Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14731/16.0T8PRT-B.PL.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
TUTELA POSSESSÓRIA
DIREITO DE RETENÇÃO
PENHORA
AÇÃO EXECUTIVA
POSSE
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. É entendimento consagrado, tanto na doutrina como na jurisprudência, que os embargos de terceiro não podem ser deduzidos, com sucesso, por quem invoque o direito de retenção sobre a coisa objecto de penhora pela simples razão de o direito invocado não ser incompatível com a penhora; sendo que o meio próprio para o exercício do direito de retenção é antes a reclamação na acção executiva.

II. Deste modo, os embargantes só poderiam pretender alcançar a tutela inerente aos embargos de terceiro – consistente no levantamento da penhora – se pretendessem tutelar a posse correspondente ao direito de propriedade, o que se afigura não ter sido o caso na presente acção e, sem qualquer dúvida, não é o caso no presente recurso.

III. Ainda que se entendesse que foi invocada a posse correspondente ao direito de propriedade, os presentes embargos teriam forçosamente de improceder uma vez que, nos termos do nº 1 do art. 1268º do CC, tal posse permite presumir a titularidade do direito de propriedade, mas essa presunção cede perante a prova da efectiva titularidade do mesmo direito de propriedade; titularidade que, como resulta dos autos e é admitido pelos próprios embargantes, cabe à sociedade executada.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




1. AA, BB e mulher CC, e DD deduziram os presentes embargos de terceiro por apenso à execução de sentença que EE e outros movem contra A. Martins & J. Martins, Lda., pedindo a condenação dos RR. a:

“a) Reconhecerem que entre os autores e a ré A. Martins & J. Martins, Lda. foi celebrado o contrato-promessa mediante o qual aos autores e a cada um deles foram entregues, em 28.02.2011, as fracções AF, AR, N, AQ, AH, e X do prédio descrito na CRP de … e sob o n.° 3879, penhoradas no processo de execução;

b) Reconhecerem que desde essa data e mercê da tradição operada da ré promitente-vendedora para os autores, ficaram estes na posse pública, pacífica, continua, de boa-fé e dotada de ânimo de quem exerce direitos próprios das fracções identificadas;

c) Reconhecerem que a ré A. Martins & J. Martins, Lda. não cumpriu com o contrato-promessa, pois não se dispôs até hoje a entregar-lhe as fracções livres e devolutas, mediante escritura de compra e venda, o que lhes confere o direito de retenção sobre essas fracções pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442° do Código Civil, crédito esse correspondente ao valor venal dos imóveis objecto da promessa, à data da venda judicial dos mesmos;

d) Restituírem aos autores e a cada um deles a posse das fracções referidas, ou, a não terem sido, entretanto, dela privados, serem nela mantidos;

e) Pagarem as custas do processo e procuradoria condigna.”

Alegam, em suma, que gozam de direito de retenção sobre as fracções penhoradas nos autos principais, dado terem celebrado contratos-promessa de compra e venda relativos às mesmas, terem obtido a respectiva tradição e terem pago o correspondente preço; têm a posse das aludidas fracções há mais de seis anos, por via de um acordo judicial celebrado com a promitente-vendedora; e esta nunca celebrou as escrituras públicas a que se obrigou, o que confere aos embargantes o direito a receberem o valor correspondente àquele pelo qual os imóveis vierem a ser vendidos.

Por despacho liminar, datado de 05/06/2017, foi indeferida a petição de embargos quanto à sociedade Domum Tuam - Sociedade de Investimentos Imobiliários, S.A., por se considerar a mesma parte ilegítima, prosseguindo os autos contra os exequentes, a executada e os credores reclamantes.

Os exequentes contestaram, alegando: estarem as fracções penhoradas na posse da sua proprietária, a executada; ainda que se considerasse que os embargantes detêm a posse sobre as fracções, o que não admitem, a presunção da titularidade do direito sempre deve ceder perante o direito de propriedade da executada, direito que é aceite pelos embargantes; ser simulado o acordo relativo à tradição das fracções, com o intuito de enganar terceiros; não ter o preço sido pago; não ter sido convencionado qualquer sinal, pelo que não pode existir direito de retenção; serem os embargantes investidores, não pretendendo usar as fracções para seu consumo, mas apenas para as revender ou arrendar, assim obtendo lucro, pelo que não podem invocar direito de retenção; não poder o valor pretendido pelos embargantes ser-lhes concedido, por ter sido alterado pelo acordo em que invocam ter ocorrido a tradição, tendo em conta que se encontravam em falta as obras de acabamento das fracções.

Contestou também o credor reclamante Banco Popular, S.A. invocando: a ilegitimidade do A. DD, entendendo que o mesmo não pode agir desacompanhado dos demais herdeiros do seu falecido irmão e também promitente-comprador; a ineptidão da petição de embargos, por os pedidos serem contraditórios com os fundamentos invocados. E impugnando os factos alegados pelos embargantes, defendendo não estarem verificados os pressupostos do direito de retenção, por não se demonstrar o pagamento do preço e/ou sinal, nem a qualidade de consumidores dos embargantes, não existir incumprimento definitivo do contrato-promessa e não ter ocorrido tradição das fracções.

Por despacho saneador de 13/11/2017 foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade do A. DD e de ineptidão da petição inicial.

Por sentença proferida em 13/04/2018 decidiu-se julgar os embargos improcedentes, determinando-se a manutenção da penhora e o prosseguimento da execução.

Inconformados, os embargantes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

Por acórdão de 18/12/2018, o recurso foi julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.


2. Vieram os embargantes interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça por via normal e, subsidiariamente, por via excepcional.

Os Recorridos contra-alegaram pugnando pela inadmissibilidade do recurso.

Em 28/05/2019 foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões recursórias.


3. Em resposta ao despacho de convite ao aperfeiçoamento vieram os embargantes apresentar as seguintes conclusões:

“1ª – Os embargantes-promitentes compradores celebraram em 4-11-1988, pagando imediatamente o preço, com os antecessores da executada, promitente-vendedora, um contrato promessa de compra de várias frações autónomas situadas em prédio a construir na cidade de …, contrato esse em que, em 2-12-1988, sucedeu a executada A. Martins & J. Martins, Lda, como promitente- vendedora e receberam, em 28-02-2011, da promitente- vendedora as chaves das várias frações que lhes eram destinadas, com o compromisso de procederem ao seu acabamento, mas não tendo a promitente- vendedora celebrado as escrituras públicas correspondentes, e tendo, entretanto em 24-11-2016, a requerimento do exequentes, sido penhoradas as frações em causa, deve aos embargantes ser reconhecimento direito de retenção das frações, nos termos prescritos pelo art. 755º n.º1 al. f) do Código Civil (factos dados por provados no acórdão recorrido números 1, 2, 3,4, 5,6, 8,9,10,16,17, 18 que aqui se dão por transcritos).

2ª – Com efeito, prescreve o referido artigo 755.º, n.º1, al. f) do Código Civil que, goza do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º.

3ª – O crédito resultante do incumprimento corresponde, designadamente, ao valor da coisa ao tempo do incumprimento e o direito de retenção, porque respeitante a imóveis, mantem-se até à venda em hasta pública, caducando apenas com a realização desta, mas transferindo-se então para o produto da venda o direito do beneficiário de ser pago com preferência relativamente aos demais credores, constituindo-se entretanto, na posse legítima da coisa transmitida, funcionando a retenção como uma espécie de penhora legal, e valendo, como garantia real, oponível erga omnes (cfr., entre muitos, o acórdão da Relação de Évora de 10-10-1991, Col. Jurisp. XVI, 1991, IV, pág. 312 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-02-1986, BMJ 354, 549).

4ª – Conhecedores da penhora das frações, os embargantes deduziram embargos de executado, concluindo o seu articulado inicial por pedir a condenação dos réus (exequentes, promitente vendedora e Banco titular de hipoteca sobre os imóveis) a reconhecerem a celebração do apontado contrato promessa e a entrega que lhes foi feita em 28-02-2011 das frações penhoradas, reconhecerem que desde essa data os embargantes estão na posse das frações, que mantêm, reconhecerem o incumprimento da promessa da executada, e o direito de retenção consequente, correspondente ao crédito equivalente ao valor venal dos imóveis.

5ª– A ação não foi contestada pela executada, sendo-o apenas pelo Banco Credor hipotecário, sustentando estes, entre o mais, que aos embargantes não podia ser reconhecido qualquer direito de retenção, nos termos do artigo 755, n.º1, al. f) do Código Civil porque eles não têm a qualidade de consumidores, por não destinarem as frações a sua habitação própria e permanente, conforme entenderam resultar do decidido no acórdão do STJ de 14-10- de 2014, proc. n.º 982/12.2 TBFAF- G1.S1 e no acórdão da Relação de Coimbra de 03-11-2015, proc. n.º 452/13.9 TBCBR.C1.

6ª – No decurso da audiência de julgamento, o tribunal de 1ª instância, indeferiu uma requerida retificação do tema de prova, e, após, produziu sentença julgando os embargos improcedentes por entender que não se provou a tradição para os promitentes-compradores, salvo quanto a duas frações, que mesmo em relação a essas duas frações, que foram ocupadas e usadas por um dos embargantes, não se provou mais do que uma mera posse causal, com a ausência de animus, e só com a invocação deste, para além da inversão do título de posse, podia reconhecer-se o referido direito, porque para a verificação da tradição não basta a prova de uma tradição simbólica, traduzida por exemplo na entrega das chaves, exigindo-se uma prova de posse e tradição efetivas, e ainda a prova de que o promitente-vendedor abandonou ao promitente-comprador o gozo da coisa, o que não pode afirmar-se porque o contrato precedeu a construção das frações e porque apenas se provou a mora do promitente-vendedor para além de que teria ocorrido erro na forma do processo, pois ao pedido caberia reclamação de créditos e não embargos de terceiro, reconhecendo ainda validade ao argumento dos contestantes quanto à impossibilidade de ser reconhecido aos embargantes o direito de retenção invocado pois eles não demonstraram nem alegaram a qualidade de consumidores, e sendo investidores o direito reivindicado não lhes pode ser reconhecido por a tanto se opor a doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência de 20-03-2014 (DR. 95,I, série A de 19 de Maio de 2014).

7ª – Os embargantes interpuseram recurso de apelação, pedindo a revogação de dois despachos (um, nos autos principais, de 22-06-2017, que remeteu os interessados para os meios comuns e outro, de 06-02-2018, que indeferiu por alegada extemporaneidade uma reclamação dos embargantes do despacho que fixou o objeto do litigio), e ainda a revogação da sentença, impugnando a matéria de facto fixada, em desrespeito pela prova documental, mesmo aquela que a sentença acolheu, e pela declaração confessória e sem reservas da promitente- vendedora, bem como as proposições de direito atrás referidas.

8ª – O acórdão recorrido decidiu, porém, rejeitar o recurso interposto da decisão no processo principal que remeteu as partes para os meios comuns, por não ser admissível o recurso, não podendo “os embargantes pretender impugnar nestes autos de terceiro uma decisão proferida noutro processo”, por a tanto se opor o disposto nos artigos 852.º, 853.º e 854.º do Código de Processo Civil, e rejeitou ainda o recurso no que respeita ao objeto do litigio por entender que transitou em julgado esse despacho, uma vez que o tema de prova foi fixado em audiência prévia sem impugnação oportuna até ao julgamento.

9ª – Por outro lado, no que respeita à matéria de direito, o acórdão recorrido decidiu que a sentença tratou adequadamente a questão do direito de retenção dos embargantes, porque estes não podiam ser considerados consumidores, decidiu corretamente a questão do erro na forma de processo, porque os pressupostos do direito de retenção só poderiam ser apreciados em sede de reclamação de créditos e não de embargos de terceiro.

10ª – Pronunciando-se sobre a matéria de facto, decidiu-se que a fixada em primeira instância não merece reanálise, porque os recorrentes não fizeram uma apreciação crítica dos meios de prova, e estes foram criteriosamente analisados, quer no que respeita aos documentos existentes, quer no que respeita à confissão, quer no que respeita à prova testemunhal, até porque “nas assentadas lavradas e constantes das atas de audiência de julgamento de 2018 e 14-03-2018, fez-se consignar que os embargantes tinham a posse há anos das frações em causa e haviam-nas efetivamente ocupado” (sic);

11ª – Quanto à verificação dos elementos que integram a posse, no que respeita às frações AH, AQ, AR e N, também não viu o acórdão recorrido qualquer motivo de censura, porque apenas se provou que a executada entregou as chaves das frações, não se sabendo se foi praticado qualquer ato material de posse efetiva, e no que respeita às frações AF e X apenas se provou que o embargante AA as ocupou, tendo pago integralmente o seu preço, mas isso não significa que tenha a posse com tradição, porque esse “direito real provisório apenas constitui fundamento de embargos de terceiro enquanto não for esclarecida a questão da propriedade” e esta sabe-se pertencer “à executada A. Martins & J. Martins, Lda”.

12ª – Entendeu o acórdão recorrido que o direito de retenção nunca pode ser fundamento de embargos de terceiro por “inexistência de incompatibilidade entre o mesmo e a penhora”, já que “Não pode embargar de terceiro, nem mesmo para se manter na posse da coisa até ao termo da ação executiva, o titular do direito real de garantia, por exemplo o direito de penhor ou de retenção, porque pode realizá-lo na ação executiva por via de concurso de credores” (sic).

13ª – Ainda no que respeita à matéria de facto, entendeu o acórdão recorrido que ficou provado que “a intenção dos embargantes sempre foi usar as referidas frações como investimento, cedendo as respetivas posições contratuais, vendendo ou arrendando as mesmas” e a fundamentação para esse facto é correta “com apelo à conjugação de diversos depoimentos e factos instrumentais” (o elevado número de frações adquiridas, a faculdade de o contrato ser para pessoa a nomear, o ter-se provado que “os embargantes venderam o que puderam” e uma das testemunhas, filho de um dos embargantes, declarou que seu pai tinha feito “centenas, dezenas destes negócios”).

14ª – O presente recurso de revista do acórdão recorrido tem como fundamento a manifesta ilegalidade do mesmo, quer por não ter recebido os recursos interpostos dos referidos dois despachos que precederam a sentença, quer pela decisão no que respeita à matéria de facto (que, como se verá, é sindicável pelo STJ), quer no que respeita à matéria de direito.

15ª – Com efeito, o despacho de 22-06-2017, que remeteu as partes para os meios comuns, não é inimpugnável nesta sede, sucedendo que as normas que se invocam no acórdão recorrido (artigos 852.º, 853.ºe 854.º Código de Processo Civil) não obstam à admissão do recurso que, aliás, merecia provimento, pois nenhuma questão era discutível nos meios comuns (um dos embargados alegava ser o atual proprietário de algumas das frações penhoradas, mas isso apenas confirmava o alegado pelos embargantes, na petição) nem o tribunal podia abster-se de decidir, como absteve, o requerimento dos embargantes no sentido de explicar quais eram as questões a discutir nos meios comuns

16ª – Do mesmo modo, o despacho lavrado em audiência prévia fixando como objeto do litígio o levantamento das penhoras é manifestamente recorrível, pois os embargantes em momento algum pediram o levantamento das penhoras, mas antes o reconhecimento do direito de retenção a caducar com a venda, o que, pelo contrário, exigia a manutenção das penhoras, nem se percebe como se sustentou que o despacho era irrecorrível, à luz do entendimento, que vem da legislação pretérita relativa à mesma matéria e que é de manter segundo a qual “a fixação da especificação e do questionário, com ou sem reclamações, não conduz a caso julgado formal que obste à sua posterior modificação”(cfr. para além da doutrina indicada no texto, o acórdão da Relação do Porto de 2-03-1978, Col. Jurisp. 1978, ano III, Tomo I, pág. 617).

17ª – A tradição das frações para os embargantes estava também plenamente provada, pois atendendo aos factos provados, designadamente dos números 8º, 9º e 10º, destes constavam a documentação da entrega das chaves, a data em que esta foi feita, a entrega da posse dos apartamentos, e essa matéria foi também amplamente resultante dos depoimentos de parte, dos das testemunhas, sendo de lembrar ainda que o acórdão recorrido, ao analisar a matéria de facto expressamente admitiu que “nas assentadas lavradas e constantes das atas de audiência de julgamento de 06-02-2018 e 14-03-2018, fez-se consignar que os embargantes tinham a posse há anos das frações em causa e haviam-nas efetivamente ocupado”.

18ª – Por outro lado, é também inaceitável a decisão de que apenas se provou uma tradição simbólica, quer porque se provou uma tradição efetiva, quer porque a tradição simbólica sempre seria suficiente para justificar o direito de retenção (a traditio material suposta pelo legislador não implica um ato plasticamente representável de largar e tomar, bastando-se com inequívoca expressão de abandono da coisa e a consequente expressão da tomada de poder material sobre a mesma por parte do beneficiário – Acórdão do STJ, de 25/03/2014, proc. 1729/12.6TBCTB-B.C1S1).

19ª – Para além disso é deslocado o argumento extraído do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, publicado no DR de 19/05/2014 não apenas porque esse acórdão uniformizador expressamente considera que o direito de retenção do promitente- comprador se basta com uma tradição meramente simbólica, como porque esse acórdão surgiu atenta a necessidade de resolver uma colisão de leis, no âmbito do direito falimentar, entre o artigo 102.º do CIRE (que permite que o administrador da insolvência recuse o cumprimento de contratos promessa com tradição) e o artigo 715, n.º1, al. f) do Código Civil (que, pelo contrário, impõe o cumprimento sob pena se sujeição às condições nesta norma apostas), não podendo utilizar-se numa execução fora do processo de insolvência.

20ª – Com efeito, só para essa hipótese (devedor insolvente e contrato promessa incumprido, com a faculdade de o administrador de insolvência recusar o cumprimento do contrato, quando o artigo 755.º, n.º 1, al. f) do Código Civil, pelo contrário, garante direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa pelo crédito resultante do incumprimento imputável à outra parte) é que veio a ser, através do dito Acórdão, limitada a aplicação do citado artigo 755.º, n.º 1, al. f) do Código Civil ao processo de graduação de créditos em insolvência, e mesmo assim com larga margem de votos de vencido, e sempre com a certeza absoluta de que esse Acórdão só pode aplicar-se a hipóteses de insolvência, o que é bem evidenciado pelo facto de no seu voto de vencido o Conselheiro José Salazar Casanova sustentar que votava contra a decisão por considerar que a limitação ao direito de retenção ao beneficiário da promessa que seja consumidor, deveria aplicar-se a todos os casos e não apenas à insolvência.

21ª – A inversão do título de posse como exigência e condição de se ter por verificada a tradição e a posse, não é aceitável só seria compreensível se se pretendesse a aquisição da propriedade por usucapião, mas esta não foi sequer pedida, nem podia sê-lo, a inversão do título não foi alegada nem ocorreu, nem se pretende que venha a ocorrer e a sua omissão teria apenas a consequência de não poder começar a contar-se a favor do possuidor o prazo para aquisição da propriedade por usucapião, o que não foi pedido, já que o processo se movimenta apenas no domínio da posse e da tradição. (cfr. Acórdão STJ, de 21/02/1991 in A.J.15/16 pág. 32)

22ª – Não é também aceitável que para se reconhecer o direito de retenção se tenha de provar que o promitente vendedor abandonou as frações, cedendo a sua posse aos embargantes (embora a discussão seja inútil porque ocorreu e provou-se de facto abandono da promitente-vendedora e posse subsequente dos promitentes- compradores) não apenas porque esse abandono e entrega efetiva estavam documentalmente provados, como pelo facto de a promitente vendedora expressamente ter confessado que com a entrega das chaves dos imóveis passou a considerar que os mesmos já não lhe pertenciam (gravação do depoimento do sócio gerente da promitente- vendedora designadamente a 00:07:43, 00:12:08, 00:16:38 e a assentada em ata).

23ª – No caso concreto, e porque tecnicamente o abandono significa um ato intencional do antepossuidor dirigido a pôr fim à sua posse – o que sucedeu em relação à promitente vendedora – seguido de um ato através do qual a coisa possuída sai das mãos do possuidor, por ato voluntário seu, é manifesto que a posse dos embargantes se provou, bem como o abandono da promitente-vendedora, já que “para efeitos de perda da posse, o abandono pressupõe um ato material praticado intencionalmente de rejeição da coisa ou do direito” (cfr. entre muitos o Acórdão da Relação de Lisboa de 09/03/2010, in www.dgsi.pt).

24ª – De resto, sempre estaria, em relação à promitente-vendedora provado o “desapossamento”, consequente da tradição da coisa, nos termos do artigo 1263º do Código Civil, já que de “apossamento” ou “desapossamento” pode falar-se quando, como sucedeu, alguém coloca uma coisa na situação de afetação material ex novo por outrem, ou de apropriação material, exigindo-se, o que no caso se verificou, atos de intenção suficiente para se afirmar que o novo possuidor colocou a coisa debaixo do seu poder” (Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais 4ªed. 86/87)

25ª – Do mesmo modo, para se comprovar o incumprimento nada tem que provar-se em relação a qualquer interpelação admonitória, pois o artigo 808º do Código Civil, estabelece essa regra para um caso bem distinto – a perda de interesse dos promitentes- compradores na realização do contrato definitivo, e só na hipótese, inverificada no caso, de quererem prová-la, é que os embargantes teriam de previamente recorrer a uma interpelação admonitória, se pudessem ou quisessem optar entre rescindir o negócio ou exigir a sua execução (cfr. Galvão Telles, Obrigações 3, 421), sendo a indemnização a que alude o artigo 808º do Código Civil fundamentada unicamente nos casos de resolução do contrato, o que não se verifica (Maria Ângela Bento Soares e Moura Ramos, Documentação e Direito Comparado, 6º, 237).

26ª – De qualquer modo, está efetivamente provado que as promessas de compra e venda de que os embargantes são beneficiários datam de 04/11/1988, ou seja, de há quase 30 anos, que o preço foi logo integralmente pago, que até hoje não foram cumpridas, que a promitente vendedora prometeu por escrito, celebrar as escrituras de venda no máximo até 28/02/2012, ou seja, há quase 6 anos, sem cumprir, que, em depoimento de parte confessou expressamente que não outorgara as escrituras por falta de dinheiro para libertar as hipotecas (pois tinha de entregar as frações já desoneradas), que conferiu a posse das frações aos embargantes, e ainda, por último, que é manifesta a agressão ao direito dos embargantes em consequência das penhoras, o que tudo significa que é mais que provável a venda judicial das mesmas e com ela a irremediável perda do direito ajuizado.

27ª – A questão do erro na forma do processo (reclamação de créditos em vez de embargos de terceiro) não pode sequer pôr-se já porque a lei exige que o erro na forma do processo deva ser conhecido até ao despacho saneador, sob pena de ficar sanado e já não poder ser alvo de pronúncia (cfr. art. 193º, n.os 1, 2 e 3 do Código de Processo Civil, o Acórdão da Relação do Porto de 13/11/2012, proc. 332/10.OTBVLP-A.P1); já porque a jurisprudência tem entendido que é admissível a dedução de embargos de terceiro na hipótese considerada nos autos (Acórdão da Relação de Lisboa de 21/11/1991, Col. Jurisp. 1991, V, 135, da mesma Relação de 14/11/1991 Col Jurisp. 1991, V, 132 e do STJ de 11/03/1999 in BMJ 485, 404, de 25/11/1999, Col. Jurisp. STJ, III, 118 e de 10/01/2002, STJ 10/01/2002.Rev.3295/01-II.SumáriosI/2002).

28ª – Quer a posse dos embargantes quer a tradição para estes das frações prometidas vender não podiam deixar de ter-se por absolutamente provadas e assentes, pois deu-se como integralmente reproduzido na matéria de facto provada o texto de três contratos celebrados entre os embargantes e a executada, em 28-02-2011, nos quais esta última declara a cada um deles que lhes entregou as frações destinadas, mais declarando que assim fica formalizada a entrega das frações, com as respetivas chaves e efetivada a transmissão da posse para os mesmos embargantes, e essa matéria foi confirmada no texto da sentença e do acórdão produzido, para além de resultar da assentada do depoimento de parte da gerente da embargada promitente-vendedora

29ª – Com efeito, foi lavrada assentada desse depoimento de parte, constando dela que “a sócia-gerente da embargada (…) limita-se a dizer exatamente o mesmo que os embargantes”, pois “confessa a petição de embargos, confessa a depoente que as chaves das frações foram efetivamente entregues aos embargantes (…) que efetivamente foram celebrados os acordos datados a 28-02-2011 juntos a fls. 75 (…) que as escrituras (…) nunca chegaram a ser celebradas embora a sociedade que representa considere os embargantes seus proprietários (…) que confessa ainda ter conhecimento pessoal que o embargante AA efetivamente ocupa as frações X e AF, tem também conhecimento pessoal que o embargante Sr. BB também ocupa as frações AH que está a acabar (…)”.

30ª – Ora, o conjunto de documentos constantes dos autos, o teor da assentada da executada, e da assentada relativa aos exequentes, bem como os depoimentos das testemunhas, reproduzidos na sentença e na ata de julgamento, não podem deixar de ser considerados idóneos para se ter por provada toda a matéria de facto que constitui pressuposto da aplicação do disposto no artigo 755.º, n.º1, al. f) do Código Civil, tendo o Supremo Tribunal de Justiça competência jurisdicente para sindicar as decisões das instâncias, nessa matéria, desde que essa sindicância se faça nos termos prescritos pelo artigo 674.º, n.º1, al. b) do Código de Processo Civil, porque a decisão recorrida em matéria de facto contraria a força probatória de documentos com força probatória indiscutível, e o que resulta da confissão expressa acima aludida.

31ª – No uso dessa competência, o Supremo Tribunal de Justiça pode diretamente anular a matéria de facto e substituí-la por outra, ou, pelo menos, exercer uma discreta censura sobre as decisões, e, se considerar que a Relação devia ter modificado a matéria de facto, nos termos do artigo 662.º do Código de Processo Civil, anular a decisão, para que a Relação, em novo acórdão, expurgado desses vícios, de novo julgue a causa (cfr. o acórdão do STJ de 27-01-1973, BMJ 224, 132), uma vez que o modo como foi fixada a matéria de facto, contraria abertamente as regras de direito material que fixam o valor probatório da confissão (artigos 353.º, 358.º, 352.º e 354.º do Código Civil) e o valor probatório dos documentos juntos aos autos, quer autênticos, quer particulares (artigos 376.º a 378.º e 394.º do Código Civil), sempre em conjugação com o que as testemunhas afirmaram (artigo 396.º do Código Civil), como desenvolvidamente se referiu no texto das alegações, sempre de conformidade com o sugerido no lugar próprio.

27ª – Em concreto, tal como se desenvolveu no corpo das alegações, afigura-se indispensável que se corrija a matéria de facto por forma a dar como provados os factos 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 19º nos termos propugnados, e que a decisão a produzir neste alto tribunal atenda ao valor dos precedentes jurisprudenciais que ficaram citados (cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 12-04-1988, in BMJ 376,646 e acórdão da mesma Relação de 23-10-1990, in BMJ 400,719, e o acórdão do STA, de 23-03-1994, in BMJ 435,588, acórdão da Relação de Lisboa de 14-11-1991, Col. Jurisp. 1991, V, 132 e acórdão do STJ de 12-03-2013, COL. Jurisp. STJ XXI, 1 pág. 151, acórdão do STJ de 11-03-1999, in BMJ 485,404 e acórdão do STJ de 10-01-2002, Rev. 3295/01. 2º- Sumários, 1/2002, acórdão do STJ 25-11-1999, in Col. Jurisp./STJ 1999, 3, 118, acórdão da Relação de Évora 10-10-1991, in Col. Jurisp. XVI, 4 Pág. 312 e acórdão da Relação de Évora de 10-10-1991 in Col. Jurisp. XVI,4 pág. 312, acórdão da Relação de Lisboa de 05-07-2000, in Col. Jurisp. 2000, 4, 85, acórdão do STJ de 25-02-1986, in BMJ 354,549, os acórdãos da Relação de Lisboa de 14-11-1991 e de 21-11-1991, ambos in Col. Jurisp. XVI, 5 pág. 132 e 135, acórdão do plenário das secções cíveis do STJ para uniformização de jurisprudência n.º4/2014, in Rev. N.º92/05.6TYVNG-N.P1.S1, publicado no Diário da República n.º95 de 19-05-2014, acórdão do plenário das secções cíveis do STJ para uniformização de jurisprudência n.º4/2014, in Rev. N.º92/05.6TYVNG-N.P1.S1, publicado no Diário da República n.º95 de 19-05-2014, acórdão do STJ de 19-04-2001, Col. Jurisp. STJ 2001, II, pág. 28, o acórdão do STJ de 14-10-2014, processo n.º 986/12.2TBFAF-G.G1.S1, relator João Camilo, disponível em www.dgsi.pt, o acórdão da Relação do Porto 13-11-2012, processo n.º 332/10.OTBVLP-A.P1.dgsi.net).

Termos em que na integral procedência do recurso, deve revogar-se o acórdão recorrido, declarando-se sequencialmente nulo, bem como todos os atos que o precederam desde a prolação do primeiro despacho impugnado, para:

a) - serem recebidos e julgados os recursos dos despachos de 22-06-2017 (que ordenou a remessa das partes para os meios comuns), e nos autos principais, e de 06-02-2018, no apenso de embargos (que recusou a retificação do objeto do litígio);

b) - ser corrigida a matéria de facto nos termos propugnados, ou diretamente por decisão do STJ, ou anulando-se se assim se entender a decisão da relação sobre a matéria de facto, para de novo a mesma aí ser julgada expurgada dos vícios apontados; e

c) - em qualquer dos casos, e ainda que a matéria de facto não mereça correção, ser a ação julgada inteiramente provada e procedente com as legais consequências”

Em sede de contra-alegações, apresentadas em resposta às novas conclusões de recurso, vieram os Recorridos invocar a falta de cumprimento do despacho de convite ao aperfeiçoamento e insistir na não admissibilidade do recurso. Subsidiariamente, pugnam pela manutenção da decisão do acórdão recorrido.


4. Considerando-se cumprido o despacho de convite ao aperfeiçoamento, a questão da admissibilidade do recurso por via normal foi apreciada por despacho da relatora, datado de 10/09/2019, do seguinte teor:

3. Tendo em conta que o acórdão recorrido confirmou a decisão da 1ª instância, por unanimidade, e sem fundamentação essencialmente diferente, importa apreciar se as questões objecto do recurso se encontram ou não alcançadas pelo obstáculo à admissibilidade da revista, por via normal, da dupla conformidade, previsto no nº 3 do art. 672º do Código de Processo Civil.

Para o efeito, importa enunciar as questões objecto do recurso:

a) Erro de julgamento do acórdão recorrido ao não admitir os recursos do despacho de 22/06/2017, lavrado nos autos principais (que ordenou a remessa das partes para os meios comuns), e do despacho de 06/02/2018, lavrado no apenso de embargos (que recusou a rectificação do objecto do litígio), devendo tais recursos ser recebidos e julgados;

b) Erro de julgamento do acórdão recorrido na apreciação das provas e na fixação da factualidade provada, por ofensa de disposição expressa que fixa a força de determinado meio de prova, no caso de confissão e de documentos particulares com força probatória plena, devendo ser corrigida a matéria de facto por forma a dar como provados os factos 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 19º nos termos propugnados;

c) Erro de julgamento do acórdão recorrido, ao dar como não provados os pressupostos do direito de retenção, tal como previstos no art. 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil, devendo, quer a matéria de facto seja ou não alterada, julgar-se procedente a acção.

Vejamos.

No que se refere à questão enunciada em a), deve esclarecer-se que o acórdão recorrido contém três decisões, uma relativa a cada uma das impugnações das decisões da 1ª instância apresentadas pelos embargantes (impugnação do despacho de 22/06/2017; impugnação do despacho de 06/02/2018; impugnação da sentença), das quais a única susceptível de recurso de revista é a terceira.

Com efeito, as decisões de não admissão dos recursos dos despachos que antecederam a sentença não cabem no âmbito do art. 671º, nº 1, do CPC. São antes decisões proferidas por acórdão da Relação sobre decisões interlocutórias, das quais não cabe revista, salvo nas hipóteses excepcionais do nº 2 do mesmo art. 671º, que aqui não se verificam.

De tais decisões de não admissão dos recursos não cabe recurso de revista nem - sendo decisões autónomas em relação à decisão da Relação que apreciou o recurso da sentença, confirmando-a - são aptas a descaracterizar a dupla conforme formada com esta última decisão.

Quanto às questões b) e c), trata-se de questões respeitantes a alegados erros de julgamento, aqui perspectivados como erros de direito, sobre os quais o acórdão da Relação coincidiu com a sentença de 1ª instância pelo que se encontram ambos abrangidos pela dupla conforme, o que obsta à admissibilidade do recurso por via normal.

4. Pelo exposto, decide-se:

a) Não admitir o recurso na parte relativa à questão do alegado erro de julgamento do acórdão recorrido, ao não admitir os recursos do despacho de 22/06/2017, lavrado nos autos principais (que ordenou a remessa das partes para os meios comuns), e do despacho de 06/02/2018, lavrado no apenso de embargos (que recusou a rectificação do objecto do litígio) por tais decisões não se integrarem no âmbito do recurso de revista;

b) Não admitir o recurso, por via normal, na parte relativa à questão do alegado erro de julgamento do acórdão recorrido na apreciação das provas e na fixação da factualidade provada, por ofensa de disposição expressa que fixa a força de determinado meio de prova, assim como quanto à questão do alegado erro de julgamento do mesmo acórdão, ao dar como não provados os pressupostos do direito de retenção, tal como previstos no art. 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil. Quanto a estas questões, tendo os Recorrentes invocado, subsidiariamente, a admissibilidade da revista por via excepcional, remetam-se os autos à Formação a que alude o nº 3 do art. 672º do CPC para apreciação de tal admissibilidade.

5. Entretanto, por morte do co-embargante DD, foi deduzido incidente de habilitação, o qual correu termos. Por sentença de 04/05/2020 foram habilitados para ocupar o lugar do falecido no prosseguimento da acção os herdeiros FF, GG e HH.

