Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
600/09.3YFLSB
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: ATESTADO MÉDICO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
CONDOMÍNIO
INOVAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – Um atestado médico não pode integrar um documento autêntico porque se trata de uma conclusão pericial e não de uma certificação de factos.
II – Acresce que o mesmo documento, ainda que não impugnado, não pode fazer prova plena porque não se trata da declaração de factos contrários aos interesses do declarante.
III - A colocação de aparelhos de ar condicionado na fachada de um prédio, sem especial valimento arquitectónico, não integra o conceito de inovação para efeitos do artº 1425º do C. Civil.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA e BB moveram a presente acção ordinária contra CC, pedindo que a ré retirasse das paredes comuns do edifício os quatro aparelhos de ar condicionado que aí instalou, bem como os acessórios correspondentes, reparando as mesmas, repondo-as integralmente no estado existente à data da aquisição da fracção. Mais pede a sua condenação no pagamento aos autores da quantia de € 10.000,00, correspondentes aos danos materiais causados na sua fracção, da quantia de € 4.970,00 a título de danos não patrimoniais e da quantia diária de €10,00 a título de sanção pecuniária compensatória.
A ré contestou.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.
Apelaram os autores, mas sem êxito.
Recorrem os mesmos novamente, os quais, nas suas alegações de recurso, apresentam, em síntese, as seguintes conclusões:

1 O documento de fls. 478, é um relatório médico emanado de um médico que exerce funções num estabelecimento hospitalar público, pelo que, sendo um documento autêntico, que faz prova plena dos factos atestados com base na percepção do seu autor.
2 Provando, assim, a doença psicológica do autor e que esta tem origem na poluição do andar superior ao do recorrente.
3 E ainda que fosse considerado um documento particular, como não foi impugnada nem a letra, nem a sua assinatura, faz prova plena dos factos.
4 Pelo que devem dar-se por provados os quesitos 5º e 6º da base instrutória, em que se perguntava se o aparelho de ar condicionado da recorrida agride o aparelho auditivo dos autores e seus filhos, perturbando o seu sono e acabando por acordá-los.
5 A decisão impugnada violou o artº 1245º nº 1 do C. Civil, uma vez que os aparelhos de ar condicionado foram colocados numa parte comum do edifício e sem prévia autorização da Assembleia de Condóminos.
6 Pelo que a recorrida deve ser condenada a remover os referidos aparelhos, bem como a pagar aos recorrentes uma indemnização por danos morais, a apurar posteriormente e a sanção pecuniária compensatória deduzida na petição inicial.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Vêm assentes das instâncias os seguintes factos:

1 O prédio urbano sito na Rua Augusto Costa (Costinha), nº..., em Lisboa, descrito na 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o nº 14.8330, a fls. 132-v do livro B-45, encontra-se constituído no regime de propriedade horizontal, desde a fracção A (cave/subcave) à fracção D-12 (12º D).
2 A sua licença de construção obteve o nº 6/C/80 (CML Proc. Nº 1094/94/OB77) e foi paga em 16.01.80.
3 No edifício, a parte interior da parede das varandas é e cor branca e, no exterior de todas as varandas, as cores são cinzento betão ecamurça.
4 Cada andar do edifício é composto de quatro fracções autónomas, duas voltadas a Sul e Poente e duas voltadas a Norte e Nascente.
5 A composição arquitectónica de cada fracção, em todo o prédio, é idêntica em cada andar, com excepção da fracção D, no rés-do-chão, com seis assoalhadas.
6 A Sul, o chão do quarto e da sala é revestido de corticite, sendo de mosaico o da varanda exterior.
7 A Poente, o chão do quarto e da sala é, também, revestido a corticite.
8 Encontra-se inscrita em nome dos autores a fracção L-1 (8º-D), por aquisição constante de escritura de 27.10.83.
9 Aí têm os autores, desde então, a sua residência permanente, com seus dois filhos R...I...S...C...A..., nascida a 17.06.78 e G...M...S...C...A..., nascido em 22.02.80.
10 A fracção P-1 (9º-D) encontra-se inscrita em nome da ré, que aí reside, por a haver adquirido em partilha subsequente a divórcio de J...F...F...de B...
11 As fracções dos autores e da ré são viradas a Sul e Poente.
12 A ré mandou instalar na parte exterior da varanda, sobre a fracção dos autores, quatro aparelhos de ar condicionado: dois na parte voltada a Sul (fachada principal do edifício), sendo um ao centro da varanda da sala dos autores e outro na parede do quarto dos autores; e dois na parte voltada a Poente.
13 Cada aparelho tem 75 cm de comprimento, 50 cm de profundidade e 25 cm de largura.
14 Encontra-se à distância de 18 cm da parede exterior do edifício, suportado por poleias metálicas, de cor escura, metalizada, de 50 cm de comprimento cada, a partir do exterior da parede, em posição horizontal, à distância de 43 cm da parede exterior do edifício.
15 O conjunto de aparelhos e poleias sobressai 50 cm das paredes exteriores e fachadas do edifício.
16 O conjunto de ar condicionado compõe-se de dois aparelhos: um exterior (o condensador) e um interior (o evaporador).
17 Em funcionamento os aparelhos vibram.
18 As varandas da fachada do edifício, a que pertence a fracção dos autores, são pintadas a cor de camurça.
19 As habitações não têm parede na parte que dá acesso às varandas das fachadas, mas tão somente portas de vidro e estores brancos que, quando baixadas, fazem de parede.
20 Os aparelhos de ar condicionado instalados na parte exterior da varanda da fachada são de cor creme.
21 Todas as varandas se encontram envidraçadas, segundo o projecto.
22 Em 25.02.05, foi efectuada pela Direcção Municipal de Conservação e Reabilitação Urbana da Câmara Municipal de Lisboa uma vistoria ao prédio referido em 1, constando a informação resultante desse acto do documento emanado daquela Direcção e junto pelos autores a fls. 73 a 78.
23 As poleias metálicas referidas em 14 sobressaem cerca de 10 cm da frente de cada aparelho de ar condicionado.
24 São fixadas em dois parafusos cada.
25 Os pingos de água que saem dos aparelhos, em dias de vento, podem ser desviadas e cair nas janelas do andar inferior, dos autores, podendo esses pingos conter pó, que possa estar acumulado nos aparelhos.
26 Os pingos de água que saem dos aparelhos, em dias de vento, podem ser desviados e, estando as janelas abertas, podem cair no chão da varanda dos autores que, molhado pode ficar escorregadio.
27 Para a colocação de cada aparelho é necessário fazer quatro furações na parede, duas para a fixação de cada poleia e uma que atravessa completamente a parede, para a ligação doaparelho interior ao exterior.
28 Nas circunstância referidas em 26, a queda dos pingos de água desde os aparelhos até ao chão das varandas é de 2,30 metros.
29 Principalmente no Verão, saem pingos de água pelo dreno do aparelho exterior.
30 No arranque a vibração e o ruído são maiores.
31 O estuque do tecto da casa de banho grande está apodrecido e parcialmente caído, encontrando-se à vista o cimento e ferro em que aquele produto assentava.
32 E o estuque da parede que separa as duas casas de banho encontra-se totalmente apodrecido em cada um dos lados.
33 O estuque do tecto da casa de banho pequena encontra-se igualmente apodrecido.
34 Os danos verificados ascendem a € 500/600,00.
35 O problema das infiltrações no prédio fazia-se sentir desde o início da década de 90.
36 Algumas partes da tela isolante do prédio, que cobria as suas paredes exteriores, apresentavam-se desagregadas e a descolar.
37 As infiltrações resultaram da falta de obras de conservação em momento oportuno, designadamente a substituição da tela isolante e da pluviosidade própria dos invernos.
38 Verificaram-se no final da década de 90 deficiências nas prumadas de esgoto do prédio, constituídas de polietileno, sendo as ligações aos ramais das habitações feitas por soldadura.
39 A conjugação destes dois factores deu lugar a várias roturas nas canalizações do prédio e, consequentemente, a problemas de infiltração em múltiplas fracções.
40 À semelhança do que já grande número de condóminos havia feito, a ré instalou os aparelhos de ar condicionado devido às temperaturas extremamente elevadas no interior da sua habitação durante os meses de Maio a Setembro.
41 Os aparelhos foram adquiridos em 2000 e instalados por uma empresa.
42 Atentas as características do edifício, não era possível instalar aparelhos que não fossem visíveis do exterior.
43 A ré escolheu os que menos perturbassem o equilíbrio estético e arquitectónico do edifício, tendo também em consideração os outros aparelhos de ar condicionado já instalados por outros condóminos.
44 Os aparelhos de ar condicionado foram colocados no tijolo da parede exterior e não na viga de suporte.
45 A instalação de aparelhos de ar condicionado não foi prevista no projecto de arquitectura do edifício, nem foi objecto de pedido de licenciamento, entendendo a Câmara Municipal de Lisboa que “a instalação de aparelhos de ar condicionado nas fachadas/paredes exteriores do edifício tem sido considerado como a colocação de um elemento amovível, não susceptível de licenciamento municipal”.

