Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3444
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: CASO JULGADO
INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
DESPACHO DE RECEBIMENTO
CASO JULGADO FORMAL
RECURSO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: SJ200401290034447
Data do Acordão: 01/29/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 2543/02
Data: 01/28/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECL CONFERÊNCIA.
Decisão: DESATENDIDA A RECLAMAÇÃO.
Sumário : 1. O caso julgado caracteriza-se essencialmente na insusceptibilidade de impugnação de uma decisão em razão do seu trânsito em julgado decorrente, por seu turno, da insusceptibilidade de interposição de recurso ordinário ou de reclamação, e o caso julgado material abrange o envolvente segmento decisório e o relativo a questões preliminares que sejam seu antecedente lógico necessário.
2. A interposição de recurso com fundamento na ofensa de caso julgado depende de a decisão recorrida contrariar uma outra que lhe seja anterior, transitada em julgado, proferida entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto e baseada na mesma causa de pedir.
3. Face aos tribunais superiores, inexiste caso julgado formal no que concerne ao despacho do juiz ou do relator que admita o recurso ou uma sua determinada espécie.
4. Na decisão sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade de recurso com fundamento em ofensa de caso julgado é sindicável a existência de decisão transitada em julgado susceptível de ofensa e a identidade entre ela e a recorrida no plano dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir.
5. A alegação no referido recurso só envolve a demonstração de que a decisão ofendeu alguma decisão transitada em julgado, o que se prende com a respectiva procedência, à margem da prévia questão da sua admissibilidade.
6. É inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação com fundamento em ofensa de caso julgado se o apelante impugnou a decisão proferida na 1ª instância na fase da condensação quanto à improcedência da excepção relativa ao direito de denúncia do contrato de arrendamento por o descendente no primeiro grau seu beneficiário ser emigrante e pretender regressar ao país, e omitir a impugnação da improcedência da excepção relativa à duração do arrendamento por mais de vinte anos, e a Relação decidiu improceder esta última excepção e mandado seguir a acção com elaboração da especificação e da base instrutória em relação à primeira.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
"A" interpôs, no dia 2 de Maio de 2003, recurso de revista do acórdão da Relação de 28 de Janeiro de 2003, proferido em recurso de apelação interposto por B e C, exclusivamente com fundamento em ofensa de caso julgado, justificada na revogação da sentença recorrida e na decisão de improcedência da excepção da limitação ao direito de denúncia do contrato de arrendamento.
O recurso foi admitido pelo relator da Relação na espécie de revista, com a menção do disposto no artigo 678º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e neste Tribunal foi formulado convite às partes para se pronunciarem sobre a questão da sua admissibilidade ou inadmissibilidade.
A recorrente pronunciou-se no sentido positivo, admitindo ter errado sobre a espécie de recurso, acrescentando a irrelevância, no caso, da doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 10/94, de 13 de Abril.
O relator neste Tribunal proferiu despacho de não admissibilidade do recurso e a recorrente dele reclamou para a conferência.
À recorrente foi concedido, no dia 18 de Fevereiro de 2002, o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e encargos.
II
Na espécie, é a seguinte a dinâmica processual essencialmente relevante:
1. B e C, intentaram, no dia 8 de Janeiro de 2002, contra A, acção declarativa constitutiva condenatória, pedindo a declaração de denúncia do contrato de arrendamento relativo ao rés-do-chão do prédio sito na Calçada Chaves de Oliveira, n.º ..., Porto, celebrado entre o autor e o falecido cônjuge da ré, com fundamento na sua necessidade dele para habitação de um filho, C, e a condenação da última a entregar-lho.
2. A ré negou a necessidade dos autores em relação ao locado para habitação do filho D, dito radicado em França, e afirmou que o mesmo não satisfazia as necessidades habitacionais dele, acrescentando, a título de excepção tendente a obstar à pretensão dos autores, durar o arrendamento há mais de vinte anos e estar reformada por invalidez.
3. Os autores responderam não ser aplicável a limitação da denúncia prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 71º do Regime do Arrendamento Urbano por nem eles nem o filho D terem casa própria ou arrendada que satisfizesse as necessidades de
habitação, não se encontrar a ré em situação de reforma por invalidez absoluta dado trabalhar habitualmente, ser aplicável o prazo de trinta anos, acrescentando que se prevalecesse o prazo de vinte anos, a limitação não procederia, por D ser emigrante há mais de dez anos.
4. Na fase da condensação, foi a acção julgada improcedente, com fundamento em que, ao tempo da produção dos efeitos da denúncia, a ré se mantinha no locado há já mais de vinte anos e não ser aplicável a excepção à limitação ao direito de denúncia prevista no artigo 108º do Regime do Arrendamento Urbano, por ser diversa a situação factual alegada pelos autores e D não se encontrar nas condições previstas naquele artigo.
5. Apelaram os autores no sentido de o artigo 108º do Regime do Arrendamento Urbano dever ser interpretado extensivamente e ser aplicável à situação de filho emigrante do senhorio que denuncia o contrato de arrendamento para sua habitação e de terem invocado tempestivamente os factos relativos à emigração do filho, pedindo que fosse considerada improcedente a excepção invocada pela ré e que se ordenasse o prosseguimento do processo.
6. A Relação do Porto revogou a sentença, sob a afirmação de "substituindo tal despacho por outro que, julgando embora inaplicável ao caso a excepção às limitações do direito de denúncia prevista no artigo 108º do Regime do Arrendamento Urbano, faça prosseguir os autos com a fixação da matéria assente e proceda à selecção dos factos controversos que devam ser levados ao debate instrutório, seguindo depois os autos os seus normais termos".
7. Na fundamentação do segmento decisório mencionado sob 6, considerou a Relação essencialmente para o efeito, por um lado, não ter sido alegado ser o autor emigrante que pretenda regressar a Portugal ou que tenha regressado há menos de um ano e que por isso estava fora do âmbito de aplicação do regime excepcional previsto no artigo 108º do Regime do Arrendamento Urbano, e, por outro, serem controversos outros factos atinentes a alguma das demais circunstâncias impeditivas da denúncia por parte do senhorio enunciadas no artigo 107º daquele Regime, designadamente a situação de reforma por invalidez absoluta da inquilina ou o facto de ela não beneficiar de pensão de invalidez ou de sofrer de incapacidade total para o trabalho ou ser deficiente com incapacidade superior a dois terços.
8. A apelada arguiu, na Relação, a nulidade do acórdão sob o fundamento de este, sem alegação, ter conhecido da questão decidida na sentença recorrida de ter decorrido o tempo de duração do arrendamento susceptível da limitação do exercício do direito de denúncia, e pediu a sua reforma no que concerne à consideração do aludido prazo de trinta anos, neste caso invocando que isso ocorreu por manifesto lapso de falha humana, acrescentando não caber dele recurso ordinário.
9. A Relação indeferiu aquela arguição da nulidade, não se pronunciou sobre o pedido de reforma, e o valor processual da causa está fixado no montante de € 606,94.
III
A questão a decidir nesta sede é a de saber se ocorre alguma circunstância que obste ao conhecimento do objecto do recurso, nomeadamente se ele é ou não admissível.
Tendo em conta o afirmado pela recorrente no instrumento de interposição do recurso e pelos recorridos no âmbito da resposta às alegações da primeira, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- exclusão ou não de caso julgado formal relativamente ao despacho de recebimento do recurso pelo relator na Relação?
- síntese da motivação apresentada pela recorrente quanto à ofensa de caso julgado;
- pressupostos de admissibilidade do recurso com fundamento na ofensa de caso
julgado;
- ocorrem ou não, na espécie, os referidos pressupostos?
- solução para o caso decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Os despachos que incidam sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se, por sua natureza, não admitirem recurso de agravo (artigo 672º do Código de Processo Civil).
O caso julgado formal inexiste, face aos tribunais superiores, no que concerne ao despacho do juiz ou do relator que admita o recurso, ou uma sua determinada espécie, certo que a lei expressa que o mesmo os não vincula (artigo 687º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Assim, o facto de o relator da Relação ter admitido o recurso para este Tribunal, com fundamento na ofensa do caso julgado, não implica que nesta sede preliminar se não possa questionar da sua admissibilidade por esse ou outro fundamento que resulte da lei.
Na decisão sobre a admissibilidade ou a inadmissibilidade do recurso com fundamento em ofensa do caso julgado é sindicável, por um lado, se existe ou não, na espécie, alguma decisão com trânsito em julgado susceptível de ofensa e se entre ela e a recorrida ocorre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
Só fica reservada para a alegação do recurso com base neste fundamento a demonstração de que a decisão recorrida ofendeu algum caso julgado, o que se prende com a respectiva procedência e já não com a prévia questão da admissibilidade.
Dir-se-á, no entanto que, a ser admissível recurso do acórdão recorrido por ofensa do caso julgado, seria adequada a espécie de agravo e não a de revista (artigos 721º, 754º, n.º 1 e 755º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
2.
Afirmou a recorrente, por um lado, que os apelantes limitaram o objecto do recurso de apelação à decisão com fundamento na invocação da excepção à limitação do direito de denúncia prevista no artigo 108º do Regime do Arrendamento Urbano por o descendente no primeiro grau beneficiário da denúncia ser emigrante e pretender regressar ao país.
E, por outro que, com essa restrição, aceitaram a decisão recorrida, que assim fez caso julgado no processo quanto à parte relativa à excepção da limitação ao exercício do direito de denúncia por se haver completado o período de vinte anos de duração do arrendamento.
Finalmente, referiu que o acórdão recorrido, ao rejeitar e negar provimento ao fundamento do recurso da excepção à limitação do direito de denúncia por inaplicação do artigo 108º do Regime do Arrendamento Urbano e ao revogar a sentença, julgando
improcedente a excepção da limitação ao direito de denúncia, ofendeu o caso julgado
formado sobre esta parte da decisão recorrida.

3.
O valor processual da causa cifra-se em € 606,94, e o da alçada do tribunal da Relação é de € 14 963, 94 (artigo 24º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro).
Decorrentemente, do acórdão da Relação não era admissível recurso ordinário normal para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 678º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Ainda que o fosse, por o valor da causa exceder o da alçada do tribunal da Relação, quedaria o mesmo inadmissível por naquele acórdão se não haver conhecido do mérito da causa, certo que apenas se determinou a prossecução do processo para além da fase de condensação, com a organização da especificação e da base instrutória e a realização da audiência de discussão e julgamento (Assento do STJ, n.º 10/94, de 13 de Abril, Diário da República, I Série-A, de 26 de Maio de 1994).
Todavia, a lei admite o recurso, independentemente de o valor processual da causa estar contido no da alçada do tribunal de que se recorre, desde que o seu fundamento seja, inter alia, a ofensa de caso julgado (artigo 678º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
O caso julgado caracteriza-se essencialmente na insusceptibilidade de impugnação de uma decisão em razão do seu trânsito em julgado, que decorre, por seu turno, da insusceptibilidade de interposição de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 677º do Código de Processo Civil).
O caso julgado material abrange o envolvente segmento decisório e a decisão das questões preliminares que sejam o seu antecedente lógico necessário.
A interposição de recurso com fundamento na ofensa do caso julgado depende de a decisão recorrida contrariar uma outra que lhe seja anterior, transitada em julgado, proferida entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto e baseada na mesma causa de pedir (artigos 497º, 498º, 671º e 672º do Código de Processo Civil).

4.
Prescreve o n.º 4 do artigo 684º do Código de Processo Civil que os efeitos do caso julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso ou pela anulação do processo.

Não está em causa no recurso, como é natural, a aplicação do referido normativo, porque este pressupõe a existência de decisões distintas, visando obstar à chamada reformatio in pejus, isto é, que a posição do recorrente resulte mais desfavorecida do que resultaria se o recurso não tivesse sido interposto, o que não é aqui o caso.
Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, desde que especifique no requerimento a decisão de que decorre e, se não o fizer, o recurso abrange toda a parte que lhe seja desfavorável (artigo 684º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
O segmento decisório da sentença proferida na 1ª instância não contém decisões distintas, pelo que os apelantes não podiam restringir o objecto do recurso no instrumento da sua interposição, e não operaram a referida restrição.
Isso significa, como é natural, que nenhuma parte da decisão transitou em julgado em razão de restrição do objecto do recurso por parte dos apelantes no mencionado instrumento de interposição (artigos 676º, n.º 1, e 677º do Código de Processo Civil).
Nas conclusões de alegação delimita o recorrente o objecto do recurso por via da identificação das questões apreciadas pelo tribunal ad quem e indica em relação a cada uma a motivação da alteração ou da revogação da decisão recorrida, conforme os casos (artigo 690º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Dada a função das conclusões de alegação no recurso, pode o recorrente, por via do seu âmbito, restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artigos 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Se assim acontecer, isto é, se o recorrente restringir o objecto do recurso por via do âmbito das conclusões de alegação a alguma ou a algumas das questões julgadas no tribunal a quo, o tribunal ad quem só pode conhecer daquelas que ele tenha formulado, e não das outras, porque não impugnadas.
Conhecendo o tribunal ad quem de questões que não tenham sido objecto de conclusão de alegação, ocorre a situação de excesso de pronúncia, geradora de nulidade do acórdão (artigos 660º, n.º 2, 668º, n.º 1, alínea d), 713º, n.º 2, e 716º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Mas isso não significa, porque ainda não há caso julgado anterior, que ocorra a sua ofensa.
5.
A sentença que foi objecto do recurso de apelação não é continente de decisões distintas, mas de uma única decisão, consubstanciada na absolvição da apelada do pedido de denúncia do contrato de arrendamento, pelo que os apelantes não restringiram, nem podiam restringir, no requerimento de interposição do recurso, o objecto deste.
No quadro de conclusões de alegação propriamente ditas, os apelantes reportaram-se à impugnação do fundamento da decisão que considerou inaplicável na espécie a excepção à limitação do exercício do direito de denúncia decorrente da situação de emigração prevista no artigo 108º do Regime do Arrendamento Urbano, e não à questão da limitação ao exercício do direito de denúncia pelo decurso do prazo de vinte anos de vigência do contrato de arrendamento em que essencialmente se fundou a decisão recorrida.
Não obstante a questão acima mencionada em segundo lugar não constasse das conclusões de alegação dos apelantes, a Relação conheceu dela, em sentido contrário ao decidido na sentença recorrida.
O vício não é, porém, de ofensa de caso julgado, porque no momento em que foi proferido o acórdão pela Relação, aqui agora sob recurso, ainda não havia caso julgado, exactamente porque da sentença proferida na 1ª instância havia sido interposto recurso.
Como, na espécie, inexiste decisão com trânsito em julgado susceptível de ofensa pelo acórdão proferido pela Relação do qual foi interposto o recurso em análise, não pode o mesmo ser admitido.
Em consequência, deve improceder a reclamação para a conferência do despacho do relator, e manter-se o seu conteúdo.
Vencida na reclamação é a reclamante responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Tendo em conta que o valor da causa para efeito de custas se cifra no montante de € 606,94, a taxa de justiça correspondente é de um oitavo da prevista na tabela anterior à actual, com o mínimo correspondente a metade de uma unidade de conta (artigos 6º, n.º 1, alínea, e 13º do Código das Custas Judiciais, versão anterior, e 14º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro).
Todavia, como a reclamante beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, tendo em conta o disposto nos artigos 15º a), 37º, n.º 1, 54º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, inexiste fundamento legal para que seja condenada no pagamento das custas relativas à reclamação em causa.
IV
Pelo exposto, indefere-se a reclamação do despacho do relator que não admitiu o recurso interposto por A do acórdão da Relação.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2004
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís