Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
625/18.8T8AGH.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
MENOR
DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PROGENITOR
INDEMNIZAÇÃO PELO DIREITO À VIDA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
CONDUTOR
CULPA EXCLUSIVA
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Num acidente de viação que vitimou uma criança de 7 anos, numa reta com 200 metros e com boa visibilidade, quando procedia ao atravessamento da estrada que iniciara numa altura em que não havia qualquer veículo a aproximar-se, a responsabilidade é de imputar em exclusivo ao condutor do veículo pelo facto de seguir desatento e descuidado e nem sequer ter reparado na presença da criança que atropelou mortalmente, sem dela se desviar ou travar.

II. Não existem motivos para considerar excessiva a indemnização pela perda do direito à vida que a Relação fixou equitativamente em € 100.000,00.

III. Também não existem motivos para reduzir a indemnização de € 40.000,00 arbitrada a cada um dos progenitores pelos danos morais decorrentes da morte da única filha, nem tão pouco para estabelecer qualquer distinção entre os progenitores em função do respetivo percurso pessoal, pois ambos ficaram profundamente abalados.

Decisão Texto Integral:

I - AA e BB instauraram contra Caravela – Comp. de Seguros, SA, ação declarativa comum, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 216.000,82, acrescida de juros legais, a título de indemnização por danos patrimoniais e danos não patrimoniais.

Alegaram que, no dia …-7-13, a sua filha CC foi atropelada mortalmente pelo veículo automóvel segurado na R., conduzido por DD. O acidente deu-se por culpa exclusiva da condutora.

As vidas dos AA. estão marcadas para sempre com o grande sofrimento causado pela morte da sua única filha de 7 anos de idade.

Pretendem que se arbitre a indemnização de € 130.000,00 pelo direito à vida da vítima e € 5.000,00 pelos danos que sofreu antes de morrer, € 35.000,00 pelos danos sofridos pelo A., € 35.000,00 pelos danos sofridos pela A. e € 1.261,82 pelas despesas de funeral.

A R. contestou, pugnando pela improcedência total da ação, invocando que a condutora seguia cumprindo as regras estradais e que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do A. que deixou a filha menor de 7 anos sozinha na berma da estrada, tendo esta atravessado a estrada inesperadamente, sem dar tempo ou espaço para a condutora desviar o veículo. Os pedidos referentes a danos não patrimoniais são manifestamente exagerados.

Foi proferida sentença que, assentando na distribuição da responsabilidade na proporção de 40% para o A., pai da menor sinistrada, e de 60% para a segurada da R., condenou esta a pagar:

- Aos AA. em conjunto, a quantia de € 45.000,00, pelo dano-morte da filha CC, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa supletiva legal em cada momento em vigor, contados desde a data da sentença e até integral e efetivo cumprimento;

- Aos AA. em conjunto a quantia de € 3.000,00, pelos danos sofridos pela CC no momento que antecedeu a sua morte, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa supletiva legal em cada momento em vigor, contados desde a data da sentença e até integral e efetivo cumprimento;

- A cada um dos AA. a quantia de € 24.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais atinentes ao sofrimento por si sentido com a morte de CC, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa supletiva legal em cada momento em vigor, contados desde a data da sentença e até integral e efetivo cumprimento.

- Aos AA. em conjunto a quantia de € 1.261,82, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa supletiva legal em cada momento em vigor, contados desde a data da sentença e até integral e efetivo cumprimento.

A R. apelou e os AA. também apelaram.

A Relação julgou improcedente a apelação da R. e parcialmente procedente a apelação dos AA., de modo que, atribuindo a totalidade da responsabilidade pelo acidente à condutora do veículo segurado:

a) Condenou a R. a pagar a ambos os AA. a quantia de € 100.000,00, a título de indemnização pelo dano-morte de CC, acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data do acórdão e vincendos até integral pagamento;

b) Condenou a R. a pagar a cada um dos AA. a quantia de € 40.000,00, a título de indemnização pelos seus danos não patrimoniais causados pela morte da filha CC.

c) Confirmou, no mais, o dispositivo da sentença recorrida.

A R. interpôs recurso de revista em que suscitou duas questões essenciais:

a) A primeira, relacionada com a responsabilidade pelo acidente, para apurar se o acidente mortal é de imputar na totalidade ao A., pai da menor, por falta de respeito do dever de cuidado previsto no art. 491º do CC. Subsidiariamente, definir a distribuição da responsabilidade entre ambos.

b) A segunda, relativa aos montantes indemnizatórios, no sentido de serem reduzidos os valores das indemnizações pelo direito à vida da criança e pelos danos não patrimoniais dos AA. mediante juízos de equidade. E, em termos subsidiários, apurar se é legítimo o estabelecimento de alguma distinção entre os progenitores da menor relativamente aos danos patrimoniais, em concreto, se deve ser mais reduzida a indemnização a arbitrar ao A., considerando a sua responsabilidade na ocorrência do acidente e o seu percurso de vida anterior ao acidente.

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II - Factos provados:

A. No dia …-7-13, pelas 9h00, a CC saiu com o pai (o A. AA) de motociclo para ver os animais e passear.

B. Circularam na Estrada ….. no sentido …..-….. e, entre as 10h00 e as 11h10m, pararam ao Km 29 da referida estrada, junto à berma do lado direito atento o sentido de marcha em que seguiam, para conversar com EE, amigo do A., que lhe pediu ajuda para segurar um vitelo.

C. Como o motociclo não tinha suporte para estacionar e daquele lado onde pararam não havia qualquer muro, barreira, passeio ou estacionamento, o A. disse à criança para ficar junto à berma, mas na estrada, enquanto o ia colocar o motociclo do outro lado da faixa de rodagem, encostado ao muro que aí existe.

D. Nesse instante, já EE não se encontrava junto a este e à criança e não havia qualquer veículo a circular nem estacionado ao longo de uma extensão de cerca 200 metros daquela estrada, nem qualquer outro obstáculo à visibilidade sobre aquela estrada.

E. Sucede que quando o A. já estava do lado contrário da faixa de rodagem (àquele onde deixou a criança) a encostar o motociclo ao muro, CC iniciou o atravessamento da via.

F. Nesse momento, circulava na referida Estrada ….., no sentido …..-….., o veículo de matrícula ……-SS, conduzido por DD, acompanhada esta pelo seu marido, que se encontrava no banco dianteiro de passageiro.

G. Sendo que 83 metros após desfazer a curva aberta da ….. e quando a CC já tinha atravessado a hemi-faixa de rodagem contrária ao sentido de circulação do veículo …..-SS, a condutora do mesmo embateu na criança, atropelando-a, causando-lhe a morte.

H. O A., apercebendo-se da aproximação do veículo ….-SS, quando olhou para trás, viu o embate e já não teve tempo para qualquer reação senão gritar e correr atrás do veículo ….-SS para alcançar a CC.

I. A condutora do veículo …..-SS não travou nem desviou o seu sentido de marcha, tendo CC sido arrastada por 32,8 metros, após o que saiu por baixo do veículo ….-SS, ficando na faixa de rodagem em cima da linha divisória das duas hemi-faixas, tendo então a condutora imobilizado a sua marcha a 7,7 metros do local onde ficou imobilizado o corpo da criança.

J. A condutora do veículo …..-SS ao longo da sua marcha nunca avistou a CC, só se tendo apercebido de que atropelara uma criança depois de imobilizar o seu veículo e dele sair.

K. A condutora do veículo ….-SS exercia a condução do mesmo de modo desatento e descuidado.

L. O local do acidente é uma reta com cerca de 200 metros, antecedida de uma curva aberta no sentido ……-….., a qual, após desfeita, permite total visibilidade em toda a sua extensão, em ambos os sentidos, bermas e passeios.

M. A faixa de rodagem tem 6,10 m de largura, permitindo o trânsito em dois sentidos, e cada hemi-faixa mede 3,05 m, estando separadas com linhas divisórias descontínuas de cor branca.

N. O local é ladeado de terrenos e de casas de habitação e tem passeio para peões e estacionamento, mas estes apenas no sentido de marcha do veículo ……-SS (sentido ….. – ….).

O. Do lado contrário (sentido …../…..) não há passeio; há apenas berma com relva e 2 postes de madeira para suporte de linhas telefónicas.

P. No momento do embate o piso, de asfalto e em bom estado de conservação, encontrava-se limpo e seco e não existia chuva, névoa ou neblina.

Q. No local o limite de velocidade é de 50 Km/h.

R. À data do embate, a CC trajava um fato de treino de cor verde fluorescente e uns sapatos cor-de-rosa e tinha uma compleição física alta e com excesso de peso para a sua idade.

S. A CC depois do embate sofreu fortes dores, medo e angústia, tendo sido alvo de várias tentativas de reanimação.

T. Porém, todas goradas, vindo o seu óbito a ocorrer às 11h10m do dia …-7-013.

U. Do relatório de autópsia realizado ao corpo de CC resulta o seguinte teor, no item designado por Discussão:

“Observou-se na autópsia de CC um conjunto de lesões traumáticas externas e internas, atingindo sobretudo o Tórax e o Abdómen, que pressupõem o embate violento contra uma superfície dura, existindo, pois, um nexo de causalidade entre as lesões descritas e as circunstâncias em que se deu a morte – atropelamento. A morte sobreveio em pouco tempo por rotura de vísceras toráxico-abdominais e consequente hemorragia interna maciça. Muito provavelmente já deveria estar inconsciente devido ao traumatismo crânio-encefálico.”.

V. Do relatório de autópsia realizado ao corpo de CC resulta o seguinte teor, no item designado por Conclusão:

“1ª – É de admitir que a morte de CC tenha sido devida a hemorragia interna provocada por traumatismo toráxico-abdominal.

2ª – As lesões pleuro-pulmonares e hepáticas e esplénicas observadas são causa adequada de morte.

3ª – As lesões traumáticas descritas foram provocadas por acidente de viação-atropelamento.

4ª – Os elementos necrópsicos constatados são compatíveis com uma etiologia acidental.

5ª – A pesquisa de álcool no sangue revelou-se negativa.”.

W. A CC era e é a única filha dos AA. e nasceu em …-….-06.

X. Até à data do embate a CC gozava de boa saúde e não tinha qualquer defeito físico.

Y. Era uma menina alegre, cheia de energia, afável e muito sociável.

Z. Frequentou desde tenra idade o jardim de infância do Colégio ..., onde sempre foi a alegria da sala, quer para educadoras de infância quer para os colegas de turma.

AA. À data do acidente frequentava a 1ª classe na Escola  …, onde também era a alegria da sala.

BB. A A. era chefe da Associação de …., nas … (….).

CC. A CC acompanhou a mãe no …desde o nascimento até à sua morte, radiando alegria em toda a Associação de …….

CC. Era a mascote das “…..”, escalão dos 14 aos 17 anos de idade.

DD. Aos 5 anos entrou para as “…..”, 1º escalão (até aos 10 anos)

FF. No seio escolar, social, cultural e familiar a menor era tida com grande carinho e admiração por toda a gente.

GG. Convivia com toda a gente.

HH. Tinha uma grande alegria de viver e constante boa disposição.

II. Era uma menina feliz e estava sempre a rir.

JJ. Amava a vida, a família e amigos.

KK. Era uma fonte de felicidade, alegria e vontade de viver dos seus pais, ora AA.

LL. Em outubro de 2008 os AA. separaram-se, ficando a CC a residir com a mãe, na . ……, juntamente com os avós maternos.

MM. A CC, para além de filha única, era a única neta dos avós maternos, os quais nutriam por ela um amor extremo.

NN. A CC era a razão de viver dos seus pais e avós.

OO. Apesar da separação dos AA. a CC sempre teve uma relação muito saudável, próxima e alegre com o pai, e este com ela.

PP. A CC passava muitos fins-de-semana com o pai em casa dos avós paternos nos …..

QQ. A CC estava sempre ansiosa para ir passar uns dias com o pai nesta casa, na qual expandia o seu gosto por animais e por andar de motociclo com o pai.

RR. A CC adorava visitar as galinhas, cães, gatos e cavalos na casa dos avós paternos nos …..

SS. O A. esteve preso de março de 2009 a Maio de 2013.

TT. Desde a separação dos pais e durante o período de prisão do pai, a CC era para este a única razão de viver e o único alento para passar aquela fase difícil da sua vida.

UU. Mesmo quando estava preso, o A. falava quase todos os dias ao telefone com a CC.

VV. E chorava todos os dias por não a poder abraçar.

WW. Fruto do amor pela CC e desta pelos pais, em 2011, os AA. reataram a relação amorosa.

XX. O A. fez tratamento sério à sua dependência de produtos estupefacientes e deixou de os consumir.

YY. A CC ficou muito feliz por ver os pais juntos novamente.

ZZ. Quando o A. saiu definitivamente da prisão, em Maio de 2013, os AA. e a CC voltaram a viver juntos, constituindo uma família muito unida e totalmente dedicada à filha CC.

AAA. Sucederam-se jantares e convívios familiares e com amigos.

BBB. Os avós maternos e paternos tiveram um período de maior convivência, tendo sempre a CC como elo de união familiar.

CCC. A A. sempre foi atenta a cada passo da CC.

DDD. A A. estava sempre ansiosa para sair do trabalho e ir conviver com a CC.

EEE. A A. e a CC faziam quase tudo juntas, faziam refeições juntas, frequentavam o ….. juntas, passeavam juntas.

FFF. Os avós, quer maternos quer paternos, estavam sempre a falar da neta.

GGG. A CC adorava passear e conviver com todos os avós.

HHH. Os pais e avós estavam sempre aos abraços e beijos na CC e a viver momentos intensos de alegria, em família e em convívio social.

III. Todos tinham esperança numa longa vida para a CC, muito para além das suas.

JJJ. Os pais e avós estavam sempre a pensar e a projetar um grande e feliz futuro para a CC.

KKK. No dia …-7-13, o dia anterior ao embate que culminou na morte de CC, foi a festa de aniversário da criança, na casa dos avós paternos, nos …...

LLL. Onde a família esteve unida e onde marcaram presença muitos amigos da CC.

MMM. Nos meses que se seguiram ao falecimento da CC, os AA. mal se alimentavam, não dormiam e tiveram que recorrer a medicação.

NNN. A morte da CC deixou os AA. e restante família e amigos em estado de choque.

OOO. No seu funeral estiveram muitos amigos e familiares.

PPP. A Associação …. compôs uma música dedicada à CC, que cantaram no funeral, numa sentida homenagem de “eterna saudade da 3ª Companhia da ….”.

QQQ. Até hoje não há dia que os AA. não se lembrem da CC, com mágoa e desgosto, chorando com muita frequência a sua perda.

RRR. A pensar na CC os AA. ainda passam noites a dormir pouco, tensos e nervosos, tendo pesadelos.

SSS. Por vezes ficam muito tempo a chorar abraçados à foto da CC.

TTT. A tensão, nervosismo e depressão provocada pela morte da CC foi o reinício da separação dos AA.

UUU. Os AA só choravam em casa.

VVV. Na sequência, o A. começou a afastar-se de casa e a refugiar-se nas bebidas alcoólicas.

WWW. E depois regressaram os consumos de estupefacientes.

XXX. Voltando as discussões entre o casal, que culminaram com a separação definitiva em novembro de 2014.

YYY. O A. ainda tem acompanhamento psicológico e psiquiátrico no Hospital …..

ZZZ. A A. não consegue estar muito tempo em casa, refugiando-se em diversas atividades profissionais e convívios com amigos

AAAA. O funeral da CC teve um custo de € 1.261,82, que os AA. pagaram.

BBBB. A responsabilidade civil emergente de acidente e viação do veículo …-SS à data do acidente estava transferida para a Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº …….

CCC. Correu termos no DIAP junto do Tribunal da ….. o inquérito com o nº 183/13…. onde se investigou a prática dos factos descritos supra e atinentes ao embate, tendo sido proferido despacho de arquivamento, em 16-1-15, com o seguinte teor:

“(…) atento o facto de a menor ter «invadido» a faixa de rodagem no momento em que o veículo conduzido pela denunciada procedia à travessia da mesma, depõe no sentido da auto-colocação em perigo do mesmo, operando- se, por essa via, à limitação da teoria da imputação objetiva do resultado lesivo à conduta e, consequentemente, à irresponsabilidade jurídico-penal da denunciada.

Em consequência, determino o arquivamento do inquérito, por se ter recolhido prova bastante da inexistência do crime de homicídio por negligência (art. 137º, nº 1, do CP, e art. 277º, nº 2, 2ª parte, do CPP)”.


II – Decidindo:

1. Questões suscitadas:

É questionada a imputação da responsabilidade civil decorrente do acidente de viação que vitimou uma criança, de 7 anos de idade. À solução adotada pela Relação de atribuir a responsabilidade total à condutora do veículo segurado contrapõe-se a posição da Seguradora que considera que a responsabilidade deve ser imputada totalmente ao pai da menor, ora A., na medida em que não cumpriu o seu dever de vigilância relativamente à ocorrência do sinistro. Apenas subsidiariamente admite a possibilidade de ser distribuída a responsabilidade entre a condutora do veículo e o referido A. em proporção a considerar em face da matéria de facto atinente ao acidente. Foi esta a solução adotada pela 1ª instância que fixou a responsabilidade na proporção de 60% para a condutora do veículo e de 40% para o A., pai da menor.

Subsequentemente serão apreciados os montantes indemnizatórios arbitrados quer pelo chamado dano-morte (a atribuir a ambos os AA.), quer a título se danos morais de cada um dos AA. e ponderar se deve ser mais reduzido o quantitativo a atribuir ao A.


2. Quanto à imputação da responsabilidade civil:

2.1. Pelo seu carácter impressivo para a resolução do caso, começamos por extratar da matéria de facto assente pelas instâncias os factos mais relevantes:

- Numa viagem de passeio, o A. deixou a sua filha menor, que fizera 7 anos no dia anterior, num lado da estrada, junto à berma, enquanto foi estacionar o motociclo no lado oposto;

- Na ocasião, não havia qualquer veículo a circular ao longo de uma extensão de cerca 200 metros daquela estrada, nem qualquer outro obstáculo à visibilidade.

- O local do acidente é uma reta com cerca de 200 metros, antecedida de uma curva aberta no sentido ….-….., a qual, depois de ser desfeita, permite total visibilidade em toda a extensão da estrada, em ambos os sentidos, bermas e passeios.

- Quando o A. já estava do lado contrário da estrada a encostar o motociclo ao muro, a CC iniciou o atravessamento da via, sendo que nesse momento circulava na referida estrada o veículo segurado;

- Quando a menor já tinha atravessado a metade da rodagem contrária àquela por onde circulava o veículo e estava a cerca de 83 metros depois da curva, o veículo embateu na criança, causando-lhe a morte.

- O A. ainda se apercebeu da aproximação do veículo, mas quando olhou para trás já não teve tempo para qualquer reação senão gritar e correr atrás do veículo para alcançar a menor CC.

- A condutora exercia a condução do mesmo de modo desatento e descuidado e apenas se apercebeu de que atropelara a criança depois de imobilizar o seu veículo e dele sair.

- A condutora do veículo, ao longo da sua marcha, nunca avistou a CC, apesar de esta ter um fato de treino de cor verde fluorescente e uns sapatos cor-de-rosa e uma compleição física alta.

- A condutora do veículo não travou nem desviou o seu sentido de marcha, tendo CC sido arrastada por 32,8 metros, após o que saiu por baixo do veículo que ficou imobilizado a 7,7 metros do local adiante do local onde ficou imobilizado o corpo da criança.

- O local é ladeado de terrenos e de casas de habitação e o limite de velocidade era de 50 Km/h.

- No momento do embate o piso, de asfalto e em bom estado de conservação, encontrava-se limpo e seco e não existia chuva, névoa ou neblina; eram 11 h da manhã de um dia do mês de julho.

2.2. A clareza da matéria de facto apurada não deixa quaisquer dúvidas quanto à imputação da responsabilidade total à condutora do veículo, tendo em conta que, de forma manifesta e grave, desrespeitou as regras de condução de veículos automóveis na via pública.

Isso transparece de forma evidente do facto de seguir desatenta e descuidada, forma conclusiva que é sustentada no facto de, apesar de circular numa reta com cerca de 200 metros, numa ocasião em que havia boa visibilidade e onde a velocidade máxima permitida era de 50 kms/h, não ter dado conta da presença de que uma criança de 7 anos de idade atravessava a via em circunstâncias que a tornavam bem visível.

É possível, pois, formular a partir de tal circunstancialismo um juízo de valor de grave imprudência e inconsideração pelas regras estradais que obrigavam a condutora a estar atenta a todos os obstáculos que se interpunham no espaço livre e visível à sua frente e, designadamente, a ter em consideração a existência ou o atravessamento de peões na via pública.

2.3. Defende a Seguradora que a responsabilidade pelo sinistro é de imputar inteiramente ao pai da menor pelo facto de a ter deixado sozinha num dos lados da estrada enquanto procedia ao estacionamento do motociclo no outro lado.

Começou por invocar, para tal conclusão, o disposto no art. 491º do CC, mas é evidente que o campo de aplicação deste preceito não cobre situações como esta. Trata-se de uma norma que respeita apenas à imputação da responsabilidade pelos danos causados por pessoas que ainda não sejam dotadas de capacidade natural e que, por isso, é imprestável para integrar uma situação em que estão em causa lesões mortais causadas na própria criança. Ademais, a criança acabara de completar 7 anos de idade, pelo que sempre estaria afastada a presunção que consta do art. 488º do CC.

O preceito que, em tese, poderia ser convocado para a resolução do caso é o do art. 570º do CC que atribui relevo ao comportamento do lesado, em termos de distribuição, redução ou até exclusão da responsabilidade, quando o evento lesivo lhe seja causalmente imputado, no todo ou em parte.

Mas nem por esta via se consegue o objetivo pretendido pela recorrente se ponderarmos que qualquer infração às regras do Cód. da Estrada apenas se reflete na atribuição ou distribuição de responsabilidade civil se houver um nexo de causalidade entre a infração e o sinistro.

Ora essa causalidade recai em absoluto sobre a condutora do veículo, não havendo motivo algum para considerar que o modo como a menor atravessou a estrada, ainda que obedecendo ao impulso de ir para junto do seu pai, tenha representado a violação de alguma regra estradal e muito menos a sua violação causal. Igualmente, nas circunstâncias que a matéria de facto reflete, não existe motivo algum para imputar ao pai da criança qualquer falha que tenha uma relação de causalidade adequada relativamente ao sinistro que veio a ocorrer, uma vez que, como se provou, na ocasião em que a deixou na berma da estrada, não havia qualquer veículo a circular e era curta a distância que iria percorrer, para deixar o motociclo estacionado.

Não deve ignorar-se de modo algum que as vias públicas não constituem um couto exclusivo dos veículos automóveis. A não ser quando existam restrições específicas resultantes de algumas regras gerais, como a que vigora relativamente a autoestradas, ou haja que respeitar alguns sinais de trânsito que proíbam, limitem ou condicionem o atravessamento das vias públicas por parte de peões, tais viam não deixam de ter também essa função de circulação para estes utentes, quando se trata de proceder ao seu atravessamento.

Decorre da legislação que regula a circulação nas vias públicas que, com as necessárias cautelas, cada utente (condutor, peão, etc.) deve cumprir o que corresponde à qualidade que detém (art. 3º, nº 2 do Cód. da Est.), tendo em atenção o dever geral de cuidado que implica que cada um se abstenha de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias.

Por certo que o atravessamento de vias públicas como aquela em que ocorreu o acidente não deve ser feito sem regras. Seja quem for que proceda à travessia, deve assegurar-se que o pode fazer, ou nos locais apropriados (passadeiras para peões quando existam), quando estes existam, ou mediante os cuidados necessários a não perturbar o trânsito automóvel e a evitar qualquer acidente. Assim o impõem diversos preceitos e, em concreto, os que regulam os locais onde podem transitar (art. 99º), a posição que devem ocupar na via (art. 100º) ou as regras no atravessamento da faixa de rodagem (art. 101º, todos do Cód da Est.).

Mas também os veículos, atento o risco inerente à sua utilização, devem circular obedecendo a apertadas regras de segurança que obrigam designadamente o seu condutor a manter a velocidade adequada às circunstâncias e, sempre, a ter em atenção os obstáculos materiais ou pessoais que se interponham nos espaço livre e visível à sua frente.

Ademais, visando contribuir para a redução da gravíssima sinistralidade rodoviária e, em concreto, da elevada percentagem de atropelamento de peões, pelas mais diversas razões, algumas vezes imputáveis aos próprios lesados, o ordenamento jurídico nacional, mediante projeção de diretivas europeias, foi aperfeiçoado no sentido de tutelar de forma especial os utilizadores vulneráveis, em particular os utilizadores de velocípedes e peões, como sejam as crianças, idosos, grávidas, pessoas com mobilidade reduzida ou pessoas com deficiência (art. 11º do Cód. da Estrada).

2.4. No caso concreto, a condutora do veículo desrespeitou, de forma manifesta e grave, os deveres de prevenção contra sinistros, num local em que, pelas suas características, era permitido o atravessamento da via por peões.

Independentemente do modo ou dos motivos que levaram a criança a atravessar a estrada, não existe motivo algum para assacar ao pai da menor, ou a esta, qualquer responsabilidade pelo acidente, nem deve cair-se na tentação de, a posteriori, encontrar outros responsáveis para um evento que a todos os títulos é de imputar em exclusivo à condutora do veículo segurado.

A condutora deveria conduzir o veículo de forma a detetar a sua presença, a prevenir qualquer acidente e, em concreto, a evitar o embate mortal que veio a ocorrer e, como nenhuma dessas cautelas foi adotada, foi essa a causa efetiva do acidente mortal.

Por conseguinte improcede a primeira questão, confirmando-se a sentença que atribuiu à condutora do veículo a responsabilidade total pelo sinistro.


3. Quanto ao valor das indemnizações:

3.1. A Relação fixou em € 100.000,00 a indemnização pela morte da criança. Por seu lado, atribuiu a cada um dos progenitores a quantia de € 40.000,00 pelos danos morais correspondentes à perda da filha.

Não existe motivo algum para reduzir aqueles montantes que, ademais, se inscrevem na jurisprudência deste Supremo. As circunstâncias de ordem subjetiva que ressaltam da matéria de facto, quer em relação à menor (de 7 anos de idade, filha única, única neta materna, etc.), quer em relação a cada um dos pais, não permitem regatear qualquer dos referidos valores.

Cada parcela indemnizatória deve ser quantificada de acordo com juízos de equidade que, numa área como a da sinistralidade rodoviária, com numerosas intervenções deste órgão jurisdicional, não poderá desligar-se dos resultados que vêm sendo assumidos em casos semelhantes.

Ora, no caso concreto ressalta o elevado grau de culpa da condutora revelado pela inconsideração pelas regras de condução que obrigariam a que estivesse atenta a outros utentes da via pública, por forma a abrandar a marcha, parar o veículo ou desviar-se a tempo de evitar o embate com a criança que atravessava a estrada. Tal circunstância impede, aliás, que se reduza o valor da indemnização, ao abrigo do art. 494º do CC, para onde remete do nº 4 do art. 496º.

No mais, como já se decidiu em muitos outros acórdãos relatados pelo ora relator e com intervenção do mesmo coletivo, assim como em numerosíssimos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, não se mostra fácil a quantificação nem sequer a justificação do valor das indemnizações, designadamente em casos de morte do sinistrado, de modo que deve servir de apoio o que tenha sido decidido de forma consistente noutros arestos semelhantes.

Destaca-se para o caso a apreciação que foi feita no Ac. do STJ, de 3-11-16, 6/15, no qual foi considerado que a quantia de € 100.000,00 constituía um valor equitativo, nele se fazendo uma resenha de outros acórdãos anteriores nos termos que se reproduzem:

“Consolidou-se, assim, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50 000,00 e € 80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 100.000,00 (cf., entre outros, os Acs. do STJ, de 10-5-12 (451/06), de 12-9-13 (1/12), de 24-9-13 (294/07), de 19-12-14 (1229/10), de 9-9-14 (121/10), de 11-2-15 (6301/13), de 12-3-15 (185/13), de 12-3-15 (1369/13), de 30-4-15 (1380/13), de 18-6-15 (2567/09) e de 16-9-16 (492/10), todos acessíveis através de www.dgsi.pt”.

O facto de, no caso concreto, a vítima ser uma criança de 7 anos, na flor da idade, e os demais factos que a matéria de facto revela quanto a si, apenas acentua que a indemnização fixada pela Relação não é irrazoável, nem destoa de outras que emanam da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, sendo certo que já no Ac. do STJ, de 22-2-18, 33/12, Secção Criminal, se fixou a mesma indemnização no valor de € 120.000,00.

3.2. Pelos mesmos motivos, também não se encontram motivos válidos para reduzir a indemnização de € 40.000,00 que foi arbitrada a favor de cada um dos progenitores, pelos danos não patrimoniais sofridos, quantitativo que igualmente se inscreve nos padrões que vêm sendo assumidos neste Supremo, sendo que o caso é especialmente grave, não só pela idade da vítima e pelo facto de ser filha única, como ainda pela ponderação dos efeitos de ordem psicológica em cada um deles.

A Seguradora, independentemente desse aspeto, considera que ao A., pai da criança, deveria ser arbitrada uma indemnização inferior à estabelecida para a mãe, tendo em conta que foi ele que deixou a filha desacompanhada na berma da estrada e ponderando ainda o seu percurso pessoal que, como o revela a matéria de facto, é divergente do percurso pessoal da progenitora.

Ora, nada disso é juridicamente relevante numa altura em que se pretende arbitrar uma indemnização pelos danos de natureza não patrimonial inerentes à morte da sua única filha.

Não o é a atuação do A. Tal aspeto já foi afastado ao nível da avaliação da responsabilidade pela ocorrência do sinistro, uma vez que nada fazia prever que o simples facto de ter deixado a sua filha, por uns momentos, na berma da estrada, enquanto procedia ao estacionamento do motociclo, a levasse a atravessar a estrada que, aliás, não tinha qualquer trânsito automóvel.

Quanto à diversidade de percursos pessoais dos progenitores, apesar de existir, também não interfere na quantificação do valor da indemnização devida pelos danos não patrimoniais, na medida em que o único aspeto relevante para o efeito é o de que ambos ficaram profundamente abalados pela morte da sua única filha com quem tinham uma forte ligação afetiva.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão da Relação.

Custas da revista a cargo da R. recorrente.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Notifique.


Lisboa, 11-2-21


Abrantes Geraldes (relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo