Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3420
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BORGES SOEIRO
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
CONTRATO DE MÚTUO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
FALTA DE CONTESTAÇÃO
DEFESA POR EXCEPÇÃO
VENCIMENTO
INTERPELAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
PROVEITO COMUM DO CASAL
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200611210034201
Data do Acordão: 11/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : I - Autor e ré celebraram um contrato de crédito, entendido como o contrato por meio do qual um credor concede a um consumidor um crédito sob a forma de mútuo, cujo regime legal decorre do DL n.º 359/91, de 21-09, que veio regular novas formas de crédito ao consumo.

II - Não tendo o autor logrado provar que, anteriormente à propositura da acção, tenha interpelado a ré para proceder ao pagamento do valor correspondente a 9 prestações vencidas, a que se arroga direito, só com a citação da ré se deve considerar a mesma interpelada, nos termos do art.805.º, n.º 1, do CC.

III - O disposto no art. 781.º do CC, por não ser uma norma imperativa, pode ser afastado pela livre vontade das partes contraentes.

IV - Resultando da factualidade provada que as partes convencionaram que a falta de pagamento de qualquer das prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações, independentemente de ter havido interpelação, e não tendo surgido oposição na presente acção, logo se constata que o contrato celebrado é válido, já que foi livremente celebrado entre as partes (art. 405.º do CC), sendo certo que a aludida cláusula das Condições Gerais não se inclui em matéria em que supletivamente o legislador quis regular o trato contratual.

V - Existindo e estando provada a vontade das partes no sentido de ter sido celebrado um contrato de mútuo com as condições gerais e específicas constantes no documento que ambas subscreveram, não tendo sido colocado nos autos que o aludido contrato seria um “formulário”, para os fins previstos no art. 8.º, al. d), do DL n.º 446/85, de 25-10, e, não se equacionando, de igual modo, o facto de a recorrida não ter dado o seu consentimento àquilo que foi acordado no contrato de mútuo, já que não foi deduzida qualquer excepção, por falta de contestação, nunca o clausulado firmado pelas partes poderia ter sido colocado em crise, como o foi, pelas instâncias.

VI - Assim, não poderia o julgador ter questionado a validade da eficácia daquela cláusula que, aliás foi firmada previamente à assinatura do contrato, e, que, por não integrar matéria imperativa, estava vedado conhecer, atenta a confissão operada.

VII - Em consonância com os arts. 342.º, n.º 1, e 467.º, n.º 1, al. d), do CPC, incumbe ao credor - que pretende responsabilizar ambos os cônjuges pelo pagamento de dívida contraída apenas por um deles, nos casos previstos na al. d) do n.º 1 do art. 1691.º do CC - articular factos materiais concretos indicadores do destino dado ao dinheiro.

VIII - O conceito de património comum é jurídico, desde logo porque anda associado ao conhecimento da data do casamento e respectivo regime de bens, sabido que é que só se pode falar em bens comuns se o casamento for no regime de comunhão geral ou, sendo-o na comunhão de adquiridos, após a celebração do contrato, não dispensando o silogismo judiciário o recurso à actividade interpretativa (cfr. arts. 1722.º e 1723.º do CC).

IX - Não tendo o autor alegado factos materiais concretos indicativos do proveito comum, terá que improceder o respectivo pedido relativamente ao réu. A tal não obsta a circunstância de os réus não terem contestado, porquanto o alegado na petição inicial não integra matéria de facto passível de ser adquirida pela confissão ficta, prevista no art. 484.º, n.º 1, do CPC. *

* Sumário elaborado pelo Relator.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. O Empresa-A, veio intentar acção declarativa comum com forma ordinária, contra AA e BB, pedindo que sejam condenados, solidariamente entre si, a pagar ao autor a importância de € 17.295,44 acrescida de € 3.032,34 de juros vencidos até 11-12-2002 e de € 121,29 de imposto de selo sobre estes juros e, ainda, os juros que, sobre a quantia de € 17.295,44, se vencerem à taxa anual de 26,12 %, desde 12-12-2002 até integral pagamento, bem como do imposto de selo que, à referida taxa de 4 %, sobre estes juros recair e, ainda, no pagamento das custas, procuradoria e mais legal.

Citados os réus não contestaram.

Tendo em conta o disposto no art.° 484°, n.° 1 do Cód. Proc. Civil, foi proferida sentença que condenou a ré AA a pagar ao autor a quantia de 650.142$00 (€ 3.242,89), correspondente a 9 prestações vencidas (9 x 72.238$00), acrescidas de juros desde a data de vencimento de cada uma delas (no dia 10 de cada mês) até integral pagamento, à taxa convencionada, que é de 22,12 %, acrescida do imposto de selo respectivo, absolvendo-a do restante pedido; e absolveu o réu BB da totalidade do pedido. Mais condenou o autor e a ré AA nas custas, na proporção do respectivo decaimento.

Inconformado apelou o Autor para o Tribunal da Relação de Lisboa, que viria a julgar improcedente a apelação.
De novo, inconformado veio a interpor recurso de revista para este S.T.J., concluindo a sua alegação pela seguinte forma:

1. As Condições Gerais, bem como as Condições Especificas acordadas no contrato de mútuo dos autos, encontravam-se já integralmente impressas quando o 1° R. ora recorrido nele apôs a sua assinatura, não foram inseridas depois da assinatura de qualquer das partes, pelo que não existe qualquer violação do disposto na alínea d) do artigo 8° do Decreto-Lei n.° 446/85, de 25 de Outubro."

2. Nos autos não só nunca se pôs sequer a questão de o contrato dos autos ser ou não – e não o é, designadamente para efeitos do disposto na alínea d) do artigo 8° do Decreto-Lei n.° 446/85 de 25 de Outubro - um formulário como o previsto na dita alínea d) do artigo 8° do Decreto-Lei n.° 446/85 de 25 de Outubro, como – e é isso que interessa – também nunca se pôs a questão de a R. ora recorrida não ter dado – como deu – o seu consentimento aquilo que acordado foi no contrato de mútuo dos autos.

3. Aliás, nenhuma excepção foi deduzida pela R. ora recorrida que nem sequer contestou apesar de ter sido pessoal e regularmente citado, nem por qualquer dos restantes RR.

4. Não é necessária qualquer interpelação para o vencimento imediato nos temos do artigo 781° do Código Civil, no entanto, mesmo que se perfilhe a tese da necessidade de interpelação do credor ao devedor para fazer operar o que se dispõe no dito artigo 781° do Código Civil, é manifesto que no caso "sub judice", atento o expressamente acordado no contrato dos autos, tal interpelação é, sempre, desnecessária para que o vencimento de todas as prestações não pagas do referido contrato se verifique. Tal vencimento é, conforme expressamente acordado, imediato.

5. Não faz qualquer sentido pretender que estejam apenas em divida as prestações de capital não pagas acrescidas os juros de mora à taxa acordada, contabilizados apenas desde 10.04.2002.

6. O artigo 781° do Código Civil é expresso ao estabelecer, que: "Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas."

7. Estamos perante obrigações com prazo certo pelo que o devedor se constitui em mora independentemente de interpelação do devedor ex vi alínea a) do n.° 2 do artigo 805° do Código Civil, o seu vencimento é imediato.

8. Conforme acordado entre as partes, para que todas as prestações do contrato dos autos se vencessem imediatamente - como venceram -, apenas era - como o foi - necessário o preenchimento de uma condição, o não pagamento pelo 1° R. de uma das referidas prestações.

9. Está provado nos presentes autos que o A. na acção, ora recorrente, na acção, ora recorrente, é uma sociedade financeira de aquisições a crédito, constituindo, actualmente uma instituição de crédito.

10. Não existe qualquer taxa juro especificadamente fixada pelo Banco de Portugal para a actividade de financiamento de aquisições a crédito, isto é, para a actividade exercida pela A., ora recorrente.

11. A taxa de juro — 22,12% - estabelecida por escrito para o financiamento de aquisição a crédito à R., ora recorrida, do veiculo automóvel referido nos autos é inteiramente válida.

12. É admissível a capitalização de juros por parte das instituições de crédito ou parabancárias que incluem no capital já vencido, sobre o qual incidem juros de mora, salvo se tal capitalização incidir sobre juros correspondentes a um período inferior a três meses.

