Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | FERREIRA GIRÃO | ||
| Descritores: | ALEGAÇÕES DE RECURSO ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR INTERPRETAÇÃO DA VONTADE MATÉRIA DE FACTO RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
| Nº do Documento: | SJ200610120024952 | ||
| Data do Acordão: | 10/12/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Sumário : | I - A mudança da orientação argumentativa operada nas alegações do recurso de revista equivale a uma extemporânea - e, por isso, inadmissível - alteração da causa de pedir (art. 273.º, n.º 1, do CPC). II - Envolvendo a indagação da vontade real do declarante matéria de facto, está vedada ao Supremo a sindicância desta vertente da declaração negocial. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Na presente acção, a autora AA-Agência Noticiosa, Ldª pede que a ré BB-Importação e Exportação de Produtos Alimentares, Ldª seja condenada a pagar-lhe as prestações já vencidas no montante de 33.103,66euros, com juros vencidos no montante de 6.643,33euros e vincendos até integral pagamento, relativas a um contrato de prestação de serviços de informação, celebrado entre ambas, em 31/10/1997, pelo prazo mínimo de um ano. A ré contestou, alegando, em suma, que rescindira o contrato, com justa causa, através de cartas remetidas à autora. Houve réplica e, tramitado o processo até julgamento, foi proferida sentença a julgar improcedente a acção, decisão esta que a Relação de Lisboa veio a confirmar, negando provimento ao recurso de apelação interposto pela autora, que, continuando inconformada, pede agora revista do respectivo acórdão, com as seguintes conclusões: 1. A vexata quaestio dos presentes autos, a controvertida questão – de Direito – que é dada à apreciação deste Venerando Supremo Tribunal consiste em saber se a ré ficou, ou não, vinculada a cumprir, nos seus exactos termos, o acordo que subscreveu, e o qual se encontra ínsito no teor das notas de encomenda que foram subscritas e assinadas pelo seu próprio punho (na pessoa do seu sócio gerente, o sr. CC), respectivamente, em 31/1/2000 e 12/7/2000. 2. Tanto mais que a autora AA cumpriu a sua contraprestação, disponibilizando o serviço em causa à ré e esta não alegou, sequer, um qualquer erro ou vício na vontade na subscrição e assinatura do acordo em causa (notas de encomenda). 3. A ré não se pode eximir do pagamento das facturas correspondentes ao serviço contratado através da assinatura das notas de encomenda em causa, só porque anteriormente tinha rescindido um outro contrato que detinha com a autora. 4. As partes não ficam eternamente vinculadas a uma sua anterior tomada de posição temporalmente situada, podendo voltar a contratar, tratando-se de uma contratação ex novo, como foi o caso dos autos, na qual a ré demonstrou inegavelmente a sua vontade de (re)negociar, ao subscrever as notas de encomenda em causa. 5. Independentemente da alegada, mas de todo infundada, justa causa de rescisão de um anterior acordo celebrado entre as partes, certo é que, indiscutivelmente, a ré, em momento posterior e de livre vontade, em 31/1/2000 (e mais tarde também em 12/7/2000), pretendeu voltar a usufruir dos serviços prestados pela autora, tendo, para tanto, assinado pelo seu próprio punho as duas notas de encomenda juntas aos autos sob docs.2 e 3. 6. Dessas notas de encomenda extrai-se de per se o acordo de vontades firmado entre as partes e o qual consistiu no seguinte: a AA fornecia (e forneceu) à ré os serviços aí descritos, «AA euromarkets subscrição e notícias portuguesas», «Madrid Cata—MCE» e «22Meff Renta Variable» (doc.2); e em contrapartida do fornecimento desses serviços, a ré pagaria à autora a quantia mensal de 1.108,83euros, acrescida do IVA à taxa legal em vigor. Acrescidamente e a partir de 12/7/2000, a autora forneceu também à ré os serviços «BVL nível 1 e 2», pagando a ré, em contrapartida, a acrescida quantia de 25euros mensais, acrescidos do IVA à taxa legal em vigor. 7. Não faz qualquer sentido condicionar a plena validade e total eficácia do acordo de vontades ínsito na subscrição e assinatura destas notas de encomenda, à «sobrevivência», ou não, do originário contrato AA assinado em 1997. 8. Não só porque as notas de encomenda valem de per se. Tanto assim que um qualquer contrato de fornecimento de serviços não está sujeito a nenhuma formalidade específica, regendo-se pela autonomia privada e pela vontade das partes. Nas notas de encomenda sub juditio aí se dispõe, esclarecedoramente, quais os serviços contratados pela ré e quais os quantitativos que esta iria pagar pela utilização desses serviços. 9. Como também e, por outro lado, basta atender-se ao teor do contrato junto aos autos sob doc.1 para facilmente se entender que este não passa de um clausulado genérico, no qual não existe uma única vírgula que seja alterada de cliente para cliente, ou seja não se trata de um «verdadeiro» contrato, enquanto acordo de vontades propriamente dito (este sim, ínsito nas notas de encomenda, que são efectuadas casuisticamente, de acordo com o pretendido por cada cliente), mas sim dos «princípiosAA», ou seja e se se quiser, das regras e condições dos negócios a firmar com aAA. 10. Assim sendo, esse contrato (ou cláusulas gerais), por não individualizar o negócio concreto efectuado – repita-se, de livre vontade e em momento muito posterior – entre autora e ré, não pode de forma alguma condicioná-lo ou interferir na sua validade ou plena eficácia inter partes. 11. A ré chegou a efectuar pagamentos à autora à luz dessas notas de encomenda por si assinadas e como contrapartida dos serviços prestados. 12. O Mmº juiz a quo (de 1ª instância) deu como provado que a ré pagou o valor correspondente às primeiras 3 facturas do ano de 2000 (quesitos 16 a 18) apesar de, também incompreensivelmente, não considerar provada a imputação desses montantes ao pagamento dessas facturas!! 13. A ré confessou, ainda, em sede de audiência de julgamento, que não rompeu «…porque tinha necessidade das informações da AA…» e que «…como…estava carenciado de informação autorizei que me instalassem lá um novo up grade ao sistema….isso foi instalado…e o preço das facturas também aumentou…foi um novo serviço…»; «…em Janeiro de 2000 fizeram a reinstalação do novo software…» «…e depois em Maio (de 2000) ainda melhoraram os níveis…». Desta forma «…eles não perdiam o cliente e entrávamos numa prenegociação…». 14. A própria ré admite, nas palavras do id. CC, que «…quando se manda comprar qualquer coisa…vem uma nota de encomenda a acompanhar a encomenda…a formalizá-la…» (v. declarações prestadas pelo representante da ré, sr. CC, em audiência de julgamento e registadas na cassete2, lado A). 15. Das notas de encomenda resulta, inequivocamente, que a autora prestará à ré os serviços aí referenciados contra o pagamento, por parte desta, das quantias aí indicadas. 16. Um declaratário normal deve concluir que se a ré negociou novos serviços com vista à sua contratação e subscreveu e assinou as notas de encomenda em causa, pretendia efectivamente comprometer-se ao contrato assim firmado? Ou deve concluir, pelo contrário, que a ré não queria contratar e isto apenas porque, em momento anterior, rescindira outra diferente negociação havida entre as mesmas partes? 17. «…Tendo as partes escolhido a forma escrita para a declaração negocial,...presume-se que o acordo escrito (in casu, as notas de encomenda)…contém, relativamente a tomadas de posição anteriores, a última e relevante palavra das partes contratantes…» (v. neste sentido…) 18. É inequívoco que a ré pretendeu renegociar os serviços da autora, contratou novas notas de encomenda, utilizou-se dos serviços prestados e pagou, inclusive e como consta da prova carreada para os autos, uma ano da facturação inerente a essas notas de encomenda!! 19. Quer o Mmº Juiz a quo, quer o douto acórdão ora recorrido, apesar de lançarem mão do disposto no artigo 236 e sgs. do Código Civil, fizeram uma incorrecta aplicação do Direito aos factos sub juditio. 20. «…o nº1 do artº236º…assenta em três grandes linhas que o fundamentam: defesa do interesse do declaratário, segurança do comércio jurídico e imposição ao declarante de um ónus de clareza. Tudo porque na interpretação negocial visa-se surpreender o sentido objectivo que se pode depreender do comportamento do declarante…» (v. neste sentido…). 21. O próprio acórdão recorrido reconhece que deve dar-se preferência (v., fls.10) ao interesse do declaratário – neste caso a autora – uma vez que era mais fácil à declarante/ré evitar uma declaração não coincidente com a sua vontade do que à declaratária/autora aperceber-se da vontade real da declarante, assim melhor se defendendo os interesses gerais do tráfico do comércio jurídico. 22. Mas, de forma incompreensível…, acaba por não concluir que a ré se obrigou a pagar à autora as peticionadas quantias, a título dos serviços contratados e fornecidos a partir de 31/1/2000. 23. E apesar do acórdão a quo afirmar que «...se a vontade real do declarante era conhecida do declaratário, ou podia ser conhecida de um declaratário normal, é com este sentido que vale a declaração…» (v. fls.10) e de, in casu, a autora conhecer a vontade da declarante em recontratar o fornecimento de novos serviços. 24. E de também o Tribunal conhecer essa vontade real…não só através da prova documental assinada pelo punho da ré (os multi referenciados docs.2 e 3 – as notas de encomenda sub juditio) mas porque isso mesmo foi confessado em plena audiência de julgamento pela voz do sócio gerente da ré, que afirmou «…eu não rompi porque tinha necessidade das informações daAA…», «…como estava carenciado de informação autorizei que me instalassem lá um novo up grade ao sistema…foi um novo serviço…em Janeiro de 2000 fizeram a instalação de novo software…» «eles não perdiam o cliente e entrávamos numa renegociação…». 25. Não se decidiu em conformidade. 26. Se o Tribunal da Relação fez uso da teoria da interpretação do destinatário, ou seja, «…do sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário poderia deduzir do comportamento da declarante», esse rigor interpretativo teria de ir no sentido da vinculação da ré ao acordo por si subscrito e, como tal, assumido. 27. «…Compete ao Supremo Tribunal de Justiça verificar se, na fixação do sentido da declaração, houve violação dos critérios legais…» e «…censurar o resultado interpretativo que não seja coincidente com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário possa deduzir do comportamento do declarante…» «…se esse resultado tiver tido por base o uso do artigo 236 do Código Civil...» (ac. do STJ…) 28. In casu, atento todo o exposto e alegado e toda a prova carreada nos autos, conclui-se que a sentença a quo e o douto acórdão recorrido fizeram uma incorrecta aplicação do direito à matéria de facto apurada, tendo violado, de entre outros, o disposto no artigo 236 do CC. A recorrida contra-alegou no sentido da improcedência do recurso. Corridos os vistos, cumpre decidir. * Nos termos do nº6 do artigo 713 ex vi artigo 726, ambos do Código de Processo Civil (CPC), dá-se como reproduzida a matéria de facto fixada no acórdão recorrido. * Estamos concordes com a recorrente quando começa por delinear a questão a resolver como a de apurar se a recorrida está vinculada a cumprir as notas de encomenda em causa – datadas de 31/1/2000 e de 12/7/2000, assinadas pelo seu representante legal – e, portanto, a pagar o preço dos correspondentes serviços, conforme o pedido. O acórdão sob análise, confirmando a sentença da 1ª Instância, respondeu que não, com o fundamento de que o contrato firmado entre as partes, em 31/10/1997 e mediante o qual a autora se comprometeu a fornecer serviços de informação da sua especialidade à ré, pagando-lhe esta o respectivo preço, fora validamente resolvido antes da emissão das duas referidas notas de encomenda, documento estes que, ao contrário do que defendeu a ora recorrente no recurso de apelação, não tiveram a virtualidade, só por si, de renovar o contrato. Assim sendo, conclui o acórdão, um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário, não poderia concluir que, mesmo depois de resolvido o contrato, a assinatura de uma nova nota de encomenda teria como consequência a renovação do mesmo. Perante isto, a recorrente abandona a tese da renovação do contrato e vem agora defender que, afinal, as duas notas de encomenda consubstanciam um novo contrato, uma «contratação ex novo», com encaixe, embora, no acordo de 31/10/1997, o qual não seria um «verdadeiro» contrato, mas antes um «clausulado genérico» (sic). Esta mudança de orientação argumentativa equivale, no entanto, a uma extemporânea -- e, por isso, inadmissível -- alteração da causa de pedir. Na verdade, a recorrente sempre assentou o seu pedido no aludido contrato de 31/10/1997. Consequentemente, a versão ora aduzida -- de as duas notas de encomenda em causa traduzirem um novo contrato, com génese no acordo de 1997, que, afinal, não passaria de uma espécie de contrato-quadro -- deveria ter sido alegada na fase própria, ou seja, nos articulados, mais concretamente na réplica, como determina o nº1 do artigo 273 do CPC. Invoca ainda a recorrente a violação, pelo acórdão recorrido, das regras de interpretação da declaração negocial ínsitas no artigo 236 e seguintes do Código Civil (CC), especificamente a do nº2 daquele mesmo artigo, quando estatui que, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. Neste conspecto, traz a recorrente à liça extractos do depoimento do representante legal da recorrida, CC, que, conjugados com as notas de encomenda «assinadas pelo punho da ré» (sic), evidenciariam, na sua óptica, a vontade (confessada) da recorrida em recontratar o fornecimento de novos serviços pela recorrente. No entender da recorrente, esta vontade real de recontratação por parte da recorrida era do conhecimento não só da recorrente, como do próprio Tribunal, pelo que, ao não ser acolhida, houve violação da referida norma (a do nº2 do artigo 236 do CC). É consabida a jurisprudência corrente no sentido de que, envolvendo a indagação da vontade real do declarante matéria de facto, está vedada ao Supremo a sindicância desta vertente da declaração negocial. Significa isto que, tendo a Relação concluído pelo não apuramento da vontade real da declarante recorrida, não podemos nós, agora, reapreciar essa questão, designadamente com a valoração do depoimento do representante legal da recorrida, como pretende a recorrente. Assim e porque se trata de pura matéria de direito, cumpre-nos apenas asseverar que a Relação fez boa aplicação das demais regras dos referidos artigos 236 e sgs., ao ter decidido que um declaratário normal, posto na posição concreta da recorrente, teria de concluir que as duas notas de encomenda em causa não podem, só por si, determinar a renovação do contrato firmado entre as partes em 31/10/97, mas, entretanto, validamente resolvido pela recorrida através das cartas juntas aos autos e trocadas entre ambas. Na verdade, não pode ser outra a conclusão a extrair dos factos apurados, designadamente: --da referida correspondência trocada entre as partes (a carta da recorrida de 22/1/99 a rescindir o contrato; a carta da recorrente, de 16/3/99, a acusar a recepção daquela carta da recorrida e a informar que o cancelamento do contrato «será efectivo a 22 de Janeiro de 2000»; a carta da recorrida, de 17/5/99, a considerar de justa causa a rescisão e a não aceitar, por isso, qualquer facturação desde 31 de Março de 1999); --de todo o comportamento posterior (à resolução contratual) da recorrida, decorrente do não provado pagamento da facturação relativa ao ano de 2000 e da provada devolução das facturas que a recorrente lhe enviou. DECISÃO Pelo exposto nega-se a revista, com custas pela recorrente. Lisboa, 12-10-2006 Ferreira Girão (Relator) Bettencourt de Faria Pereira da Silva |