Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2616/07.5TVPRT-A.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
OBRIGAÇÃO EXEQUENDA
PACTO DE PREENCHIMENTO
LEGITIMIDADE DO AVALISTA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. A livrança em branco destina-se a ser preenchida pelo seu adquirente, sendo essa aquisição acompanhada da atribuição de poderes para o seu preenchimento, o chamado pacto ou contrato de preenchimento.
À livrança em branco, de acordo com o disposto no art. 10º, aplicável por força do estatuído no art. 77°, ambos da LULL, é imprescindível que dela conste a assinatura de, pelo menos, um dos obrigados cambiários e que essa assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiaria.
2. Como o regime da obrigação cartular é distinto dos demais negócios jurídicos, nele sobressaindo os critérios da incorporação da obrigação no título, literalidade, em que o título se define pelos exactos termos que dele constem, autonomia do direito do portador legítimo do título e abstracção em que a existência e validade da obrigação prescinde da causa que lhe deu origem, basta à execução a não demonstração pelo demandado de ter sido incumprido o pacto de preenchimento.
3. O aval configura-se como uma garantia da obrigação cambiária, destinando-se a garantir o seu pagamento.
O avalista não é sujeito da relação jurídica estabelecida entre o portador e o subscritor da livrança, mas tão só sujeito da relação subjacente ao acto cambiário do aval. A obrigação do avalista, como obrigação cambiaria, é autónoma e independente da do avalizado, mantendo-se mesmo no caso da obrigação por ele garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vicio de forma –art. 32º LULL.
4. Tendo o embargante a qualidade de avalista, incumbia-lhe alegar e provar factos que lhe permitissem invocar o preenchimento abusivo, designadamente que interveio no pacto de preenchimento, onde então lhe seria possível questionar a obrigação exequenda, afirmando nomeadamente a sua inexistência por pagamento das quantias mutuadas (art. 342°, nº 2 C.Civil). É que esta alegação desempenharia a função de excepção no confronto com o direito que o exequente pretende fazer valer na execução, assim fazendo uma oposição de mérito à execução.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, veio o executado AA, a 28 de Outubro de 2002, deduzir embargos de executado contra o exequente BANCO BB, S.A., com o fundamento de que inexiste a obrigação cujo cumprimento a livrança dada à execução visava garantir, pelo que se apresenta abusivo o seu preenchimento.

Contestou o exequente/embargado, alegando que as remessas de exportação que originaram o preenchimento da livrança não foram liquidadas.

Saneado o processo e fixados os factos considerados assentes e os controvertidos, prosseguiu o processo para julgamento.
Na sentença, subsequentemente proferida, foram os embargos julgados improcedentes.

Inconformado com o assim decidido, apelou o executado/embargante, mas sem sucesso, porquanto o Tribunal da Relação do Porto julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

Ainda irresignado recorre agora de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela procedência dos embargos.

Contra-alegou o exequente/embargado em defesa da manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir

II. Âmbito do recurso

A- De acordo com as conclusões, a rematar as respectivas alegações, o inconformismo do recorrente radica, em síntese, no seguinte:

1- Para que a livrança possa ser título executivo com base no disposto no art. 46º al. c) C.Pr.Civil, importa que do título conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas.

2- Ora, a livrança dada à execução foi assinada pelos obrigados, em branco, isto é, sem que, aquando da aposição das assinaturas, estivesse inscrito o valor que a subscritora se obrigava a pagar e pelo qual os avalistas garantiriam o pagamento.

3- Portanto, no momento da subscrição do título, os que nele figuram como obrigados não se constituíram como tal em obrigação pecuniária de montante determinado.

4- Não se poderá assim considerar preenchido o segundo dos requisitos previstos na al. c) daquele art. 46º, na medida em que, quando o banco exequente preencheu a livrança pelo montante de que ele próprio entendeu ser credor, já todas as assinaturas dos obrigados estavam apostas.

5- Logo, nem a subscritora nem qualquer dos avalistas reconheceu a obrigação de pagar aquela quantia em concreto.

6- Assim sendo, não há fundamento para, ao abrigo do disposto no art. 342°, nº 2 C.Civil, ser exigível ao ora recorrente a prova de facto extintivo de obrigação que nunca foi reconhecida pelos obrigados, não resultava do título aquando da sua subscrição por estes e que nunca foi provada.

7- Depois, porque nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238°, n° 1 C.Civil), não pode, por isso, a declaração negocial constituída pelo aval ser interpretada no sentido de que era aceite o pagamento da importância que veio a constituir o pedido executivo.

8- Não se pode considerar, tal como o fizeram as instâncias, que a existência da livrança nas condições descritas e apreciadas faz presumir a existência do crédito no montante que ali for expresso, sob pena de subversão da ratio da protecção legalmente dada a este tipo de operações.

9- Do título e da posição das partes nos articulados, resulta provado que as assinaturas apostas no espaço destinado ao aval foram apostas pelos avalistas, os quais se dispuseram a prestar garantia por eventuais débitos, definidos na alínea B) dos factos assentes e, como tal, assim entregaram a livrança à exequente.

10- Como para além disso nada mais se presume, não há fundamento para que se considere incumbir ao apelante a prova da inexistência do crédito.
11- Aplicável, pois, a regra geral do art. 342°, n° 1 C.Civil, incumbindo à exequente o ónus da prova da existência do crédito que invoca, pelo que, por essa vi, ou pela aplicação do disposto no n° 1 do art. imediato, se trata aqui de oposição à execução análoga a acção de simples apreciação negativa.

Mesmo que assim não acontecesse,

12- O acórdão recorrido considera também que os embargos deduzidos não poderiam proceder, por estar vedado ao embargante invocar violação da convenção de preenchimento para se desonerar da obrigação de pagamento, ou seja, que o embargante careceria de legitimidade para deduzir oposição por embargos.

13- Porque esta excepção não foi oportunamente suscitada e porque não é de conhecimento oficioso, não se podia dela tratar.

14- De qualquer modo estamos no domínio das relações imediatas e sabendo-se que o embargante, como gerente da sociedade à data da emissão do título, tendo permanecido nessa qualidade na data que veio a ser inscrita como de emissão, sendo que, com a mais elementar e notória normalidade neste tipo de negócios, as operações bancárias acordadas e a garantia do seu cumprimento foram negociadas globalmente, tendo o banco exigido para a operação o aval e tendo os avalistas sabido de tal exigência e prestado o seu aval nessa conformidade, pode ele opor ao portador o preenchimento abusivo da livrança.

15- Não poderá o embargante ver inviabilizada a sua pretensão por ilegitimidade não invocada por quem o poderia ter feito e pela não demonstração de factos que apenas aquela invocação poderia ter trazido a juízo, estando a sua legitimidade declarada em despacho saneador transitado.

16- O acórdão recorrido violou entre outras, as normas dos arts 45°, n° 1, 46°, asl. c), 489° 664°, 815°, C.Pr.Civil, 238°, 342° e 378° do Código Civil.


B- Face ao teor das conclusões formuladas, são, no essencial, duas as verdadeiras questões controvertidas que se colocam:
- inexistência da obrigação exequenda;
- legitimidade do embargante para invocar a violação do pacto de preenchimento.


III. Fundamentação


A- Os factos

No acórdão recorrido foram dados como assentes os seguintes factos:

1- A embargada/exequente é portadora de uma livrança subscrita pela T.......s – Indústria de Calçado, Ldª, e avalizada pelos executados que assinaram a mesma na sua face, com o valor de 34.615.150$00 ( € 172.659,64 ) e vencida em 19 de Outubro de 2001.

2- Esta livrança foi entregue à embargada/exequente em branco em garantia e como caução de financiamentos concedidos por esta à subscritora na modalidade de “desconto e abonos sobre letras e remessas documentárias sobre o estrangeiro; desconto e avanços sobre créditos documentários de exportação; negociação e avanço sobre cheques em moeda estrangeira.