13. Não é pois aplicável no contrato de mútuo dos autos o disposto no artigo 560° do Código Civil.

14. Ressalta do contrato de mútuo de fls. , que os juros capitalizados respeitam ao período de seis anos.

15. Neste sentido decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa no seu recentíssimo acórdão, no processo n.° 1512/06, da 2ª Secção, de 30.03.2006, ao referir, que: Por aqui se vê que das disposições legais aplicáveis in casu se poderá concluir que quando as partes consignaram que a falta de pagamento de uma prestação implicaria o vencimento das restantes, admitiram que o vencimento abrangesse os furos remuneratórios, porque estes estão incluídos no conceito de prestação e porque a Lei permite, nestas circunstâncias, a capitalização de juros, neste sentido cfr os AC STJ de 18 de Dezembro de 2003 (Relator Cons Araújo de Barros) e de 22 de Maio de 2005 (Relator Cons. Pinto Monteiro), in www.dgsi. pt.
Por outra banda o artigo 9°, n.° 1 do DL 359/91 de 21 de Setembro (normativo este de formulação idêntica ao artigo 1147° do CCivil) predispõe que «O consumidor tem o direito a cumprir antecipadamente, parcial ou totalmente, o contrato de crédito, sendo-lhe calculado o valor do pagamento antecipado do montante em divida com base numa taxa de actualização, que corresponderá a uma percentagem mínima de 90% da taxa de juros em vigor no momento da antecipação para o contrato em causa». Parece ser de aplicar aqui as considerações doutrinárias de Pires de Lima e Antunes Varela ao artigo 1147° do CCivil (Código Civil Anotado, vol II, 4° edição, 772, «(...) No mútuo oneroso, o prazo presume-se estipulado em beneficio de ambas as partes ... A experiência confirma, na generalidade dos casos, o raciocínio que está na base da presunção legal. O mutuário tem interesse em aproveitar-se da coisa durante o prazo estipulado; o mutuante tem, por seu turno, interesse em manter, durante o prazo aplicados os seus capitais, recebendo por eles os interesses convencionados... o direito conferido ao mutuário de antecipar o pagamento, desde que satisfaça os juros por inteiro, harmoniza-se com o que acaba de ser dito acerca do interesse do mutuante. Desde que tal interesse reside na fruição da coisa mutuada, os seus direitos ficam assegurados, se o mutuário satisfizer os juros por inteiro. (...)». Neste caso, de antecipação do pagamento por banda do mutuário, quis-se salvaguardar o interesse do mutuante, fazendo-lhe atribuir os juros remuneratórios do capital. Não há razões que nos levem a uma solução diversa, na situação em que o mutuante não perde o beneficio de um prazo, estabelecido também em seu favor, impondo-lhe a sua perda apenas porque ele pretende reaver o montante mutuado e por facto imputável ao mutuário, que deixou de satisfazer pontualmente as prestações devidas. A não ser assim, numa sociedade como a actual, em que o crédito ao consumo assumiu o controlo da vida dos cidadãos, em que tudo se compra a prestações, está aberta a via para que os consumidores deixem de satisfazer pontualmente as suas obrigações, ao invés de, podendo, anteciparem o seu pagamento, pois ao fazê-lo estarão a ser beneficiados. Há, assim, que interpretar extensivamente aquele artigo 9° do DL 351/91, no sentido de que, se a divida se vencer nos termos do artigo 781º do C.Civil (nesta interpretação actualista da norma), o mutuante terá direito aos juros remuneratórios e consequentemente às quantias peticionadas e devidamente liquidadas em sede de Petição Inicial.

16. A capitalização de juros é, pois, inteiramente válida, no caso do contrato dos autos.

17. É, pois, manifesta a falta de razão da sentença confirmada pelo Acórdão recorrido, ao julgar, como o fez, parcialmente improcedente e não provada a presente acção, o Sr. Juiz a quo violou, interpretou e aplicou erradamente não só o previsto na dita alínea d) do artigo 8° do Decreto-Lei n.° 446/85 de 2.5 de Outubro, como também, violou o disposto nos artigos 560° e 781° do Código Civil, nos artigos 5°, 6° e 7°, do Decreto-Lei 344/78, de 17 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 83/86, de 6 de Maio, o artigo 17 ° do Decreto-Lei 32/89, de 25 de Janeiro, o artigo 2° do Decreto-Lei 49/89, de 22 de Fevereiro, os artigos 1° e 2° do Decreto-Lei 206/95, de 14 de Agosto, e o artigo 3°, alínea I, do Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro.

18. O Acórdão recorrido errou ao considerar que o A., em 1 a instância, ora recorrente, não logrou provar o casamento dos RR., em 1ª instância, ora recorridos, e, assim, na pretensa falta de demonstração do proveito comum do casal dos RR, ora recorridos, violando assim o disposto no artigo 484°, n° 1 do Código de Processo Civil.

