assunção de dívida é inoponível aos recorridos em termos de os desobrigar da suas responsabilidades;
- a citação produz o efeito de levar ao conhecimento da pessoa citada a cessão de créditos;
- como consta inequivocamente da citação para a acção ser a recorrente cessionária do crédito que onera a recorrida, deve considerar-se que ela conheceu da cessão;
- na medida em que o acórdão recorrido não extraiu as consequências decorrentes da nulidade derivada da violação do regime da propriedade das farmácias e do exercício farmacêutico, violou os nºs. 1 e 2 da Base II da Lei nº. 2125, de 20 de Março de 1965 e os artigos 76º, nº. 2, do Decreto-Lei nº. 48547, de 27 de Agosto de 1968, 512º, 518º, 583º, nº. 1 e 595º, nº. 2, do Código Civil.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:
- não há transmissão singular ou co-assunção de dívida, porque E é ab initio o devedor;
- o acordo entre a fornecedora e os recorridos, proprietários da farmácia, visando eximir estes das dívidas resultantes do fornecimento do posto tem incidência meramente obrigacional, não se confundindo com os fins de saúde publica e protecção dos utentes prosseguidos pelas normas imperativas do regime da propriedade das farmácias e do exercício farmacêutico;
- a notificação da cessão é elemento estruturante da causa de pedir, necessariamente verificável quando a acção é proposta, pelo que a citação para ela é meio inidóneo para a suprir.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. Os réus são os donos do estabelecimento comercial de farmácia denominado "Farmácia F", localizada em Montalegre, e do "Posto Farmacêutico G", localizado na Venda Nova, e foi seu anterior dono H, sogro e pai dos réus.
2. Quando surgiu a possibilidade de criação do "Posto Farmacêutico G", ficou acordado que esse Posto compraria mercadorias, seria facturado e pagaria os fornecimentos com as receitas da sua própria exploração, e E, encarregado do Posto, assumiu perante "D, Lda." a obrigação de pagamento dos fornecimentos que ela lhe fizesse.
3. "D, Lda." passou então a facturar directamente o Posto, enviando a mercadoria encomendada por E e deste recebia o respectivo preço.
4. Entre Outubro de 1990 e Novembro de 1992, "D, Lda." forneceu ao "Posto Farmacêutico G", a pedido de E, os produtos e especialidades farmacêuticas, acessórios de farmácia e de drogaria referidos nos documentos insertos a folhas 95 a 666.
5. A ré remetia a E os montantes das comparticipações do Serviço Nacional de Saúde relativas aos medicamentos fornecidos pelo Posto, líquidos das despesas suportadas pela farmácia com respeito ao Posto.
6. "D, Lda." e "Perfumaria A, Lda." declararam por escrito, primeira ceder à segunda e esta aceitar a cessão do crédito que detinha sobre o "Posto Farmacêutico G", no montante de 21.919.492$, sendo 17.525.611$ de capital e o restante de juros, contados desde a data do vencimento das facturas.
7. Em determinada ocasião, E, invocando um acordo entre ele e os réus, tendo por objecto o Posto, contactou "D, Lda.", manifestando a sua intenção de assumir o pagamento das dívidas em causa.
8. O "Grupo I" ajustou com as cedentes a obrigação de estas adquirirem à "D, Lda." certos créditos constantes do documento inserto a folhas 44, procedimento esse usual na venda de empresas em relação a créditos que as partes reputavam de duvidosa cobrança.
III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não direito a exigir dos recorridos o pagamento de € 87.417,37, juros de mora vencidos de € 105.829,88, juros de mora vincendos e juros compulsórios.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e dos recorridos, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- âmbito do recurso;
- regime legal do direito de propriedade e de exploração das farmácias e do exercício farmacêutico;
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e "D, Lda.";
- natureza do contrato celebrado entre E e os recorridos;
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre E e "D, Lda.";
- está ou não o contrato celebrado entre os recorridos e E afectado de nulidade?
- está ou não afectado de nulidade o contrato celebrado entre E e "D, Lda."?
- assumiu ou não E o débito dos recorridos perante "D, Lda."?
- o contrato celebrado entre a recorrente e "D, Lda." é ou não eficaz em relação aos recorridos?

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1. A recorrente alegou, por um lado, acompanharem as facturas as mercadorias por ser necessária a indicação correcta do local da sua entrega para efeito de controle pelas entidades competentes da necessidade da existência e da eficácia do posto de medicamentos para servir determinada população.
E, por outro, impor-se ao tribunal a conclusão de que a cedente, ao dirigir-se a E, o não considerava dono do negócio do posto, mas mero encarregado e subordinado à farmácia titular.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º do Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei nº. 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça, aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, nº. 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, o Supremo Tribunal de Justiça deve apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, nº. 2 e 729º, nº. 2, do Código Civil).
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer da matéria de facto quando o tribunal recorrido deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência ou se houver desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico.
As afirmações acima referidas da recorrente e outras produzidas no âmbito das alegações do recurso têm a ver com a decisão da matéria de facto, incluindo o juízo de prova envolvente operado nas instâncias.
Pelo acima exposto, não pode este Tribunal conhecer do seu objecto, por extravasar da sua área de competência.

2. As farmácias integram-se na categoria de estabelecimento comercial, como universalidade integrada por bens, direitos de diversa natureza e aviamento ou clientela, através das quais o respectivo titular desenvolve uma actividade lucrativa de natureza mercantil.
Não obstante, dado o relevo dos produtos transaccionados no interesse do público em geral no bem da saúde, a lei traça para esse tipo de actividade consideráveis restrições ao direito de apropriação e de exploração.
O regime legal do direito de propriedade e de exploração das farmácias e do exercício farmacêutico aplicável no caso vertente é o que consta da Lei nº. 2125, de 20 de Março de 1965, do Decreto-Lei nº. 48 547, de 27 de Agosto de 1968 e da Portaria nº. 806/87, de 22 de Setembro.
As farmácias compreendem a sede e os postos ou ambulatórios dela dependentes (Base II, nº. 6, da Lei nº. 2125, de 20 de Março de 1965 e artigo 29º, nº. 2, do Decreto-Lei nº. 48 547, de 27 de Agosto de 1968).
Só podem funcionar com alvará, que é pessoal, o qual só pode ser concedido a quem for permitido ser proprietário de farmácia, e caduca em todos os casos de transmissão, salvo nas hipóteses previstas na lei (Base II, nº. 1, da Lei nº. 2125, de 20 de Março de 1965).
O referido alvará só pode ser concedido a farmacêuticos ou a sociedades em nome colectivo ou por quotas cujos sócios sejam todos eles farmacêuticos e enquanto o forem (Base II, nº. 2, da Lei nº. 2125, de 20 de Março de 1965).
As farmácias não podem funcionar sem um farmacêutico responsável que assuma e exerça efectiva e permanentemente a direcção técnica, em regra o respectivo proprietário farmacêutico (artigos 83º e 84º, nº. 1, do Decreto-Lei nº. 48 547, de 27 de Agosto de 1968).
Por seu turno, a cessão de exploração de farmácias só é permitida no caso de falecimento do respectivo proprietário, se o cessionário for farmacêutico ou sociedade em nome colectivo ou por quotas cujos sócios sejam todos eles farmacêuticos (Bases II, nº. 2 e IV da Lei 2125, de 20 de Março de 1965, e artigo 71º do Decreto-Lei nº. 48 de 27 de Agosto de 1968)
Os actos ou contratos relativos à transferência de farmácias ou da sua exploração só produzem efeitos depois de passado o alvará pela Direcção-Geral de Saúde (Base IX da Lei nº. 2125, de 20 de Março de 1965 e artigo 76º, nº. 1, do Decreto-Lei nº. 48 547, de 27 de Agosto de 1968).
São nulos os contratos de transferência de farmácias e de cessão de exploração celebrados fora dos casos permitidos por lei ou contra o expressamente nela disposto sobre a propriedade das farmácias ou que produzam ou possam produzir um efeito prático igual ao que a lei quis proibir (artigo 76º, nº. 2, do Decreto-Lei nº. 48 547, de 27 de Agosto de 1968).
Os postos de medicamentos integram-se nas farmácias já instaladas numa das povoações vizinhas e só podem abrir depois de averbada a respectiva autorização no alvará das segundas (artigo 42º, nºs. 1 e 3, do Decreto-Lei nº. 48 547, de 27 de Agosto de 1968 e nºs. 1 e 2, da Portaria nº. 806/87, de 22 de Setembro).

3. A este propósito sabe-se que os representantes de "D, Lda." e da recorrente declararam, por escrito, primeira ceder à segunda e esta aceitar a cessão do seu direito de crédito, no montante de 21.919.492$, correspondentes a capital de juros contados desde a data do vencimento relativo a cada factura atinente aos produtos farmacêuticos em causa.
O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do seu direito crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do devedor (artigo 577º do Código Civil).
Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base, e ela produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada ou logo que ele a aceite (artigos 578º, 583º, nº 1, do Código Civil).

Dir-se-á que a cessão de créditos se consubstancia em um modo de transmissão de obrigações, ou seja, de direitos de crédito mediante contrato celebrado entre o antigo e o novo devedor.
A qualificação de um contrato como cessão assenta na respectiva estrutura, abstrai da natureza da sua função, significando tão só a transmissão voluntária da posição activa numa determinada relação jurídica obrigacional, sem referência à sua causa, seja ela venda, doação, pagamento, garantia, cobrança ou obtenção de alguma outra utilidade.
Face aos referidos factos, a conclusão é no sentido de que "D, Lda.", por um lado, e a recorrente, por outro, celebraram um contrato de cessão de direito de crédito de natureza comercial (artigos 2º do Código Comercial e 577º, nº. 1, do Código Civil).
Não resulta, porém, da mencionada factualidade que a recorrente tenha comunicado aos recorridos o mencionado contrato de cessão ou que eles o tivessem aceitado expressa ou tacitamente.

4. Quanto ao contrato celebrado entre a recorrida e E, sabe-se, por um lado, que na altura da criação do "Posto Farmacêutico G", foi acordado que aquele Posto compraria mercadorias, seria facturado autonomamente e que, com as receitas da sua exploração, pagaria os fornecimentos que lhe fossem feitos.
E, por outro, que a ré remetia a E os montantes das comparticipações do Serviço Nacional de Saúde relativas aos medicamentos fornecidos pelo Posto, abatidos das despesas suportadas pela farmácia.
E, finalmente, que E era encarregado do referido posto de medicamentos.
É claro que o mencionado posto não podia comprar mercadorias nem ser sujeito de facturação ou de fornecimentos de produtos farmacêuticos, naturalmente porque não é dotado de personalidade jurídica.
Expressam os factos ter havido um acordo no mencionado sentido, não se diz quem implementou o acordo, mas infere-se do contexto que tal acordo foi subjectivado pelos recorridos e por E, este encarregado do posto em causa.
A expressão encarregado, significa, em geral, a pessoa a quem se comete a obrigação de cumprir determinado encargo.
No sector do comércio, a mencionada expressão é utilizada com o significado da pessoa a quem foi atribuída uma incumbência ou conferido mandato ou autorização para realizar negócios ou operar no interesse de outrem.
Já no plano profissional, a expressão encarregado é susceptível de designar uma determinada categoria, no quadro das relações laborais desenvolvidas por empregadores e trabalhadores.
O trespasse é um contrato de compra e venda de um estabelecimento comercial ou industrial, ou seja, aquele pelo qual uma parte transmite definitivamente a outra a sua exploração juntamente com o gozo do prédio, mediante certo preço.
A cessão de exploração é, por seu turno, um contrato de arrendamento de um estabelecimento comercial, ou seja, aquele pelo qual uma parte transfere temporariamente a outra, mediante determinado preço, a respectiva exploração.
A factualidade provada não revela que entre os recorridos e E tenha sido celebrado qualquer um dos referidos contratos.
Acresce que ela não é suficiente para se concluir sobre qual a natureza do contrato entre ambos celebrado, mas basta para afastar a qualificação da actividade do segundo como empregado da primeira.
Mas revela, pelo menos, que E passou a administrar o posto de medicamentos da recorrida, com autonomia em relação à farmácia de que legalmente dependia, porque ficou com o direito e o dever de arrecadar as receitas, pagar a fornecedores e, naturalmente, e o direito a auferir do resultado dessa actividade.

5. Relativamente às relações jurídicas estabelecidas entre E e "D, Lda.", os factos provados explicitam mais claramente o seu conteúdo.
Com efeito, sabe-se, por um lado, que E assumiu perante "D, Lda." a obrigação de pagamento dos fornecimentos que esta lhe fizesse e que a última passou a facturar directamente o posto, enviando-lhe a mercadoria por ele encomendada e que este lhe entregava o respectivo preço.
E, por outro, que no período compreendido entre Outubro de 1990 e Novembro de 1992, "D, Lda." forneceu ao posto, a pedido de E, vários produtos farmacêuticos e de drogaria, entre os quais se contam os que estão em causa na acção a título de falta de pagamento do respectivo preço.
Revela esta factualidade a celebração entre E e "D, Lda." um contrato de execução continuada de compra e venda de natureza comercial, com o objecto mediato circunscrito a produtos farmacêuticos e o objecto imediato centrado em vinculação recíproca de entrega daqueles produtos pela segunda e de pagamento do respectivo preço pelo primeiro (artigos 2º, 3º e 463º, nº. 1º, do Código Comercial, 874º e 879º do Código Civil).
Assim, ao invés do que a recorrente afirmou, não obstante resultar da lei que os postos de medicamentos se integrarem em estabelecimentos de farmácia, os factos provados não revelam que o referido contrato tivesse sido celebrado entre os recorridos e "D, Lda.".

6. Afirmou a recorrente que admitir poder E explorar o posto farmacêutico de modo autónomo em relação ao estabelecimento de farmácia dos recorridos era validar um negócio jurídico nulo, independentemente de se tratar de cessão de exploração ou de uma forma inominada de passagem da gestão e exploração do negócio farmacêutico a um não farmacêutico.
Sabe-se que E passou a administrar o posto de medicamentos da recorrida com autonomia em relação à farmácia de que legalmente dependia, arrecadando as receitas, pagando a fornecedores e, naturalmente, ficando com algum resultado dessa actividade.

Não se sabe se E era ou não farmacêutico nem se conhece a plenitude dos contornos da contratação havida entre ele e os recorridos no que ao posto de medicamentos em causa concerne.
A lei geral expressa ser nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou à ordem jurídica, indeterminável ou ofensivo dos bons costumes (artigo 280º do Código Civil).
Se apenas o fim ou o móbil do negócio for contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes, o contrário só é nulo se aquele fim ou móbil for comum à pluralidade de partes (artigo 281º do Código Civil).
O objecto do contrato é ilícito ou contrário à lei quando infrinja normas imperativas imponentes de determinada obrigação ou abstenção.
A contrariedade à lei é susceptível de se verificar de modo directo ou indirecto, sendo esta última vertente qualificada de fraude à lei, situação que ocorre quando a lei proíbe certo resultado, mas os sujeitos, através de um ou mais negócios jurídicos, que ela, em regra, não proíbe, conseguem o resultado legalmente proibido.
No plano específico da propriedade e exploração de estabelecimentos de farmácia, conforme acima se referiu, expressa a lei, serem nulos, por um lado, os contratos de transferência de farmácias e de cessão de exploração celebrados fora dos casos por ela permitidos ou contra o expressamente disposto na lei sobre a propriedade da farmácia.
E, por outro, os que produzam ou possam produzir um efeito prático igual ao que a lei quis proibir (artigo 76º, nº. 2, do Decreto-Lei nº. 48 547, de 27 de Agosto de 1968).
Não revelam os factos, no que concerne ao posto de medicamentos, a contratação entre os recorridos e E em termos de venda ou de cessão de exploração.
Ademais, deles não se extrai a intenção dos recorridos e de E de contornar a proibição estabelecida na lei relativa à propriedade ou à exploração dos estabelecimentos de farmácias com vista permitir a exploração do posto por quem não era farmacêutico.
Assim, ao invés do que foi entendido nas instâncias, os factos provados não permitem a conclusão no sentido da nulidade do contrato celebrado entre os recorridos e E.

7. Afirmou a recorrente, por um lado, que conceber ser E o titular das obrigações em causa, seria legitimar a posição dele no posto da farmácia como cessionário ou figura equivalente, ou seja, admitir um efeito prático idêntico ao que a lei quis proibir e, por outro que, face à nulidade do contrato celebrado entre o primeiro e os recorridos, dele não podiam decorrer quaisquer consequências jurídicas.
A partir dessa consideração, entendeu a recorrente, por um lado, dever concluir-se que os representantes de "D, Lda." se dirigiram a E não como dono do negócio, mas como mero encarregado, subordinado aos recorridos, titulares do direito de propriedade sobre a farmácia de que o posto de medicamentos dependia.
E, por outro, ser forçoso concluir que, embora os fornecimentos fossem feitos ao posto, a relação creditícia que se estabelecia em cada um deles era com os recorridos por só eles terem personalidade e capacidade jurídica para se obrigar.
A determinação dos sujeitos do contrato de compra e venda dos produtos farmacêuticos transaccionados no posto de medicamentos em causa está fixada no quadro dos factos no sentido de que são E e "D, Lda.".
Face ao que se concluiu no ponto anterior, está prejudicada a questão da nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre E e "D, Lda." em virtude da nulidade do contrato celebrado entre o primeiro e os recorridos (artigos 660º, nº. 2, 716º, nº. 1 e 726º do Código de Processo Civil).
Dir-se-á, no entanto, pelos fundamentos que a seguir se enunciam, que se ocorresse a nulidade do contrato celebrado entre os recorridos e E, ela não implicaria a nulidade do autónomo contrato de compra e venda celebrado entre o último e "D, Lda.".
Em primeiro lugar, porque importaria distinguir entre o aspecto meramente comercial de aquisição dos bens e serviços necessários ao funcionamento da farmácia e o aspecto legal da titularidade do direito de propriedade sobre ela e o posto e também entre o primeiro e o segundo dos mencionados contratos.
Em segundo lugar, porque a lei não impõe, sem faria sentido que o impusesse, que a titularidade do direito de propriedade sobre a farmácia e o posto devem coincidir com a dos débitos resultantes da compra dos produtos farmacêuticos transaccionados numa ou noutro.
Em terceiro lugar porque, atentos os fins da lei, inexistiria fundamento legal para que o vício do primeiro dos referidos contratos, motivado pela violação de normas imperativas de interesse público relativo à saúde dos cidadãos, se estendesse ao segundo, envolvido, na sua maior parte, pela plenitude do princípio da liberdade contratual.