3- Os clientes da T......s – Indústria de Calçado, Ldª pagaram todas as respectivas facturas por transferência de fundos efectuada para a conta bancária da beneficiária dos adiantamentos, domiciliada no Banco embargado com o nº 00000000000, junto do balcão de S. João da Madeira.

B- O direito

1. inexistência da obrigação exequenda

1.1- Suporta o embargante o seu recurso, como argumento principal, no facto de, ao subscrever a livrança, não ter reconhecido a obrigação de pagar a quantia agora dela constante, pela simples razão de que essa quantia não constava ainda do documento, não preenchendo, por isso, a livrança os requisitos de título executivo.

A livrança dada à execução foi subscrita pela T...... – Indústria de Calçado, Ldª, a favor do embargado/exequente Banco BB, S.A., tendo os executados, entre eles o embargante, dado o seu aval à subscritora, num momento em que esta era uma livrança em branco, por lhe faltarem alguns dos requisitos enumerados no art. 75º Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, designadamente data de vencimento e o respectivo montante.
A livrança em branco destina-se a ser preenchida pelo seu adquirente, sendo essa aquisição acompanhada da atribuição de poderes para o seu preenchimento, o chamado pacto ou contrato de preenchimento.
O contrato de preenchimento é, na definição que dele nos dá Abel Pereira Delgado (1), o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiaria, tais como, a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc.
E este contrato tanto pode ser expresso - quando as partes estipularam os termos concretos em que seria efectuado - como tácito - quando está implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título.
O título deverá ser preenchido de acordo com essas cláusulas negociais, sob pena de se ter como abusivo o seu preenchimento.

A livrança em branco é expressamente admitida pela LULL, como ressalta do art. 77º, II.
À livrança em branco, de acordo com o disposto no art. 10º, aplicável por força do estatuído nesse art. 77º, é imprescindível que dela conste a assinatura de, pelo menos, um dos obrigados cambiários e que essa assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária.
E como o regime da obrigação cartular é distinto dos demais negócios jurídicos, nele sobressaindo os critérios da incorporação da obrigação no título, literalidade, em que o título se define pelos exactos termos que dele constem, autonomia do direito do portador legítimo do título e abstracção em que a existência e validade da obrigação prescinde da causa que lhe deu origem, basta à execução a não demonstração pelo demandado de ter sido incumprido o pacto de preenchimento.

A presente livrança foi entregue à embargada/exequente em branco em garantia e como caução de financiamentos concedidos por esta à subscritora na modalidade de “desconto e abonos sobre letras e remessas documentárias sobre o estrangeiro; desconto e avanços sobre créditos documentários de exportação; negociação e avanço sobre cheques em moeda estrangeira, limitando-se o recorrente, de acordo com os factos apurados, a avalizar o seu pagamento.
Segundo o art. 30º LULL, aplicável por força do estatuído no art. 77º do mesmo diploma, o aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra (ou livrança) garante o pagamento desse título, por parte de um dos respectivos subscritores.
O aval configura-se como uma garantia da obrigação cambiária, destinando-se a garantir o seu pagamento.
O avalista não é sujeito da relação jurídica estabelecida entre o portador e o subscritor da livrança, mas tão só sujeito da relação subjacente ao acto cambiário do aval. A obrigação do avalista, como obrigação cambiária, é autónoma e independente da do avalizado, mantendo-se mesmo no caso da obrigação por ele garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma -art. 32º LULL.

O embargante/executado ao apor a sua assinatura na livrança e com o objectivo de garantir o seu pagamento por parte da subscritora, tornou-se responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, garantindo a obrigação do beneficiário avalizado.
Por isso e dadas as características da obrigação cartular, o embargante assumiu o encargo de satisfazer a quantia titulada pelo título dado à execução, mesmo que essa quantia só lhe tenha sido aposta num momento ulterior, que, como referido, é possível na livrança em branco.


1.2- Não obstante se dever considerar que se situam no plano imediato as relações entre o avalista e o beneficiário, mas porque o avalista não é sujeito material da relação contratual, relação subjacente, não pode opor ao portador da livrança a excepção de preenchimento abusivo. Como se afirma no ac. STJ, de 2004/11/11(2)j , os embargantes, na sua qualidade de meros avalistas, que não na de sujeitos materiais da relação contratual (relação subjacente), jamais poderiam «a se» opor à entidade bancária exequente, ora recorrida, a excepção do preenchimento abusivo do título. Com efeito, não eram sujeitos da relação jurídica de mútuo estabelecida entre a firma subscritora e a entidade exequente, e só uma tal relação legitimaria uma conjectural oposição, quiçá por pretenso abuso de preenchimento.
A qualidade de avalista, mero garante da promessa de pagamento da livrança e estranho à relação subjacente, não legitima a oponibilidade da excepção de preenchimento abusivo para com o beneficiário da livrança (3) .
Como se está perante uma execução proposta pelo beneficiário da livrança, subscrita sem a data de vencimento e sem o montante respectivo, em que apenas é invocada a relação cartular, e tendo o embargante a qualidade de avalista, incumbia-lhe alegar e provar factos que lhe permitissem invocar o preenchimento abusivo, designadamente que interveio no pacto de preenchimento, onde então lhe seria possível questionar a obrigação exequenda, afirmando nomeadamente a sua inexistência por pagamento das quantias mutuadas (art. 342º, nº 2 C.Civil). É que esta alegação desempenharia a função de excepção no confronto com o direito que o exequente pretende fazer valer na execução, assim fazendo, como bem se refere no acórdão recorrido, uma oposição de mérito à execução.

Uma vez que o embargante não invocou quaisquer factos que lhe permitissem questionar o preenchimento abusivo da livrança, não pode ele atacar, não tem legitimidade para trazer à colação a violação do pacto de preenchimento.

2. legitimidade do embargante

Subsidiariamente, vem o embargante insurgir-se contra o acórdão recorrido quando nele lhe é retirada legitimidade para invocação da violação do pacto de preenchimento, com o argumento de que esta excepção não foi oportunamente invocada, não é de conhecimento oficioso e foi assegurada definitivamente no saneador a sua legitimidade.

Como decorre do que a este propósito se deixou referido, o avalista apenas tem legitimidade para discutir as questões relacionadas com o preenchimento abusivo se tiver tido intervenção no pacto de preenchimento e se se estiver no plano das relações imediatas. E isto pela simples razão de que o avalista não é sujeito material da relação contratual, relação subjacente, mas apenas da relação cartular.
Nessa medida vedado lhe está discutir a relação subjacente.

Diga-se, porém, que a legitimidade de que aqui se trata e que lhe confere a possibilidade de discutir ou não (conforme seja ou não estranho ao pacto de preenchimento) a relação subjacente é a legitimidade substantiva e não a legitimidade enquanto pressuposto processual.
A primeira, saber se se tem efectivo direito ao pretendido, isto é, legitimidade para fazer valer esse tipo de direito, não se confunde com a legitimidade ad causam, saber se tem interesse directo em demandar (art. 26º C.Pr.Civil.
E do que aqui se trata quando se fala em legitimidade para atacar a relação subjacente é de legitimidade substantiva.

Diga-se, porém, que, mesmo que se estivesse perante legitimidade processual não estaria a Relação impedida de dela conhecer, quer porque é esta uma excepção de conhecimento oficioso (art. 495º C.Pr.Civil), quer porque a afirmação genérica e tabelar vertida no saneador, como aqui aconteceu, não faz caso julgado (art. 510º, nº 3 C.Pr.Civil).

Não violou, pois, o acórdão recorrido os preceitos legais aludidos pelo recorrente.

IV. Decisão

Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar a revista.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 30 de Setembro de 2010

Alberto Sobrinho (Relator)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Lopes do Rego

_________________


(1) in Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, pág. 58
(2) processo nº 04B3453, in www.dgsi.pt/jstj
(3) cfr., no mesmo sentido e entre outros, acs. STJ, de 2006/12/14 e 2007/09/11, processos nºs 06A2589 e 07A2145, respectivamente, in www.dgsi.pt/jstj