19. Com efeito, no artigo 17° da petição inicial de fls. , o A. na acção, ora recorrente, alegou expressamente que o empréstimo concedido pelo dito recorrente á R. mulher, ora recorrida, - que se destinava à aquisição de um veículo automóvel como provado está - reverteu em proveito comum do casal formado pelos RR. na acção, ora recorridos, tratando-se de expressão complexa que engloba tanto matéria de facto como de direito e que, no caso dos autos, é matéria de facto.

20. Os recorridos, foram pessoal e regularmente citados para os termos da presente acção, não tendo contestado a mesma, pelo que os RR, ora recorridos, não impugnaram, o seu casamento, antes pelo contrário, confessaram-no e não
impugnaram também o facto de o empréstimo concedido pelo A. na acção, ora recorrente, à ora recorrida mulher ter revertido em proveito comum do casal formado por ambos os RR., pelo que toda essa matéria de facto se encontra provada, face ao preceito imperativo do artigo 484°, n° 1, do Código de Processo Civil.

21.O recorrido marido é, pois, solidariamente responsável pelo pagamento das importâncias reclamadas nos presentes autos, atento a importância mutuada ter revertido para o património comum do casal formado pelos recorridos - atenta aquisição de veículo automóvel -, como ressalta da matéria de facto invocada no artigo 17° da petição inicial que, por não impugnada, se tem de considerar confessada.

22. O Acórdão recorrido ao absolver o recorrido marido com fundamento na não demonstração quer do casamento dos RR, ora recorridos, quer do proveito comum, violou o disposto no artigo 484°, n° 1, do Código de Processo Civil, e no artigo 1.691°, n° 1, alínea c) do Código Civil, questão de que no caso dos autos este Tribunal pode conhecer de harmonia com o disposto no artigo 722°, n° 2, parte final do Código de Processo Civil.

Não foram produzidas contra alegações.
Foram colhidos os vistos.

Decidindo.

2. Foi considerada como provada pelas Instâncias, a seguinte factualidade:

1 - 0 A., no exercício da então sua actividade comercial, e com destino, segundo informação então prestada pela Ré Raquel Ferreira, à aquisição de um veículo automóvel da marca BMW , modelo 318 is, com a matricula BS, por contrato constante de título particular datado de 10 de Março de 2001, concedeu á dita Ré AA crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo assim emprestado á dito R. a importância de Esc. 2.540.000$00 - que ao presente corresponde a euros 12.669,47;
2 - Nos termos do contrato assim celebrado entre o A. e a referida Ré AA, aquele emprestou a esta a dita importância de Esc.2.540.000$00 - que ao presente corresponde a Euros 12.669,47, com juros à taxa nominal de 22,12% ao ano, devendo a importância do empréstimo, e os juros referidos, bem como o prémio de seguro de vida, serem pagos, nos termos acordados, em 60 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10 de Abril de 2001 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes;
3 - De harmonia com o acordado entre as partes - vidé citado doc. n° 2 -, a importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga - conforme ordem irrevogável logo dada pela referida Ré AA para o seu Banco - mediante transferências bancárias a efectuar , aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações, para conta bancária logo indicada pelo ora A.;
4 - Foi acordado entre as partes que a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.
5 - Mais foi acordado entre A. e a referida R. que em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada - 22,12% - acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 26,12%.
6 - Sucede que, a referida Ré AA, das prestações referidas, não pagou a 13ª e seguintes, com vencimento a primeira em 10 de Abril de 2002, vencendo-se então todas.
7 - A referida R mulher não providenciou às transferências bancárias referidas - que não foram feitas - para pagamento das ditas prestações, nem a referida Ré AA, ou quem quer que fosse por ela, as pagou ao A.
8 - Conforme expressamente consta do referido contrato, o valor de cada prestação era de Esc. 72.238$00 (que ao presente corresponde a Euros 360,32).

3. — Análise do objecto da revista —

Constitui objecto da revista, não obstante o alegado pelo recorrente, para este Supremo, tão somente a questão relativa a) à temática do vencimento de todas as prestações posteriores ao não pagamento da 13ª prestação, por desnecessidade de interpelação nos termos do art. 781º do C.Civil, conjugada com a cláusula 8ª das Condições Gerais do contrato e b) a atinente à dívida peticionada ter sido contraída tendo em vista o proveito comum do casal.
Com efeito, todos os outros pontos constantes da alegação da revista, com incidência na problemática dos juros, não são de conhecer, por não terem sido objecto de decisão no recurso de apelação, pela Relação, e, assim, serem de considerar questões novas.

Vejamos.
Quanto à primeira questão, verifica-se que resulta do circunstancialismo fáctico provado que o Autor e a Ré celebraram um contrato de crédito, entendido como o contrato por meio do qual um credor concede a um consumidor um crédito sob a forma de mútuo - art.° 2.°, alínea a) do Decreto-Lei n.° 359/ 91, de 21 de Setembro.
O regime legal do contrato de mútuo em causa decorre do Decreto-Lei n.° 359/91, de 21 de Setembro, que veio regular novas formas de crédito ao consumo.
O dissídio situa-se, conforme já se assinalou, no entendimento perfilhado na 1.ª Instância, e acolhido no acórdão recorrido, de que:
O A. não logrou provar que, anteriormente à propositura da acção, tenha interpelado a Ré para proceder ao pagamento dos 650.142$00 (€ 3.242,89), correspondente a 9 prestações vencidas (9 x 72.238$00) a que se arroga direito.
Nessa medida, só com a citação da Ré se deve considerar a mesma interpelada, nos termos do artigo 805.°, n.° 1 do Código Civil.
Ficou, no entanto, também provado que, conforme também expressamente acordado, a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.
Esta cláusula contratual corresponde ao estatuído no artigo 781.° do Código Civil, segundo o qual "se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas."

Este preceito legal não preconiza o vencimento imediato, mas apenas que o vencimento das prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede ao credor, não prescindindo consequentemente da interpelação do devedor.

A interpelação do devedor para que cumpra imediatamente toda a obrigação (realizando todas as prestações restantes) constitui a manifestação da vontade do credor em aproveitar o benefício que a lei lhe atribui (1).

Isto é, torna-se necessário que o credor interpele o devedor (para pagar a totalidade da dívida) para que se dê o vencimento nos termos gerais que se inferem do artigo 805.°, n.° 1 do Código Civil.
O vencimento imediato significa exigibilidade imediata e não que o prazo de pagamento de todas as prestações seja o da primeira prestação em falta. (2)

Ora, o Autor não logrou provar que, anteriormente à propositura desta acção, tenha interpelado a Ré para proceder ao pagamento que ora vem exigir.
No entanto, ficou provado que as partes convencionaram que a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.
Ora, resultando tal facto da factualidade dada como provada e não tendo surgido oposição na presente acção logo se constata que o contrato celebrado é válido, já que foi livremente celebrado entre as partes (art. 405º do C.Civil), sendo certo que a aludida cláusula 8ª das Condições Gerais não se inclui em matéria em que supletivamente o legislador quis regular o trato contratual.
Dito doutra maneira, o disposto no art. 781º do C.Civil, na interpretação que lhe foi dada supra, por não ser uma norma imperativa pode ser afastada pela livre vontade das partes contraentes.
Como sustenta Mário Júlio de Almeida Costa (3) esta disposição legal sofre de limitação quanto à venda a prestações, já que o legislador optou por sancionar uma solução diversa, baseada na ideia de protecção dos consumidores que utilizem esse contrato, nos termos do que se dispõe no art. 934º do mesmo Código.
Assim, este normativo é imperativo, contrariamente o constante do art. 781º já não o será, pelo que os contraentes podem-no afastar livremente, nos termos do art. 405º do C.Civil.
Consequentemente, as partes ao clausularem que as diversas prestações se venceriam, desde que uma delas não fosse paga, independentemente de ter havido interpelação, não ofende qualquer norma imperativa, pelo que a validade do contrato celebrado não deveria ter sido colocado em crise, conforme foi pelas Instâncias.
Com efeito, existindo e estando provada a vontade das partes no sentido de ter sido celebrado um contrato de mútuo com as condições gerais e específicas constantes no documento que ambas subscreveram, não tendo sido colocada nos autos que o aludido contrato seria um “formulário”, para os fins previstos no art. 8º al. d) do Dec. – Lei nº 446/85 de 25 de Outubro, e, não se equacionando, de igual modo, o facto de a recorrida não ter dado o seu consentimento aquilo que foi acordado no contrato de mútuo, já que não foi deduzida qualquer excepção, por falta de contestação, nunca o clausulado firmado pelas partes poderia ter sido colocado em crise, como o foi, pelas Instâncias.
Efectivamente, tem-se presente toda a problemática atinente às cláusulas contratuais gerais, maxime ao “controlo da inclusão”, de que fala Mário Júlio de Almeida Costa (4), nomeadamente que pertence, nos termos do art. 5º nº 3 do citado Dec.-Lei nº446/85, ao contraente que submete a outrem as cláusulas contratuais gerais, o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva, sendo que esse dever de comunicação é uma obrigação de meios no dizer do mesmo Mário Júlio de Almeida Costa e Menezes Cordeiro (5), mas o certo é que, por confissão, ficou provado que as partes convencionaram que a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações.
Assim, não poderia o julgador ter questionado a validade da eficácia daquela cláusula que, aliás foi firmada previamente à assinatura do contrato, e, que, por não integrar matéria imperativa, estava vedado conhecer, atenta a confissão operada.
Não seria, por esta forma, necessária qualquer interpelação para que todas as prestações do contrato em análise nos presentes autos se vencessem, face ao não pagamento de uma delas – o seu vencimento é, pois, imediato.
Procede, nesta parte, a revista.

No que se reporta, agora à dívida peticionada ter sido contraída tendo em vista o proveito comum do casal,
Diga-se, em primeira abordagem, que não se concorda com o Acórdão recorrido, quando sustentou da necessidade da junção aos autos da certidão de casamento dos Réus por se encontrar em debate do proveito comum do casal.
Muito sucintamente dir-se-á que este STJ (Acórdão de 15 de Março de 2005 (6) e 28.5.2006, Proc. 061222) vem entendendo, que " em acção de divida dirigida contra marido e mulher, na qual não resulte impugnado o estado civil dos Réus, como sendo casados entre si, não é exigível que o Autor faça prova de tal facto através de documento autêntico, já que tal estado é apenas um dos fundamentos do pedido e não o próprio objecto da acção".
Este entendimento é actual e de acolher sem reservas.

No que se refere ao proveito comum do casal, “quo tale” é de assinalar que:

Nos termos do Artigo 1691.°, n.°1, alínea d) do Código Civil, são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração.
A aplicação deste princípio, implica, em primeiro lugar, considerar:
Que a administração dos bens do casal cabe normalmente ao marido e à mulher (artigo 1678.° do Código Civil);
Se a dívida está conexionada com os bens de que o cônjuge, que a contraiu, tem administração (cf. artigos 1678.° e 1679.° do Código Civil);
E se o cônjuge agiu nos limites dos seus poderes de administração (cf. Artigo 1678.°, n.° 2 do Código Civil).

Obtida uma conclusão positiva sobre os dois últimos pontos acabados de referir, terá que se indagar, agora, sobre uma outra vertente relativa ao proveito comum porquanto:
O proveito comum não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar (Artigo 1691.º, n.° 3 do Código Civil).
O proveito comum afere-se, não pelo resultado (positivo ou negativo) mas pela aplicação da dívida, isto é, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu.
Exige-se uma intenção objectiva de proveito comum, isto é, que a dívida se possa considerar aplicada em proveito comum aos olhos de uma pessoa média, ou seja, à luz das regras da experiência e das probabilidades normais.

Conforme referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (7, cuja obra vimos a seguir, de perto, " (determinar se uma dívida foi aplicada em proveito comum implica, ao mesmo tempo, uma questão-de-facto (averiguar o destino dado ao dinheiro) e uma questão-de­direito (decidir sobre se, em face desse destino, a dívida foi ou não contraída em proveito do casal).
Por isso, não deve quesitar-se se a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal; deve antes perguntar-se que aplicação teve a quantia proveniente da dívida."

A distinção entre o que é matéria de facto e o que é matéria de direito é objecto de imensa doutrina e jurisprudência, cuja enunciação seria fastidiosa.

Em síntese, segundo Rodrigues Bastos (8), factos são as ocorrências da vida real, os eventos materiais e concretos, as mudanças operadas no mundo exterior, que podem ser conhecidas sem referência a qualquer critério fixado pela ordem jurídica. Por vezes, estes factos podem revestir complexidade, por encerrarem já juízos de valor, por constituírem a conclusão de um silogismo primário, mas não são ainda conceitos jurídicos, por esse juízo de valor não ser efectuado à luz das normas e critérios de direito. Neste caso, o facto complexo ou conclusivo não deve ser respondido pelas testemunhas a quem seriam postos – e logo não devem ser incluídos na base instrutória –, mas deve ser o tribunal a tirar essa conclusão dos factos materiais mais lineares que podiam ser colocados às testemunhas.

