Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2351/21.1T8PDL.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE APELAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DO RECORRENTE
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação.

II - Tanto a interpretação literal, como sistemática e teleológica do art. 640.º, n.º 1, al. b), CPC apontam no sentido de que a indicação dos meios probatórios, destina-se a aferir do eventual erro no julgamento de facto, pelo que não basta a indicação dos concretos meios de prova, sendo indispensável que a parte demonstre as razões pelas quais eles impõem decisão diversa relativamente a cada um dos pontos de facto impugnados.

III - Não deve ser rejeitado o recurso de facto se no corpo das alegações o recorrente a seguir a cada depoimento de parte e das testemunhas indicou com precisão a passagens da gravação, transcreveu os excertos, faz um resumo de cada um dos excertos, salientando os aspectos que entende relevantes, e após indica os pontos a que se reporta tais declarações ou depoimentos, com a decisão alternativa.

Decisão Texto Integral:

Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO


1.1.- A Autora - J. PIMENTEL II, LDA., com sede na Estrada ... instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Ré - AJM CORDEIRO, LDA., com sede na Estrada....

Alegou, em resumo:

É dona e legítima possuidora de dois armazéns, integrados em prédios urbanos omissos na matriz e não descritos no registo predial, bem como de um posto de transformação.

Tais armazéns foram construídos, por volta do ano de 1997, pela J. Pimentel, Lda., com autonomia económica relativamente ao prédio rústico onde foram edificados, pelo que a venda do prédio rústico ao BANIF, em 2011, não incidiu sobre os armazéns, o PT e o logradouro, motivo pelo qual a J..., S.A., que sucedeu à J. Pimentel, Lda., continuou a usá-los.

Posteriormente, em 2012, tais benfeitorias foram cedidas a si, sendo tal do conhecimento do banco.

Mesmo após a venda do prédio rústico à Ré, continuou a usar, gozar e fruir dos armazéns, sem a oposição de quem quer que fosse, sendo que a Ré, a partir de Outubro de 2021, a impediu de entrar nos armazéns e de aceder ao logradouro e aos armazéns, pelo que se viu obrigada a arrombar a fechadura de um dos armazéns, substituindo-a.

Os armazéns, posto de transformação e logradouro são benfeitorias úteis edificadas no prédio rústico, as quais têm um valor de 674 766,00€.

Pediu cumulativamente:

a) declare que é proprietária, dona e legítima possuidora de dois prédios urbanos, ambos compostos por armazém, sitos na Estrada ...), ambos omissos na matriz e não descritos no registo predial, bem como de um posto de transformação e do acesso a tais armazéns e posto e, consequentemente,

b) que a Ré seja condenada a restituir-lhe os armazéns, o posto e o logradouro de acesso, abstendo-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a sua posse e ainda,a condenação no pagamento dos danos cuja liquidação se relega para execução de sentença.

c)Subsidiariamente, e caso se entenda que aquela não é proprietária, peticiona que seja reconhecida como possuidora e,

d)também subsidiariamente, caso nenhum dos pedidos proceda, que a Ré seja condenada no pagamento de 674 766,00€, acrescido de juros de mora.

1.2. A Ré AJM CORDEIRO, Lda., contestou, reconveio e chamou à lide a sociedade «O..., S.A.».

Alegou, em síntese,

É proprietária, desde 13/08/2021, por compra à O..., S.A., de um prédio rústico sito na Estrada ... e ..., o qual tem duas construções sem autonomia económica e um posto de transformação.

Após ter dado permissão ao legal representante da Autora para retirar os seus bens das construções, aquela arrombou as fechaduras, impedindo-a de aceder a tais construções, colocando ainda correntes e cadeados.

Reconvindo, peticionou que, caso a pretensão da Autora seja procedente, que seja apenas condenada a pagar o valor das benfeitorias aferido judicialmente e que a Autora seja condenada a reconhecer a sua propriedade sobre os prédios rústicos em discussão, bem como do posto de transformação e do logradouro.

Mais peticiona que se declare a nulidade do contrato de arrendamento que incide sobre um dos armazéns e que a Autora seja condenada no pagamento de 100 000,00€ a título de danos patrimoniais que teve com obras no prédio e não patrimoniais pela ofensa ao seu bom nome.

Por fim, peticiona a condenação da Autora como litigante de má-fé, em multa e numa indemnização no montante de 25 000,00€ por ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, tendo alterado a verdade dos factos e omitido factos relevantes.

1.3. A Autora replicou, nada opondo ao chamamento da O..., S.A., pugnando pela improcedência da reconvenção e respondendo ao pedido de condenação como litigante de má-fé e peticionado a condenação da Ré como litigante de má-fé, por a mesma saber que os imóveis não são sua propriedade, numa multa em 15 UC e no pagamento de uma indemnização de 10 000,00€.

1.4. Foi julgada improcedente a invocada ineptidão da petição inicial e deferido o chamamento da O..., S.A., atento o eventual direito de regresso da Ré.

1.5. - A O..., S.A. contestou, alegando que o preço da venda dos prédios teve por base a inexistência de quaisquer ónus ou encargos, assim como incluiu todas as construções ilegalmente ali construídas e o posto de transformação, pelo que aderiu inteiramente a todos os fundamentos de defesa da Ré, ao pedido reconvencional e ao pedido de condenação da Autora como litigante de má-fé.

1.6. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, que decidiu:

“a) julgo a ação totalmente improcedente, e, em consequência, absolvo a AJM CORDEIRO, LDA., e O..., S.A., dos pedidos formulados por J. PIMENTEL II, Lda.;

b) julgo a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:

i. declaro a Ré proprietária e legítima possuidora do prédio rústico, bem como de todas as construções nele incorporadas, sito na freguesia ..., na Estrada ... e ..., com área total de 12400 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob a ficha n.º ...19 da dita freguesia e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo n.º 142, secção 5 da dita freguesia;

ii. declaro nulo o contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e a T..., Lda.;

iii. condeno a Autora a restituir imediatamente à Ré os armazéns, o posto de transformação e o logradouro, repondo as fechaduras que neles existiam ou entregando à Ré as respetivas chaves, abstendo-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a propriedade da Ré;

iv. absolvo a Autora do demais peticionado.

c) Condeno a Autora como litigante de má-fé e, por via disso, a pagar uma multa em 15 (quinze) UC e uma indemnização de 7,500,00€ (sete mil e quinhentos euros) à Ré e uma indemnização de 7 500,00€ (sete mil e quinhentos euros) à Chamada”.

1.7. Autora recorreu de apelação e a Relação de Lisboa, por acórdão de 7/6/2023, decidiu julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença

1.8.- A Autora recorreu de revista excepcional, mas recebida como revista normal, por despacho de 2/1/2024, com as seguintes conclusões:

1)O Tribunal da Relação rejeitou apreciar a impugnação da matéria de facto realizada pelo aqui apelante, ora recorrente, relativamente aos factos dados como provados constantes dos nº3., na parte “com área total de 12400 m2...”, 26., 27., 28., 29. e 30. e relativamente aos factos não provados contantes sob as alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), 1), m), n), o), p), q), r), s), t), x), y), z) e aa), com o fundamento de que não cumpriu o ónus previsto na alínea a) do n.° 2 do artigo 640° e, consequentemente, a alínea c), do n.° 1 do artigo 640° do Código de Processo Civil.

2)O referido Acórdão menciona que a Recorrente que não cumpriu o ónus imposto pelo artigo 640°, n.° 1, al. c) do C.P.C., uma vez que não indicou em concreto e relativamente a cada ponto da matéria de facto, em que termos deverá cada meio de prova ser ponderado para que se proceda à alteração dos factos provados/não provados requerida, ou seja, o de concretizar em que medida a prova produzida impunha uma decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

3) Em termos gerais, na interpretação deste preceito tem a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça seguido essencialmente um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, entendendo que os ónus enunciados no artigo 640° do C.P.C, pretendem garantir “uma adequada inteligibilidade do fim e do objeto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido” (cfr. Acórdão datado de 18 de janeiro de 2022, proferido no âmbito do Processo n.° 701/19.0T8EVR.E1.S1).

4)No caso concreto dos presentes autos importa distinguir entre a exigência de preenchimento dos requisitos previstos nas alíneas do n.° 1 do artigo 640° do C.P.C que integram o que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem denominado de ónus primário, “"na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da matéria de facto”, e “a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos" que se pretendem ver analisados, comtemplada na alínea a) do n.° 2 do artigo 640°, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida” (cf.. Acórdão de 03 de outubro de 2019 proferido no âmbito do Processo n.° 77/06.5TBGVA.C2.S2).

5)Esta orientação corresponde à jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a respeito do cumprimento do requisito previsto na alínea a), do n.° 2 do artigo 640° do C.P.C.

6) “ A recusa da reapreciação do julgamento da matéria de facto, fundamentada no omissão da indicação referida na alínea a) do nº 2 do artigo 640º do C.P.C., só será de materializar no caso de essa denotada anotação se tornar indispensável, ou seja, quando, da envolvência circunstancial conferida ao julgador, se patentear que só com um labor comportamental acrescido e desmedido é que o juiz haverá de proceder ao exame da prova que lhe é deferido; e tal estorvo não ocorrerá sempre que esse peculiar e rogado discernimento jurisdicional, por parte do tribunal de recurso, seja suscetível de concretizar sem o recurso a essa formal exigência normativa” (cf Acórdão de 06-10-2016 no âmbito do Processo n.° 1752/10.5TBGMR-A.G1.S1).E, “estando em causa um direito fundamental, como o direito ao recurso na vertente da impugnação da matéria de facto, só em casos de erro grosseiro ou omissão essencial, que dificulte a compreensão do objeto do recurso e das questões a decidir, é que o recurso pode ser rejeitado por incumprimento do ónus previsto no artigo 640 do C.P.C” (cfr. Acórdão de 18-02-2020 proferido no âmbito do Processo n,° 922/15.4T8PTM.E1-A.S1).

7)O teor do recurso de apelação revela, em primeiro lugar, que o cerne da impugnação da decisão relativa à matéria de facto assenta na prova testemunhal, mas também na documentação ora junta, bem como a prova por inspeção ao local.

8)Diversamente do que é afirmado no acórdão recorrido, entende-se que a apelante não remeteu após, e in totum para a totalidade dos factos que na sua versão devem ser considerados provados e não provados tomando idêntico procedimento para a prova documental e prova por inspeção ao local.

9)Aliás, de acordo com o Acórdão de 16-11-207, proferido no âmbito do Processo n.° 499/13.5TBVVD.G1.S1, “tendo a recorrente indicado, no recurso de apelação, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os meios de prova que, em seu entender justificam decisão diversa quanto a esses pontos - identificando as testemunhas, indicando a localização no tempo da gravação/reprodução dos respetivos depoimentos, transcrevendo-os integralmente e sublinhando alguma das suas passagens - tem-se por cumprido o ónus prescrito pelo artigo 640°, n.°2, al. a) do C.P.C”.

10)Para além de se recusar a apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto com base na falta de cumprimento do ónus previsto na alínea a) do n.° 2 do artigo 640° do C.P.C., o acórdão recorrido entendeu também que a apelante “não indicou em concreto e relativamente a cada ponto da matéria de facto, em que termos deverá cada meio de prova ser ponderado para que se proceda à alteração dos factos provados/não provados requerida, entende-se que não cumpriu o ónus imposto pelo artigo 640°, n° 1, aí. c) do C.P.C., ou seja, o de concretizar em que medida a prova produzida impunha uma decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.

11)O argumento expressamente avançado pelo acórdão recorrido para rejeitar conhecer da impugnação da matéria de facto não foi o incumprimento do ónus de alegação, dito primário, de especificação da “decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (alínea c) do n.° 1 do artigo 640° do C.P.C.), nem mesmo do ónus, dito secundário, da indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso (alínea b) do n.° 2 do artigo 640° do C.P.C.).