III
Apreciando

1 Um documento autêntico é aquele que, emanando da entidade competente para o fazer, atesta os actos praticados por essa entidade e aqueles decorrentes das percepções da entidade documentadora, fazendo deles prova plena, sendo que os meros juízos pessoais do documentador não são abrangidos por esta prova plena, conforme os artºs 369º nº 1 e 371º nº 1 do C. Civil.
Um relatório médico, não é feito com base na percepção factual directa do médico, mas sim com base na sua opinião derivada da respectiva competência pericial. O médico não atesta factos, faz diagnósticos. Donde que tal relatório não possa ser considerado um documento autêntico.
Tanto assim, que a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal – artº 389º do mesmo código - .
Por outro lado, não é relevante o facto do médico trabalhar para uma instituição hospitalar pública, porque esse facto não altera a natureza do acto que praticou, nos termos atrás consignados.
Nem o facto do relatório em causa não ter sido impugnado é susceptível de conferir-lhe força probatória plena, uma vez que, na hipótese em apreço, a declaração tem de ser considerada verdadeira, mas os factos que dela derivam não são contrários ao interesse do declarante - artº 376º nºs 1 e 2 do C. Civil - .
Bem andou a Relação ao considerar o referido documento sujeito “à livre apreciação por parte do julgador”.
Note-se que, de qualquer modo, nunca estaria provado o nexo de causalidade entre os problemas psicológicos do autor e a conduta da ré, uma vez que no documento se diz quanto à origem desses males que seriam, “segundo afirma” o próprio autor ,a poluição sonora vinda do andar da ré. Ou seja, não existe prova , mas alegação da parte, sobre tal nexo.
Não havendo qualquer ilegalidade na apreciação das provas, a matéria de facto é, agora, insindicável por parte deste Supremo, tendo de se manter as respostas negativas aos pontos 5º e 6º da base instrutória.

2 Neste recurso, os recorrentes limitam o seu pedido indemnizatório aos danos não patrimoniais. Contudo, os factos demonstradores de tais danos – precisamente os pontos da base instrutória 5º e 6º tratados em 1 – não ficaram demonstrados. Logo não estão provados.

3 Quanto à questão da instalação do ar condicionado nas partes comuns do prédio, consistir numa inovação contrária ao disposto no artº 1425º do C. Civil, concordamos com o consignado em 1ª instância e igualmente subscrito pela Relação:

E, assim, numa leitura actualizada da sociedade, em que os aparelhos de ar condicionado passaram a fazer parte do quotidiano da vida das pessoas, a sua utilização assume, nos dias de hoje, traços de normalidade que se afastam do conceito de inovação.
Fazendo a subsunção ao caso dos autos, temos uma situação de introdução de um elemento novo, tradicionalmente entendido como uma inovação, mas que, numa interpretação actualista, na especificidade do tempo em que é aplicada a lei, considerando a sociedade actual, deixou de corresponder a uma verdadeira inovação.”.

É certo que, para além desses princípios genéricos, haverá que atender ao caso concreto, ressalvando a especial valia arquitéctónica do prédio, como bem se diz em 2ª instância. Com o que concordamos. Não seria aceitável por um saliente de ar condicionado nas janelas ogivais de uma catedral gótica.
Mas a Relação também concluiu que o prédio consistia numa torre algo descaracterizada de pouco relevo no que respeita à sua arquitectura.
Donde que, na esteira de tais entendimentos se possa dizer que não estamos perante uma inovação.

Com o que improcede o recurso.

Pelo exposto, acordam em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 24 de Junho de 2010

Bettencourt de Faria (Relator)
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos