Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
348/23.6T8OHP-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
LEI DE PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
LEGALIDADE
RECURSO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 01/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. O habeas corpus, previsto no artigo 31.º, n.º 1, da Constituição como direito fundamental contra o abuso de poder, por detenção ou prisão ilegal, constitui uma providência expedita e urgente de garantia privilegiada do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição. A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no artigo 27.º da Constituição, sem lei ou contra a lei.

II. O direito à liberdade consagrado e garantido no artigo 27.º da Constituição, que se inspira no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), é o direito à liberdade física, de “ir e vir”, à liberdade ambulatória ou de locomoção, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço; este direito visa proteger a liberdade física da pessoa contra a detenção e contra a prisão arbitrária ou abusiva, conferindo o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos expressa e excecionalmente previstos na lei, que deve reunir os necessários requisitos de certeza e previsibilidade, e de acordo com os procedimentos legalmente previstos, nomeadamente quanto à garantia de apreciação e controlo judicial e aos prazos de duração, como tem sido afirmado em jurisprudência firme do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).

III. O habeas corpus constitui um meio de tutela que abrange qualquer forma de privação da liberdade não admitida pelo artigo 27.º da Constituição e pelo artigo 5.º da CEDH, aqui se incluindo a privação da liberdade de uma criança, fora das condições legais, por sujeição a medida de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado [artigo 27.º, n.º 3, al. e), da Constituição] ou a detenção de um menor feita com o propósito de o educar sob vigilância [na formulação do artigo 5.º, n.º 1, al. d), da CEDH], no seu interesse, compreendendo muitos aspetos dos direitos e responsabilidades parentais para benefício e proteção da criança, independentemente de esta ser suspeita da prática de facto qualificado como crime ou de ser uma criança em risco.

IV. Neste caso, a medida de “detenção” ou privação da liberdade de uma criança, admitida pela Constituição e pela CEDH, só é legal se for aplicada por um tribunal e estiver expressamente prevista em lei acessível e suficientemente precisa quanto aos seus pressupostos, condições e finalidade, que devem respeitar os princípios da necessidade e proporcionalidade em função do superior interesse da criança e do fim visado, e quanto ao processo de aplicação, prazos e controlo judicial.

V. O âmbito de proteção abrange a privação total e a privação parcial da liberdade, que não se confunde com as restrições ao direito de deslocação, garantido pelo artigo 44.º da Constituição e pelo artigo 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH (como tem sublinhado a jurisprudência do TEDH).

VI. Embora o regime do habeas corpus se encontre estabelecido nos artigos 220.º a 224.º do CPP, no capítulo referente aos «modos de impugnação» das medidas de coação, uma interpretação conforme à Constituição obriga a conferir-lhe um âmbito de proteção mais alargado, de modo a abranger todos os casos previstos no n.º 3 do artigo 27.º da Constituição, incluindo a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado.

VII. Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão de uma das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

VIII. A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, não se destina a apreciar o mérito de decisões judiciais, nem a sua execução; trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios processuais próprios de intervenção e reação.

IX. As medidas de promoção e proteção, em que se inclui o acolhimento residencial, previstas no  artigo 35.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), que podem ser aplicadas pelo tribunal a título cautelar, como sucedeu neste caso, fundam-se nos artigos 67.º, 68.º e 69.º da Constituição e visam afastar o perigo em que estes se encontram e proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral (artigo 34.º da LPCJP).

X. A violação ou omissão do cumprimento das responsabilidades parentais pode constituir motivo que legitima a intervenção para promoção e proteção, nos termos do artigo 3.º da LPCJP, mediante o exercício, por outrem, dos poderes e deveres que integram essas responsabilidades, devendo as questões que lhes digam respeito, em caso de conflito, ser objeto de apreciação e decisão no âmbito do correspondente processo, nos termos legalmente previstos.

XI. A privação da liberdade por efeito da aplicação da medida de acolhimento residencial [artigo 35.º, n.º 1, al. f), da LPCJP], decidida por um tribunal, fundamenta-se em lei expressa, quer no que respeita à sua justificação e necessidade, quer no se refere ao procedimento, e visa a realização de propósitos fixados na lei, estando afastada qualquer arbitrariedade na decisão, em respeito pelas exigências do artigo 27.º, n.º 3, al. e), da Constituição.

XII. A aplicação da medida não ocorreu para realização de finalidade diversa, destinada a manter a criança confinada num espaço, sem possibilidade de sair desse espaço, numa situação de privação da liberdade de se movimentar; as restrições da liberdade da criança que o cumprimento da medida possa implicar não se confundem com a privação total ou parcial da liberdade por virtude da detenção ou prisão a que se referem as demais alíneas do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição.

XIII. Os fundamentos da petição de habeas corpus reconduzem-se a uma discordância quanto à decisão que aplica a medida de acolhimento residencial da criança, que a peticionante pretende seja declarada ilegal e substituída pela medida de apoio junto da mãe [artigo 35.º, n.º 1, al. a), da LPCJP], o que deve ser discutido, analisado e decidido no processo de promoção e proteção, estando assegurada a possibilidade de recurso (artigo 123.º da LPCJP).

XIV. Não compete ao Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da providência de habeas corpus, apreciar atos processuais ou o mérito da decisão de aplicação da medida.

XV. Em consequência, não ocorrendo qualquer das situações a que se refere o n.º 2 do artigo 222.º do CPP, deve concluir-se que o pedido carece manifestamente de fundamento, devendo ser indeferido (artigo 223.º, n.º 6, do CPP).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, mãe da menor BB, a quem o Tribunal de Competência Genérica de ... aplicou a medida provisória de acolhimento residencial, nos termos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo («LPCJP»), vem requerer a providência de habeas corpus, através de advogada, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal «CPP»), com os fundamentos seguintes (transcrição):

“1. - Corre termos no Juízo de Competência Genérica de ... o processo de promoção e proteção com o nº 394/23.0... referente à menor BB com nove anos de idade.

2. - O aludido processo foi instaurado pelo Ministério Público e teve a sua origem numa sinalização, por a menor apresentar um elevado número de faltas injustificadas, tendo em conta que a progenitora se ausentou da casa de morada de família no contexto da sua separação do progenitor da menor após ter apresentado queixa-crime por violência doméstica, e se ausentado para passar dois períodos distintos com a família: em novembro de 2023 para visita ao avô paterno que se encontrava hospitalizado e no período de férias do Natal, e após início das aulas, em que permaneceu com os seus pais no ..., tendo regressado voluntariamente a território nacional.

3 - A progenitora da menor agora requerente tentou encontrar uma alternativa de vida com a sua filha, através de mudança de residência que implicava mudança de escola, da mesma forma que se disponibilizou para ir para uma casa abrigo com a sua filha, hipótese que foi afastada pelo Ministério Público por considerar que o risco no processo de violência doméstica é baixo.

4 - Neste contexto, não tendo condições para continuar a residir na casa de morada de família com o progenitor da menor, a requerente dispôs-se a permanecer numa casa de casal amigo e a sua filha continuar a frequentar a mesma escola, aceitando medidas de acompanhamento, submeter-se a exames psicossociais e a tudo que fosse considerado necessário para demonstrar que tem condições para ser o garante do cuidado que a sua filha merece, sem quebra de relacionamentos, mudança de rotinas e mantendo a menor a frequentar as atividades que frequentava antes da separação.

5 - Os factos sinalizados, só de per si, não são suscetíveis de enquadrar e/ou preencher o conceito de perigo uma vez que a deslocação da menor com a mãe ao ... ocorreu neste contexto específico de separação do casal.

6 - No mês de dezembro de 2023, quando a requerente foi notificada para comparecer na CPCJ já se encontrava no ... para passar o Natal pelo que em momento algum deixou de comparecer a alguma diligência agendada ou de respeitar qualquer notificação que lhe fosse dirigida, tendo até a sua mandatária contactado a CPCJ a informar de tal facto.

7 - Nunca a menor esteve ou foi colocado em situação de perigo que exigisse a intervenção e aplicação da medida de promoção e proteção agora aplicada.

8 - Analisando-se, pois, a situação, está a menor na Casa da ... em ..., por aplicação da medida provisória de acolhimento em instituição, sendo que até à data a progenitora não foi notificada da decisão que o determinou pelo que apenas pode afirmar o que sucedeu presencialmente nas diligências realizadas, designadamente desconhecendo em concreto os exactos fundamentos que determinaram o acolhimento da menor em instituição.

[9 – omitido]

10 - Verificamos, porém, que tal medida foi aplicada com grave e incalculável prejuízo para a menor, presente e futuro, uma vez que esta foi privada de estar no seu ambiente familiar, com qualquer um dos progenitores, amigos, colegas de estudo, afastando-a de todas as suas referências, atentando, claramente, contra os seus superiores interesses.

11 - Tal situação, a aplicação da medida, viola claramente os mais elementares princípios fundamentais de direito, designadamente, o princípio da liberdade, do interesse superior das crianças, da prevalência da família, da proporcionalidade e atualidade,

12 - Tanto mais que foi proposta uma família de acolhimento com residência em ..., com crianças que habitualmente já conviviam com a menor e que, uma delas frequenta a mesma escola, hipótese que foi liminarmente afastada sem sequer serem ouvidos e verificado se tal acolhimento seria alternativa viável para a menor.

Do Direito:

13 - Ora, observando o princípio da igualdade, o regime do habeas corpus é aplicável a medida de acolhimento residencial.

14 - O direito à liberdade pessoal é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados tal como decorre da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III (3.º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.

15 - Proclama no artigo IX (9.º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso e no artigo XXIX (29.º) admite que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.

16 - O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra: “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos” e estabelece que “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

17 - A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais), no art.º 5.º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal ou detido ou preso nas situações tipificadas nas alíneas do nº 1 daquela disposição normativa convencional.

18 - Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a prisão ou detenção for ilegal.

19 - O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) “enfatiza desde logo que o artigo 5.º consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5.º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5.º §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15º da Convenção.

20 - Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art.6.º, o direito à liberdade pessoal e não consagrando o habeas corpus, reconhece, no art. 47.º, o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União e a legislação internacional referente a direitos humanos prevê genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação ilegal da liberdade, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus.

21 - A Constituição da República, no artigo 27.º n.º 1, reconhece e garante o direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos, de ir e vir (que não deve confundir-se com a liberdade de circulação, de mudar de local de residência), o qual não sendo um direito absoluto porque pode sofrer restrições, quando tal se justifique e não exista outro meio menos gravoso que acautele as exigências de prevenção.

22 - Entre estas restrições sobressai, desde logo – e para o que aqui releva - “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” nos casos de “sujeição de um menor a medidas de protecção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente”.

23 - A Lei Fundamental é, pois, clara, elencando expressamente as medidas de proteção, assistência e educação em estabelecimento adequado, ao lado e ao nível das demais, como modalidade de restrição do direito fundamental à liberdade, apenas admissíveis pelo tempo e nas condições que a lei fixar ou decisão judicial determina, o que justifica que se considere a aplicação do habeas corpus como providência processual extraordinária de reação expedita contra a privação da liberdade de criança ou jovem que sejam mantidos com abuso de poder, ilegalmente, em estabelecimento adequado de acolhimento (residencial).

24 - A Constituição da República, no art.º 36.º n.º 5, condensando direitos fundamentais da família e filiação, consagra o direito e impõe o dever dos pais de educar e manter os seus filhos e estatui que “os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial” mencionando no art.67.º (“família”), no n.º 2, onera o Estado com o dever de proteger a família, impondo-lhe a adoção de políticas sociais e a aplicação de medidas adequadas a essa finalidade, designadamente, [al.ª c)] incumbindo-o de “cooperar com os pais na educação dos filhos”, no art.º 68.º, n.º 1 confere aos pais “direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos” e no art.69.º (“infância”) consagra, no n.º 1, o dever do Estado, da sociedade (e dos pais) de garantir o direito das crianças “ao seu desenvolvimento integral”, protegendo-as, “especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”. No nº 2, onera o Estado com o dever de assegurar “especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal”.

25 - Por sua vez, a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1990, (aprovada para ratificação pela Resolução da AR nº 20/90, de 12 de setembro), no respetivo Preâmbulo, considera “a família, elemento natural e fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a protecção e a assistência necessárias para desempenhar plenamente o seu papel na comunidade;

26 - Reconhecendo que a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão”.

27 - Dando execução aos comandos constitucionais atinentes à infância e juventude, foi concedido um direito de intervenção na promoção dos direitos e/ou na proteção das crianças e dos jovens em perigo, que residam ou se encontrem no território nacional, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, respeitando os princípios basilares de interesse superior da criança; da intervenção mínima; das responsabilidades parentais; do primado da continuidade das relações psicológicas profundas; e da prevalência da família.

28 - Uma das medidas de promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo, é o “acolhimento residencial”, consistindo na colocação (definida na lei como medida de colocação) da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados.

29 - A aplicação de tal medida como a mais gravosa pela ruptura que impõe na vida da criança tem de ser aplicada de forma coerente com o projeto de vida da criança, e apenas e tão-só se outra medida menos gravosa não se revelar mais adequada e se existir efetivamente um perigo que justifique a retirada da criança do meio natural de vida .

30 - Resulta do exposto que a medida de acolhimento residencial – única aqui em apreço - deve ser excecional, temporária e apenas e tão só após ponderação da aplicação de outras medidas.

31.- No caso em concreto a menor não se encontrava em risco com a progenitora, mas ainda que se pretenda proteger a criança até que seja efetuada uma cabal avaliação das competências parentais de ambos os progenitores, o certo é que outras medidas poderiam ser aplicadas que não passassem pelo acolhimento residencial, designadamente o acolhimento familiar com CC e DD, casal amiga da família, com condições de vida para receber a BB na sua casa, condições habitacionais, trabalho estável, os quais vivem em união de facto há seis anos e são pais de duas crianças, amigas da BB, e com disponibilidade de a receberem na sua casa e na sua família, prestando-lhe do o apoio de que necessite e comprometendo-se a respeitar as regras que lhe sejam impostas para tal, designadamente quanto aos convívios da menor com os progenitores.

Pelo exposto, nos termos do artigo 31.º da CRP, requer-se a V. Ex.ª que se digne declarar ilegal a aplicação da medida de acolhimento residencial, ordenando-se a libertação imediata da menor e, consequentemente, a entrega imediata desta à sua progenitora, conforme é da mais elementar justiça”, ainda que com aplicação de medida de apoio junto da mãe ou até acolhimento familiar.»

2. Da informação prestada pelo Senhor Juiz do processo, a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sobre as condições em que foi efectuada e se mantém a alegada privação da liberdade, consta o seguinte (transcrição):

«1. Por requerimento junto pela Ilustre Mandatária da progenitora nos autos principais (e entretanto junto aos presentes autos, cf. 16-01-2024, ref.ª .....96), veio esta apresentar um pedido de habeas corpus, nos termos do artigo 222.º, do Código de Processo Penal, em relação à criança BB, que beneficia de medida provisória de promoção de protecção de acolhimento residencial por decisão de 10-01-2024 (cf. ref.ª ......76, todas as referências reportam-se aos principais do processo de promoção e protecção, determinando-se a junção da respectiva certidão ao presente apenso).

2. Dispõe o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que as petições são enviadas imediatamente ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, com informação sobre as condições em que foi efectuada ou se se mantém a prisão.

3. Desta feita, cumpre, nos termos do citado artigo prestar as seguintes informações que devem acompanhar a remessa dos presentes autos:

3.1. Em 19-12-2023, o Ministério Público apresentou requerimento inicial, onde pedia o decretamento de medidas cautelares de promoção e protecção (cf. 19-12-2023, ref.ª .....57).

3.2. Em despacho inicial que designou data para tomada de declarações em 01-02-2024 e ordenou a realização de relatório social, foi proferida decisão a aplicar medida cautelar de promoção e promoção medida cautelar de apoio junto dos pais, mais concretamente da mãe, pelo período de 6 (seis) meses, a favor da criança BB, enquanto se procede ao diagnóstico da sua situação e à definição do seu encaminhamento subsequente nos seguintes termos, devendo a medida ser revista nos termos do artigo 37.º, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, fixando-se o seguinte regime:

- Fixar a residência da BB junto da mãe.

- A progenitora obriga-se a assegurar a assiduidade escolar da BB, não se ausentando com esta durante o período escolar e devendo apresentar justificação em caso de falta, no prazo de 2 (dois) dias, junto da Escola.

- Os progenitores devem abster-se se assumir comportamentos e discussões na presença da BB.

- O progenitor está proibido de se deslocar à escola frequentada pela BB, salvo em situações em que tenha previamente agendado reunião junto da administração ou da professora titular.

3.2.1. Foram dados como indiciariamente provados os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:

3.2.1.1. BB nasceu em ...-...-2014, em ..., Inglaterra e é filha de

3.2.1.2. EE e de AA.

3.2.1.3. A criança BB foi sinalizada à CPCJ de ..., na sequência de denúncia de violência doméstica por parte da progenitora contra o progenitor, que originou o inquérito n.º 265/23.0... que corre termos na Procuradoria do Ministério Público de ....

3.2.1.4. A BB encontra-se a residir com a progenitora, na Avenida da ..., ..., ..., ..., ....

3.2.1.5. Entre o dia 3 e 16 de Novembro, a progenitora deslocou-se a Inglaterra levando consigo a BB, que faltou a 10 dias de aulas, não tendo justificado a falta.

3.2.1.6. Desde Setembro que a BB tem manifestado instabilidade emocional, revelando receio de o progenitor a levar consigo e ficar longe da progenitora.

3.2.1.7. A progenitora tem-se deslocado à escola no fim do período da manhã, provocando na BB instabilidade e vontade de não quer sair da sala ou de o não fazer sozinha.

3.2.2. Os factos provados emergiram dos documentos constantes no processo da Comissão da Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, designadamente, e com particular relevância, a informação escolar e os autos de inquérito quanto à morada da progenitora. Acresce ainda a certidão de assento de nascimento, cuja junção foi ordenada verbalmente a partir da acção de divórcio com o n.º 348/23.6T8OHP (artigo 986.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), nos termos do artigo 83.º, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

3.2.3. Com particular relevância na apreciação, fundamentação e decisão da medida consta:

3.2.3.1. Revertendo ao caso em apreço, demonstra a factualidade supra (cf. 2.2.1.) que a BB está exposta ao conflito existente entre progenitores e que tal afecta a sua estabilidade emocional, bem como a sua assiduidade escolar. Assim, perante o medo manifestado pela BB e a existência de deslocações com prejuízo para o seu percurso escolar, porque se encontra numa situação de perigo para efeitos do artigo 3.º, n.º 1 e 2.º, alínea f), da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, e na ausência de um acordo ou decisão de regulação do exercício das responsabilidades parentais, impõe temperar a situação da criança de imediato. No entanto, deve a medida ser adequada e necessária aos interesses da BB, nomeadamente, ao perigo gerado pela conduta dos seus progenitores. Assim, perante os elementos existentes e factos indiciados, ao não ser possível a mudança de residência da BB para o estrangeiro sem o consentimento de ambos os progenitores (artigos 1901.º, n.º 1, 1906.º, n.º 1 e 1909.º, n.º 1, do Código Civil), a medida deve ser circunscrita às imediatas necessidades da BB. A primeira é assegurar a sua assiduidade escolar, com vista a não prejudicar o seu percurso escolar. A esta acresce a necessidade de preservar a sua estabilidade emocional em contexto escolar, pelo que deve o progenitor ficar proibido de realizar visitas não agendadas, atento o impacto que aquelas provocam na BB. Por fim, determinar que os progenitores devem ter a consciência que o seu comportamento e relação estão a prejudicar o bem-estar da BB.

3.2.3.2. Sem mais considerandos, importa aplicar a favor da criança BB, a título cautelar, a medida de apoio junto dos pais, mais concretamente, da mãe, por ser com esta que reside, nos termos do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 3.º, 4.º, 34.º, 35.º, n.º 1, alínea a), 35.º, n.º 2, 37.º, n.ºs 1 e 3, 38.º, 39.º, 91.º e 92.º, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

3.3. O progenitor apresentou requerimento em 05-01-2024 (cf. ref.ª ......45) que aqui se reproduz:

- como questão prévia demonstrar o seu desalento e frustração pelo mmesmo ter sido objeto duma decisão sem ter sido prévia e injustificadamente ouvido;

- até para o vincular a essa decisão desfavorável;

- tando mais que o mesmo, através do seu Mandatário, já havia dois dias antes apresentado um requerimento no Ministério Público a mostrar a sua preocupação pelas atitudes da mãe, nomeadamente a suspeita, que se veio a confirmar, de a mãe levar “à sucapa” para o estrangeiro a menor – cfr. doc. nº. 1;

- entretanto a mãe desapareceu com a menor, abandonou a casa de morada de família, respetivas dezenas de animais e nem teve a preocupação de trazer a filha de regresso para a escola – cfr. doc. n.º 2

- prática esta já reincidente (!?) e sem que haja qualquer responsabilização ..,..?

- ora, esta situação é inadmissível e prejudica gravemente quer o desenvolvimento escolar da menor quer a sus própria evolução enquanto pessoa;

Neste sentido, vimos requerer que a data de 01-02- 2024 seja antecipada, dado que a situação carece de revisão urgente antes dessa data».

3.4. Em promoção de 10-01-2024, veio o Ministério Público pedir a revisão da medida cautelar de apoio junto dos pais e subsequente substituição por medida de acolhimento residencial, alegando:

3.4.1. Em 21 de dezembro de 2023 foi requerida a aplicação de medida cautelar a favor da criança BB pelo Ministério Público, a qual veio dar origem aos presentes autos.

3.4.2. Dando-se, desde já, como integralmente reproduzidos os factos constantes da petição inicial apresentada.

3.4.3. Acresce que, em virtude dos factos supra descritos foi aplicado, a título cautelar, a favor de BB, no processo de promoção e proteção n.º 394/23.0... a correr termos no Juízo de Competência Genérica de ..., medida de apoio junto dos pais, mais concretamente da mãe (…)

3.4.4. No dia 08 de janeiro de 2024 a mãe da BB, AA juntou requerimento ao processo n.º 265/23.0... a dar conta de que “tem enfretando nas últimas semanas uma enorme tensão e medo causado pelos comportamentos do marido EE, que a colocaram num estado de pânico pela sua segurança e da sua filha e que a levaram a deslocar-se com a sua filha no período de Natal para junto da sua família no ....”

3.4.5. Ora, esta deslocação da BB com a progenitora para o ... foi realizada sem conhecimento do progenitor, que, apesar de se encontrar proibido de se deslocar à escola frequentada pela criança, não se encontra proibido de saber onde a mesma se encontra e/ou de contactar sempre que quiser com aquela.

3.4.6. No mesmo requerimento a progenitora da BB refere ainda que “a ofendida teme pela sua segurança e vida até porque refere que o denunciado tem consigo armas de fogo, tendo sido ameaçada pelo denunciado”, requerendo que fosse para uma casa abrigo com a sua filha.

3.4.7. Neste sentido, foi, de imediato, contactada a progenitora para que se apresentasse no dia seguinte (09 de janeiro) nos serviços do Ministério Público de ... com a BB, a fim de ser ouvida informalmente.

3.4.8. É certo que AA apresentou-se na Procuradoria do Juízo de Competência Genérica de ... no dia e hora marcada, contudo, a BB não se encontrava consigo.

3.4.9. Questionada sobre onde a BBse encontrava, disse que estava com uma amiga em ..., pelo que, lhe foi solicitado que a mesma trouxesse a criança até estes serviços, o que, de imediato, foi negado.

3.4.10. Nesta sequência, foi perguntado à mãe porque é que não trazia a BB até aos serviços, tendo a mesma dito que sabia que se a trouxesse, a mesma lhe iria ser retirada.

3.4.11. Após ter sido avisada a progenitora dos riscos que corria em não pedir que a BB viesse às instalações do Ministério Público, a AA contactou a pessoa que acompanhava a criança e a mesma foi trazida ao tribunal.

3.4.12. No decorrer desse período, foi ouvida AA, mãe da BB, tendo sido perguntada à mesma o motivo do receio demonstrado relativamente ao progenitor, tendo aquela referido que foi ameaçada de morte pelo mesmo, que aquele não se encontra bem psicologicamente, que consome produto estupefaciente e que se sente em perigo.

3.4.13. Nessas circunstâncias, foi-lhe perguntado se o mesmo a terá ameaçado entre novembro e dezembro (após a apresentação da queixa de violência doméstica que deram origem aos presentes autos), sendo que a progenitora da criança afirmou que o mesmo não entra em contacto consigo, apenas com a filha BB através de Whatsapp.

3.4.14. Ainda no decorrer da conversa informal, a mãe da BB pediu autorização para ir com a filha para o ..., transferindo-a de escola.

3.4.15. Atento o pedido, foi-lhe perguntado o motivo, tendo a progenitora dito que a BB tem muito medo do pai, não querendo continuar em ....

3.4.16. Uma vez que a progenitora referiu que a filha BB contacta o pai através de mensagens e que se encontrava na posse do telemóvel da criança, foram visualizadas as trocas de mensagens, sendo notório o carinho e amor existente entre ambos, não se vislumbrando qualquer sinal de medo da BB para com o progenitor.

3.4.17. Ora, atentas as informações prestadas pela mãe, foi ouvida a BB sobre os sentimentos que tem em relação ao progenitor.

3.4.18. BB referiu-se ao pai com carinho, dizendo que gostava dele, que falava com o pai por mensagem, mas que o médico tinha proibido o progenitor de a ver, enquanto não estivesse tratado e que o pai não se tratava.

3.4.19. Questionada sobre que doença o pai tinha, a BB apontou para a cabeça, referindo-se a “problemas”.

3.4.20. Sobre se tinha medo do pai, a BB disse que não, mas “a mãe tem muito, muito medo do pai”.

3.4.21. Foi colocada à BB a possibilidade de o pai vir ao tribunal para lhe dar um abraço, tendo a mesma dito que não podia ser porque a mãe estava aqui e a mãe tinha muito medo, sentindo-se logo o pânico da criança.

3.4.22. Mais disse a BB que queria ir para o ..., onde tem amigos, pois, na escola em ..., não gostam dela e não tem amigos, porém, não soube dizer o nome de nenhum dos amigos do ....

3.4.23. Também referiu que não tem boas notas na escola, o que é contrariado com o relatório escolar que ora se junta aos autos.

3.4.24. Em suma, conclui-se, que a BB, apesar da sua tenra idade, encontra-se submersa num assunto de adultos, sentindo um receio relativamente ao progenitor que não é o dela, manifestando uma vontade de se ausentar do meio que conhece e onde cresceu, tendo-lhe sido criada a ideia que no ... é que terá amigos e boas notas.

3.4.25. Ficou demonstrado no convívio com a BB que a mesma sente que tem que estar afastada do pai para proteger a progenitora, quando, na verdade, quem tem que ser protegida, é a própria BB.

3.4.26. Por outro lado, sem justificação aparente – até porque, ainda não ficou demonstrado no processo de violência doméstica que corre termos a culpa do progenitor – a BB encontra-se afastada da figura paterna, apenas contactando com o mesmo via Whatsapp.

3.4.27. Contudo, é a progenitora que, por duas vezes, se ausentou de Portugal com a filha BB, sem justificação e sem dar conhecimento ao progenitor onde a sua filha se encontrava.

3.4.28. Além disso, as férias escolares terminaram a 02 de janeiro de 2024, devendo a BB voltar à escola no dia 03 de janeiro, contudo, a mãe não a entregou, nem justificou a sua falta, conforme estipulado na decisão cautelar.

3.4.29. A criança BB só compareceu no dia de hoje, 10 de janeiro de 2024, na escola, após a mãe ter estado nos serviços do Ministério Público de ...

3.4.30. Pelo que, a progenitora incumpriu o determinado na decisão cautelar proferida a 21 de dezembro de 2023.

3.4.31. Dessarte, demonstrado fica que a BB não pode continuar junto da progenitora, porquanto está sujeita a constantes sentimentos que não lhe pertencem, destabilizando-a emocionalmente.

3.4.32. Por outro lado, não se revelará estabilizadora para a BB atentos os sentimentos que a mesma tem intrínsecos, ainda que não sejam da mesma, que a medida a aplicar seja de apoio junto dos pais, mais concretamente na pessoa do pai.

3.4.33. Em face do exposto, atendendo a que a mãe demonstrou a possibilidade de se ausentar do país com a BB caso a mesma lhe fosse retirada, cumpre proferir decisão urgente e com carácter provisório no sentido de confirmar judicialmente a medida de promoção e proteção de acolhimento em instituição aplicada, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 35.º, n.º 1, al. f) e 92.º da citada Lei.

3.4.34. Acolhimento que, por ora e atenta a inexistência de soluções alternativas, terá de permanecer na Casa de ... , em ....

3.5. Na sequência foi proferida decisão de revisão da medida cautelar em 10-10-2024 (cf. ref.ª ......76), Tribunal decidiu rever a medida cautelar de apoio junto da mãe aplicada em 21-12-2023, substituindo-a por medida de acolhimento residencial, pelo período de 6 (seis) meses, a favor do BB na Casa de ..., em ..., ou outra casa de acolhimento que venha a ser indicada pela equipa de Gestão de vagas da Segurança Social, enquanto se procede ao diagnóstico da sua situação e à definição do seu encaminhamento subsequente nos seguintes termos, devendo a medida ser revista no prazo de 3 (três) meses, nos termos do artigo 37.º, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, fixando-se o seguinte regime de convívio com os progenitores:

- Autorizar os progenitores a visitarem a BB de acordo com os horários e as regras de funcionamento da Casa de Acolhimento e respeitando os seus horários de descanso, refeições e escolares (artigo 53.º, n.º 3, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).

- Autorizar os progenitores, e os membros da família que estes indiquem, a contactar por telefone ou videoconferência de acordo a BB com os horários e as regras de funcionamento da Casa de Acolhimento e respeitando os seus horários de descanso, refeições e escolares (artigo 53.º, n.º 3, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).e cuja fundamentação que aqui se reproduz:

3.5.1. Foram indiciariamente provados os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:

3.5.1.1. BB nasceu em ...-...-2014, em ..., Inglaterra e é filha de EE e de AA.

3.5.1.2. A criança BB foi sinalizada à CPCJ de ..., na sequência de denúncia de violência doméstica por parte da progenitora contra o progenitor, que originou o inquérito n.º 265/23.0... que corre termos na Procuradoria do Ministério Público de ....

3.5.1.3. A BB encontra-se a residir com a progenitora, na Avenida da ..., ..., ..., ..., ....

3.5.1.4. Entre o dia 3 e 16 de Novembro, a progenitora deslocou-se a Inglaterra levando consigo a BB, que faltou a 10 dias de aulas, não tendo justificado a falta.

3.5.1.5. Em 07-11-2023, deu entrada acção de divórcio sob o n.º 348/23.6... proposta pela mãe contra o pai.

3.5.1.6. Em 21-12-2023 foi proferida decisão cautelar de aplicação de medida de apoio junto da mãe (…)

3.5.1.7. Durante o período de interrupção de Natal a progenitora ausentou-se para o ..., sem comunicar ao progenitor.

3.5.1.8. A progenitora não justificou a ausência da BB na escola nos dias 3, 4, 5 e 9 de Janeiro de 2024.

3.5.1.9. A BB só compareceu na escola no dia 10-01-2024, após ter estado na véspera nos serviços do Ministério Público de....

3.5.1.10. A progenitora manifestou a intenção de se mudar com a BB para o ..., por não pretender permanecer em ....

3.5.1.11. A BB contacta o progenitor através da plataforma WhatsApp por sua iniciativa e de forma positiva e carinhosa.

3.5.1.12. Justificando a falta de contacto físico por pretensa decisão de um médico que proibiu «o progenitor de a ver, enquanto não estivesse tratado e que o pai não se tratava».

3.5.1.13. A BB revelou medo e ansiedade quando colocada a possibilidade de estar com o progenitor no Tribunal, por causa da mãe.

3.5.1.14. Existe de vaga na Casa de ..., em ...

3.5.2. Com particular relevância na apreciação, fundamentação e decisão da medida consta

3.5.2.1. Com efeito, a situação do caso em apreço convoca o disposto no artigo 35.º, n.º 1, alínea f), 35.º, n.º 2 e 37.º, todos da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. As situações de emergência previstas no artigo 37.º incluem as situações em que esteja em causa perigo actual e eminente para a vida e integridade física da criança, mas também outros direitos da criança ou do jovem, ou seja, sempre que exista uma situação de perigo actual e eminente que afecte a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento. Incluindo-se como causa ou agência da situação de perigo comportamentos da própria criança ou de terceiros, quer por acção ou por omissão. Efectivamente, no decurso do processo de promoção e protecção, antes de tomada a decisão de aplicação de uma medida definitiva, a lei consagra a possibilidade de se aplicar uma medida provisória, quando a emergência do caso assim o justifique ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente. Revertendo ao caso em apreço, resulta da factualidade supra (cf. 2.1.) que a BB está envolvida no conflito entre os progenitores, com prejuízo directo para a sua estabilidade emocional e preservação de vínculos profundos, nomeadamente quanto a progenitor. A falta de contacto com o progenitor, o carácter errático das decisões da progenitora quanto à deslocação e mudança de residência, sem que exista, por ora e no âmbito do inquérito crime, indícios da prática do crime de violência doméstica pelo progenitor coloca BB numa situação de absoluta precariedade emocional. A mesma está exposta a um conflito para o qual é convocada a tomar partido, com prejuízo directo para a sua educação e formação (sem razão válida, a mesma não tem comparecido de forma pontual às aulas).

3.5.2.2. Perante a elevada litigiosidade entre os progenitores e sendo a BB vítima da incapacidade de ambos assegurarem um ambiente contentor do fim da sua relação, está aquela exposta a comportamentos que afecta a sua estabilidade na relação com ambos os progenitores e os pares, nos termos do artigo 3.º,n.º 1 e n.º 2, alínea f), da LPCJP. Perante esta precariedade e na eminência de mudança de residência da BB por decisão unilateral da progenitora, sendo, neste momento o foco principal de perigo, e sem que o progenitor se apresente como pessoa idónea, sem a realização de diligências instrutórias, impõe a adopção de uma medida que assegure e um ambiente protector para a BB onde esta possa restabelecer a frequência escolar e ter contactos com ambos os progenitores fora do contexto belicoso em que se encontra actualmente sujeita. Acresce a mobilidade da progenitora e o potencial risco (desde logo pelas frequentes deslocações ao ... sem informar previamente o progenitor) de subtracção internacional. Esta situação por si é reveladora da tomada de decisões pela progenitora sem ter em conta o melhor interesse da BB. Não só a coloca numa situação de tensão e ansiedade como, perante a ausência de outros elementos, não justifica a ausência da BB do meio onde vive e da escola que frequenta. Mesmo considerando a possibilidade de mudança para o ..., a mesma não é acompanhada de elementos e fundamentos que justifique a mudança de forma tão inopinada e de que a premeio se coloque a BB num limbo sobre a sua situação, meio onde vive e com que convive.

3.5.2.3. Posto isto e sem mais considerandos, importa aplicar a favor da criança BB, a título cautelar, revendo-se a anterior medida de apoio junto dos pais, mais concretamente da mãe aplicada em 21-12-2023, substituindo por medida de acolhimento residencial, nos termos do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.º 1, n.º 2, alínea f), da LPCJP, 4.º, 34.º, 35.º, n.º 1, alínea f), 35.º, n.º 2, 37.º, n.ºs 1 e 3, 38.º, 49.º a 51.º, 91.º e 92.º, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. Como regime da medida determina-se que os progenitores poderão visitar a BB de acordo com os horários e as regras de funcionamento da Casa de Acolhimento. Mais se determina que ambos os progenitores, assim como outros membros da família a indicar pelos progenitores, poderão contactar a BB através de telefone ou videoconferência, que deve ser agendada previamente com a instituição, respeitando os seus horários de descanso, refeições e escolares (artigo 53.º, n.º 3, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).

3.6. -Na mesma decisão nos pontos 8 e 9 foi determinado dar sem efeito a conferência agendada para dia 1 de Fevereiro de 2024, às 11h00, e oficiada a equipa SATT para juntar o relatório social ordenado, sem prejuízo da necessária actualização em face da medida aplicada, conforme determinado no ponto 1.3. do despacho de 21-12-2023 (cf. ref.ª ......17).

3.7. - Em cumprimento do ponto 7. do despacho de 10-01-2024 (cf. ref.ª ......76), a equipa SATT informou, em 17-01-2024 (cf. ref.ª .....05), da execução do mandado para cumprimento da medida de acolhimento e da situação da BB: […]

4. - Posto isto, este é o estado actual dos autos principais de promoção e protecção da criança e das diligências realizadas, encontrando-se a aguardar os autos pela elaboração e junção do relatório social sobre a situação da criança e dos seus progenitores com vista a agendamento de conferência para tomada de declarações dos progenitores.

5. - Ora, atendendo aos fundamentos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-01-2021 (ECLI:PT:STJ:2021:161.11.3TMCBR.D.S1.8C, disponível no sítio jurisprudência.csm.org.pt), a medida cautelar foi aplicada dentro de um contexto onde se encontram indiciados factos consubstanciadores de uma situação de perigo que afectava a criança BB, não só pela instabilidade gerada pelo comportamento dos progenitores como por violação da decisão cautelar pela progenitora com claro prejuízo para a frequência escolar daquela, nos termos do artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, alínea f), da LPCJP. A estes acontecimentos, sobrevém a precariedade gerada pelas a eminência de mudança de residência da BB por decisão unilateral, com risco de uma situação de subtracção internacional de criança e com prejuízo para a estabilidade emocional daquela e manutenção de vínculos com as pessoas próximas e de referência, aqui se incluindo o progenitor.

6 - Desta feita, atendendo às particularidades da situação e a necessidade de realização de diligências instrutórias, nomeadamente, a elaboração de relatório social, mantém-se actual a medida cautelar, não existindo ainda factos que justifiquem a sua cessação e estando ainda dentro do prazo legal para a sua revisão, conforme o artigo 37.º, n.º 3, da LPCJP.

7. Não só se encontram cumpridos os prazos previstos na Lei de Promoção e Protecção, como, num juízo de adequação e necessidade para acautelar o superior interesse da criança, não existiam alternativas idóneas a acautelar o seu bem-estar e protegê-la do clima belicoso em que os progenitores se encontram perante o eventual fim da sua relação matrimonial.

8. Assim, perante o comportamento da requerente a medida cautelar aplicada não só está validada em termos de necessidade e adequação, como tornou imprescindível para assegurar os interesses fundamentais da criança BB, potenciando a sua estabilidade e a possibilidade de restabelecer com ambos os progenitores um vínculo positivo e securitário. Sobrevém realçar que a medida, pela sua natureza e função, não limita ou restringe os direitos dos progenitores, estando num justo equilíbrio entre a necessidade de protecção e convívio com aqueles. Dentro do circunstancialismo que motivou a necessidade de revisão da medida cautelar, não estão os progenitores coarctados no exercício da sua parentalidade com excepção da necessidade imperiosa da estabilizar a situação da criança, apenas possível, perante os dados existentes, em contexto de medida de colocação.

9. Assim, em face do supra exposto, atendendo à evolução da situação da criança, de momento e até à elaboração do relatório social mantém-se intactos os fundamentos que justificaram a aplicação da medida cautelar. Daqui decorre que, enquanto não se assegurar a estabilização das condições de saúde e normal desenvolvimento, não existe alternativa segura para o bem-estar e interesses da criança BB que não seja a execução de medida de acolhimento.

10. É o que apraz informar, nos termos do artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pelo que se remetam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, acompanhado de certidão integral dos autos principais.»

3. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente.

4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. Fundamentação

5. O artigo 31.º, n.º 1, da Constituição da República consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais, privativas do direito à liberdade.

O habeas corpus consiste numa providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344).

Nos termos do artigo 27.º, todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena ou de aplicação judicial de medida de segurança privativas da liberdade. Exceptua-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional, em que se inclui a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente.

A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos neste preceito constitucional (como notam Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.).

6. O artigo 27.º da Constituição inspira-se no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos («CEDH») e em outros textos internacionais (assim, Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit. p. 299), incluindo o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 9.º), que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos e conferem força normativa à Declaração Universal dos Direitos Humanos, a que a Constituição submete a interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais (artigo 16.º, n.º 2).

O direito à liberdade consagrado e garantido no artigo 27.º da Constituição é o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar (Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit., p. 478 e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 471/2001, DR II, n.º 163, de 17.07.2002), o direito à liberdade de movimentos, de “ir e vir”, à liberdade ambulatória ou de locomoção (Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit. p. 300).

O direito à liberdade visa proteger a pessoa contra a detenção e contra a prisão arbitrária ou abusiva, ocupando um lugar central nos direitos fundamentais que protegem a segurança física de uma pessoa numa sociedade democrática [conforme jurisprudência estabelecida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos («TEDH») desde o acórdão Engel e outros c. Países Baixos, de 8.6.1976, § 58; por todos, o acórdão MacKay c. ..., 3.10.2016, § 30]; confere o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos expressa e excecionalmente previstos na lei, que deve reunir os necessários requisitos de certeza e previsibilidade, e com os procedimentos legalmente previstos, nomeadamente quanto à garantia de apreciação e controlo judicial e aos prazos de duração (por todos, do TEDH, o acórdão Del Río Prada c. Espanha, de 21.10.2013, § 125).

O artigo 5.º, n.º 4, da CEDH, segundo o qual “qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal” constitui a disposição de habeas corpus da Convenção (Guide on Article 5 of the European Convention on Human Rights, European Court of Human Rights, www.echr.coe.int/documents/guide_art_5_eng.pdf), oferecendo uma garantia fundamental, que, na sua essência, se traduz no direito de revisão judicial da detenção (TEDH, acórdão Rakevich c. Rússia, 28.10.2003, § 43).

7. A tutela constitucional do direito à direito à liberdade resulta também do artigo 28.º, que contém regulamentação específica da privação da liberdade no âmbito do processo penal, incluindo a detenção e a prisão preventiva [artigo 27.º, n.º 3 al. a) e b)], aplicável aos casos de detenção e prisão para efeitos de expulsão e extradição [artigo 27.º, n.º 3, al. c)] e do artigo 31.º, que garante o habeas corpus como meio de tutela que abrange qualquer forma de privação ilegal da liberdade, isto é, qualquer forma de privação da liberdade não admitida pelo artigo 27.º, aqui se incluindo, como anteriormente se referiu, a privação de liberdade de um menor por sujeição a medida de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretada pelo tribunal judicial competente, pelo tempo e condições que a lei determinar [artigo 27.º, n.º 3, al. e)].

A admissibilidade da privação da liberdade de um menor para efeitos de “educação sob vigilância” encontra-se prevista na al. d) do n.º 1 do artigo 5.º da CEDH, que dispõe que “ninguém pode ser privado da sua liberdade”, “salvo” no caso de, “de acordo com o procedimento legal”, “se tratar da detenção legal de um menor, feita com o propósito de o educar sob vigilância, ou da sua detenção legal com o fim de o fazer comparecer perante a autoridade competente”. Na interpretação desta disposição, vem a jurisprudência do TEDH estabelecendo que ela autoriza a privação da liberdade no próprio interesse da criança, independentemente de ser suspeita da prática de facto qualificado como crime ou de ser uma “criança em risco” (acórdão D.L. c. Bulgária, de 19.5.2016, § 71); que a “vigilância” pretendida com a “detenção” compreende muitos aspetos do exercício dos “direitos parentais” para benefício e proteção da criança (acórdãos P. e S. c. Polónia,, de 30.10.2012, § 147, Ichin e Outros c. Ucrânia, de 31.12.2010, § 39, e D.G. c. Irlanda, de 16.5.2002, § 80); que, no que respeita à legalidade da “detenção”, a Convenção remete para a lei nacional, que deve ser acessível e suficientemente precisa, quer no que diz respeito aos requisitos substanciais quer no que respeita aos aspectos processuais, nomeadamente para prevenir o risco de arbitrariedade, e que a privação da liberdade deve ser proporcional ao fim visado, ou seja, com o propósito de “educar sob vigilância”, no superior interesse da criança, visando a prevenção de riscos sérios para o seu desenvolvimento (acórdão D.L. c. Bulgária, de 19.5.2016, cit., §§ 71-74).

8. O âmbito de proteção do artigo 27.º da Constituição, tal como o do artigo 5.º da CEDH, abrange a privação total e a privação parcial da liberdade, por autoridade pública, que não se confunde com as restrições ao direito de deslocação, garantido pelo artigo 44.º, que comporta a liberdade de movimento da pessoa de um lugar para outro, enquanto corolário do direito à liberdade (artigo 27.º) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit., p. 632) e pelo artigo 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH. Sublinha a jurisprudência do TEDH, a este propósito, que o artigo 5.º da CEDH contempla a liberdade física da pessoa, com a finalidade de assegurar que ninguém pode ser arbitrariamente privado dessa liberdade, não as meras restrições de liberdade de movimento, pela autoridade pública, autorizadas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 2.º do Protocolo n.º 4, insistindo, todavia, em que a diferença entre estas e outras restrições de movimento suficientemente graves suscetíveis de cair na previsão do artigo 5.º se traduz numa diferença de grau ou intensidade e não de natureza ou substância (por todos, o acórdão Tommaso c. Itália, de 23.2.2017, § 80).

Pronunciando-se sobre a distinção entre privação total e privação parcial da liberdade, o Tribunal Constitucional, usou a seguinte formulação, de inspiração germânica: “A mera limitação de liberdade (Freiheitsbeschränkung) existe quando alguém é impedido, contra a sua vontade, de aceder a um certo local que lhe seria jurídica e facticamente acessível ou de permanecer num certo espaço. A liberdade de movimentação não é, assim, em contraposição à privação da liberdade, subtraída, mas apenas limitada numa certa direcção (cfr. Grundgesetz, Kommentar, § 104, 6 e 12). A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida). A limitação ou restrição da liberdade (que não implique a sua privação) concretiza-se através de uma perturbação periférica daquele direito mantendo-se, no entanto, a possibilidade de exercício das faculdades fundamentais que o integram.” (acórdãos n.º 479/94, DR I-A, n.º 195, de 24.08.1994, 185/96, DR I-A, n.º 75, de 28.03.1996, e 83/01, de 05.03.2001, em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos).

A privação parcial da liberdade, em resultado de ação de uma autoridade pública, na expressão de Jorge Miranda/Rui Medeiros (loc. cit. p. 303, citando também estes acórdãos), traduz-se “numa forma de impedimento coactivo à deslocação da pessoa de ou para o lugar que lhe seria jurídica e facticamente acessível”.

9. A al. e) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição, que deve ser lido em conjugação com o artigo 69.º (Infância), que consagra o direito das crianças à proteção, permite, pois, como se viu, “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar”, no caso de “sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente”. Como se tem sublinhado, “as medidas especiais relativamente a menores só podem ser as que a lei preveja (proémio do n.º 3), estando igualmente sujeitas a reserva de decisão judicial, que, nos termos da Constituição, há de ser da competência de um tribunal judicial (art. 209)” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit., p. 482-483).

10. O regime do habeas corpus encontra-se estabelecido nos artigos 220.º a 224.º do CPP, no capítulo referente aos “modos de impugnação” das medidas de coação.

Uma interpretação conforme à Constituição obriga, porém, de acordo com o que vem de se expor, a conferir-lhe um âmbito de proteção que extravasa o âmbito das medidas de coação – que, na sistemática do CPP, se limitariam à prisão preventiva (artigo 202.º do CPP) e à obrigação de permanência na habitação (artigo 210.º do CPP) –, de modo a abranger todos os casos que se inscrevem no artigo 27.º da Constituição, nomeadamente todos os casos de detenção, a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado e o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico.

É assim que, pressupondo e conferindo à “prisão” (artigos 222.º a 224.º do CPP) um sentido próprio – que, para efeitos de habeas corpus, não se pode limitar a compreender a pena de prisão e a medida de coação de prisão preventiva –, este Supremo Tribunal vem assumindo competência para apreciação de petições de habeas corpus quando a privação da liberdade é imposta por decisão judicial. Incluem-se aqui casos de execução da pena acessória de expulsão logo que cumpridos dois terços da pena de prisão (acórdão de 6.7.2019, Proc. n.º 299/17.3TXEVR-G.S1), de permanência, por decisão judicial, em centro de instalação temporária para execução da medida de expulsão (acórdão de 23.05.2018, Proc. n.º 965/18.6T8FAR.S1), de internamento compulsivo (acórdão de 27.6.2019, Proc. 376/19.6T8EPS-A.S1) e de aplicação de medidas de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo, em particular da medida de acolhimento residencial [acórdãos de 18.1.2017, Proc. 3/17.6YFLSB, de 15.2.2018, Proc. 1980/17.2T8VRL-A.S1, de 4.7.2019, Proc. 2199/17.8T8PRD—F.S1, de 4.7.2019, Proc. 2349/17.4T8CSC-A, de 29.4.2020, Proc. 1604/19.3T9MFR-B.S1, de 28.8.2020, Proc. 21/230.7YFLSB.S1, de 14.1.2021, Proc. 161/11.3TMCBR-D.S1, de 2.6.2021, Proc. 2840/20.5T8STR-B.S1, de 8.9.2021, Proc. 733/20.5T8CTB-B.S1, de 2.12.2021, Proc. 4490/15.9T8BRG-I.S1, de 03.01.2022, Proc. 3253/19.7T8BRR-E.S1, de 30.06.2022, Proc. º 736/20.0T8CBR-E.S1, de 06.07.2022, Proc. 561-11-9T2SNS-D-S1 (deste mesmo relator, que agora se segue de perto), de 01.09.2022, Proc. 14079/21.8T8SNT-D.S1, de 02.11.2022, Proc. 17412/22.1T8SNT-A.S1, de 16.11.2022, Proc. 2638/22.6T8LRA-A.S1, e de 11.10.2023, Proc. 244/23.7T8OHP-A.S1].

11. Dispõe o artigo 222.º do CPP que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

12. Em jurisprudência constante, tem vindo este Supremo Tribunal de Justiça a considerar que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excepcional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais – perante as ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reacção tendo por objecto actos do processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade ou atos que lhes digam respeito, ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. A providência não se destina a apreciar alegados erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade. «Os fundamentos da providência [de habeas corpus] revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta se deve configurar como violação directa e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a directa, manifesta e autodeterminável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo)» [acórdão de 04.01.2017, Proc. n.º 109/16.9GBMDR-B.S1; assim também, entre outros, os acórdãos de 02.11.2018, Proc. n.º 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, Proc. n.º 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt].

Como se tem sublinhado, «[n]o âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe julgar e decidir sobre a discussão que [os actos processuais] possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo)»; na providência de habeas corpus «não [se] pode decidir sobre actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente disponíveis e admissíveis de impugnação, pois que «a medida não pode ser utilizada para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o processo ou o recurso como modo e lugar próprios para a sua reapreciação» (acórdãos de 05.05.2009, Proc. n.º 665/08.5JAPRT-A.S1, e de 26.07.2019, Proc. n.º 2290/10.1TXPRT-M.S1. Assim também, refletindo jurisprudência de há muito uniforme, entre muitos outros, os acórdãos de 21.09.2011, Proc. n.º 96/11.0YFLSB, de 09.02.2012, Proc. n.º 927/1999.0JDLSB-X.S1; de 06.02.2013, Proc. n.º 109/11.5SVLSB.S1; de 15.02.2017, Proc. 6/17.0YFLSB.S1, de 31.10.2018, Proc. 663/09.1JAPRT-B.S1, em www.dgsi.pt).

A providência de habeas corpus não interfere nem é incompatível com o recurso ordinário de decisões sobre questões de natureza processual que possam afectar a situação de privação da liberdade, sendo diferentes os seus pressupostos (assim, Canotilho/Vital Moreira e Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit., e Maia Costa, comentário ao artigo 222.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2.ª ed., Almedina, 2016). A diversidade do âmbito de protecção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, numa relação de complementaridade, em que aquela providência permite preencher um espaço de protecção imediata perante a inadmissibilidade legal da prisão.

13. O pedido de habeas corpus pressupõe a actualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que este é apreciado, como também tem sido reiteradamente sublinhado (acórdão de 26.07.2019 cit. e, de entre outros, os acórdãos de 21.11.2012, proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1, 09.02.2011, proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1, de 11.02.2015, proc. n.º 18/15.9YFLSB.S1, e de 17.03.2016, proc. n.º 289/16.3JABRG-A.S1, em www.dgsi.pt).

14. Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se tem afirmado, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante actualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto por qua a lei a admite e (c) se estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

15. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, e dos documentos juntos resulta esclarecido, em síntese, com relevância para a apreciação e decisão, que:

• Em 19.12.2023, o Ministério Público requereu a abertura de processo judicial de promoção e proteção, com vista à aplicação de medida cautelar relativamente a BB, nascida a ........2014, filha da peticionante AA e de EE, na sequência de denúncia de violência doméstica que originou o inquérito n.º 265/23.0... do Ministério Público de ...;

• Pediu o Ministério Público que fosse aplicada, de imediato, a título cautelar, a favor de BB, a medida de proteção de apoio junto dos pais, na pessoa da sua mãe, com proibição de esta se ausentar do país, até decisão a proferir no processo de promoção e proteção, nos termos do artigo 37.º, n.º 1, da LPCJP;

• Considerando estar demonstrado que BB se encontrava exposta ao conflito existente entre progenitores afetando a sua estabilidade emocional, bem como a sua assiduidade e, consequentemente, numa situação de perigo, nos termos do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 3.º, 4.º, 34.º, 35.º, n.º 1, alínea a), 35.º, n.º 2, 37.º, n.ºs 1 e 3, 38.º, 39.º, 91.º e 92.º, da LPCJP, o tribunal decidiu aplicar, a título cautelar, «a medida de apoio junto dos pais, mais concretamente da mãe, pelo período de 6 (seis) meses, a favor da criança BB, enquanto se procede ao diagnóstico da sua situação e à definição do seu encaminhamento subsequente nos seguintes termos, devendo a medida ser revista nos termos do artigo 37.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, fixando-se o seguinte regime: 2.4.1. Fixar a residência da BB junto da mãe.

2.4.2. A progenitora obriga-se a assegurar a assiduidade escolar da BB, não se ausentando com esta durante o período escolar e devendo apresentar justificação em caso de falta, no prazo de 2 (dois) dias, junto da Escola.

2.4.3. Os progenitores devem abster-se se assumir comportamentos e discussões na presença da BB.

2.4.4. O progenitor está proibido de se deslocar à escola frequentada pela BB, salvo em situações em que tenha previamente agendado reunião junto da administração ou da professora titular

• Porém, na sequência de requerimento do Ministério Público, alegando factos posteriores considerados relevantes, por decisão de 10.01.2024, o tribunal decidiu rever a medida cautelar de apoio junto da mãe aplicada em 21.12.2023, «substituindo-a por medida de acolhimento residencial, pelo período de 6 (seis) meses, a favor do BB na Casa de ..., em ..., ou outra casa de acolhimento que venha a ser indicada pela equipa de Gestão de vagas da Segurança Social, enquanto se procede ao diagnóstico da sua situação e à definição do seu encaminhamento subsequente nos seguintes termos, devendo a medida ser revista no prazo de 3 (três) meses, nos termos do artigo 37.º, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, fixando-se o seguinte regime de convívio com os progenitores:

- Autorizar os progenitores a visitarem a BB de acordo com os horários e as regras de funcionamento da Casa de Acolhimento e respeitando os seus horários de descanso, refeições e escolares (artigo 53.º, n.º 3, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).

- Autorizar os progenitores, e os membros da família que estes indiquem, a contactar por telefone ou videoconferência de acordo a BB com os horários e as regras de funcionamento da Casa de Acolhimento e respeitando os seus horários de descanso, refeições e escolares (artigo 53.º, n.º 3, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo) (…)»;

• Em execução do decidido pelo tribunal, BB foi admitida na Casa de ..., em ..., no dia 10.01.2024;

• Com base na documentação dos autos, nomeadamente nos fundamentos da decisão que aplicou a medida, considera o Senhor Juiz do processo que «perante o comportamento da requerente a medida cautelar aplicada não só está validada em termos de necessidade e adequação, como tornou imprescindível para assegurar os interesses fundamentais da criança BB, potenciando a sua estabilidade e a possibilidade de restabelecer com ambos os progenitores um vínculo positivo e securitário» e que «a medida, pela sua natureza e função, não limita ou restringe os direitos dos progenitores, estando num justo equilíbrio entre a necessidade de protecção e convívio com aqueles», pois que «dentro do circunstancialismo que motivou a necessidade de revisão da medida cautelar, não estão os progenitores coarctados no exercício da sua parentalidade com excepção da necessidade imperiosa da estabilizar a situação da criança, apenas possível, perante os dados existentes, em contexto de medida de colocação», pelo que «atendendo à evolução da situação da criança, de momento e até à elaboração do relatório social mantém-se intactos os fundamentos que justificaram a aplicação da medida cautelar», donde decorre «que, enquanto não se assegurar a estabilização das condições de saúde e normal desenvolvimento, não existe alternativa segura para o bem-estar e interesses da criança BB que não seja a execução de medida de acolhimento

16. Na petição que apresenta, a requerente alega, em síntese, no que interessa à decisão:

(a) Que «os factos sinalizados, só de per si, não são suscetíveis de enquadrar e/ou preencher o conceito de perigo» e que «nunca a menor esteve ou foi colocada em situação de perigo que exigisse a intervenção e aplicação da medida de promoção e proteção agora aplicada».

(b) Que a medida «foi aplicada com grave e incalculável prejuízo para a menor, presente e futuro, uma vez que esta foi privada de estar no seu ambiente familiar, com qualquer um dos progenitores, amigos, colegas de estudo, afastando-a de todas as suas referências, atentando, claramente, contra os seus superiores interesses».

(c) Que a «aplicação da medida, viola claramente os mais elementares princípios fundamentais de direito, designadamente, o princípio da liberdade, do interesse superior das crianças, da prevalência da família, da proporcionalidade e atualidade», «tanto mais que foi proposta uma família de acolhimento com residência em ..., com crianças que habitualmente já conviviam com a menor e que, uma delas frequenta a mesma escola, hipótese que foi liminarmente afastada sem sequer serem ouvidos e verificado se tal acolhimento seria alternativa viável para a menor».

Pelo que, convocando Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos III, IX e XXIX), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 9.º), a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 5.º) e jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 6.º), a Constituição da República (artigos 27.º, 36.º, n.º 5, 67.º, 68.º, n.º 1, e 69.º), e a Convenção sobre os Direitos da Criança, requer que seja declarada «ilegal a aplicação da medida de acolhimento residencial, ordenando-se a libertação imediata da menor e, consequentemente, a entrega imediata desta à sua progenitora, conforme é da mais elementar justiça, ainda que com aplicação de medida de apoio junto da mãe ou até acolhimento familiar

17. Relembrando o que anteriormente se disse a este respeito, a providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial nem se destina a apreciar o mérito de decisões judiciais ou a sua execução (supra, 12). Trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção e reação, de acordo com o estabelecido na LPCJP, nomeadamente por via de recurso (artigo 123.º).

Também como já se afirmou, o Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito desta providência, apenas tem de verificar, nos termos do disposto no artigo 222.º do CPP, se ocorre atualmente uma situação de “prisão” ilegal, por abuso de poder da autoridade que a determinou, e se essa ilegalidade resulta de qualquer das situações taxativamente enumeradas no n.º 2 do artigo 222.º do CPP, isto é, se a “prisão” resulta de uma decisão judicial exequível, se se encontra motivada por facto pelo qual a lei a admite e se estão respeitados os limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

O que, antes de mais, pelas razões anteriormente expostas, impõe que se deva verificar se a decisão do juiz que impõe uma medida privativa da liberdade, na aceção do artigo 27.º, n.º 3, al. e), da Constituição – “pelo tempo e nas condições que a lei determinar”, no caso de “sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente” – e da al. d) do n.º 1 do artigo 5.º da CEDH – segundo o qual “ninguém pode ser privado da sua liberdade” “salvo” no caso de, “de acordo com o procedimento legal”, “se tratar da detenção legal de um menor, feita com o propósito de o educar sob vigilância” – é ilegal, por corresponder a uma situação de “prisão”, na aceção do artigo 222.º do CPP.

18. Quanto a esta questão, como de seguida se verá, a resposta é, necessariamente, negativa. Isto, sem prejuízo de, na linha da jurisprudência do TEDH (supra, 7 e 8) e deste Supremo Tribunal (supra, 9), se admitir a possibilidade de habeas corpus relativamente a medidas de proteção e promoção que, apesar dos seus objetivos, possam implicar a privação ilegal da liberdade por aplicação da medida de acolhimento residencial prevista e regulada nos artigos 35.º, n.º 1, al. f), e 49.º a 51.º da LPCJP, por referência ao artigo 27.º, n.º 3, al. e), da Constituição.

19. As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo, designadas por medidas de promoção e proteção, enumeradas no artigo 35.º da LPCJP, que podem ser aplicadas pelo tribunal a título cautelar (salvo a prevista na al. g) do n.º 1 deste preceito – confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção), como sucedeu neste caso, visam afastar o perigo em que estes se encontram e proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral (artigo 34.º da LPCJP).

A medida de acolhimento residencial, prevista na al. f) do n.º 1 do artigo 35.º da LPCJP, consiste na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados. O acolhimento residencial tem como finalidade contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral (artigo 49.º, n.ºs 1 e 2, da LPCJP).

As medidas de proteção fundam-se nos artigos 67.º, 68.º e 69.º da Constituição, que reconhecem o direito da família à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação das condições que permitam a realização pessoal dos seus membros, o direito dos pais e das mães à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, e o direito das crianças à proteção da sociedade e do Estado, com vista aos seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.

Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens (artigo 1878 do Código Civil). A violação ou omissão do cumprimento das responsabilidades parentais nos termos deste preceito, pode constituir motivo de perigo que legitima a intervenção para promoção e proteção, nos termos do artigo 3.º da LPCJP, para superação desse perigo, mediante o exercício, por outrem, dos poderes e deveres que integram essas responsabilidades, devendo as questões que lhe digam respeito, em caso de conflito, como se refere ser o caso dos autos, nomeadamente as que possam estar relacionadas com limitações ao exercício de direitos, próprias das decorrentes das responsabilidades parentais, ser objeto de apreciação e decisão no âmbito do correspondente processo, nos termos legalmente previstos (artigos 77.º e segs., nomeadamente).

20. A aplicação da medida de acolhimento residencial, decidida por um tribunal, fundamenta-se, pois, em lei expressa, quer no que respeita à sua justificação e necessidade, quer no se refere à duração e ao procedimento, e visa a realização de propósitos fixados na lei, estando afastada qualquer arbitrariedade na decisão, em respeito pelas exigências do artigo 27.º, n.º 3, al. e), da Constituição.

Por outro lado, não consta que a aplicação da medida tenha ocorrido para realização de finalidade diversa, destinada a manter a criança confinada num espaço, sem possibilidade de sair desse espaço, numa situação de privação da liberdade de se movimentar. As restrições da liberdade da criança que o cumprimento da medida possa implicar, de acordo com os horários e regras de funcionamento da casa de acolhimento e com respeito pelos horários de descanso, de refeições e escolares da criança, sem a afastar do contacto com os seus progenitores e de outros membros da família (supra, 15), não se confundem, como se viu (supra, 6 a 9), com a privação total ou parcial da liberdade por virtude da detenção ou prisão.

21. No essencial, a petição agora apresentada reconduz-se a uma discordância quanto à decisão que aplica a medida de acolhimento residencial da criança na Casa de ..., em ..., que a peticionante pretende seja declarada ilegal – notando-se que a pretensão se dirige diretamente à legalidade da decisão e não à legalidade da alegada situação de privação da liberdade (“prisão”) – e, em consequência, que a criança lhe seja entregue, «ainda que com aplicação de medida de apoio junto da mãe ou até acolhimento familiar». O que deve ser discutido e analisado no âmbito do processo de promoção e proteção, nomeadamente em sede de recurso.

Nos termos do artigo 123.º da LPCJP cabe recurso, a decidir no prazo máximo de 30 dias a contar da receção dos autos no tribunal superior, das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e proteção podendo recorrer o Ministério Público, a criança ou o jovem, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem.

Como também se referiu, não se compreende no âmbito do habeas corpus a apreciação de atos processuais ou do mérito da decisão que, se for o caso, aplica ou mantém medida de privação da liberdade.

22. Pelo exposto, não ocorrendo qualquer das situações a que se refere o n.º 2 do artigo 222.º do CPP, deve concluir-se que o pedido carece manifestamente de fundamento, devendo ser indeferido (artigo 223.º, n.º 6, do CPP).

III. Decisão

23. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3, 4, al. a), e 6, do artigo 223.º do CPP, acorda-se na Secção Criminal em indeferir o pedido por manifesta falta de fundamento.

Custas pela peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Nos termos do disposto no artigo 223.º, n.º 6, do CPP, vai a peticionante condenada ao pagamento da soma de 6 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 24 de janeiro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria do Carmo Silva Dias

Maria Teresa Féria de Almeida

Nuno António Gonçalves