12)Procurando interpretar o sentido da fundamentação do acórdão recorrido, dando-lhe um sentido útil, afigura-se ter a Relação entendido que o legislador - ao impor, na referida alínea c) do n.° 1 do artigo 640° do C.P.C., que a recorrente especifique “a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” - exigiria também que a mesma recorrente se pronunciasse sobre a valoração alegadamente correta desses mesmos meios de prova, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada.

13)Pelo que a posição do tribunal a quo em rejeitar, por esse motivo, apreciar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto extravasa as exigências previstas no n.° 1 do artigo 640° do C.P.C.

14)Tendo a recorrente assentado a sua impugnação na documentação junta ao processo e a depoimentos gravados que transcrever, a tarefa de reapreciação imposta pelo artigo 662° do C.P.C, não levanta grande dificuldade, pelo que tendo a recorrente assinalado também os pontos de facto que pretende ver reapreciados, quer nas alegações, quer nas conclusões do recurso, a falta de indicação exata pela "limitação a transcrever excertos", neste contexto, não pode levar à rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, tanto mais que tal impugnação permite quer o exercício esclarecido o contraditório pela recorrida, quer o acesso, pelo tribunal de recurso, sem dificuldade imediata, aos apontados meios de prova.

15)A A. é dona e legítima possuidora dos seguintes prédios urbanos:

a.Prédio urbano sito na Estrada ..., Concelho de ..., Freguesia de ..., ..., com área total de 550 m2, composto de Armazém, com o valor de € 363.000,00, omisso na matriz e não descrito no registo predial;

b.Prédio urbano situado na Estrada ..., Concelho de ..., Freguesia de ..., ..., com área total de 245,10 m2, composto de Armazém, com o valor de €161.766,00, omisso na matriz e não descrito no registo predial.

16)A A. é também dona e legítima possuidora do Posto de Transformação (adiante PT) de Energia Elétrica, Proc. DRE n.°: ...95/E, designado por PT Tipo Cabina Baixa de 160 KVA para o Hiper de Ferramentas de J. Pimentel, sito na Estrada ..., Concelho de ..., Freguesia de..., ..., omisso na matriz e não descrito no registo predial, sendo titular da respetiva licença de exploração de instalações elétricas de serviço particular como Promotor/Entidade Exploradora emitia pela Direção ....

17)O acesso aos ditos Armazéns e PT faz-se, a pé posto e de viatura automóvel, por um trato de terreno que lhes serve de logradouro, que se inicia a Nascente junto à Zona Urbana e que se estende até à fachada Norte dos Armazéns e à fachada Sul do PT.

18)Sendo que a A. é também a dona e legítima possuidora deste logradouro de acesso aos Armazéns ePT.

19)Do n.° 2 do artigo 204° do Código Civil resulta que o prédio ou é rústico ou urbano, não havendo, por isso, para efeitos civis, categoria mista (cfr. Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 16-06-1971: BMJ, 209° - 199).

20)No ano de 2011 a J..., S.A. vendeu o prédio rústico com artigo matricial 142° e descrito na CdRPredial sob o número ...095 à BANIF GO - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A., com sede na Avenida ..., que por sua vez lhe comprou.

21)Para além disso, nesse mesmo ano de 2011, a J..., S.A. celebrou com a BANIF GO -INSITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A. um contrato de locação financeira sobre o prédio rústico com o artigo matricial 142° e descrito na CdRPredial sob o número ...095.

22)Tal compra e venda, assim como a locação financeira, nunca incidiram sobre os dois Armazéns, o PT e o logradouro de acesso acima mais bem identificados.

23)Tanto assim é que a BANIF GO - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A. num outro contrato de locação financeira imobiliária - leasing de aquisição celebrado com F...Lda., obteve da J..., S.A. expressa autorização para conceder servidão de passagem sobre o logradouro para acesso a outro imóvel negociado.

24)No caso dos presentes autos, o prédio rústico foi entregue pela J..., S.A. à BANIF GO -INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A. no estado em que se encontrava ao tempo da venda, somente com a parte rústica.

25)Mais: todos os documentos inerentes aos armazéns, ao PT e ao logradouro de acesso sempre ficaram no domínio e posse da J..., S.A.

26)O que aconteceu, a 06 de maio de 2014, tendo a A. dado de arrendamento este Armazém à T..., Lda., pelo prazo de um ano, renovável por iguais e sucessivos períodos, mediante a retribuição de € 500,00.

27)O banco sempre teve conhecimento que os armazéns e o posto de transformação pertencem nos termos acima expostos à requerida.

28)Até porque, mesmo depois do prédio rústico passar para a esfera jurídica do banco, este veio pedir à requerida para passar uma declaração a autorizar o fornecimento de energia a outros armazéns arrendados ao D... e à A....

29)Em 2012, ocorreu a cisão-fusão entre o BANIF - BANCO INTERNACIONAL ..., S.A. e a BANIF GO - INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A.

30)A 08/07/2016 o BANIF - BANCO INTERNACIONAL ..., S.A. transmitiu em consequência de deliberações do Banco de Portugal o rústico com o artigo matricial 142, descrito na CdRP de ... sob o n.° ...095 à O..., S.A., com sede na Av. ..., conforme AP. ...85 de 2016/07/08.

31)A 13 de agosto de 2021, a O..., S.A. vendeu à A..., que lhe comprou, o rústico com o artigo matricial 142, descrito na CdRPredial de Ponta Delgada sob o n.° 1095.

32)Tal compra e venda nunca incidiu sobre os dois armazéns, o PT e o logradouro de acesso acima identificados.

33)No caso dos autos, o prédio rústico foi entregue pela O..., S.A. à A... no estado em que se encontrava ao tempo da venda, somente com a parte rústica.

34)Ou seja, sem os armazéns, o PT e o logradouro de acesso que não eram, como nunca foram, partes integrantes do prédio rústico.