A divisão entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em larga medida dos termos da causa e são inclusivamente de equiparar a factos os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido.

Pode-se dizer que cabe à matéria de facto determinar o que aconteceu e à matéria de direito a subsunção da situação concreta apurada ao tratamento jurídico que no caso colha ou caiba. Constitui matéria de direito tudo o que é referido na lei, com um sentido especial, diferente ou mais preciso que o corrente.

No caso dos autos, os factos terão de traduzir o fim ou intenção (objectiva) com que foi contraída a dívida.

Em consonância com os Artigos 342.°, n.°1 e 467.°, n.° 1, alínea d) do Código de Processo Civil, incumbe ao credor – que pretende responsabilizar ambos os cônjuges pelo pagamento de dívida contraída apenas por um deles, nos casos previstos na alínea d) do n.°1 do Artigo 1691.° do Código Civil – articular factos materiais concretos indicadores do destino dado ao dinheiro (9).
Com efeito, decorre do artigo 664.° do Código de Processo Civil, que o juiz não pode servir-se, numa acção, de factos não alegados.
Em consequência do que se disse atrás e reafirmando a tese defendida no acórdão recorrido, não se pode extrair relevância à alegação do A. de que o veículo se destinou ao património comum do casal.
O conceito de património comum é jurídico, desde logo porque anda associado ao conhecimento da data do casamento e respectivo regime de bens, sabido que é que só se pode falar em bens comuns se o casamento for no regime de comunhão geral ou, sendo-o na comunhão de adquiridos, após a celebração do contrato, não dispensando o silogismo judiciário o recurso à actividade interpretativa (cf. artigos 1722.° e 1723.° do Código Civil).

Assim, não tendo o A. alegado factos materiais concretos indicativos do proveito comum, terá que improceder o respectivo pedido relativamente ao Réu.


A tal não obsta a circunstância de os Réus não terem contestado, porquanto o alegado na petição inicial não integra matéria de facto passível de ser adquirida pela confissão ficta, prevista no artigo 484.°, n.° 1 do Código de Processo Civil — cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2004, Proc. n.° 2730/04, (www.dgsi.pt\jstj), de 2.11.2004, Revista n.° 2982/04, de 12.7.2005, Proc. n.° 1710/05, (www.dgsi.pt\jstj), de 12.1.2006, Proc. n.° 3427/05 e de 7.3.2006, Proc. n.° 38/06, (www.dgsi.pt\jstj).

Improcede, pois, nesta parte, a revista.

4. Nestes termos, acordam, no Supremo Tribunal de Justiça, em conceder, parcialmente a revista, nos termos expostos, pelo que se julga acção procedente, por provada, relativamente à Ré, condenando-se a mesma nos pedidos contra si deduzidos e julga-se a mesma acção improcedente, por não provada, relativamente ao Réu, pelo que se absolve o mesmo das pretensões contra si formuladas.

Custas por recorrente e recorrida, na proporção de metade.

Lisboa, 21 de Novembro de 2006

Borges Soeiro (Relator)

Faria Antunes

Sebastião Póvoas

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(1)Antunes Varela, in” Das Obrigações em Geral”, II vol., pp. 53/54 e Mário Júlio de Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 7ª ed. Pag. 914 e segs.

(2) Menezes Cordeiro, in “ Direito das Obrigações”, II vol., p. 193 e Ac. do STJ, de 19 de Junho de 1995, CJ-STJ, Ano III, Tomo 2, p. 132.
(3) “Ob. citada”, pag. 914.
(4) In, “Síntese (…)da Cláusulas Contratuais Gerais”, 2ª ed., pag.22.
(5) In, “Cláusulas Contratuais Gerais”, pag. 25.
(6) In,”C.J./S.T.J.”, 2005, 1º, pag. 132, onde, com muito detalhe, coloca a questão e a decide, com justeza, o que nos permite, com proveito, remeter para esse douto aresto, sem necessidade de desenvolvermos os argumentos aí explanados.
(7) “Curso de Direito de Família”, I, 2ª ed. pag. 412
(8) In, “Notas ao CPC”, vol. II, p. 80.
(9) Acs. do S.T.J. de 4.10.2001 e 19.10.2004, in “www. dgsi.pt” (net)