Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1220/15.9T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: LITISPENDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
QUESTÃO PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
SEGURADORA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / EXECPÇÕES DILATÓRIAS ( EXCEÇÕES DILATÓRIAS ) / SENTENÇA ( NULIDADES ).
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO.
Doutrina:

- ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, 301.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 3, 272.º, 576.º, N.º 2, E 577.º, 580.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA I), 581.º, 615.º, N.º 1, ALÍNEA C),
Sumário :
I. A litispendência, pressupondo a repetição da mesma ação em dois processos, depende, pois, da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir, de modo a evitar contradizer ou reproduzir decisão anterior.

II. A litispendência pode andar próxima da situação prejudicial, na qual pode existir, também, o risco de contradição ou reprodução de uma decisão judicial anterior.

III. Estando pendente causa prejudicial, a solução passa pela suspensão da instância, nomeadamente nos termos previstos no art. 272.º do Código de Processo Civil.

IV. Os sujeitos da ação não são idênticos, quando a ré, devedora solidária, responde por obrigação própria, resultante de contrato de seguro, diferente da obrigação do demandado na outra ação, essa com origem na responsabilidade civil por facto ilícito.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – RELATÓRIO

AA instaurou, em 28 de abril de 2015, nos Juízos Centrais Cíveis de …, Comarca de …, contra BB (Europe), Lda., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 125 000,00, acrescida dos juros desde a notificação judicial avulsa de 24 de maio de 2012.

Para tanto, alegou, em síntese, que, no âmbito da ação de regulação do exercício da responsabilidade parental que, sob o n.º 325/08.7TBSTR, correu termos no então 3.º Juízo Cível da Comarca de …, onde a A. era Juíza de Direito, CC, advogado, deduziu, em representação da Requerida, em 4 de junho de 2009, incidente de suspeição visando-a, afirmando no requerimento, designadamente, a existência de “inimizade grave da Juíza em Relação à Requerida” e “uma grande intimidade” com o Requerente, factos falsos e ofensivos da sua honra pessoal e profissional, os quais lhe causaram danos não patrimoniais que justificam ser indemnizados e pelos quais responde a R., nos termos do contrato de seguro, celebrado entre aquela e a Ordem dos Advogados Portugueses.

Contestou a R., suscitando, designadamente, a exceção de litispendência, na medida em que afirma haver identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, nomeadamente com a ação n.º 953/09.3TASTR, ainda pendente.

Respondeu a A., no sentido da improcedência da litispendência.

Seguiu-se, em 15 de março de 2016, a prolação do despacho saneador, no qual, sendo julgada procedente a exceção de litispendência, foi a R. absolvida da instância.

Inconformada, a A. recorreu, para o Tribunal da Relação de Évora, que, por acórdão de 17 de novembro de 2016, confirmou o despacho saneador.

Inconformada também com esse acórdão, a Autora, em revista excecional, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:

a) O acórdão recorrido violou o art. 581.º, n.º 2, do CPC, por omissão, na medida em que não ponderou a natureza do demandado no processo n.º 953/09.3TASTR e da R. nos presentes autos, condição necessária para poder apreciar as respetivas posições “sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”.

b) Tal omissão gera a nulidade do acórdão (art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC).

c) A R. é uma responsável direta relativamente à obrigação.

d) No caso presente, a responsabilidade solidária da R. decorre da lei sobre o seguro obrigatório e o contrato de seguro.

e) Na presente ação não houve lugar à substituição entre o Demandado no processo n.º 953/09.3TASTR e da R. neste processo.

f) A Demandada Seguradora intervém por direito próprio.

g) Não existe uma identidade da parte.

h) O acórdão recorrido violou, além do art. 581.º, n.º 2, do CPC, os arts. 32.º e 35.º do CPC.

i) O acórdão recorrido violou a força de caso julgado do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de maio de 2013, proferido no processo n.º 953/09.3TASTR, no sentido de que o Demandado civil e a BB (Europe), Lda., não eram um único sujeito, com violação do disposto no art. 620.º do CPC.

j) O acórdão recorrido violou o disposto no art. 30.º do CPC, em conjugação com os n.ºs 1 e 3 do art. 99.º do EOA e os arts. 146.º, n.º 1, e 147.º, n.º 1, do regime do contrato de seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, bem como nos arts. 522.º e 523.º do Código Civil.

k) O acórdão recorrido viola ainda os arts. 623.º e 624.º do CPC.

Com o recurso, a Autora pretende a revogação do acórdão recorrido, com o prosseguimento da ação.

A a Ré não contra-alegou.

Por acórdão de 25 de maio de 2017, a Formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, admitiu a revista para “a melhor aplicação do direito”, nos termos da alínea a) do n.º 1 daquele art. 672.º.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Nesta revista, para além da nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, está em discussão, essencialmente, a não verificação da exceção de litispendência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. Por sentença de 18 de setembro de 2015, não transitada em julgado, CC, advogado, foi condenado a pagar à A. a quantia de € 15 000,00, “a título de indemnização por danos não patrimoniais”, com base nos factos descritos a fls. 183 a 203.

2. A R. e a Ordem dos Advogados de Portugal celebraram um contrato de “seguro de responsabilidade civil profissional (por erros e omissões)”, titulado pelas apólices n.º s DP/01018/11/C e DP/02416, juntas a fls. 114 a 160.

3. Na presente ação, a A. peticiona a condenação da R. no pagamento da quantia de € 125 000,00, a título de danos morais, com base em factos que consubstanciam a violação da sua personalidade moral, designadamente o seu bom nome, a dignidade profissional e a honra diretamente relacionados com o exercício da profissão de magistrada judicial.

4. No processo referido em 1., que corre termos no Juízo Criminal da Comarca de Santarém (n.º 953/09.3TASTR), a Assistente, ora A., deduziu pedido de indemnização cível, por danos não patrimoniais, contra o Arguido, CC, no valor de € 125 000,00.


***

2.2. Descrita a dinâmica processual relevante, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente a questão da litispendência.

Preliminarmente, interessa apreciar a arguida nulidade do acórdão recorrido, nomeadamente por omissão de pronúncia, deduzida ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (CPC), por falta de ponderação da natureza do Demandado na outra ação e da R. nesta, condição necessária para a apreciação das respetivas posições “sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”

Na verdade, o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, sem prejuízo daquelas que sejam de conhecimento oficioso, sendo certo que, no caso do recurso, a amplitude das questões é definida pelas respetivas conclusões, conjugadas naturalmente com o pedido, a causa de pedir ou a matéria de exceção da ação.

Na apelação interposta, estava essencialmente em discussão a situação da não verificação dos requisitos da exceção dilatória de litispendência, e que a 1.ª instância julgara procedente, absolvendo a Recorrida da instância.

A Relação, por sua vez, pronunciou-se sobre essa questão, decidindo no sentido da confirmação do despacho da 1.ª instância, nomeadamente, da verificação da litispendência, desenvolvendo em consonância a argumentação correspondente.

Resolvida a questão essencial da litispendência, cumpriu a Relação o seu dever de cognição, sendo certo que, para o efeito, não se pode confundir a questão, com o sentido técnico-jurídico reconhecido, com o argumento usado na alegação.

Naturalmente, a decisão judicial deve apreciar toda a alegação, o que lhe pode conferir mais qualidade, ou mérito, mas o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, para além de que o tribunal também é livre, na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do CPC), e, muitas vezes, alguns dos argumentos invocados chegam ainda a ficar prejudicados por outros, designadamente por efeito de inutilidade ou menor valia.

A decisão judicial, para além da apreciação de todas as questões que importa conhecer, deve revelar-se convincente na sua fundamentação, de modo a ser perfeitamente compreendida, ainda que, porventura, as partes possam discordar do seu sentido.

Neste contexto, o acórdão recorrido, no qual se conheceu da única questão jurídica que importava, não padece de nulidade, por omissão de pronúncia.

Assim, improcede a arguição da nulidade do acórdão recorrido.

2.3. A Recorrente, insistindo na discordância com o julgado, reitera a sua alegação, nomeadamente de que não se verifica a exceção de litispendência, porquanto nas duas ações, designadamente os sujeitos (passivos), não são idênticos, requisito que constitui verdadeiramente o pomo da discórdia.

A litispendência constitui uma exceção dilatória cuja verificação obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância – arts. 576.º, n.º 2, e 577.º, alínea i), do Código de Processo Civil (CPC).

A exceção de litispendência pressupõe a repetição de uma causa, quando a anterior ainda está em curso, tendo por fim, assim como na exceção dilatória do caso julgado, evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior – art. 580.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Com a consagração do efeito da litispendência obsta-se à inutilidade da repetição da decisão judicial, em processos diferentes, para a mesma ação, e salvaguarda-se, também, o prestígio da administração da justiça contra o risco de grave dano que podia resultar do tribunal contradizer ou reproduzir outra decisão judicial (ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 301).

De harmonia com o disposto no art. 581.º, n.º 1, do CPC, repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir; há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (n.º 2); há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (n.º 3); há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo efeito jurídico (n.º 4).

A litispendência, pressupondo a repetição da mesma ação em dois processos, depende, pois, da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir, de modo a evitar contradizer ou reproduzir decisão anterior.

A litispendência pode andar próxima da situação prejudicial, na qual, não ocorrendo aquela, pode existir, também, o risco de contradição ou reprodução de uma decisão judicial anterior. Neste caso, estando pendente causa prejudicial, a solução passa pela suspensão da instância por determinação do juiz, nomeadamente nos termos previstos no art. 272.º do CPC.

No caso sub judice, está especialmente em causa o requisito da identidade de sujeitos, que a Recorrente entende não se verificar, ao contrário das instâncias.

Contudo, quanto à identidade da causa de pedir, não existe coincidência total, visto que a Recorrida, na ação, é demandada com fundamento no facto ilícito e no contrato de seguro, enquanto na outra ação o fundamento baseia-se, exclusivamente, no facto ilícito. A alegada obrigação assumida no contrato de seguro constitui fundamento substantivo da ação, integrando, para além do mais, a causa de pedir.

Mas independentemente disso, também não se pode afirmar que as partes sejam as mesmas nos dois processos.

Desde logo, quanto aos sujeitos passivos, as pessoas são distintas, intervindo aqui a Recorrida, enquanto parte do contrato de seguro, enquanto no outro processo intervém o segurado, como autor do facto ilícito.

Embora, em concreto, se trate de pessoas diferentes, pode acontecer terem a mesma qualidade jurídica e, assim, existir uma identidade de sujeitos na ação, relevante para efeitos de preenchimento da litispendência.

Mas isso, porém, não sucede, pois a sua qualidade jurídica, ainda que devedores do mesmo credor, não é coincidente. Efetivamente, a Recorrida é parte passiva, nesta ação, por efeito do contrato de seguro, onde assumiu a obrigação de reparar certos danos causados no exercício da advocacia, sendo a responsabilidade civil solidária com a do advogado, o que significa que ambos podem responder perante a credora.

A Recorrida, devedora solidária, responde por obrigação própria, resultante de contrato, diferente da obrigação do demandado na outra ação, essa com origem na responsabilidade civil por facto ilícito. Por isso, sendo distintas as obrigações, a Recorrida não pode suceder ao demandado da outra ação na mesma obrigação.

No entanto, pode existir o perigo de repetição ou contradição da decisão com a da outra ação, dado o sujeito ativo e o efeito jurídico, para além de parte da causa de pedir, serem idênticos nas duas ações, e que naturalmente importa acautelar.

Todavia, esta situação pode ficar devidamente salvaguardada mediante a suspensão da instância, nos termos do disposto no art. 272.º, n.º 1, do CPC.

Nas circunstâncias descritas, é manifesto que não se verifica a identidade de sujeitos passivos nesta ação, quando confrontada com a ação penal na qual foi deduzido o pedido de indemnização cível, o que obsta ao reconhecimento da exceção de litispendência e ao efeito jurídico emergente.

Assim, sem a procedência da litispendência, não podia a Recorrida ter sido absolvida da instância, devendo os autos prosseguir os seus termos normais, o que motiva a concessão da revista.

2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. A litispendência, pressupondo a repetição da mesma ação em dois processos, depende, pois, da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir, de modo a evitar contradizer ou reproduzir decisão anterior.

II. A litispendência pode andar próxima da situação prejudicial, na qual pode existir, também, o risco de contradição ou reprodução de uma decisão judicial anterior.

III. Estando pendente causa prejudicial, a solução passa pela suspensão da instância, nomeadamente nos termos previstos no art. 272.º do Código de Processo Civil.

IV. Os sujeitos da ação não são idênticos, quando a ré, devedora solidária, responde por obrigação própria, resultante de contrato de seguro, diferente da obrigação do demandado na outra ação, essa com origem na responsabilidade civil por facto ilícito.

2.5. A Recorrida, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade, consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e determinando o seu prosseguimento normal.

2) Condenar a Recorrida (Ré) no pagamento das custas.

Lisboa, 6 de julho de 2017



Olindo Geraldes (Relator)


Nunes Ribeiro


Maria dos Prazeres Beleza