35)Do exposto resulta que é a R. que viola o direito de propriedade sobre os Armazéns, o PT e o logradouro de acesso aos mesmos, com desrespeito, entre outros, pelo disposto nos artigos 1268°, n.° 1, 1302° e 1303° do Código Civil.

36)A propriedade dos bens imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado no domínio por lei ou negócio jurídico (cfr. artigo 1344°, n.° 1 do Código Civil).

37)O Tribunal recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 640°, n.°1. al. c) e 640°, n.° 2, al. a), todos do Código de Processo Civil, o que se consubstancia numa nulidade.

38)Esta nulidade deve comportar a revogação da decisão proferida pela Relação de Lisboa e dar como provados os factos constantes das alíneas a), b). eh d), e), fh g), hh i), ih kh 1), m) n), o), p). q), r), s), t). x), v). z) e aa). mais dando como não provados os factos constantes dos n.° 3.. na parte "com área total de 12400 m2...", 26., 27., 28.. 29. e 30.

A Ré não contra-alegou.


II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso

A questão submetida a revista consiste em saber se o acórdão da Relação, ao não conhecer da impugnação de facto, violou o art.640 nº1 do CPC.

2.2. – Os factos provados (descritos no acórdão)

1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a importação, comércio por grosso e retalho de ferragens, ferro para betão, barras comerciais, perfis, chapas, tubos e acessórios, sanitários, pavimentos, revestimentos e todos os materiais de construção, máquinas, ferramentas, mobiliário e outro material de escritório, tintas, vernizes e produtos similares, outros produtos novos, aluguer de máquinas e equipamentos e arrendamento de bens imobiliários.

2. A Ré é uma sociedade que se dedica ao comércio de produtos de higiene e limpeza.

3. No âmbito da sua actividade, a Ré adquiriu à Chamada, a 13/08/2021, um prédio rústico, livre de quaisquer ónus e encargos, sito na freguesia ..., na Estrada ...e ..., com área total de 12400 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob a ficha n.º ...19 da dita freguesia e inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo n.º 142, secção 5 da dita freguesia.

4. Tal prédio entrou na esfera patrimonial da Chamada a 08/07/2016, que, por sua vez, o adquiriu ao BANIF - Banco Internacional ..., S.A., -BANCO INTERNACIONAL ..., S.A. que já era proprietário do prédio desde 2012/05/08, na sequência da transmissão por transferência de património decorrente da fusão com o BANIF - Banco Internacional ..., S.A., G..., S.A..

5. Este último adquiriu tal prédio à J. Pimentel, S.A, a 2011/06/27.

6. Em 2011 a J. Pimental, S.A., celebrou com o BANIF GO um contrato de locação financeira sobre tal prédio.

7. Em tal prédio encontram-se, unidos e ligados ao solo com permanência, dois armazéns e um posto de transformação (PT).

8. Os armazéns e o PT encontram-se omissos na matriz predial e não descritos no registo predial.

9. Em finais de Setembro de 2021, a Ré dirigiu-se à Direção ... e averbou em seu nome o Posto de Transformação nº...95/E PT tipo cabine baixa de 160 KVA, sito na Estrada ... 975.

10. Mais arrombou e mudou a fechadura do PT.

11. Na semana de 18 a 22 de Outubro de 2021, a Ré trocou também as fechaduras dos armazéns.

12. A Ré, no mesmo período, construiu um muro em blocos de cimento e colocou um portão a impedir a entrada no logradouro de acesso aos armazéns e ao PT.

13. A 27/10/2021 a Autora arrombou as fechaduras do armazém com 245,10m2, que haviam sido mudadas pela Ré.

14. No âmbito do processo judicial nº 2616/17.7..., que correu termos neste Tribunal, julgou-se improcedente o pedido de reivindicação sobre o prédio rústico referido em 3, formulado por AA contra a Chamada.

15. O acesso aos ditos Armazéns e ao PT faz-se, a pé posto e de viatura automóvel, por um trato de terreno que lhes serve de logradouro, que se inicia a Nascente junto à Zona Urbana e que se estende até à fachada Norte dos Armazéns e à fachada Sul do PT.

16. Este logradouro permite o acesso dos Armazéns e do PT à Zona Urbana e desta à Estrada ... e vice-versa, ou seja, da Estrada ... à Zona Urbana e desta aos Armazéns e ao PT.

17. A J. Pimentel, Lda. por volta do ano de 1997 construiu no prédio rústico referido em 3. os dois Armazéns.

18. A J. Pimentel, Lda., construiu no rústico, a expensas suas, o Armazém com área de 550 m2, o qual destinou a armazém de materiais e outros bens seus e, posteriormente, ao arrendamento para fins comerciais a terceiros.

19. E construiu no rústico, a expensas suas, o Armazém com área de 240 m2, o qual destinou a armazém de materiais e outros bens seus.

20. A J. Pimentel, Lda., construiu, nesse ano de 1997, a expensas suas, um Posto de Transformação para fornecer energia ao conjunto destes armazéns e ainda de outros que lhe pertenciam situados nas imediações.

21. Ainda em 1997, a J. Pimentel, Lda. construiu também, a expensas suas, o logradouro que serve de acesso aos Armazéns e ao PT.

22. A J. Pimentel, Lda., a partir de 1997 passou a usar, gozar e fruir dos dois Armazéns, do PT e do logradouro de acesso, ocupando-os, conservando-os e reparando-os, neles tendo feito melhoramentos, deles retirando e colhendo todos os seus frutos e rendimentos, ou consentindo que o fizessem, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que fosse, de forma pública, pacífica, de boa-fé, ininterrupta e consecutiva, na intenção e convicção de que os dois Armazéns, o PT e o logradouro de acesso, lhe pertenciam, a título principal e exclusivo, como sua dona e possuidora.

23. Em 2003, a J. Pimentel, Lda., mudou o nome para J..., S.A.

24. A J..., S.A. continuou, a partir de 2011, a usar, gozar e fruir dos dois Armazéns, do PT e do logradouro de acesso, ocupando-os, conservando-os e reparando-os, neles tendo feito melhoramentos, deles retirando e colhendo todos os seus frutos e rendimentos, ou consentindo que o fizessem.

25. A Autora deu de arrendamento um armazém à T..., Lda., pelo prazo de um ano, renovável, por iguais e sucessivos períodos, mediante a retribuição de 500,00 € mensais.

(26.) eliminado

27. O preço do negócio celebrado com a O..., S.A. teve por base a inexistência de quaisquer ónus ou encargos no prédio, assim como incluiu todas as construções (…) ali construídas e o PT.

28. A Autora, durante o período em que o imóvel esteve na gestão da O..., S.A., (Julho de 2016 até Agosto de 2021) nunca se dirigiu à Interveniente a arrogar-se proprietária ou possuidora dos armazéns, do PT ou do logradouro existentes no prédio rústico.

29. A Autora tinha perfeito conhecimento da situação jurídica do prédio rústico aqui em causa.

30. A Ré não consegue ainda usufruir de qualquer utilidade económica destes armazéns, nem consegue usufruir de qualquer utilidade económica do prédio rústico, uma vez que os armazéns se encontram a vedar o acesso ao mesmo.

2.3. Os factos não provados (descritos no acórdão)

a) A Autora é dona e legítima possuidora dos seguintes prédios urbanos: Prédio urbano situado na Estrada ..., Concelho de ..., Freguesia de ..., ..., com área total de 550 m2, composto de Armazém, com o valor de 363 000,00 €, omisso na matriz e não descrito no registo predial; Prédio urbano situado na Estrada ..., Concelho de ..., Freguesia de ..., ..., com área total de 245,10 m2, composto de Armazém, com o valor de 161 766,00 €, omisso na matriz e não descrito no registo predial.

b) A Autora é ainda dona e legítima possuidora do Posto de Transformação (adiante PT) de Energia Elétrica, Proc. DRE nº.: ...95/E, designado por PT Tipo Cabina Baixa de 160 KVA para o Hiper de Ferramentas de J. Pimentel, sito na Estrada ..., Concelho de ..., Freguesia de ..., ..., omisso na matriz e não descrito no registo predial.

c) A Autora é também a dona e legítima possuidora do logradouro de acesso aos Armazéns e ao PT.

d) A compra e venda do prédio rústico ao BANIF - Banco Internacional ..., S.A., nunca incidiu sobre os dois Armazéns, o PT e o logradouro de acesso acima identificados.

e) Assim como a locação financeira também nunca incidiu sobre os dois Armazéns, o PT e o logradouro de acesso acima identificados.

f) Após 2011 a J. Pimentel S.A., agia na convicção de que os dois armazéns, o PT e o logradouro de acesso lhe pertenciam, a título principal e exclusivo, como sua dona e possuidora.

g) Em abril de 2012, a J..., S.A., cedeu as benfeitorias existentes no prédio rústico (Um armazém com a área de 552 metros quadrados; um armazém com 245,10 m2 e um Posto de Transformação registado na Direção ...) à J. Pimentel II, Lda.

h) A 3 de abril de 2012 a Autora entrou no domínio e posse dos prédios referidos em a.)

i) A partir de 3 de Abril de 2012, a Autora passou a usar, gozar e fruir dos dois Armazéns, do PT e do logradouro de acesso, ocupando-os, conservando-os e reparando-os, neles tendo feito melhoramentos, deles retirando e colhendo todos os seus frutos e rendimentos, ou consentindo que o fizessem, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que fosse, de forma pública, pacífica, de boa-fé, ininterrupta e consecutiva, na intenção e convicção de que os dois Armazéns, o PT e o logradouro de acesso, lhe pertenciam, a título principal e exclusivo, como sua dona e possuidora.

j) Afirmando-se perante toda a gente como sua dona e possuidora.

k) O banco sempre teve conhecimento que os armazéns e o posto de transformação pertencem à Autora.

l) A compra e venda da O..., S.A. à A... nunca incidiu sobre os dois armazéns, o PT e o logradouro de acesso.

m) Assim como a locação financeira também nunca incidiu sobre os dois Armazéns, o PT e o logradouro de acesso acima identificados.

n) Após esta última compra e venda, a Autora continuou a usar, gozar e fruir dos dois Armazéns, do PT e do logradouro de acesso, ocupando-os,conservando-os e reparando-os, neles tendo feito melhoramentos, deles retirando e colhendo todos os seus frutos e rendimentos, ou consentindo que o fizessem, à vista de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que fosse, de forma pública, pacífica, de boa-fé, ininterrupta e consecutiva, na intenção e convicção de que os dois Armazéns, o PT e o logradouro de acesso, lhe pertenciam, a título principal e exclusivo, como sua dona e possuidora.

o) Tudo sem lesar direitos de outrem.

p) O valor do m2 no local das benfeitorias é de 660,00€.

q) O armazém com a área total de 550 m2 tem o valor de 363 000,00€.

r) O armazém com a área total de 245,10m2 tem o valor de 161 766,00€.

s) O PT tem o valor fixado de 100 000,00€.

t) O logradouro de acesso aos armazéns e ao PT tem o valor fixado de 100.000,00€.

u) Em todos os relatórios económicos publicamente acessíveis nas plataformas de análise económica das empresas, consta que a autora tem uma ação judicial em que figura como ré e cujo valor em causa é de 674 766,00€, abalando a reputação financeira e económica da ré.

v) Os fornecedores da ré estão até a estipular prazos de pagamentos mais curtos, ou até a pronto-pagamento, para o fornecimento de bens e serviços à ré, prejudicando a capacidade económica da ré e o seu equilíbrio financeiro e que são consequência directa da publicidade da presente ação.

w) Com a necessidade de estar constantemente em alerta devido aos comportamentos da autora e o do seu alegado inquilino, a ré deixou de atender atempadamente os seus clientes, provocando atrasos nas entregas das suas encomendas, dando origem a várias reclamações por parte dos seus clientes.

x) No armazém com a área de 245,10m2 a Autora tem armazenados materiais com um valor estimado de 15 000,00€.

y) A Autora está impedida de aceder ao armazém e de proceder à retirada dos bens.

z) Quando o PT for alvo de manutenção irá necessitar de trabalhos e peças de conservação de valores nunca inferiores a 5 000,00€.

aa) A Ré alega de forma dolosa que os imóveis em causa nestes autos são sua propriedade.

2.4. O não conhecimento da impugnação de facto e a violação do art.640 nº1 CPC.

A revisão do Código de Processo Civil, operada pelo Dec. Lei nº329-A/95 de 12/2, instituiu, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que foi reforçada com o novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26/6 (art. 662), nomeadamente quanto à incrementação dos poderes conferidos à Relação no âmbito da reapreciação de facto.

No entanto, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume um espectro tão abrangente que implique um novo e integral julgamento de facto. Desde logo, porque a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.640 nº2 CPC (ónus de especificação).

A razão de ser da exigência do ónus da especificação consta do preâmbulo do Dec. Lei nº39/95 de 15/2, visando afastar a possibilidade de o recorrente se limitar “a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo pura e simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância e manifestando genérica discordância com o decidido”, decorrendo ainda dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa-fé processuais.

Por seu turno, a jurisprudência constitucional tem reiteradamente afirmado que a imposição de ónus e preclusões processuais às partes no âmbito do processo civil, inserindo-se na liberdade de conformação do legislador ordinário, não é, em princípio, incompatível com a garantia fundamental de acesso ao direito e à justiça (art.20 CRP). Mas tais ónus e preclusões já afrontam a constituição e o direito a um processo equitativo quando haja uma injustificada desproporção entre a falta e a sanção cominada, dificultando ou inviabilizando actuação das partes pondo em causa o acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva. No tocante à imposição de ónus às partes, o Tribunal Constitucional tem decidido que o juízo de proporcionalidade implica três factores: a justificação da exigência processual, a maior ou menor onerosidade por parte do interessado e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento do ónus (cf., por ex., Ac TC nº do 332/07, nº 760/13, nº 639/14, nº 96/16).

Dispõe o art.640 nº1 CPC:

“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

“a) - Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

“b) - Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.”

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de factos impugnadas”.

Os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação, o mesmo sucede quanto à exigência da decisão alternativa, conforme fixação de jurisprudência, através do AUJ nº12/2023 de 17/10/2023, publicado no DR 1ª Série de 14/11/2023.

Para além deste ónus primário, a lei impõe ainda um ónus secundário (art.640 nº2 a) CPC), pois quando os meios de prova tenham sido gravados “incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando que “Na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” ( Ac STJ de 28/4/2016 ( proc nº 1006/12), Ac STJ de 21/3/2019 ( proc nº 3683/16) em www dgsi , ou que “ a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art. 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco” ( Ac STJ de 4/6/2020 (proc nº 1519/18, em www dgsi.).

A Autora no recurso de apelação impugnou a matéria de facto, com as seguintes conclusões:

“1ª A recorrente não se conforma com a decisão judicial proferida, porquanto a mesma fez errada decisão da matéria de facto e menos correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, como a seguir se vai demonstrar.

2ª No conjunto da prova produzida, de acordo com as regras da experiência comum:

i) os Factos Provados 3. na parte “… com área total de 12400 m2…”, 26., 27., 28., 29. e 30. devem ser considerados como NÃO PROVADOS;

ii) os Factos Não Provados a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l), m), n), o), p), q), r), s), t), x), y), z), aa) devem ser considerados como PROVADOS.

3ª Com base nas Declarações de Parte: da A. na pessoa do seu legal representante BB, que constam gravadas no sistema digital “Habilus media studio” disponível na aplicação informática Citius em uso no Tribunal, em 17-10-2022, das 10h:48m às 11h:49m, Duração: [00:00:00 a 01:01:43], com relevo para este recurso de 0:05:09.8 a 0:05:56.9; 0:06:02.1 a 0:07:05.6; 0:07:15.5 a 0:08:10.1; 0:08:10.3 a 0:10:10.8; 0:10:39.2 a 0:11:02.8; 0:11:40.7 a 0:12:03.6; 0:12:06.7 a 0:12:50.7; 0:13:18.9 a 0:14:04.6; 0:14:26.2 a 0:14:57.4; 0:15:06.9 a 0:15:16.1; 0:43:47.4 a 0:44:49.2; 0:44:54.0 a 0:47:37.4; 0:48:00.5 a 0:48:23.2; 0:48:34.4 a 0:49:58.2; 0:49:59.6 a 0:50:47.5; 0:51:02.4 a 0:51:30.5; 0:52:24.2 a 0:53:26.9; 0:53:48.5 a 0:53:56.6; 0:54:22.8 a 0:54:40.8; 0:55:13.0 a 0:55:43.9; 0:56:47.6 a 0:57:13.7; 0:57:20.1 a 0:57:58.0; 0:58:10.9 a 0:59:58.0.; da R. na pessoa do seu legal representante CC, que constam gravadas no sistema digital “Habilus media studio” disponível na aplicação informática Citius em uso no Tribunal, em 17-10-2022, das 11h:51m às 12h:17m, Duração: [00:00:00 a 00:25:48], com relevo para este recurso de 0:04:52.6 a 0:04:59.6; 0:08:13.5 a 0:08.19.0; 0:12.27.2 a 0:12.53.1; 0:16.12.0 a 0:16:34.1.

4ª Com base na Prova Testemunhal de: DD, que constam gravadas no sistema digital “Habilus media studio” disponível na aplicação informática Citius em uso no Tribunal, em 17-10-2022, das 12h:18m às 13h:07m, Duração: [00:00:00 a 00:49:19], com relevo para este recurso de 0:01:10.7 a 0:01:22.2; 0:01:47.9 a 0:01:54.2; 0:02:05.0 a 0:02:51.7; 0:02:57.0 a 0:04:29.4; 0:04:30.1 a 0:05.07.2; 0:05:08.8 a 0:06:44.5; 0:06:48.9 a 0:08:26.1; 0:08:41.3 a 0:11:23.3; 0:011:29.9 a 0:13:08.0; 0:13:24.6 a 0:14:06.4; 0:14:45.6 a 0:15:43.7; 0:15:47.0 a 0:16:34.7; 0:16:40.5 a 0:17:29.1; 0:17:33.8 a 0:18:56.1; 0:21:24.0 a 0:21:33.8; EE, que constam gravadas no sistema digital “Habilus media studio” disponível na aplicação informática Citius em uso no Tribunal, em 17-10-2022, das 13h:07m às 13h:21m, Duração: [00:00:03 a 00:13:46], com relevo para este recurso de0:01:08.3 a 0:02:45.5; 0:02:46.0 a 0:04:03.7; 0:04:24,4 a 0:04:39.8; 0:05:26.3 a 0:05:32.8; 0:09:25.9 a 0:10:12.5; 0:10:27.5 a 0:10:37.4; 0:10:55.5 a 0:11:15.8: 0:11:52.2 a 0:12:07.1; 0:12:25.6 a 0:12:43.9; FF, que constam gravadas no sistema digital “Habilus media studio” disponível na aplicação informática Citius em uso no Tribunal, em 17-10-2022, das 13h:22m às 13:31 m, Duração: [00:00:00 a 00:08:37], com relevo para este recurso de 0:00:16.6 a 0:00:36.4; 0:01:07.1 a 0:01:11.8 0:01:35.0 a 0:02:44.4; 0:02:53.4 a 0:03:05.8; 0:03:12.2 a 0:03:30.7; 0:03:33.3 a 0:04:05.5; 0:04:36.4 a 0:04:47.1; 0:05:33.2 a 0:05:34.3; 0:06:22.1 a 0:06:26.5; 0:07:11.0 a 0:07:18.1; GG, que constam gravadas no sistema digital “Habilus media studio” disponível na aplicação informática Citius em uso no Tribunal, em 17-10-2022, das 15h:04m às 15h:19m, Duração: [00:00:02 a 00:15:17], com relevo para este recurso de 0:00:16.8 a 0:00:34.4; 0:01:31.5 a 0:03:13.5; 0:03:13.7 a 0:11:09.9; 0:11:26.0 a 0:12:38.6; 0:12:56.5 a 0:14:22.2; HH, que constam gravadas no sistema digital “Habilus media studio” disponível na aplicação informática Citius em uso no Tribunal, em 17-10-2022, das 15h:19m às 15h: 43m, Duração: [00:00:00 a 00:23:28], com relevo para este recurso de 0:00:47.6 a 0:02:52.2; 0:03:04.6 a 0:04:04.2; 0:04:16.2 a 0:06:04.6; 0:06:04.8 a 0:06:33.0; 0:06:39.4 a 0:07:18.7; 0:07:33.2 a 0:07:38.0; 0:08:37.6 a 0:09:13.6; 0:10:33.9 a 0:11:23.9; 0:11:27.4 a 0:12:02.6; 0:12:36.6 a 0:12:42.5; 0:14:12.6 a 0:14:31.4; 0:14:46.3 a 0:14:59.9; 0:18:35.8 a 0:18:46.7; 0:21:19.2 a 0:21:44.1; 0:22:34.9 a 0:23:00.9; II, que constam gravadas no sistema digital “Habilus media studio” disponível na aplicação informática Citius em uso no Tribunal, em 17-10-2022, das 15h:43m às 15h:50m, Duração: [00:00:01 a 00:07:21], com relevo para este recurso de 0:00:24.6 a 0:00:48.2; 0:01:28.3 a 0:01:53.3; 0:02:07.0 a 0:02:11.9; 0:02:23.9 a 0:02:47.2; 0:02:54.3 a 0:04:00.2.

5ª Com base na Prova Documental composta por: Documento 1 junto com a p.i.; Documento 2 junto com a p.i.; Documento 3 com a p.i.; Documento 4 junto com a p.i.; Documento 5 junto com a p.i.; Documento 6 junto com a p.i.; Documento 7 junto com a p.i.; Documento 8 junto com a p.i.; Documento 9 junto com a p.i.; Documento 10 junto com a p.i.:Documento 11 junto com a p.i.; Documento 12 junto com a p.i.; Documento 1 junto com a oposição ao procedimento cautelar apenso aos autos principais; Relatório de Avaliação realizado em 2016 pela sociedade L..., Lda. junto aos autos em 24 de Outubro de 2022; Recibos de pagamento de rendas:

6ª Com base na Prova por Inspeção Judicial ao Local.

7ª Acresce que o Facto Provado em 26, reveste natureza jurídico – conclusiva, cuja utilização não é neutra do ponto de vista valorativo da existência dos armazéns, a afirmação de que estes foram construídos de forma ilegal, devendo tal facto ser dado como não provado ou, caso assim não se entenda, como não escrito, porque o Tribunal recorrido violou por erro de interpretação e aplicação, entre outros, o disposto no artigo 607º, nºs 2, 3 e 4 do C.P.C.

8ª O Tribunal recorrido fez errada decisão da matéria de facto.”

A Relação rejeitou o recurso de facto “ por considerar que a Recorrente não indicou em concreto e relativamente a cada ponto da matéria de facto, em que termos deverá cada meio de prova ser ponderado para que se proceda à alteração dos factos provados/não provados requerida, entende-se que não cumpriu o ónus imposto pelo art.º640 n.º1, c) do CPCivil, ou seja, o de concretizar em que medida a prova produzida impunha uma decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, pelo que se rejeita a apreciação da impugnação deduzida, mantendo-se a factualidade fixada em 1ª instância, com uma única ressalva a do facto provado sob o nº 26.”

Verifica-se que a Autora no recurso de apelação deu cabal cumprimento ao ónus de especificação aos concretos pontos de facto impugnados, individualizando os mesmos (art.640 nº1 a)), e ao ónus de especificação da decisão alternativa (art.640 nº1 c)).

Coloca-se a questão de saber se a Autora deu ou não cumprimento ao ónus imposto no art.640 nº 1 b), sendo este o verdadeiro enfoque do recurso de revista.

Numa primeira observação, importa sublinhar que os três ónus do art.640 nº1 CPC, chamados de ónus primários, estão relacionados entre si, pelo que a finalidade de cada um deles advém da relação com os demais.

Perante a redacção do art.640 nº1 b) CPC e a sua interpretação sistemática e teleológica não basta indicar os meios de prova, sendo indispensável colimar cada um dos concretos meios probatórios a cada um dos pontos concretos de facto impugnados e à decisão alternativa.

Esta exigência resulta, desde logo, da interpretação literal visto que a lei refere os “concretos meios probatórios (…) que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art.640 nº1 b)) sendo que os meios probatórios devem ser invocados “como fundamento do erro na apreciação das provas” (art.640 nº2 a)).

Por outro lado, tanto a interpretação sistemática, no sentido de cada um dos requisitos do art.640 nº1 devem ser lidos em conjugação entre si e com o art.662 nº1, como a teleológica, ou seja, a finalidade da indicação dos meios probatórios, que se destina a aferir do eventual erro no julgamento de facto, corrobora o entendimento de que não basta a indicação dos concretos meios de prova, sendo indispensável que a parte demonstre aa razões pelas quais eles impõem decisão diversa relativamente a cada um dos pontos de facto impugnados ( cf., por ex., Ac. do STJ, de 30/11/2023 (Processo nº556/21.4T8PNF.P1.S1).

Muito embora nas conclusões do recurso a recorrente tenha indicado apenas os meios de prova, já na motivação explicita a sua divergência com a análise da prova e liga cada um dos elementos probatórios aos concretos pontos de facto impugnados.

Assim, constata-se pela leitura do corpo das alegações que a recorrente a seguir a cada depoimento de parte e das testemunhas indicou com precisão a passagens da gravação, transcreveu os excertos, faz um resumo de cada um dos excertos, salientando os aspectos que entende relevantes, e após indica os pontos a que se reporta tais declarações ou depoimentos, escrevendo o seguinte:

“A testemunha declarou com razão e ciência, de forma calma, objectiva, imparcial, congruente e credível, pelo que no conjunto da prova produzida, de acordo com as regras da experiência comum, as suas declarações servem para que

i)Os factos provados 3 na parte “com área total de 12.400m2”, 26., 27., 28., 20. e 30. sejam considerados NÃO PROVADOS.

ii)Os Factos não provados a), b), c), d), e), f), g), h), i), j), k), l), m), n), o), p), q), r), s), t), x), y), z), aa) sejam considerados como PROVADOS.”

Quanto à prova documental, individualiza cada um dos documentos, com cópia dos mesmos, salienta a sua relevância, faz a análise crítica (“documento resulta que”, ou “Por este documento constata-se o que segue”) e indica os pontos de facto a que se reportam. O mesmo sucede quanto à prova por inspecção judicial.

Pois bem, uma vez que a cada meio de prova indicado referenciou os pontos de facto a que se destinam, a circunstância de se reportarem ao conjunto dos factos impugnados não é suficiente para a rejeição do recurso de facto. Não obstante cada um dos elementos de prova haver sido indicado aos mesmos factos impugnados, a sua pertinência só poderá ser feita aquando da valoração.

Como se decidiu no Ac STJ de 14/1/2021 (proc nº 1121/13.5.5TVL.SB. L1), disponível em www dgsi.pt - “Embora, a impugnação da matéria de facto deva, em princípio, especificar, relativamente a cada facto impugnado, quais os meios de prova que justificam um diferente resultado de prova, nada impede que, quando as razões invocadas para a alteração de vários factos, sejam precisamente as mesmas, essa indicação seja dirigida, em bloco, a toda essa factualidade. Necessário é, que seja compreensível quais os meios de prova e quais as razões pelas quais o impugnante sustenta que o resultado da prova, relativamente a esses factos, deve ser alterado”.

Por outro lado, visando o ónus de especificação do 640 CPC também garantir “o exercício do contraditório pela contraparte que, ao ser confrontada com uma impugnação genérica e/ou confusa, verá acentuadamente dificultada a sua capacidade de resposta, pela consequente incompreensão das razões para a alteração de facto assim deficientemente apresentadas” (Ac STJ de 15/6/2023 (proc. nº 1929/20.5T8VRL.G1), em www dgsi ), a Ré/recorrida compreendeu perfeitamente as razões da recorrente, as quais contraditou, como se evidencia pelas contra-alegações na apelação.

Deste modo, porque houve violação dos arts.640 e 662 nº1 CPC, impõe-se a anulação do acórdão, devendo a Relação conhecer do recurso quanto à impugnação de facto.

2.5. – Síntese conclusiva

1.- Para o cumprimento do ónus de especificação do art.640 nº1 do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação.

2.- Tanto a interpretação literal, como sistemática e teleológica do art.640 nº1 b) CPC apontam no sentido de que a indicação dos meios probatórios, destina-se a aferir do eventual erro no julgamento de facto, pelo que não basta a indicação dos concretos meios de prova, sendo indispensável que a parte demonstre as razões pelas quais eles impõem decisão diversa relativamente a cada um dos pontos de facto impugnados.

3.- Não deve ser rejeitado o recurso de facto se no corpo das alegações o recorrente a seguir a cada depoimento de parte e das testemunhas indicou com precisão a passagens da gravação, transcreveu os excertos, faz um resumo de cada um dos excertos, salientando os aspectos que entende relevantes, e após indica os pontos a que se reporta tais declarações ou depoimentos, com a decisão alternativa.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:

1)

Julgar procedente a revista, anular o acórdão recorrido e determinar a baixa do processo ao Tribunal da Relação para, se possível pelos mesmos Ex.mos Desembargadores, ser conhecida a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e ser proferida decisão de direito em conformidade.

2)

Custas da revista a cargo da parte vencida a final.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Fevereiro de 2024.

Jorge Arcanjo (Relator)

Nelson Borges Carneiro

Pedro de Lima Gonçalves