6. Por acórdão de 22/06/2020 da Formação a que alude o nº 3 do art. 672º do Código de Processo Civil, o presente recurso foi admitido por via excepcional (nele se explicitando também ser manifestamente inaplicável ao presente recurso o regime de inadmissibilidade do nº 2 do art. 342º do CPC, invocado pelos Recorridos, uma vez que os embargos de terceiros não revestem a natureza de procedimento cautelar especificado)

Cumpre, pois, apreciar e decidir.

7. Vem provado o seguinte (mantêm-se a identificação e a redacção das instâncias):

1º. Em 24/11/2016 realizou-se nos autos principais a penhora dos bens melhor descritos no auto aí junto a fls. 132 ss e que aqui se dá por reproduzido, no qual se incluem:

a. Fracção autónoma designada pelas letras AF, correspondente a habitação no 2° andar Esq., com lugar de garagem, n° 22 na cave, com entrada pelo n° 192 da Rua …, do prédio sito à Avenida …, 197/231 e Rua …, 170/192, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8917-AF, da freguesia de …, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 3879-AF (freguesia de …);

b. Fracção autónoma designada pela letra X, correspondente a habitação no 2o andar Dto., com lugar de garagem n° 16 na cave, com entrada pelo n° 231 da Avenida …, do prédio sito à Avenida … 197/231 e Rua …, 170/192, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8917-X, da freguesia de …, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 3879-X (freguesia de …);

c. Fracção autónoma designada pelas letras AH, correspondente a habitação no 3º andar Esq., com lugar de garagem n° 23 na cave, com entrada pelo n° 192 da Rua …, do prédio sito à Avenida … 197/231 e Rua …, 170/192, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8917-AH, da freguesia de …, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 3879-AH (freguesia de …);

d. Fracção autónoma designada pelas letras AQ, correspondente a habitação no 3o andar Esq., com lugar de garagem n° 13 na cave, com entrada pelo n° 170 da Rua …, do prédio sito à Avenida …, 197/231 e Rua …, 170/192, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8917-AQ, da freguesia de …, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 3879-AQ (freguesia de …);

e. Fracção autónoma designada pela letra AR, correspondente a habitação no 3o andar Dto., com lugar de garagem n° 14 na cave, com entrada pelo n° 170 da Rua …, do prédio sito à Avenida … 197/231 e Rua …, 170/192, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8917-AR, da freguesia de …, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 3879-AR (freguesia de …);

f. Fracção autónoma designada pela letra N, correspondente a habitação no 2º andar Esq., com lugar de garagem, n° 03 e arrumo fechado n° 44, ambos na cave, com entrada pelo n° 215 da Avenida …, do prédio sito à Avenida …, 197/231 e Rua …, 170/192, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8917-N, da freguesia de …, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 3879-N (freguesia de Vila do Conde).

2º. No dia 4 de Novembro de 1988, II, Província Portuguesa da Sociedade Salesiana, Província Portuguesa da Companhia de Jesus, a Província Portuguesa da Congregação do Espírito Santo como primeiros outorgantes, e os ora embargantes AA, BB, CC, DD e ainda o já falecido JJ como segundos outorgantes celebraram o acordo escrito denominado "CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA", junto a fls. 77 a 80, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual em suma os primeiros declaram que são promitentes-compradores do prédio rústico destinado subsequentemente a construção: Quinta da …, sita no lugar do … ou D…, da freguesia e concelho de …, com a área de 4150 m2, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 6198 e aí registada em nome das vendedoras sob o n° de inscrição 25.105, inscrito na matriz sob o artigo 524, que nele os primeiros outorgantes vão «levar a cabo a construção de blocos de apartamentos dotados de cave para garagem, rés-do-chão e três andares para habitação num total de cerca de 3600 ml de construção urbana; 3º Das referidas construções de apartamentos obrigam-se os promitentes vendedores a vender aos promitentes-compradores, ou a quem estes indicarem até à data da realização da escritura pública, dez apartamentos, sendo quatro T3 e seis T2, ou seja, um T3 e um e meio T2 para cada um dos promitentes-compradores, apartamentos esses agora avaliados em 12.500.000$00 (...) 4º No acto da assinatura deste contrato, os promitentes-compradores pagaram aos promitentes vendedores a totalidade do preço, ou seja, 110.000.000S00 (...) de que os promitentes vendedores dão completa e absoluta quitação (...) 6º Os promitentes vendedores obrigam-se a efectuar a construção com materiais de boa qualidade, dotando os apartamentos, como como partes integrantes e, por isso, sem agravamento do indicado preço, na cozinha de móveis em castanho maciço, exaustor, esquentador, tanque móvel, paredes em placas de mármore, em vez de azulejo, até ao tecto, tijoleira no chão à escolha e, no quarto de banho loiça externa em vez de depósito interno, toalheiros de boa qualidade inox, no geral vídeo de entrada, elevador, canalização em aço inoxidável, portas maciças em vez de folheadas, excepto as do quarto de banho, instalação para gás da companhia, tijoleira no WC, sala de jantar e cozinha, e nos restantes cómodos alcatifa ou tacos à escolha dos promitentes-compradores, alumínio nas janelas, preparadas para vidro duplo, dois banhos de locação e anodizado, lacado, porta de garagem eléctrica, com abertura e fecho automático. 7º O prazo de entrega dos citados apartamentos será de dois anos após a obtenção da licença de construção. 8º Os promitentes vendedores obrigam-se a não hipotecar, vender, nem de qualquer modo onerar os ditos blocos que ia construir ou qualquer dos seus apartamentos antes de serem efectuadas as escrituras definitivas de venda das fracções prometidas vender. 9º Todos os outorgantes declaram conferir às suas recíprocas promessas aqui feitas à eficácia do artigo 830° do Código Civil». - cfr. Doc. de fls. 77 a 80, que aqui se dá por reproduzido.

3º. No acto da assinatura desse contrato, os promitentes-compradores pagaram aos promitentes vendedores a totalidade do preço, ou seja, 110.000.000$00.

4°. No dia 02 de Dezembro de 1988, a executada A. Martins & J. Martins, Lda declarou comprar, mediante o pagamento do preço de 7.500.000$00 a II, Província Portuguesa da Sociedade Salesiana, Província Portuguesa da Companhia de Jesus, e à Província Portuguesa da Congregação do Espírito Santo, e conforme escritura pública então outorgada no Cartório Notarial de …, o seguinte prédio rústico destinado subsequentemente a construção: Quinta da …, sita no lugar do … ou D…, da freguesia e concelho de …, com a área de 4150 m2, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 6198 e aí registada em nome das vendedoras sob o n° de inscrição 25.105, inscrito na matriz sob o artigo 524° - cfr. doc de fls. 182 a 186, que aqui se dá por reproduzido.

5º. Na mesma data de 02/12/1988, KK e LL, na qualidade de sócios gerentes da sociedade A. Martins & J. Martins, Lda. e em representação desta, subscreveram a declaração constante de fls. 80, que aqui se dá por reproduzida, com o seguinte teor «Tendo a escritura definitiva sido outorgada no Cartório Notarial de … no dia 2 de Dezembro de 1988, e aí lavrada no livro 4D, digo, livro 25° B a fls. 95 e seguintes e nele figurando como compradora do prédio em questão a sociedade A. Martins & J. Martins, Lda.,(...) declaram os sócios gerentes desta sociedade, sem sua representação KK e LL com poderes suficientes para o acto que se obrigam por si e em nome da sociedade pelo cumprimento de todas as obrigações estabelecidas neste contrato promessa, como se inicialmente por si assumidas.»

6º. Os embargantes propuseram contra a executada A. Martins & J. Martins Lda., então com sede na Rua …, 163, em …, uma acção com processo ordinário, a que foi atribuído o n° 547/001, do 3º Juízo Cível, actualmente arquivada no respectivo arquivo judicial no maço n° 2437, sob o registo n° 31682, do ano de 2001, acção essa na qual, pediram a condenação da aí ré a: a) Reconhecer que em 02/12/1988 celebrou com os autores um contrato-promessa de compra e venda aí descrito, através do qual prometeu vender-lhes ou a quem eles indicassem até à data da escritura, 10 apartamentos, sendo quatro T3 e seis T2 (um T3 e 14 T2 para cada um dos autores, integradas no prédio que foi submetido à propriedade horizontal, primitivamente rústico, denominado "Quinta da …", sito na freguesia e concelho de … e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 6198, inscrito na matriz sob o n° 524; b) Reconhecer que até à data de entrada da acção tal contrato não fora cumprido em uma das suas cláusulas essenciais - não hipotecar, não vender, não onerar - uma vez que dera de hipoteca o referido prédio à Câmara Municipal de … e à Caixa Económica Montepio Geral; c) Expurgar as referidas hipotecas antes de celebrar com os autores as escrituras de compra e venda prometidas; d) Reconhecer que uma vez que o contrato-promessa em causa estabelecia um prazo de entrega dos apartamentos (2 anos após a obtenção pela ré de licença de construção) mas não estabelecia prazo para obtenção da licença de construção, nem para a celebração da escritura pública, ver fixados como prazos de cumprimento o de 3 meses para obter o licenciamento da construção, o de 2 anos para efectuar a construção e o de 6 meses após o termo após desses 2 anos para outorgar as escrituras públicas de transmissão da propriedade para os autores; e) Pagar aos autores uma indemnização correspondente à perda de rendimento por eles sofrido em consequência de as fracções não lhes terem sido entregues, conforme convencionado, até finais de 1992, e uma outra indemnização, a liquidar em execução de sentença, correspondente ao aumento efectivo da área de construção em relação à contratualmente estabelecida, que era apenas de 3600 m2, para tanto alegando que celebraram no dia 02 de Dezembro de 1988 com a Ré A. Martins & J. Martins, Lda., por escrito, um contrato promessa de compra e venda visando a transmissão daquelas propriedades imobiliárias para os AA..

7º. No dia 6 de Março de 2006 foi lavrada transacção no processo supra referido, cfr. doc. de fls. 141 a 144, que aqui se dá por reproduzida.

8º. O embargante AA e a executada A. Martins & J. Martins, Lda. celebraram, em 28 de Fevereiro de 2011, o acordo escrito junto a fls. 153, que aqui se dá por integralmente reproduzido e nos quais em suma se refere que na sequência da transacção referida em 7º:

Assim e para pôr termo a todas as divergências entre ambas as partes quanto a esta questão, aos primeiros outorgantes serão entregues os seguintes apartamentos que se encontram no empreendimento referido naquele processo:

- fracção autónoma, destinada a habitação, correspondente a um apartamento do tipo T2, localizado no 2° direito do n°231 da Avenida …, identificado na constituição do regime da propriedade horizontal com a letra "X", dele fazendo parte um aparcamento na cave identificado com a letra "X":

- fracção autónoma, destinada a habitação, correspondente a um apartamento do tipo T3, localizado no 2º esquerdo do n°192 da Rua …, identificado na constituição do regime da propriedade horizontal com a letra "AF", dele fazendo parte um aparcamento na cave identificado pela letra "AF";

Pela presente declaração vem a segunda outorgante formalizar a entrega aos primeiros outorgantes da fracção autónoma, destinada a habitação, correspondente a um apartamento tipo T2, localizado no 2° direito do n°231 da Avenida …, identificado na constituição do regime da propriedade horizontal com a letra "X"; bem como a entrega da fracção autónoma, destinada a habitação, correspondente a um apartamento do tipo T3, localizado no 2° esquerdo do n°192 da Rua …, identificado na constituição do regime da propriedade horizontal com a letra "AF" dele fazendo parte um aparcamento na cave identificado com a letra "AF". Nesta data são entregues aos primeiros outorgantes as respectivas chaves, tomando, assim, efectiva posse das identificadas fracções.

O apartamento tipo T2 supra identificado já se encontra concluído e em conformidade com os requisitos do contrato promessa celebrado e em causa na acção judicial; e, no que respeita ao apartamento do tipo T3 também acima identificado, os primeiros outorgantes assumem proceder, à sua custa, a conclusão das obras de acabamentos do seu interior, executando os trabalhos em falta, sempre no respeito e com observância do constante do projecto aprovado, disso desonerando a segunda outorgante.

As escrituras de transmissão da respectiva propriedade serão celebradas em cumprimento do contrato de promessa em causa naquela acção judicial, no prazo máximo de um ano a contar da data da assinatura do presente contrato, a favor dos primeiros outorgantes ou de quem eles indicarem até dez dias antes da respectiva escritura, num dos Cartórios Notariais de … e mediante notificação da segunda outorgante para o efeito, com a antecedência mínima de dez dias, salvo acordo de outras datas entre as partes.

9º. Os embargantes BB e CC e a executada A. Martins & J. Martins, Lda. celebraram, em 28 de Fevereiro de 2011, o acordo escrito junto a fls. 154, que aqui se dá por integralmente reproduzido, com texto idêntico ao supre referido em 8º e nos quais em suma se refere que na sequência da transacção referida em T a executada A. Martins & J. Martins, Lda. entrega a estes embargantes as chaves das fracções designadas pelas letras "V" e "AH", do prédio em causa nos autos.

10°. O embargante Padre DD e a executada A. Martins & J. Martins, Lda. celebraram, em 28 de Fevereiro de 2011, o acordo escrito junto a fls. 155, que aqui se dá por integralmente reproduzido, com texto idêntico ao supre referido em 8º e nos quais em suma se refere que na sequência da transacção referida em 7º a executada A. Martins & J. Martins, Lda. entrega a estes embargantes as chaves das fracções designadas pelas letras "N", "O", "AQ" e "AR", do prédio em causa nos autos.

11º. A aquisição, por compra, das fracções autónomas N, AH, AQ e AR que foram objecto de penhora no processo principal, mostra-se registada a favor da sociedade A.C. MARTINS & CAMPOS LEITE - SOCIEDADE IMOBILIÁRIA DE COMPRA E VENDA, LDA., actualmente denominada DOMUM TUAM - SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A. - cfr. certidões prediais juntas a fls. 35 a 74.

12°. Citada a mesma nos termos do art. 119°, n° 3, veio declarar que as mesmas lhe pertencem.

13°. Por escritura pública de compra e venda celebrada em 18/11/2016, MM e KK, na qualidade de únicos sócios, simultaneamente da sociedade executada A. Martins & J. Martins, Lda. e da A.C. MARTINS & CAMPOS LEITE - SOCIEDADE IMOBILIÁRIA DE COMPRA E VENDA, LDA., actualmente denominada DOMUM TUAM - SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A, declararam que a sociedade A. Martins & J. Martins, Lda. vendia à A.C. MARTINS & CAMPOS LEITE - SOCIEDADE IMOBILIÁRIA DE COMPRA E VENDA, LDA. as fracções autónomas N, AH, AQ e AR que foram objecto de penhora no processo principal, pelo preço de €611.200,00, sendo tal preço parcialmente pago «(...) C) pela assunção, por parte da sociedade compradora, dos encargos decorrentes do acordo celebrado entre a sociedade vendedora e o Padre DD, em vinte e oito de fevereiro de dois mil e onze, com o valor atribuído de duzentos e setenta e quatro mil trezentos e trinta e oito euros e oitenta e quatro cêntimos; D) pela assunção, por parte da sociedade compradora, dos encargos decorrentes do acordo celebrado entre a sociedade vendedora e BB, em vinte e oito de fevereiro de dois mil e onze, com o valor atribuído de setenta e cinco mil novecentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e quarenta e seis cêntimos;» - cfr. doc. de fls. 239 a 243 que aqui se dá por reproduzido.

14°. A aquisição, por compra, das fracções autónomas AF e XR que foram objecto de penhora no processo principal, mostra-se registada a favor da sociedade executada A. Martins & J. Martins, Lda. - cfr. certidões prediais juntas a fls. 35 a 74.

15°. Mostra-se registada relativamente às referidas fracções autónomas N, AH, AQ e AR uma acção que corre termos sob o n° 2213/12.3… pela 2ª Secção Cível do Tribunal da Comarca do …, proposta pelos aqui exequentes contra as sociedades A. Martins & J. Martins, Lda. e DOMUM TUAM - SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A., em que em suma os aí autores pedem a declaração de ineficácia quanto a si da compra e venda das referidas fracções ocorrida entre as sociedades aí rés - cfr. certidões prediais juntas a fs. 35 a 74.

16°. O embargante AA ocupou a fracção designada pela letra "AF", supra descrita em Iº, a) e arrendou-a a terceiro.

17º. O embargante AA ocupou a fracção designada pela letra "X", supra descrita em Iº, b), mobilou-a, reparou-a e cedeu o seu uso a um filho, que a utiliza ocasionalmente para férias ou a cede a amigos.

18°. Os embargantes BB e CC venderam a terceiros a fracção denominada pela letra "V", referida no acordo supra descrito em 9º.

19°. Desde a celebração do acordo referido em 2°, a intenção dos embargantes sempre foi usar as referidas fracções como investimento, cedendo as respectivas posições contratuais, vendendo ou arrendando as mesmas.

20°. Por escritura outorgada em 7 de Outubro de 2004, a executada A. Martins & J. Martins, Lda. celebrou o contrato de mútuo com hipoteca e fiança, por força do qual se confessou devedora ao BANCO POPULAR PORTUGAL, S.A. do empréstimo no montante de € 2.500.000,00 (dois milhos e quinhentos mil euros), conforme documento junto a fls. 40 a 52 do apenso de reclamação de créditos.

21°. Para garantia do integral cumprimento do contrato assumido na referida escritura, a ora executada A. Martins & J. Martins, Lda. constituiu a favor do Banco Popular, hipoteca voluntária sobre a parcela de terreno destinada à construção urbana, sita na Avenida …, …, descrita na CRP sob o n 3879 e inscrita na matriz sob o artigo 8971.

22°. Hipoteca que se encontra definitivamente registada através da inscrição AP. 11 de 2004/07/07, incidindo sobre as respectivas fracções autónomas por força da constituição da propriedade horizontal através da AP 21 de 04/06/2008 - cfr. certidões prediais juntas a fs. 35 a 74.

23°. O BANCO POPULAR PORTUGAL, S.A. desconhecia e não tinha como conhecer a existência dos contratos de promessa alegadamente celebrados pelos embargantes.


Foram considerados não provados os seguintes factos:

a. que na sequência dos acordos referidos em 8º a 10º os embargantes ocuparam as demais fracções penhoradas, mobilaram-nas, repararam-nas, cederam o seu uso a familiares e conhecidos que nelas ficaram a habitar temporariamente.

b. que as declarações prestadas nos documentos intitulados por ACORDO celebrados entre a executada e os embargantes consubstanciados na declaração de formalização de entrega das fracções e respectivas chaves, com tomada de posse sobre as fracções, traduzem uma divergência, que foi intencional, entre a vontade real e a declarada dos embargantes e da executada, que não abriu nem quis abrir mão de tais fracções a favor daqueles, nem estes a quiseram receber e resultaram de acordo prévio entre os embargantes e a executada com vista a enganar terceiros, fazendo-os crer que, na realidade, tais fracções lhes tinham sido entregues, nunca mais a executada tendo disposição ou efectiva detenção sobre essas fracções.

c. que no documento referido em 2° promitentes vendedores e promitentes compradores tinham plena consciência, mas assim o quiseram, de que ao dizer que naquele ato de assinatura do contrato promessa foi paga a quantia de escudos 110.000,000$00, emitiam todos uma declaração que não correspondia à verdade nem à vontade dos mesmos dos mesmos e que tal declaração falsa resultou de um prévio acordo entre os ali contratantes havido com o intuito de assim enganar terceiros, fazendo-os crer que essa quantia de dinheiro havia sido paga pelos promitentes compradores aos promitentes vendedores - o que não era nem foi verdade.

d. que a escritura referida em 13° foi celebrada com a concordância, consentimento e ratificação dos embargantes, do Banco Popular Portugal e do Banco BPI, SA..


9. Nos termos do art. 639º, nº 1 do CPC o objecto do recurso delimita-se pelas conclusões do recorrente. Tendo porém em conta que, por despacho da relatora de 10/09/2019, supra reproduzido (cfr. ponto 4 do presente acórdão), o recurso não foi admitido na parte relativa à questão do alegado erro de julgamento do acórdão recorrido ao não admitir recurso de apelação do despacho de 22/06/2017, lavrado nos autos principais (que ordenou a remessa das partes para os meios comuns), e do despacho de 06/02/2018, lavrado no apenso de embargos (que recusou a rectificação do objecto do litígio), enunciemos as questões a apreciar:

- Saber se se encontram preenchidos os pressupostos de que depende o reconhecimento da posse e do direito de retenção sobre as fracções dos autos, invocado pelos embargantes Recorrentes, não podendo declarar-se existir erro na forma de processo, na medida em que tal erro apenas podia ser conhecido até ao despacho saneador;

- Saber se a decisão da matéria de facto (factos 8º, 9º, 10º, 11º, 12º e 19º) foi fixada em violação das regras legais que regulam a força probatória dos meios de prova, devendo, por isso, ser alterada (nos termos enunciados no corpo das alegações) em termos tais que evidenciam a posse dos embargantes, correspondente ao direito de retenção.

Assinale-se que, ainda que a conjugação entre as duas questões enunciadas não resulte clara das conclusões de recurso, é possível perceber que, ao colocarem a questão relativa à matéria de facto em segundo lugar, pretendem os Recorrentes que lhes seja reconhecida a posse (correspondente ao direito de retenção) quer a matéria de facto seja alterada quer não o seja.

Assinale-se também que, confrontadas as conclusões de recurso com o teor do corpo das alegações, se verifica que os Recorrentes, fazendo uso da faculdade prevista no art. 635º, nº 4, do CPC, nelas restringiram o objecto do recurso, designadamente ao não se referirem nas ditas conclusões à matéria constante da pág. 64 do corpo das alegações relativa ao alegado cumprimento do ónus do art. 640º do CPC em sede de recurso de apelação. Contudo, sempre se antecipará – de modo a evitar quaisquer dúvidas – que a solução jurídica do pleito não seria afectada ainda que se entendesse, diversamente, que esta questão integra o objecto da revista.


10. Antes de proceder à apreciação das questões objecto de recurso, importa considerar os termos em que as instâncias decidiram.

A 1ª instância entendeu, em síntese, o seguinte:

- Não se encontram reunidos os requisitos do direito de retenção invocado pelos embargantes, nomeadamente o requisito da posse, por falta de animus, e o requisito da situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa;

- De qualquer forma, mesmo que porventura estivessem verificados todos os requisitos do direito de retenção, certo é que os embargos de terceiro não são o meio adequado para exercer tal direito, na medida em que a penhora, que se visa embargar, não é incompatível com o direito de retenção, enquanto direito real de garantia;

- Mesmo considerando-se que, para além do direito de retenção, os embargantes invocaram – ainda que de forma dúbia – a posse correspondente a direito real incompatível com a penhora (designadamente, a posse correspondente ao direito de propriedade), não se verificam os respectivos pressupostos por não ter sido provada a entrega das fracções; salvo quanto a duas das fracções, que foram entregues, mas relativamente às quais falta o animus possessório como proprietário, uma vez que são os próprios embargantes que reconhecem ser a executada proprietária das fracções;

- A final, ajuíza-se que “(…) como os embargantes não são proprietários, nem possuidores, nem invocam qualquer outro direito que lhes confira direito equivalente, que seja afectado ou incompatível com a penhora, nada mais resta apreciar para concluir pela total improcedência dos embargos”.

O acórdão da Relação considerou o seguinte:

- Quanto à alegada posse dos embargantes, há que distinguir: quanto às fracções AH, AQ, AR e N, apenas ficou provada a entrega das chaves pelo que, faltando a prova de qualquer acto material sobre as mesmas, não está provada a posse; quanto às fracções AF e X, para além da entrega das chaves ao embargante AA, foram provados outros factos (prática de actos materiais, pagamento integral do preço, realização de obras) que, no seu conjunto, permitem concluir pela existência da posse correspondente ao direito de propriedade;

- Contudo, há que ter presente que, nos termos do art. 1268º, nº 1, do CC, a posse apenas faz presumir a titularidade do direito, cedendo perante a prova da efectiva titularidade do mesmo direito. Ora, resulta dos autos, e os embargantes reconhecem-no, que a propriedade pertence à executada pelo que nada impede a penhora das fracções;

- Quanto ao invocado direito de retenção, não é este fundamento de embargos de terceiro, uma vez que tal direito não é incompatível com a penhora. Com efeito, e citando Salvador da Costa, “(…) não pode embargar de terceiro, nem mesmo para se manter na posse da coisa até ao termo da acção executiva, o titular do direito real de garantia, por exemplo o direito de penhor ou de retenção, porque pode realizá-lo na acção executiva por via do concurso de credores. // Com efeito, esses direitos reais de garantia, incluindo o arresto, não são incompatíveis com a apreensão judicial para a subsequente venda, dos bens sobre que incidem, certo que os seus titulares podem reclamar o respectivo direito de crédito no concurso de credores suscitado na acção executiva”.

Insurgem-se os embargantes contra esta decisão, invocando essencialmente que os factos provados permitem dar como preenchidos os requisitos do direito de retenção, incluindo a posse correspondente a este direito; e que, de qualquer forma, tendo a matéria de facto sido fixada com violação de regras probatórias, deve a mesma ser corrigida em termos que permitam dar como provada a sobredita posse. Quanto ao juízo das instâncias sobre a inadequação dos embargos de terceiro para fazer valer o direito de retenção, tal juízo não é correcto e, ainda que o fosse, apenas poderia ser proferido enquanto pudesse ser apreciado o erro sobre a forma do processo.


11. Pelo que anteriormente se expôs, torna-se evidente que, não obstante a decisão de improcedência ter assentado essencialmente na inadequação dos embargos de terceiro para a realização da pretensão de reconhecimento do direito de retenção e consequentes efeitos, a 1ª instância admitiu, ainda assim, apreciar da verificação dos pressupostos desse direito, concluindo em sentido negativo; e ambas as instâncias apreciaram da existência de prova da posse correspondente ao direito de propriedade, concluindo a 1ª instância em sentido negativo; e concluindo a Relação em sentido positivo apenas quanto às fracções AF e X, mas entendendo que tal posse não é merecedora de tutela perante a prova de que a executada é titular do direito de propriedade.  

Dados os termos, algo imprecisos, em que os embargantes formularam as suas pretensões iniciais, compreende-se que as instâncias tenham optado por, na dúvida, esgotar os possíveis fundamentos de tutela. Fizeram-no apreciando a viabilidade da tutela requerida não apenas com fundamento no invocado direito de retenção, mas também, e em alternativa, com fundamento na posse correspondente ao direito de propriedade.

Contudo, os termos em que os embargantes se têm vindo a pronunciar, quer em sede de apelação quer em sede de revista, permitiram clarificar as suas pretensões e simplificar a tarefa do Supremo Tribunal de Justiça. Na verdade, resulta evidente, quer do teor das alegações de revista, quer do teor das conclusões recursórias que os embargantes, ora Recorrentes, não pretendem – e tudo indica, aliás, que nunca pretenderam – invocar a posse correspondente ao direito de propriedade, mas tão-só a posse correspondente ao direito de retenção.

Só à luz deste esclarecimento é possível compreender afirmações como aquelas que constam das conclusões recursórias e que aqui se reproduzem: “(…) é também inaceitável a decisão de que apenas se provou uma tradição simbólica, quer porque se provou uma tradição efetiva, quer porque a tradição simbólica sempre seria suficiente para justificar o direito de retenção” e “[a] inversão do título de posse como exigência e condição de se ter por verificada a tradição e a posse, não é aceitável [e] só seria compreensível se se pretendesse a aquisição da propriedade por usucapião, mas esta não foi sequer pedida, nem podia sê-lo, a inversão do título não foi alegada nem ocorreu, nem se pretende que venha a ocorrer (…)”. Pois, em rigor, a inversão do título de posse (enquanto “oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía” – cfr. art. 1265º do CC) é condição para que se reconheça ao promitente-comprador a posse correspondente ao direito de propriedade.

Por outras palavras, temos que, se inicialmente podia não ser evidente se os embargantes pretendiam que (a par da tutela do invocado direito de retenção, ou em alternativa a essa tutela) lhes fosse reconhecida a tutela da posse correspondente ao direito de propriedade, certo é que, ao longo do processado, e em particular nos termos do recurso de revista, ficou claro terem os mesmos embargantes uma única pretensão: reconhecimento dos pressupostos do direito de retenção, entre os quais se conta a posse correspondente a tal direito, isto é, a posse como retentores e não como proprietários.

Assim sendo, forçoso se torna concluir que, se, como entenderam as instâncias, se confirmar que os embargos de terceiro não são o meio adequado para alcançar a tutela do invocado direito de retenção, nada mais haverá a apreciar a respeito da tutela da posse correspondente ao direito de propriedade seja com base na factualidade dada como provada pelas instâncias seja com base na factualidade que os Recorrentes pretendem que, admitindo-se a alegada violação de regras de direito probatório, venha a ser dada como provada. Porque as alterações à decisão da matéria de facto (segunda questão objecto de recurso) visam afinal e tão-só o reconhecimento da posse correspondente ao direito de retenção.

Pela mesma ordem de razões se entende, como se afirmou supra (cfr. ponto 9 do presente acórdão), que o desfecho da presente acção não seria afectado ainda que se entendesse que a questão do alegado cumprimento, em sede de apelação, do ónus do art. 640º do CPC, integra o objecto do recurso de revista. Pelo simples motivo de que as alterações da matéria de facto aí propugnadas são as mesmas que os embargantes pretendem alcançar no presente recurso de revista, tendo sempre e tão-só como objectivo o reconhecimento da posse correspondente ao direito de retenção.


12. Feitas estas observações que, afigura-se, permitem ultrapassar equívocos que transparecem ao longo de todo o processado e que, em última análise, são de atribuir aos termos nem sempre rigorosos em que os embargantes se exprimiram, passemos a considerar o problema da adequação dos embargos de terceiro para obter o reconhecimento do direito de retenção e dos seus efeitos.

Diversamente do alegado pelos embargantes, não está em causa um simples problema de erro na forma do processo, mas antes a conformidade entre o meio processual dos embargos de terceiro e a pretensão formulada. Socorremo-nos, para a resolução deste problema, da síntese constante da anotação ao art. 342º do CPC, da autoria de A. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/L.F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2019, págs. 397 e seg.:

“1. Os embargos de terceiro, que constituem uma subespécie da oposição espontânea, servem para um sujeito, que não é parte na causa, reagir contra a penhora ou outro ato de apreensão ou entrega de bens, alegando a ofensa da sua posse ou titularidade de outro direito incompatível com a diligência realizada ou o seu âmbito.

(…)

3. A incompatibilidade do direito “deverá ser aferida tendo em conta a função e a finalidade concreta que se pretende obter com a diligência ou o ato judicial, pelo que, quando esteja em causa a penhora de um bem, um direito será incompatível com essa diligência se esse direito prevalecer ou não dever caducar com a venda executiva”, nos termos do art. 824, nº 2, do CC (Marco Gonçalves, Embargos de Terceiro na Ação Executiva, pp. 108-109).

4. Em conformidade e, em regra, não permitem a dedução de embargos:

a) Os direitos reais de garantia (v.g. direito de retenção) constituídos antes ou depois da penhora, porquanto caducam com a venda do bem, transferindo-se para o produto da venda, devendo ser objeto de reclamação e de graduação (art. 824º, nºs 2 e 3, do CC, e STJ 8-10-13, 10262/06);

(…)

5. Com alguma frequência, são deduzidos embargos contra a penhora pelo promitente-comprador do bem pertencente ao executado, invocando a titularidade de um direito especial de gozo decorrente da tradição da coisa. Trata-se de uma situação que não é oponível ao exequente, sendo também inoponível a invocação da titularidade de um direito de crédito sustentado no incumprimento de contrato-promessa dotado de garantia real conferida pelo direito de retenção, caso a que se ajusta a oportuna reclamação na ação executiva e não a defesa por embargos de terceiro. Trata-se, aliás, de jurisprudência corrente.” [negritos nossos]

Temos assim que é entendimento consagrado, tanto na doutrina como na jurisprudência, que os embargos de terceiro não podem ser deduzidos, com sucesso, por quem invoque o direito de retenção sobre a coisa objecto de penhora, pela simples razão de que o direito invocado não é incompatível com a penhora. O meio próprio para o exercício do direito de retenção é, pois, a reclamação na acção executiva.

Deste modo, os embargantes, ora Recorrentes, só poderiam pretender alcançar a tutela inerente aos embargos de terceiro – consistente no levantamento da penhora – se pretendessem tutelar a posse correspondente ao direito de propriedade, o que se afigura não ter sido o caso no presente processo e, sem qualquer dúvida, não é o caso no presente recurso.

Mais uma vez se afigura que a dedução dos embargos assentou num equívoco quanto à natureza da via processual utilizada e aos seus efeitos. Só assim se explica que, ao longo do processado e também em sede de revista (não admitida nesta parte), venham os embargantes, de forma reiterada, pretender revogar o despacho da 1ª instância que fixou o objecto do litígio, alegando que “os embargantes em momento algum pediram o levantamento das penhoras, mas antes o reconhecimento do direito de retenção a caducar com a venda, o que, pelo contrário, exigia a manutenção das penhoras (…)”.

Não pode deixar de se salientar ser paradoxal, e até mesmo absurdo, lançar mão de um meio processual para, afinal, pretender excluir o objectivo normativo específico desse mesmo meio processual.


13. Não obstante a certeza das conclusões formuladas no ponto anterior, tendo em conta: (i) que, apesar de tudo e de forma dubitativa, as instâncias admitiram apreciar a pretensão dos embargantes também em função da hipótese de a posse invocada pelos embargantes ser a posse correspondente ao direito de propriedade; (ii) e tendo em conta que a Relação veio a concluir que, ainda que apenas quanto às fracções AF e X, tal posse (pelo embargante AA) estaria provada; (iii) sempre se dirá que – como entendeu a Relação – os embargos teriam forçosamente de improceder uma vez que, nos termos do nº 1 do art. 1268º do CC, tal posse apenas permite presumir a titularidade do direito de propriedade, mas essa presunção cede perante a prova da efectiva titularidade do mesmo direito. A qual, como resulta dos autos e é admitido pelos próprios embargantes, cabe à sociedade executada.


14. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pelos Recorrentes.


Lisboa, 24 de Setembro de 2020


Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.


Maria da Graça Trigo (Relatora)


Maria Rosa Tching


Catarina Serra