8. Pretende a recorrente que a obrigação de pagamento do preço dos produtos farmacêuticos em causa, originariamente inscrita na esfera jurídica dos recorridos, foi co-assumida por E perante a credora "D, Lda.".
Expressa a lei, por um lado, que a transmissão a título singular de uma dívida é susceptível de ocorrer, além do mais, por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem o consentimento do antigo devedor (artigo 595º, nº. 1, alínea b), do Código Civil).
E, por outro, que a referida transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor nesse sentido, sob pena de responder solidariamente com o novo devedor (artigo 595º, nº. 2, do Código Civil).
Trata-se, pois, de um negócio jurídico pelo qual um terceiro, o assuntor, se obriga perante o credor a efectuar uma prestação por outrem devida, em razão do que muda a pessoa do devedor e mantém-se o conteúdo da obrigação.
Os factos provados revelam, como já se referiu, a celebração do contrato de compra e venda dos produtos farmacêuticos em causa entre "D, Lda." e E, ou seja, que os recorridos nele não outorgaram.
Em consequência, o débito correspondente ao preço dos aludidos produtos não se inscreveu originariamente na esfera jurídica dos recorridos, mas na de E.
Não ocorreu, por isso, a mudança de devedor que é pressuposto da assunção debitória invocada pela recorrente.

9. Pretende a recorrente haver notificado relevantemente os recorridos por via da sua citação para a acção, da celebração do contrato de cessão do direito de crédito com "D, Lda.", que faz valer contra eles.
A decisão desta questão está prejudicada pela conclusão a que se chegou de que os recorridos não estavam vinculados ao pagamento a "D, Lda." do preço dos produtos farmacêuticos em causa (artigos 660º, nº. 2, 716º, nº. 1 e 726º do Código de Processo Civil).
Dada a natureza da referida questão e o modo como a recorrente a colocou, pronunciar-nos-emos sobre ela.
Resulta da lei, conforme acima se referiu, que a cessão do direito de crédito só produz efeitos em relação ao devedor se lhe for notificada ou ele declare aceitá-la (artigo 583º, nº 1, do Código Civil).
Isso significa que a eficácia do contrato de cessão em relação ao cessionário depende da declaração que lhe seja dirigida a comunicar-lho ou da sua própria aceitação (artigo 224º, nº. 1 e 583º, nº. 1, do Código Civil).
O ónus da prova da comunicação do contrato de cessão celebrado entre a recorrente e "D, Lda." incumbia à primeira (artigo 342º, nº. 1, do Código Civil).
A citação para os termos da acção tem por escopo essencial levar ao conhecimento do réu ter sido accionado pelo autor e os termos desse accionamento, a fim de poder defender-se (artigos 3º e 228º, nº. 1, do Código de Processo Civil).
Tem, porém, os efeitos secundários de provocar a situação de mora do devedor, de fazer cessar a boa fé do possuidor, de estabilizar os elementos essenciais da causa e de inibir o réu de propor contra o autor acção destinada à apreciação da mesma questão jurídica (artigos 805º, nº. 1, do Código Civil e 481º do Código de Processo Civil).
A eficácia do direito de crédito do cessionário contra o devedor depende, em termos substantivos, da referida comunicação ao segundo ou da sua aceitação do contrato de cessão, pelo que deve integrar a causa de pedir na acção e, como é natural, devem preceder a propositura da acção intentada pelo cessionário contra o devedor.
Tendo em conta o fim e os efeitos primários e secundários do acto de citação no processo e o fim do acto de notificação ao devedor do contrato de cessão do direito de crédito, não pode o primeiro valer em termos de equivalência de efeitos jurídicos ao segundo.
Assim, ainda que a cedente, "D, Lda.", tivesse sido titular do direito de crédito em causa contra os recorridos, como a recorrente não lhes comunicou a cessão em causa, não poderia proceder a sua pretensão.

Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de manutenção da solução adoptada no acórdão recorrido.
Vencida no recurso, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, mantém-se o acórdão recorrido e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 12 de Junho de 2003
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís