Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
103/13.1YRLSB.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DECISÃO ARBITRAL
PRINCÍPIOS DA ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
CLÁUSULA PENAL
PACTO DE NÃO CONCORRÊNCIA
ADVOGADO
SOCIEDADE DE ADVOGADOS
BOA FÉ
AUTONOMIA PRIVADA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
REDUÇÃO
BONS COSTUMES
ABUSO DO DIREITO
DIREITO INTERNACIONAL
DIREITO COMUNITÁRIO
ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
Data do Acordão: 03/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO ARBITRAL - ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA / SENTENÇA ARBITRAL ESTRANGEIRA.
Doutrina:
- Assunção Cristas e Mariana França Gouveia, «A violação da ordem pública como fundamento de anulação de sentenças arbitrais – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.7.2008, Proc. 1698/08», Cadernos de Direito Privado, n.º 29, Janeiro/Março 2010, 41 a 56,
- Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª ed., 1992, 259 e ss., 261 e ss..
- Ferrer Correia, Direito Internacional Privado - Alguns Problemas, 1991, 126.
- Gorjão Henriques, «A Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais de 1958 na jurisprudência portuguesa», disponível em http://arbitragem.pt/estudos/convencao-nova-iorque-1958--duarte-gorjao-henriques.pdf
- International Council For Commercial Arbitration, Guia do ICCA sobre a interpretação da Convenção de Nova Iorque de 1958, “Um Texto de Referência para Juízes”, p. 14, 2011, cit. por Gorjão Henriques, “A Extensão da Convenção de Arbitragem no Quadro dos Grupos de Empresas e da Assunção de Dívidas: Um Vislumbre de Conectividade?”.
- Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, I, 2014, 659, 666.
- M. Pereira Barrocas, «A Ordem Pública na Arbitragem», Separata da Revevista da Ordem dos Advogados, Ano 74, Jan./Mar.2014, 127, 129 e ss., 132 e ss.; Manual da arbitragem, 2.ª ed., L.A.V. de 2011, Almedina, Coimbra, 2013, 682 e 687.
- Menezes Cordeiro, «A ordem pública nas arbitragens: as últimas tendências», VII Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial, Almedina, Coimbra, Julho de 2014, 96.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., Coimbra Editora.
- Moura Ramos, Direito Internacional Privado e Constituição, 1991, 251 e 252.
- Oliveira Ascensão, Parecer publicado na C.J., X, 4.º/23 e ss..
- Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, 1990, 721, 724, 725, 727 e ss., 732, 734, 736 e ss.; «Da Ordem Pública no Processo Arbitral», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, II, Coimbra Editora, 601-603, 663 e ss., 672.
- Robin de Andrade, «Decisão arbitral e ordem pública», intervenção no Colóquio “A arbitragem em movimento”, realizado no Porto, em 27-09-2010, disponível em http://arbitragem.pt/noticias/2010/2010-09-27--ordem-publica.pdf.
- Sampaio Caramelo, «Anulação de sentença arbitral contrária à ordem pública», R.M.P., 126, ano 32, Abril-Junho 2011, 155-198; O reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, Almedina, Coimbra, 2016, 211, 212 e ss., 663.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 812.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 1, 671.º, N.º 1, 978.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, 47.º, 61.º, 208.º.
LEI DE ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA, APROVADA PELA LEI N.º 63/201L, DE 14-12 (LAV): - ARTIGOS 55.º, N.º 1, 56º, N.º 1, B), II), 59.º, N.º 1, H).
LEI N.º 145/2015, DE 9/9 (ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS (EOA): - ARTIGO 1.º.
LEI N.º 62/2013, DE 26-8, LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGOS 12.º, 13.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE DE 1958, APROVADA PARA RATIFICAÇÃO PELA RESOLUÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA Nº 37/94 DE 10-03-1994 E RATIFICADA PELO DECRETO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA Nº 52/94 DE 8/7 (EM VIGOR DESDE 16-01-1995, SENDO QUE, NESSA DATA, A ESPANHA JÁ SE ENCONTRAVA VINCULADA À MESMA): - ARTIGOS III, V, N.º 2, B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 28-06-2001, PROCESSO N.º 1846/01, DE 8-05-2003, PROCESSO N.º 1123/03, E DE 8-07-2003, PROCESSO N.º 03B2106.
-DE 23-11-2000, PROCESSO N.º 2213/00; DE 8-07-2003, PROCESSO N.º 03B2106; DE 21-02-2006, PROCESSO N.º 05B4168; DE 19-02-2008, PROCESSO N.º 07A4790.
-DE 19-02-2008, PROCESSO N.º 07A4790.
-DE 22-09-2011, PROCESSO N.º 1772/06.4TVLSB.L1.S1, DE 14-03-2013, PROCESSO N.º 7328/10.0TBOER.L1.S1 DE 23-10-2014, PROCESSO N.º 1036/12.4YRLSB.S1.
-DE 2-12-2013, PROCESSO N.º 306/10.0TCGMR.G1.S1.
Jurisprudência Estrangeira:
JURISPRUDÊNCIA DO TJUE:

-ACÓRDÃO DE 19-02-2002, PROCESSO C-309/99 - WOUTERS E O.
-ACÓRDÃO DE 28-03-2010, PROCESSO C-7/98 - KROMBACH, E, MAIS RECENTEMENTE, O ACÓRDÃO DE 16-07-2015, PROCESSO C-681/13 - DIAGEO BRANDS.
- ACÓRDÃO RESPEITANTE AO CASO ECO SWISS CHINA TIME, LTD. VS. BENETTON.
Sumário :


I - Os termos do reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira são regulados, no nosso direito comum, pela LAV (capítulo X), ressalvando-se, porém, expressamente, no seu art. 55.º, n.º 1, o que é imperativamente preceituado, a esse propósito, pela Convenção de Nova Iorque de 1958 (de que tanto Espanha como Portugal são partes).
II - A circunstância de a referida Convenção visar facilitar o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras não significa um reconhecimento incondicionado ou sem limites de tais sentenças, estatuindo o seu art. V, n.º 2, al. b) que o reconhecimento poderá ser recusado se a autoridade competente do país em que o mesmo for pedido constatar que o mesmo é contrário à ordem pública desse país, sendo consensual que a ordem pública de que aqui se fala, por suscitar uma questão de direito internacional privado, é apenas a internacional – o que, aliás, foi expressamente consagrado pelo art. 56.º, n.º 1, al. b), ii), da LAV, a cuja luz deve ser interpretado, no nosso ordenamento, este fundamento de recusa de reconhecimento.
III - Por sua vez, a interpretação da Convenção de Nova Iorque deverá ser feita tendo em conta as recomendações da Associação de Direito Internacional (ILA) sobre a aplicação da ordem pública como motivo de recusa de reconhecimento ou de execução de decisões arbitrais internacionais (adoptadas pelo Internacional Council for Commercial Arbitration), reconhecendo-se aí a importância da finalidade da arbitragem, mas também o papel da ordem pública na defesa de princípios fundamentais.
IV - A ordem pública internacional tem como características: (i) a imprecisão; (ii) o cariz nacional das suas exigências (que variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles); (iii) a excepcionalidade (por ser um limite ao reconhecimento de uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada); (iv) a flutuação e a actualidade (intervém em função das concepções dominantes no tempo do julgamento, no país onde a questão se põe); e (v) a relatividade (intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado do reconhecimento).
V - Trata-se, assim, de um conceito indeterminado que, como os demais, em qualquer ordem jurídica, terá de ser concretizado pelo juiz no momento da sua aplicação, tomando em conta as circunstâncias particulares do caso concreto; porém, a sua actuação positiva sobre o resultado obtido pela decisão arbitral estrangeira – recusando o seu reconhecimento – não comporta qualquer juízo sobre a adequação da aplicação nela feita do direito tido por aplicável, nem, muito menos, de desvalor sobre o ordenamento jurídico estrangeiro: a acção preclusiva da ordem pública internacional incide unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não sobre a lei em si.
VI - O controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado do foro não se confunde com revisão: o juiz não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal arbitral para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro; ainda assim, quando o controlo se destina a verificar se o resultado da decisão é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado, poderá não bastar a análise do dispositivo da sentença por este ser, em geral, neutro, se desligado da vistoria ao raciocínio até ele percorrido pelo Tribunal.
VII - Ainda que não seja possível determinar, a priori, o conteúdo da cláusula geral da ordem pública internacional, é latamente consensual a ideia de que o mesmo é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que, pela sua relevância, integram a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, que não só enformam como também conformam a ordem pública internacional do Estado, o mesmo sucedendo com os princípios fundamentais do Direito da União Europeia e ainda com os princípios fundamentais nos quais se incluem os da boa fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária, quanto de fonte nacional.
VIII - Considerando, porém, que os aludidos princípios possuem um conteúdo normativo amplo ou indeterminado, a invocação da sua violação, como fundamento de recusa do reconhecimento de sentença arbitral, terá de ser sujeito a acentuadas restrições e daí que a contrariedade à ordem pública do país do reconhecimento a que alude o art. 56.º, n.º 1, al. b), ii), da LAV pressuponha que esse reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado Português e não meramente divergente daquele que resultaria da aplicação do direito português.
IX - Estando em causa uma sentença arbitral, proferida por um árbitro, ao abrigo da lei espanhola, que condenou o requerido (um advogado português), pelo seu declarado incumprimento de um pacto de não concorrência, no pagamento às requerentes (sociedades de advogados) de quantia superior a 4,5 milhões de euros ao abrigo de uma cláusula penal convencionada, este resultado – que adviria do respectivo reconhecimento – atingindo uma ordem de grandeza absolutamente desproporcionada (porquanto equivalente ao rendimento de mais de 25 anos de exercício profissional), colide estrondosamente com os nossos bons costumes, com o princípio da boa fé e com o princípio da proporcionalidade (ou da proibição do excesso), para além de restringir, em patente demasia, a liberdade pessoal e económica do requerido e, consequentemente, os fundamentalíssimos direitos, consagrados constitucionalmente, de liberdade de escolha da profissão e da livre iniciativa económica (arts. 18.º, 47.º e 61.º da CRP).
X - A dignidade do exercício da advocacia, compartilhada por todos os países que nos são culturalmente próximos, não é compatível com o tratamento dispensado a uma qualquer actividade mercantil, já que se trata de “uma actividade que, pela sua própria natureza, pelas regras a que está sujeita e pelo seu objecto, é estranha à esfera das trocas económicas”, assegurando a lei aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos actos próprios de forma isenta, independentemente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.
XI - Em consequência, o advogado – quer exerça a sua profissão isoladamente, quer o faça integrado em estruturas organizativas e na relação de colaboração com colegas ou terceiros –, não pode ficar adstrito a obrigações susceptíveis de comprometerem a sua liberdade e independência, bem como a relação de confiança com o seu cliente ou a defesa do interesse deste.
XII - É também por isso que o Estado delegou na Ordem dos Advogados a sua função essencial de garantir aos cidadãos e demais sujeitos de direito um acesso adequado à justiça e ao direito, sendo razões imperiosas e de interesse geral que, relativamente ao exercício da profissão de advogado no território nacional, explicam o cometimento à referida pessoa colectiva de direito público da regulamentação de tal exercício e das respectivas condições.
XIII - Estando em causa um litígio que tem a ver com o facto de um advogado português, inscrito na Ordem dos Advogados de Portugal, ter deixado de exercer a sua actividade profissional (que nunca praticou em Espanha), no âmbito da estrutura organizativa de uma sociedade portuguesa, em Portugal, e de, sequentemente, ter passado a integrar a estrutura de uma outra sociedade de advogados, também em Portugal – e, portanto, sem qualquer conexão com o país (Espanha) no qual se localizou a arbitragem – as regras, incluindo as de organização do exercício da profissão de advogado, foram subtraídas à regulamentação e à fiscalização da pessoa colectiva de direito público delas incumbida, não obstante as razões imperiosas e de interesse geral que explicam o seu cometimento à mesma.
XIV - Por outro lado, a própria convenção de arbitragem, ao remeter para um enquadramento legal que – para além de nenhuma conexão ter com a relação jurídica a que respeita o litígio – supostamente, veda o recurso à moderação, segundo a equidade, no que toca ao montante declaradamente resultante do accionamento da referida cláusula penal, é intolerável por colidir com o princípio fundamental da nossa ordem jurídica destinado a corrigir excessos ou abusos decorrentes do exercício da liberdade contratual ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações, o qual, por ter subjacente o princípio da boa fé, é regulado em termos que o tornam imperativamente inarredável (art. 812.º do CC).
XV - Conduzindo a sentença arbitral estrangeira em questão a um resultado chocante, intolerável e inassimilável pela ordem pública internacional do Estado português, dado o atropelo grosseiro, clamorosa e flagrante do sentimento ético-jurídico dominante e de interesses de primeira grandeza da comunidade local, a decisão recorrida poderia ter recusado – como fez – o pedido de reconhecimento da referida sentença.      

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



 “AA, S.L.P.”, com sede em Barcelona, e, “AA & Associados R.L.”, com sede em Lisboa, pediram (em 10/1/2013) contra BB o reconhecimento da sentença arbitral proferida em Barcelona, em 30/8/2012, mediante a qual o requerido foi condenado a pagar-lhes a quantia de € 4.516.536,78, com fundamento no incumprimento pelo mesmo do “Convénio de Integração Profissional das Relações Sociais” de ambas as requerentes, subscrito por todos os respectivos sócios, designadamente o próprio requerido, no qual se previu a cláusula penal em que se estribou tal condenação, bem como que todos os litígios que, no seu âmbito, se suscitassem seriam resolvidos definitivamente mediante arbitragem, a qual seria executada por um árbitro, em Barcelona e de acordo com a lei espanhola.


O requerido opôs-se ao pretendido reconhecimento, em suma, com os seguintes fundamentos:

1º - Nenhuma das requerentes se vinculou à convenção escrita em que se baseou a arbitragem que desencadearia a sentença a reconhecer;

2º - Considerando a lei espanhola, escolhida para regular a arbitragem, a convenção seria inválida porque a deferiu a um árbitro singular, quando essa lei exige que seja colegial a arbitragem de litígios entre membros de sociedades de advogados;

3º - A convenção arbitral é ineficaz porque, com o dito convénio, em qualquer das suas versões, se pretendeu obter um resultado material idêntico ao da fusão entre as duas sociedades e vincular os sócios da segunda requerente ao mesmo, como se este encerrasse os respectivos estatutos, sem que estes fossem apresentados a registo junto da Ordem dos Advogados de Portugal – contrariando normas de ordem pública e com vocação de aplicação imediata e necessária [arts. 4º do DL 513-Q/79 de 26/12 e 43º da LSA (DL 229/2004 de 10/12, que aprova o regime jurídico das sociedades de advogados)] – sendo que, aliás, tal organismo declarou a ineficácia do dito convénio, pelo que a cláusula arbitral nele contida é, também, ineficaz;

4º - A matéria em litígio era inarbitrável, por força do disposto no art. 204º do EOA (Lei 15/2005 de 26/1), vigente em 2009;

5º - O resultado da sentença arbitral em causa é contrário à ordem pública internacional do Estado português, pelos seguintes motivos: a) viola o princípio da segurança jurídica (art 2º da CRP), de que deve gozar o acto administrativo mediante o qual o Conselho Geral da Ordem de Advogados declarou a ineficácia do dito convénio; b) viola normas de concorrência (arts. 101º/1 do Tratado de Funcionamento da União Europeia e 9º da Lei nº 19/2012, de 8/5, que aprovou a Lei da Concorrência); c) viola normas fundamentais, designadamente dos direitos de liberdade de escolha de profissão (art 47º da CRP) e da livre iniciativa económica (art. 61º da CRP); d) viola as normas dos artigos 811º/3 e 812º/1 do CC e o princípio da proporcionalidade (art. 18º da CRP).               


As requerentes responderam, refutando tais fundamentos.


A Relação de Lisboa recusou o peticionado reconhecimento, por considerar que:

1º - a sentença arbitral respeita a um litígio não abrangido por convenção de arbitragem, dado inexistir convenção relativamente à segunda requerente;

2º - a convenção de arbitragem não colegial é inválida, em função da lei (espanhola) a que as partes a sujeitaram; 

3º - a matéria em litígio é inarbitrável, em face do art. 204º da L 15/2005 de 26/1 (Estatuto da Ordem dos Advogados vigente em 2009);

4º - o resultado da sentença arbitral em causa nos autos – condenação do requerido na importância de € 4.516.536,78, decorrente da aplicação da lei civil espanhola – contraria o princípio integrante da ordem pública internacional do Estado português, consagrado no art. 812º do CC português.


As requerentes interpuseram recurso de revista desse acórdão da Relação, em que adversaram cada um dos motivos de recusa em que se estribou a decisão recorrida, tendo, quanto ao último deles (contrariedade à ordem pública internacional do Estado português), explanado as seguintes conclusões:

«63ª Uma vez que na delimitação deste fundamento de recusa o Tribunal a quo extravasa daquilo que comummente é aceite como sendo a ordem pública internacional, recorda-se que:

a) Apenas a ofensa da ordem pública internacional constitui fundamento de recusa de reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras.

b) O conjunto de princípios e regras que integram a ordem pública internacional tem um âmbito muito mais restrito do que a ordem pública nacional;

c) A ofensa da ordem pública internacional não se reconduz a todo o acervo de normas injuntivas do ordenamento jurídico e causa,

d) A ordem pública internacional é apta a veicular os princípios e normas fundamentais da ordem jurídica do foro que tenham aplicação a situações transnacionais e que sejam partilhados pela comunidade internacional.

e) A contrariedade à ordem pública internacional do Estado português é causa de recusa do reconhecimento de sentença arbitral estrangeira apenas quando o reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública do Estado português. É necessário que da aplicação da sentença resulte uma intolerável e flagrante ofensa os princípios fundamentais estruturantes da presença de Portugal no concerto das nações.

f) Este fundamento de recusa da não permite a revisão do mérito da causa.

64ª Ora, não se está perante uma sentença arbitral cujo reconhecimento ou execução conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português.

65ª Em primeiro lugar, não existe em Portugal nenhum princípio de ordem pública nacional que imponha ao tribunal a redução de uma pena convencional manifestamente excessiva, quer tal redução lhe seja pedida pelo devedor quer o não seja. O único princípio de ordem pública é o de que as partes não podem retirar ao tribunal, por convenção, o poder de o fazer. É isto que é reconhecido quer pela doutrina quer pela jurisprudência nacionais.

66ª Mas é, pelo menos, duvidoso que um tal princípio de limitação da autonomia da vontade privada se integre naquilo a que o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 09.10.2003 apelidou de “princípios fundamentais estruturantes da presença de Portugal no concerto das nações” e possa ser, desse modo, integrado no conceito geralmente aceite de ordem pública internacional. De qualquer modo, essa averiguação extravasa claramente do contexto deste processo, onde uma tal limitação convencional se não verificou.

67ª Mesmo que existisse, em Portugal, um qualquer princípio de ordem pública internacional que impusesse aos tribunais a redução das penas convencionais excessivas, o que não ocorre, nem mesmo assim se verificaria in casu qualquer infração desse princípio nos termos apontados pelo Acórdão.

68ª Desde logo, porque o Oponente não solicitou tal redução ao tribunal arbitral, pelo que nenhum tribunal português, à luz do direito nacional, poderia, sequer, ter reduzido a cláusula estabelecida no Convénio.

69ª A interpretação do Tribunal a quo, se fosse aceite na sua substância pela jurisprudência portuguesa, resultaria na atribuição de uma capitis deminutio às decisões arbitrais proferidas em Espanha, recusando-lhes liminarmente o reconhecimento sempre que envolvessem condenações com base em cláusulas penais porque, sendo ou não excessivos os valores arbitrados, tendo ou não tendo sido pedida a redução pelo devedor, sempre existiria, em pano de fundo, uma norma de direito de espanhol que impediria a redução caso a pena fosse manifestamente excessiva.

70ª Acresce que o processo não contém elementos para se avaliar da alegada excessividade da cláusula penal pactuada, como sejam a superioridade em relação ao dano efetivo e outros que se revelem adequados, de índole objetiva e subjetiva.

71ª O Acórdão desconsiderou que, como reconhecido na Sentença arbitral, os interesses das Recorrentes subjacentes à cláusula penal compulsória foram prejudicados de forma vultuosa, pelo “desvio”, da sua organização económica comum, de um acervo patrimonial imaterial (clientela, advogados, pessoal administrativo), assim como desconsiderou a consciência do Recorrido na violação das suas obrigações, a gravidade dessa violação e, bem assim, o valor do correspondente benefício obtido pelo Recorrido com a violação da sua obrigação e que tem o seu reflexo na valorização do mesmo “estabelecimento” com que entrou no capital da sociedade de advogados que hoje é sócio.

72ª Também não se entende como é que a qualidade de uma pessoa, singular ou coletiva, possa ter qualquer influência no juízo de excessividade de uma penalidade que lhe seja aplicável. Uma pessoa singular multimilionária está em muito melhores condições de pagar uma qualquer quantia do que uma pequena sociedade que explora um pequeno quiosque de venda de jornais.

73ª A douta decisão recorrida omite, porque é certamente superior que à remuneração bruta do Recorrido que refere, qualquer referência ao montante que o Recorrido auferiu em virtude da transferência, que patrocinou, de clientes e da equipe – advogados e funcionários administrativos – para a sociedade de advogados de que se tomou sócio.

74ª De resto, as cláusulas penais dos artigos 18º e 19º do Texto Articulado foram desenhadas de modo a refletir o valor de um goodwill perdido em caso da sua violação, calculado do modo como os sócios, incluindo o Recorrido, entendiam que tal deveria ser feito.

75ª O valor a que chegou o Tribunal Arbitral respeitou escrupulosamente os métodos escolhidos, averiguando de forma criteriosa os valores em jogo, sujeitando-os a duas perícias, sobre as quais discreteou na Sentença, corrigindo aquilo que lhe não parecia adequado.

76ª Em parte alguma da Sentença recognoscenda considerou o Árbitro que a cláusula era excessiva e que não a poderia moderar por estar impedido pela lei espanhola. Pelo contrário, ao abordar a questão da possibilidade de “moderar” a penalidade quantificada, o árbitro declara que “o incumprimento deve ser qualificado como total, sem que se possa falar de desproporção e muito menos de indeterminação (...)”.

77ª As ora Recorrentes jamais consideraram excessiva a pena convencionada e também não sugeriram sequer que a mesma fosse reduzida pelo Árbitro. A questão que elas suscitaram foi exatamente a contrária, isto é, a de que a cláusula penal não poderia ser reduzida por não se verificar a circunstância prevista no artigo 1154º do Código Civil espanhol, o qual permite a redução da pena quando exista um cumprimento parcial ou irregular da obrigação principal.

78ª A questão, tal como foi colocada pelo Tribunal a quo, constitui, na verdade, mais uma manifestação da busca de pretextos para não rever a sentença arbitral e uma rejeição frontal do princípio do favor arbitrandum, em tudo contrária à Convenção de Nova Iorque, bem como da utilização do seu artigo V/2/b) da como pretexto para se imiscuir na decisão de mérito, interpretando-a a seu bel prazer e tentando corrigi-la em sede de revisão, o que manifestamente também não podia fazer.

79ª Ficou, assim, amplamente demonstrado que o resultado do reconhecimento ou o da execução da Sentença não contraria, muito menos manifestamente, a ordem pública internacional do Estado português.».

O requerido apresentou contra-alegações, invocando, além do mais, o disposto no art. 671º nº 1 do CPC para defender a inadmissibilidade do recurso, e suscitou a ampliação do objeto do mesmo, nos termos do art. 636º nº 1 do CPC, a fim de ser aferida a incompatibilidade do resultado do reconhecimento da sentença arbitral com a ordem pública internacional do Estado português e da consequente recusa do reconhecimento da sentença arbitral, também, pelos seguintes fundamentos não acolhidos no acórdão recorrido:

- violação do princípio da segurança jurídica, na dimensão de respeito pela força de caso decidido de um acto administrativo;

- violação das normas fundamentais garantidoras da liberdade profissional e liberdade de iniciativa económica;

- violação de normas garantidoras da livre concorrência.

*

Cumpre decidir.

Quanto à questão prévia da admissibilidade do recurso, dizemos, muito brevemente, que o recorrido não tem razão porque a Relação se pronunciou, em 1ª instância, sobre o pedido de reconhecimento de sentença arbitral estrangeira, ao abrigo do art. 59º nº 1 h) da LAV (Lei 63/2011). Por isso, a invocada regra geral do art. 671º nº 1 do CPC – que abarca a normalidade das situações em que a Relação se pronuncia, em apelação, sobre a sentença de 1ª instância – é arredada, no caso concreto, pelo comando especial previsto no nº 8 daquele artigo, conjugado com o do art. 629º nº 1 do CPC.

1. Foi pedido o reconhecimento da decisão proferida em 30 de Agosto de 2012, ao abrigo da legislação espanhola, por um tribunal arbitral composto por um único árbitro, no âmbito da arbitragem executada em Espanha (Barcelona) ([1]), mediante a qual foi decidido declarar que o ora requerido, incumpriu as obrigações contidas nas cláusulas 18 e 19 dos estatutos sociais da primeira requerente e no «Convénio de integração profissional e regulamentação das relações sociais na Sociedade AA» e condenar o mesmo a pagar solidariamente a ambas as requerentes a quantia de € 4.516.536,78.

Tal como se extrai da matéria considerada relevante para a decisão e fixada pela Relação e que a este Tribunal se impõe, o enquadramento fáctico em que essa decisão arbitral emergiu é o seguinte, em síntese:

A primeira requerente é uma sociedade de advogados espanhola, registada no Colégio de Abogados de Barcelona e com sede nessa mesma cidade, e a segunda requerente é uma sociedade de advogados portuguesa, registada na Ordem dos Advogados, com sede em Lisboa, cujos estatutos contemplam a possibilidade de os sócios estipularem, por acordo escrito, a determinação da quantia devida ao sócio excluído ou exonerado, bem como os respectivos termos e condições.

Por sua vez, o requerido é um advogado português, inscrito na Ordem dos Advogados, que, apesar de ter sido também sócio nominal da primeira requerente entre 2004 e 2011, nunca exerceu essa sua actividade profissional em Espanha, apenas o tendo feito no âmbito da estrutura organizativa da segunda requerente (sociedade portuguesa), de que foi sócio entre 1998 e 2011, tendo dirigido o respectivo departamento bancário e de seguros, integrado por diversos colaboradores, todos portugueses.

As normas que a sentença arbitral declarou terem sido incumpridas pelo requerido foram estabelecidas na assembleia geral da primeira requerente (sociedade espanhola) ocorrida em 26 e 27 de Março de 2009, que teve por objectivo aprovar a alteração aos respectivos estatutos, para os quais aquelas normas foram transpostas.

O mencionado convénio «não é constitutivo de uma sociedade», mas destinou-se a «fazer a efectiva integração profissional dos sócios de ambas as sociedades e estabelecer o regime e condições que regularão as futuras relações dos sócios da Firma integrada», pretendendo-se «estabelecer as normas de carácter estatutário que regularão a vida das Sociedades Associadas e as relações entre os Sócios da sociedade, independentemente das normas específicas nos estatutos de cada Sociedade Associada», de modo a que ambas as sociedades funcionassem, «doravante, como se de uma sociedade se tratasse».

O dito convénio continha, ainda, um pacto de não concorrência consubstanciado em várias obrigações e regras sobre o exercício pelos sócios da profissão («prestação acessória de exercício profissional»), incluindo a de não contratar colaboradores (cláusula 18) e a de proteger a actividade da “sociedade” (a entidade virtual aí figurada), (cláusula 19), bem como sobre as consequências do respectivo incumprimento: a obrigação de indemnizar os danos causados e, «adicionalmente, a título de cláusula penal», «uma importância igual ao triplo de todas as retribuições satisfeitas por esta aos colaboradores implicados dentro dos vinte e quatro meses anteriores à saída do sócio» (cláusula 18.2) e «uma importância igual ao triplo do montante facturado pela Sociedade aos clientes a que se refira o incumprimento dentro dos vinte e quatro meses anteriores à data da saída do sócio» (cláusula 19.3).

Com a alteração estatutária aprovada na dita assembleia geral da primeira requerente (sociedade espanhola), ficou estabelecido que a lei espanhola constituiria o regime jurídico de resolução de litígios, que estes seriam decididos por arbitragem, com renúncia à jurisdição competente, a realizar por árbitro único aí designado (o Presidente do Conselho Geral da Advocacia Espanhola), e realizada no domicílio daquela (Barcelona), (cláusula 56).

Em 2011 o requerido comunicou a sua saída e consequente exoneração da qualidade de sócio da segunda requerente, integrando-se, de seguida, noutra sociedade de advogados.

Em 28 de Fevereiro de 2012, as duas requerentes impulsionaram a abertura do processo arbitral tendente à resolução de litígios relacionados com a saída do requerido da segunda requerente, peticionando que o Tribunal viesse a declarar que o requerido havia incumprido o disposto nas citadas cláusulas 18º e 19º do convénio na versão alterada em 2009 e que, consequentemente, o condenasse a pagar-lhes, solidariamente, o montante de € 4.901.352,60.

Após notificação do Tribunal Arbitral para o efeito, o requerido, através de carta de 19 de Março de 2012, disse, reiterando cartas anteriores de 9/3/2012 e 15/3/2012, não aceitar a designação do árbitro e a competência de “qualquer tribunal arbitral” constituído ao abrigo do acordo invocado por ambas as requerentes para resolver as questões referidas no pedido de arbitragem. O que, em 3 de Abril de 2012, o Tribunal arbitral decidiu negar e convocar as partes para comparecerem à ordenação do processo.

Em 31 de Julho de 2012, o Conselho Geral da Ordem dos Advogados de Portugal deliberou, além do mais, que o dito convénio de 2003, na versão revista em 2009, consubstanciando, pelo menos, uma alteração ao contrato de sociedade da segunda requerente, é ineficaz, não produzindo quaisquer efeitos jurídicos na Ordem Jurídica Portuguesa e perante a Ordem dos Advogados Portugueses, por não ter sido apresentado a registo, o qual só seria efectuado se o Conselho Geral da Ordem dos Advogados viesse a considerar que não violava, manifestamente, as normas deontológicas constantes do E.O.A., bem como as regras previstas no Decreto-Lei n.º 229/2004, de 10 de Dezembro.  

No ano de 2010 – último que foi decorrido integralmente com ligação à segunda requerente – a remuneração anual do requerido foi equivalente a cerca de € 180.000 líquidos.

2. Numa primeira abordagem ao problema que nos é colocado, constatamos, desde logo, que o litígio submetido à arbitragem localizada em Espanha foi despoletado na sequência da desvinculação por parte de um advogado da sociedade constituída por ele próprio e por outros seus pares no exercício da advocacia e cuja organização empresarial, dada essa sua natureza, estava vocacionada a prestar a muito singular actividade económica consistente na prestação, mediante remuneração, de serviços de assistência jurídica consistentes na representação e na defesa em juízo e noutros serviços jurídicos, como a preparação e a elaboração de pareceres, contratos ou outros actos.

Ora, a dignidade do exercício da advocacia, compartilhada por todos os países que nos são culturalmente próximos, não é compatível com o tratamento dispensado a uma qualquer actividade meramente mercantil, pois trata-se de «uma actividade que, pela sua própria natureza, pelas regras a que está sujeita e pelo seu objecto, é estranha à esfera das trocas económicas» ([2]). E daí que essa dignidade seja reconhecida, entre nós, pelo menos quanto ao patrocínio forense, ao nível da própria Lei Fundamental (art. 208º), mas também seja assumida pela Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013, de 26/8), que expressa, para além da essencialidade do patrocínio forense na administração da justiça, o desígnio do legislador em que, no exercício da sua atividade, os advogados ajam «com total independência e autonomia técnica e de forma isenta e responsável, encontrando-se apenas vinculados a critérios de legalidade e às regras deontológicas próprias da profissão» (art. 12º). Para tanto, a «lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça» (art. 13º).

E como decorrência dessa muito relevante especificidade, o advogado, quer exerça a sua profissão isoladamente, quer o faça integrado em estruturas organizativas e na relação de colaboração com colegas ou terceiros, não pode ficar adstrito a obrigações susceptíveis de comprometerem a sua liberdade e a sua independência, bem como a relação de confiança entre o advogado e o seu cliente ou a defesa do interesse deste.

É também por tudo isso que não pode ser dispensado o controlo público do cumprimento dos vínculos a critérios de legalidade e às regras deontológicas próprias da profissão. Em Portugal, esse poder público encontra-se confiado pelo Estado a uma associação pública, a Ordem dos Advogados, organismo investido de autoridade pública ao qual incumbem as funções inerentes a tal poder, incluindo a de garantir, no interesse geral, a liberdade e independência do advogado na prestação da assistência jurídica, a par, naturalmente, da representação dos profissionais em questão.

Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, «cabe aos órgãos legislativos competentes de um Estado-Membro decidir, no quadro da soberania nacional, a forma como organizam o exercício das suas prerrogativas. O facto de se delegar num organismo democraticamente legitimado, como uma ordem profissional, o poder de adoptar regulamentações geralmente vinculantes inscreve-se nos limites desse princípio de autonomia institucional. (…) Relativamente aos advogados, importa recordar, a título preliminar, que, segundo uma jurisprudência constante, na falta de regras comunitárias específicas na matéria, cada Estado-Membro tem, em princípio, a liberdade de regulamentar o exercício da profissão de advogado no seu território» (…) Os deveres deontológicos «obrigam a que o advogado se encontre numa situação de independência relativamente aos poderes públicos, aos outros operadores e a terceiros, de quem não deve sofrer nunca qualquer influência. Deve oferecer, a esse respeito, a garantia de que todas as iniciativas que toma no processo o são no interesse exclusivo do cliente.» ([3]).

E assim, tendo o Estado delegado na Ordem dos Advogados a sua função essencial de garantir aos cidadãos e aos demais sujeitos de direito um acesso adequado à justiça e ao direito, são razões imperiosas e de interesse geral que, relativamente ao exercício da profissão de advogado no território nacional, explicam o cometimento à referida pessoa coletiva de direito público ([4]) a regulamentação de tal exercício e das respectivas condições, em conformidade com os preceitos do seu Estatuto (EOA) e, também, do Regime Jurídico das Sociedades de Advogados (LSA) ([5]), de modo a satisfazer os objectivos ligados «à necessidade de conceber regras de organização, de qualificação, de deontologia, de controlo e de responsabilidade, que dão a necessária garantia de integridade e experiência aos consumidores finais dos serviços jurídicos e à boa administração da justiça» ([6]).

Servem estas considerações para partir para toda a análise subsequente com a ideia, bem salientada, da peculiar natureza da actividade subjacente ao litígio em apreço, que – sublinha-se de novo – «pelas regras a que está sujeita e pelo seu objecto, é estranha à esfera das trocas económicas». Por isso, deve ser recebido com as devidas acomodações o apelo a interpretações que apontem à facilitação do reconhecimento desta concreta decisão arbitral estrangeira, simplesmente, por estarmos «no domínio dos direitos privados e no da proteção da fluidez do comércio internacional, em que seguramente os interesses ou valores essenciais ou fundamentais da ordem portuguesa dificilmente e de forma manifesta poderiam à partida estar em causa» ([7]).

E é também por termos essa ideia bem vincada que não nos permitimos reputar de inócua a deliberação do Conselho Geral da Ordem dos Advogados de Portugal de 31-07-2012 – que, além do mais, declarou que o dito convénio não produzia quaisquer efeitos jurídicos na Ordem Jurídica Portuguesa e perante a Ordem dos Advogados Portugueses –, sob pena de serem obnubiladas as razões imperiosas e de interesse geral que explicam o cometimento a esse organismo do poder público de regulamentação e de fiscalização do exercício da profissão de advogado e das respectivas condições, no território nacional.

3. Do que vem de se expor flui, necessariamente, uma segunda observação: o litígio submetido à arbitragem, apesar de localizada em Espanha, tem apenas a ver com o facto de um advogado português, inscrito na Ordem dos Advogados de Portugal, ter deixado de exercer a sua actividade profissional – que nunca praticou em Espanha –, no âmbito da estrutura organizativa da segunda requerente, uma sociedade de advogados portuguesa, em Portugal, e de, sequentemente, ter passado a integrar a estrutura de uma outra sociedade de advogados, também em Portugal.

Portanto, por um lado, o litígio foi submetido à arbitragem localizada num país a que não tinha qualquer ligação substancial, pois tinha a sua conexão total – não meramente intensa – apenas com o território nacional, onde é suscitado o reconhecimento da decisão arbitral e onde tudo ocorreu. Como consequência e por outro lado, ao ser submetido a uma arbitragem localizada num país sem conexão com o litígio, foi-o, também, com observância a regras, incluídas as de organização do exercício da profissão de advogado e das respectivas condições e de responsabilidade que, objectivamente – independentemente da real motivação dos contraentes –, foram subtraídas à regulamentação e à fiscalização da pessoa colectiva de direito público delas incumbida, não obstante as razões imperiosas e de interesse geral que, relativamente ao exercício da profissão de advogado no território nacional, explicam o seu cometimento à mesma.

4. Os termos do reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira, que constitui o objecto desta acção, são regulados, no nosso direito comum, pelo capítulo X da LAV, cujo art. 55º nº 1 ([8]), ressalva, expressamente o que é imperativamente preceituado sobre tal reconhecimento pela Convenção de Nova Iorque de 1958, de que tanto a Espanha como Portugal são partes ([9]).

A referida Convenção aplica-se ao reconhecimento (e à execução) «das sentenças arbitrais proferidas no território de um Estado que não aquele em que são pedidos o reconhecimento», nos termos do nº 1 do seu art. I, cujo nº 3 (parte final) faculta que qualquer Estado possa declarar, no momento da sua assinatura ou ratificação, que aplicará apenas a Convenção aos litígios resultantes de relações de direito, contratuais ou não contratuais, que forem consideradas comerciais pela respectiva lei nacional. Do que resulta que a Convenção não visa apenas litígios de natureza comercial, embora primacialmente vocacionada para os mesmos ([10]).

Ora, sendo clara a plena aplicabilidade ao caso dos autos da dita Convenção, anota-se que a mesma impõe que, no reconhecimento das sentenças arbitrais às quais a mesma se aplique, não sejam utilizadas quaisquer condições sensivelmente mais rigorosas do que aquelas que são aplicadas para o reconhecimento ou a execução das sentenças arbitrais nacionais (art. III). Neste ponto, pela sua pertinência, deve registar-se as indicações do “Guia do ICCA sobre a Interpretação da Convenção de Nova Iorque de 1958” ([11]): «O propósito da Convenção de Nova Iorque é promover o comércio internacional e a solução de disputas internacionais por meio da arbitragem. Visa a facilitar o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras e a execução de convenções de arbitragem. Consequentemente, os tribunais devem adotar um viés pró-execução ao interpretarem a Convenção.».

O que não significa um reconhecimento incondicionado ou sem limites de tais sentenças, como resulta, para o que ora nos interessa, do seu art. V, cujo nº 2 b) estatui que poderá ser recusado o reconhecimento de uma sentença arbitral se a autoridade competente do país em que o reconhecimento foi pedido constatar que o reconhecimento da sentença é contrário à ordem pública desse país.

Impõe-se, pois, que se trate agora de saber se o reconhecimento da sentença arbitral estrangeira em causa pode – como se ponderou na decisão recorrida – ser recusado por ser contrário à “ordem pública” do Estado português.

Embora a Convenção se refira apenas à “ordem pública”, tem sido entendido, consensualmente, que apenas abarca a ordem pública internacional, por suscitar uma questão de direito internacional privado ([12]). O que, aliás, foi consagrado expressamente pelo art. 56º, nº 1, b), ii), da LAV, a cuja luz deve ser interpretado no nosso ordenamento o fundamento de recusa de reconhecimento previsto na Convenção e sobre que ora nos debruçamos ([13]).

Como é pacificamente admitido, estando em causa o reconhecimento dos efeitos de uma decisão estrangeira, «tem de haver uma maior tolerância para com as regras do sistema jurídico estrangeiro. Na verdade, conforme salienta a Professora Isabel de Magalhães Collaço, o Direito Internacional Privado assenta, justamente, no princípio do respeito pela diversidade de regulamentações e no reconhecimento da diferença entre as várias ordens jurídicas. (…) Em todo o caso, esta maior tolerância para com a lei estrangeira não é sinónimo, evidentemente, de subserviência total. Com efeito, não está aqui em causa um “cheque em branco” que o legislador nacional passa à lei estrangeira aplicável. Assim, e porque a remissão para uma lei estrangeira, lei esta de conteúdo vário e desconhecido, é sempre — na expressão feliz de Leo Raape — um “Sprung ins Dunkel”, isto é, um salto no escuro, um salto no desconhecido torna-se necessário dotar o juiz de um meio ou expediente que lhe permita afastar a aplicação de uma norma de direito estrangeiro, quando o resultado dessa aplicação for inadmissível no sistema da “lex fori”, nomeadamente quando representar uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais da sua ordem jurídica. Esse meio ou expediente é, precisamente, a ressalva, reserva ou excepção de ordem pública internacional.» ([14]).

O princípio da autonomia privada reconduz-se a uma permissão genérica de conduta a todos os sujeitos da ordem jurídica, possibilitando-lhes estabelecer os efeitos jurídicos que se irão repercutir na sua esfera jurídica, através da liberdade de celebração do contrato e de fixação de conteúdo do mesmo. Porém, a constatação de ter havido um abuso ou um aproveitamento excessivo da autonomia privada implica o reconhecimento de que o contrato não assentou numa igualdade jurídico-económica, ou seja, afinal, em tal autonomia, o que conduz à contenção da liberdade contratual, mediante a intervenção do Estado, no interesse colectivo, munido dos comandos resultantes, tanto da falada cláusula da “ordem pública”, como dos da boa-fé e dos “bons costumes” ([15]).

Ora, a constatação de a arbitragem, em si mesma, ter como corolário o princípio da autonomia privada – que rege as relações dos particulares entre si, fundadas na sua igualdade jurídica e na sua autodeterminação – não colide com a aplicação de tal cláusula ao resultado de uma decisão arbitral com que se tenha pretendido solucionar um litígio emergente de uma situação da vida real, porquanto a reserva por ela imposta visa, precisamente, estabelecer limites a essa autonomia face a outros princípios ou valores que o ordenamento quer preservar. Com efeito, a ordem pública é um elemento limitador da liberdade das partes em contratar.

Deparamos, pois, com uma cláusula geral cuja actuação, à partida, não é arredada por estar em causa o reconhecimento de uma decisão com origem na autonomia privada, tanto quanto ao seu desencadeamento como ao mecanismo nela usado para solucionar o litígio que lhe foi submetido, que – relembramos –, no caso em apreço, consistiu, declaradamente, na aplicação de uma cláusula penal convencionada entre as partes.

Com efeito, uma interpretação da Convenção de Nova Iorque que fosse ao ponto de, quaisquer que fossem os particulares contornos dum caso em apreciação, considerar vedada a intervenção da reserva da ordem pública internacional em relação ao resultado da aplicação do contratualmente estipulado pelas partes no âmbito da respectiva autonomia, designadamente através de cláusulas penais, conduzir-nos-ia, na prática, não apenas à proscrição da citada norma daquela convenção – porque a mesma, evidentemente, só se justifica para limitar, precisamente, a autonomia privada diante de outros princípios ou valores que o ordenamento do foro quer preservar ([16]) – como à eventual afronta de princípios e valores fundamentais plasmados na nossa Constituição, de cujo primado já decorre a informação e a conformação de tal reserva ([17]).

Trata-se, portanto, de um conceito indeterminado, que, como os demais, em qualquer ordem jurídica, terá de ser concretizado pelo juiz no momento da sua aplicação, tomando em conta as circunstâncias particulares do caso concreto ([18]).

Estão profusamente exibidos nestes autos, nomeadamente na decisão recorrida e no douto Parecer do Prof. Rui Moura Ramos junto aos autos pelo recorrido, os múltiplos contributos, abstractamente, oferecidos pela jurisprudência e pela doutrina na difícil tentativa de atenuar a vaguidade e a fluidez do conceito da “ordem pública internacional”. Não se justificando a inútil reprodução desses contributos, salientaremos apenas alguns dos pontos desse tema com mais estreita pertinência ao caso concreto, com a consciência de que se procura, não uma definição mas, sim, o estabelecimento, com valor aproximativo, de critérios de orientação.

Contudo, pensamos não poder ser dispensada a referência às recomendações da Associação de Direito Internacional (ILA) sobre a aplicação da ordem pública como motivo da recusa de reconhecimento ou de execução de decisões arbitrais internacionais (adoptadas em 2 a 6 de Abril de 2002, na 70ª Conferência da Associação, em Nova Deli), acolhidas pelo já mencionado ICCA, para a atenção dos tribunais estaduais, a fim de facilitar a consistência e previsibilidade na interpretação e aplicação da ordem pública, por reconhecer a importância da finalidade na arbitragem, mas também o papel da ordem pública na defesa de princípios fundamentais. De entre tais recomendações, destacamos as seguintes:

- A finalidade das decisões obtidas no âmbito da arbitragem comercial internacional deve ser respeitada excepto em circunstâncias excepcionais, que podem advir, em particular, de o reconhecimento ou a execução da sentença arbitral internacional ser contra a ordem pública internacional (1, a e b).

- A expressão “ordem pública internacional” é usada nas recomendações para designar o conjunto de princípios e regras reconhecidas por um estado, que, pela sua natureza, pode impedir o reconhecimento ou a execução de uma sentença arbitral proferida no âmbito da arbitragem comercial internacional, quando o reconhecimento ou a execução da referida sentença implique a sua violação por conta do procedimento nos termos do qual ele foi processado (ordem pública processual internacional) ou de seu conteúdo (ordem pública substancial internacional) (1, c).

- A ordem pública internacional de qualquer Estado inclui: (i) os princípios fundamentais, relativos à justiça ou moral, que o estado deseja proteger mesmo quando ele não está directamente em causa (ii) regras concebidas para servir os interesses políticos, sociais ou económicos essenciais do estado, sendo estas conhecidas como “lois de police” ou “regras de ordem pública” e (iii) o dever do Estado a respeitar as suas obrigações para com outros Estados ou organizações internacionais (1, d).

- Um exemplo de um princípio fundamental substantivo é a proibição de abuso de direito (1, e).

- A verificação da conformidade de uma sentença arbitral com princípios fundamentais deve ser feita por referência aos princípios considerados fundamentais dentro de seu próprio sistema jurídico, não no contexto da lei que rege o contrato, a lei do lugar de execução do contrato ou a lei da sede da arbitragem (2, a).

- A fim de determinar se um princípio que faça parte do seu sistema jurídico deve ser considerado suficientemente fundamental para justificar a recusa do reconhecimento de uma sentença, o tribunal deve levar em conta, por um lado, o carácter internacional do caso e sua conexão com o sistema jurídico do foro e, por outro lado, a existência ou não de um consenso entre a comunidade internacional no que se refere o princípio em questão (convenções internacionais podem evidenciar a existência de tal consenso) 2(b).

- O tribunal só deve recusar o reconhecimento de uma sentença que poria em prática uma solução proibida por uma regra de ordem pública, formando parte do seu próprio sistema jurídico quando: (i) o escopo da referida regra se destina a abranger a situação em apreço; e (ii) o reconhecimento da sentença manifestamente perturbaria essenciais interesses políticos, sociais ou económicos, protegidos pela regra (3, b).

- Quando a violação de uma regra de ordem pública do foro não poder ser verificada através da mera revisão da sentença, só se tornando aparente após um exame minucioso dos factos do caso, o tribunal deve ser autorizado a realizar tal reavaliação dos factos (3, c).

Em termos muito genéricos, o conceito da ordem pública internacional caracteriza-se pela sua já referida imprecisão, pelo cariz nacional das suas exigências – que variam de Estado para Estado, segundo os conceitos dominantes em cada um deles –, pela excepcionalidade – por ser um limite ao reconhecimento de uma decisão arbitral putativamente estribada no princípio da autonomia privada –, pela flutuação e pela actualidade – intervém em função das concepções dominantes no tempo do julgamento, no país onde a questão se põe – e pela relatividade – intervém em função das circunstâncias do caso concreto e, particularmente, da intensidade dos laços entre a relação jurídica em causa e o Estado do reconhecimento.

Realçaremos a importância deste último vector, também reconhecida nas citadas recomendações da ILA (2-b), com o apoio do pensamento de Baptista Machado ([19]):

«Da função assinalada à o. p. podemos já concluir que ela se flecte à curvatura concreta da situação, que leva em si uma medida que varia conforme as circunstâncias concretas do caso.

Ora, segundo a doutrina dominante, a dita excepção ou reserva vê-se desde logo balizada na sua intervenção pelo facto de o juiz a não poder fazer valer senão “quando uma ligação estadual de intensidade 'primária' torne efectiva a dissonância entre a lex fori e a lei estrangeira” (GUTZWILLER). O caso deveria apresentar uma ligação suficientemente estreita com a ordem do foro para que se justificasse a intervenção da ordem pública. É este também um dos importantes ensinamentos de KAHN. A existência de uma conexão com o Estado local (“Binnenbeziehung”, “Inlandsbeziehung”) importaria de maneira decisiva para a intervenção da ordem pública.

Este ponto de vista merece ser acolhido, em princípio. Como afirma NIEDERER, a questão da exigência ou não exigência de uma conexão do caso com a lei do foro depende em última análise de se identificar o objecto tutelado pela ordem pública, os princípios e ideais da própria ordem jurídica, com o conceito de uma justiça absoluta em si ou com o conceito de uma justiça apenas relativa. Partindo do único suposto razoável “de que nenhum humano sentimento jurídico, por mais perfeito que seja, pode valer como expressão da justiça divina absoluta” (NIEDERER), de que, portanto, esse sentimento jurídico depende do tempo, lugar e outras circunstâncias; deverá afirmar-se a exigência de uma ligação da hipótese à ordem jurídica do foro como pressuposto da intervenção da o. p.

Com efeito, é somente então, dada essa conexão com a lex fori, seja ela qual for (nacionalidade ou domicílio/de uma das partes, etc), que o caso virá a ter impacto no ordenamento da lex fori, enquanto, ordem jurídica efectiva (…); ganhando, assim, aquela divergência entre, a lex fori e a lei estrangeira relevância decisiva, em virtude de se poder vir a criar uma situação jurídica que, como corpo estranho e inassimilável, ficaria a “poluir” o dito ordenamento do foro.

Por outro lado, reconhecida a relatividade do conceito de justiça, já estará certo exigir do juiz que renuncie ao seu próprio sentimento jurídico, local e temporalmente condicionado, sempre que a hipótese não apresente qualquer relação com as circunstâncias de lugar e de tempo nas quais e das quais nasceu, afinal, tal conceito de justiça.

Nesta doutrina, a intensidade da o. p., determinada pela divergência entre as concepções da justiça material fori e as da lei estrangeira, seria tanto maior quanto mais forte fosse a ligação do caso com o Estado do foro – o que provocaria uma compressão ou expansão do conceito de o. p., uma variação do seu grau de incidência, conforme a situação concreta. Em todo o caso, para a o. p. intervir, será sempre necessário que o direito estrangeiro aplicável atropele grosseiramente a concepção de justiça de direito material, tal como o Estado do foro a entende. Será sempre preciso que esse direito estrangeiro comova ou abale os próprios fundamentos da ordem jurídica interna (pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade), que ele seja de molde a “chocar a consciência e provocar uma exclamação”, para que se justifique um desvio da linha de justiça do DIP através da excepção da o. p..».

Como se vê, o conceito indeterminado, caracterizado como noção funcional, opera, simplesmente, ao nível do caso concreto – e em função dos seus particularismos – e a sua actuação positiva sobre o resultado obtido pela decisão arbitral estrangeira – recusando o seu reconhecimento – não comporta qualquer juízo sobre a adequação da aplicação nela feita do direito tido por aplicável, nem, muito menos, de desvalor sobre o ordenamento jurídico estrangeiro: a acção preclusiva da ordem pública internacional incide unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não sobre a lei em si ([20]).

Depois, não se confunde com revisão o controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado do foro: o juiz, ao apreciar a sentença arbitral cujo reconhecimento lhe é pedido, não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal arbitral para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se tal sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro. Ainda assim, apesar de se afirmar que, em Portugal, o reconhecimento de sentenças (nomeadamente) arbitrais estrangeiras observa o sistema de revisão formal ou delibação, não apreciando o juiz, em regra, o mérito da causa, convém esclarecer que se, em geral, assim é, o nosso sistema também contém inegáveis pontos de aproximação a elementos próprios dos de revisão de mérito. Realmente, quando o controlo se destina a verificar se o resultado da decisão é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado, poderá não bastar a análise do dispositivo da sentença, por este ser, em geral, neutro, se desligado da vistoria ao raciocínio até ele percorrido pelo Tribunal. Tendo a aludida contrariedade natureza, necessariamente, substancial, não se alcança a sua constatação sem que tal exame passe também pelo raciocínio trilhado até ao dispositivo da sentença – o que, evidentemente, não se identifica com um novo julgamento do litígio, ou um reexame dos respectivos fundamentos de facto e de direito. É o que, afinal, também sugere a ILA, como acima se viu (recomendação 3-c) ([21]).

Por fim, está pacificamente adquirido que a cláusula geral da ordem pública internacional veicula princípios e normas fundamentais em que se baseia a ordem jurídica, económica, social e ética da comunidade (do foro), fazendo actuar os valores aos mesmos imanentes de modo a impedir o reconhecimento de uma decisão arbitral estrangeira no respectivo Estado.

Contudo, não sendo possível determinar, a priori, o conteúdo dessa cláusula ([22]), manifestam-se algumas nuances na formulação do conjunto de regras que a delimitam, assim como em relação à interpretação sobre o grau de contrariedade do que resultaria do reconhecimento da decisão arbitral estrangeira ao princípio previsto na citada norma da Convenção de Nova Iorque, ou seja, à ordem pública internacional do Estado impetrado, até porque, como se disse, só perante as concretas circunstâncias do caso se poderá aferir a intolerabilidade da violação de um determinado princípio ou norma fundamental. E, realmente, tratando-se de um conceito abstracto, a avaliação a incidir sobre tais princípios e normas fundamentais deve centrar-se mais na sensibilidade axiológica do que na tentativa da sua evidenciação positiva ([23]).

De todo o modo, é latamente consensual a ideia de que o conteúdo dessa cláusula é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que pela sua relevância, integrem a constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo, os que tutelam direitos fundamentais, que não só informam mas também conformam a ordem pública internacional: a Constituição reflecte os valores mais importantes que conformam o plano estrutural ou a ordem jurídica fundamental de uma comunidade nacional, pelo que é nas normas de hierarquia constitucional que repousa a ordem pública internacional do Estado, como já anotámos supra ([24]).

O mesmo sucede, entre nós, com os princípios fundamentais de Direito da União Europeia. E são, ainda, referenciados como integrando a ordem pública internacional de cada Estado, princípios fundamentais como os da boa-fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, da proibição de indemnizações punitivas em matéria cível ([25]) e os princípios e regras basilares do direito da concorrência, tanto de fonte comunitária ([26]) quanto de fonte nacional ([27]). Porém, dado possuírem um conteúdo normativo amplo ou indeterminado – ainda que mais nuns casos do que noutros –, a invocação da sua violação, como fundamento de recusa do reconhecimento de sentença arbitral, terá de ser sujeito a acentuadas restrições ([28]).

Daí que, apesar de o teor da citada norma da CNI (art. V, cujo nº 2 b) apenas aludir à contrariedade à ordem pública do país do reconhecimento, enquanto fundamento de recusa deste, a mesma venha sendo interpretada, à luz do nosso direito comum [art. 56º, nº 1, b), ii, da LAV], como supondo a verificação pelo tribunal de que o reconhecimento da sentença conduz a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português ([29]). Portanto, a cláusula só intervém como limite ao reconhecimento da decisão estrangeira quando a solução nela dada ao caso for, não apenas divergente da que resultaria da aplicação do direito português, mas manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da nossa ordem jurídica.

E é esse o sentido interpretativo que, de um modo ou outro, vinha e vem sendo apontado, em geral, pela jurisprudência ([30]) e pela doutrina. Para além dos que já foram sendo referenciados ([31]), vejamos alguns outros exemplos:

Baptista Machado: «resultado intolerável [traduzido, no plano psicológico, por uma reacção fortemente desaprovadora do seu espírito de jurista, formado no estudo do direito interno], “quer do ponto de vista do comum sentimento ético-jurídico ('bons costumes'), quer do ponto de vista dos princípios fundamentais do direito português: algo de inconciliável com as concepções jurídicas que alicerçam o sistema” [Cfr. FERRER CORREIA, Anteprojecto de 1951, nota ao art. 34.° («Boletim do Min. da Justiça», nº 24)]» ([32]).

Ferrer Correia: «(…) produziria um resultado absolutamente intolerável para o sentimento ético-jurídico dominante, ou lesaria gravemente interesses de primeira grandeza da comunidade local» ([33]); «(…) incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem sócio-jurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la (…) um resultado intolerável» ([34]).

Oliveira Ascensão: [princípio que] «aos olhos da comunidade nacional será considerado como essencial para a vida colectiva (…) valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira» ([35]).

Robin de Andrade: «(…) se essa violação for patente, ou aparente, na própria sentença» ([36]).

Fora dessa sintonia, aparentemente, Sampaio Caramelo formula a proposta interpretativa de que não seja atribuído ao advérbio “manifestamente” o significado de “excepcionalidade”, para a intervenção da reserva em causa, e, ainda menos, o de “flagrantemente”, para a manifestação da dita contrariedade, mas, sim, o de “certamente” (não eventualmente) ou “efectivamente” (não apenas formalmente) ([37]).

5. As linhas orientadoras com que nos balizamos, sinopticamente expostas, permitem agora afirmar que o reconhecimento da sentença arbitral estrangeira, que constitui o objecto desta acção, conduziria a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português, pelo que pode ser recusado, nos termos do art. V, nº 2, alínea b), da CNI, razão pela qual deve ser confirmada a decisão recorrida. Concretizando:

Na discutida decisão, proferida por um árbitro ao abrigo da legislação espanhola, o requerido foi condenado a pagar solidariamente a ambas as requerentes a quantia de € 4.516.536,78, declaradamente, por aquele ter incumprido as obrigações contidas nas cláusulas 18 e 19 dos estatutos sociais da primeira requerente e no falado convénio de integração profissional e regulamentação das relações sociais de ambas as sociedades.

Como se disse, não se cuida aqui de aquilatar da adequação da fundamentação de facto ou de direito utilizada pelo árbitro para a concretização das estipuladas consequências do declarado incumprimento – designadamente se foi mal aplicado o direito espanhol, ou, eventualmente, o comunitário – nem, também, de uma hipotética divergência entre as regras de direito que foram aplicadas e a que seriam aplicadas pelos tribunais portugueses, se tivessem sido estes a conhecer do litígio que foi submetido à arbitragem estrangeira.

Contudo, visitando o raciocínio percorrido em tal sentença, constata-se que o árbitro chegou ao enunciado resultado condenatório por considerar:

- ter sido incumprido pelo requerido o pacto de não concorrência consubstanciado nas várias obrigações e regras, acima descritas, sobre o contexto condicionador do exercício profissional da advocacia pelo mesmo, incluindo a de não contratar colaboradores (cláusula 18) e a de proteger a actividade da entidade virtual figurada no convénio de integração profissional e regulamentação das relações sociais de ambas as sociedades (cláusula 19);

- ser de “prescindir” a demonstração dos efectivos danos que, eventualmente, tivessem sido gerados pelo (declarado) incumprimento do requerido – cuja reparação havia sido, em abstracto, convencionada, mas que nem sequer teria sido objecto de liquidação ou de pedido pelas requerentes na acção arbitral, a crer no discurso da sentença –, assentando aquele resultado, exclusivamente, na cláusula penal, também prevista “adicionalmente”, correspondente a uma importância igual ao triplo de todas as retribuições satisfeitas por esta aos colaboradores “implicados” dentro dos vinte e quatro meses anteriores à saída do requerido e a uma importância igual ao triplo do montante facturado pela “Sociedade” aos clientes a que se referisse o (declarado) incumprimento dentro dos vinte e quatro meses anteriores à data de tal saída;

- dever ser recusada a redução do montante obtido através da actuação de tal cláusula penal, à luz do direito tido por aplicável, designadamente de uma determinada interpretação do art. 1.154º CC (espanhol) e do pressuposto de o requerido ter incorrido em incumprimento total e não parcial ([38]).

Não devendo ser controlada a exactidão das apreciações de facto ou de direito inerentes a esse raciocínio ou o eventual erro que o possa ter afectado, ainda assim, atendo-nos aos seus próprios termos, podemos concluir que o resultado a que o mesmo conduziu escorou-se, apenas, numa cláusula penal que se destinaria a constranger o requerido à observância do aludido pacto de não concorrência, ou seja, numa cláusula com feição compulsória, prevista no convénio, a título “adicional” à reparação dos danos que a conduta do requerido pudesse, porventura, ter causado.

Seja como for, o efeito jurídico que a aplicação de tal raciocínio produziu é manifestamente incompatível com os postulados basilares da ordem pública internacional do Estado português, a todas as luzes e qualquer que sejam os termos usados para preencher tal conceito indeterminado.

Relembre-se: 1) está em causa a condenação de um advogado português, a exercer em Portugal a sua muito relevante profissão, integrado numa estrutura organizativa (sociedade de advogados) portuguesa e por se ter desvinculado desta para passar a exercer a advocacia numa outra sociedade portuguesa dela concorrente; 2) por isso, é artificial a única ligação ao país onde se localizou a arbitragem, por força da convenção invocada, na medida em que, substancialmente, se radicou em Portugal toda a relação jurídica a que respeita o litígio.

Ora, sabendo-se que no último ano (2010) em que o requerido se manteve ligado à segunda requerente obteve um rendimento líquido de € 180.000, o patamar a que tal condenação se alcandorou – superior a 4,5 milhões de euros – é verdadeiramente “colossal”, em si mesmo. E ainda o será mais se, feitas as contas, verificarmos que o requerido teria que dedicar todo aquele seu (não desprezível) rendimento anual, ao longo de mais de 25 anos da sua vida para poder satisfazer a sanção, que resultaria do pretendido reconhecimento da sentença arbitral estrangeira, pelo seu (declarado) incumprimento dum pacto de não concorrência.

Trata-se de um montante que, por atingir uma ordem de grandeza absolutamente desproporcionada, colide estrondosamente com os nossos bons costumes, mesmo descontando a sua propalada brandura ([39]). No caso, atendendo às descritas circunstâncias, a pena estabelecida é de tal maneira elevada que, mais do que, meramente, excessiva, não pode deixar de se reputar opressiva e sufocadora ([40]).

Por outro lado, o reconhecimento desse resultado e, por consequência, do direito exercido pelas requerentes, redundaria no beneplácito ao pretendido efeito de um negócio jurídico, a que subjazeria um visado esforço do requerido que, de tão desmesurado – se não, mesmo, praticamente inviável –, seria idóneo considerar admissível a restrição, em patente demasia, da liberdade pessoal e económica do mesmo.

O que significaria que a consolidação desse resultado se traduziria na permissão da violação, na procedência ou na fonte, dos fundamentalíssimos direitos de liberdade de escolha de profissão e da livre iniciativa económica, consagrados constitucionalmente, designadamente nas normas dos arts. 47º e 61º da CRP, com o primado que o art. 18º da mesma lei fundamental lhes reconhece.

É claro que o requerido também subscrevera o mencionado convénio. Mas, como pertinentemente lembra Menezes Cordeiro ([41]): «O Direito civil, velho conhecedor da natureza humana, bem sabe que, no momento da contratação, reina um ambiente de otimismo que pode (com ou sem má fé) ser aproveitado para soluções desequilibradas e injustas».

Não se vislumbra de que maneira se poderia acomodar na nossa ordem jurídica a assunção, para o futuro, de uma indemnização sancionatória ou penalidade equivalente ao rendimento de mais de 25 anos de exercício profissional, qualquer que seja o nível da respectiva remuneração com que se encare. É, pois, crucial a constatação de que é “gritante” ou “salta aos olhos” – como se preferir – que a pena imposta ao requerido é desvairadamente exagerada.  

Até quando deparamos com uma pena, simplesmente, excessiva, à luz do nosso direito comum, se deverá «conciliar o respeito devido à autonomia das partes (…) com superiores ditames de justiça material, com o princípio da boa fé (art. 762.°, n.° 2), designadamente» ([42]). Para salvaguardar a genuinidade da própria autonomia privada, deve impedir-se a «injustiça a que uma incontrolada liberdade das partes podia conduzir» ([43]).

E, no entanto, na sentença arbitral foi desconsiderada a possibilidade de redução da cláusula penal, não interessando aqui se – repete-se – com adequada aplicação de todo o direito espanhol. O que releva é o descomunal resultado que adviria do respectivo reconhecimento, com frontal desrespeito por um dos mais basilares princípios estruturantes da nossa comunidade juridicamente organizada, o da proporcionalidade (ou da proibição do excesso), que também abarca os princípios ou ideias da conformidade ou adequação de meios e da necessidade ([44]).

Gera, por isso, alvoroçada inquietação que (também) uma sociedade portuguesa vocacionada, a par da obtenção do compreensível lucro, à prestação de serviços de assistência jurídica em prol da cidadania, se tenha arrogado ao direito – e tenha persistido no seu exercício – a uma pena com um montante tão clamorosamente ofensivo da boa-fé e dos bons costumes, ainda que, porventura, com o instrumental fito de “aterrorizar” – para usar a terminologia do recorrido – outros sócios que também pudessem ser tentados a exercer os seus direitos de livre iniciativa económica e de liberdade de escolha das condições de exercício da profissão de advogado.

É por essa ordem de razões que o nosso direito comum encerra um princípio de alcance geral destinado a corrigir excessos ou abusos decorrentes do exercício da liberdade contratual, ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações (art. 812º do CC). Trata-se de um mecanismo que é regulado em termos que o tornam imperativamente inarredável, por lhe subjazer o princípio, de natureza fundamental, da «boa fé, ao nível do exercício de determinado direito» e a necessidade, que este assegura, de controlar a autonomia privada, prevenindo abusos do credor ao nível do exercício do direito à pena ([45]).

«O poder conferido pelo art. 812.° constitui, a nosso ver, uma forma de controlar o exercício do direito a pena, impedindo actuações abusivas do credor. Ainda que ela haja sido estipulada em termos razoáveis, será abusivo, porque contrário à boa fé, exigir o cumprimento integral de uma pena que as circunstâncias presentes mostram ser manifestamente excessiva, em termos de ofender a equidade([46]). «Trata-se [de] controlar, de modo específico, o exercício, pelo credor, do direito a pena, impedindo actuações abusivas deste. Daí, justamente, que o poder de redução não possa ser afastado por convenção das partes» ([47]).

«Não se trata, portanto, de uma questão de boa fé na estipulação da cláusula», mas antes de averiguar se o credor, ao exercer o seu direito à pena, age de acordo com aquele princípio. «Pode não ter havido, ao ser estipulada a cláusula penal, qualquer aproveitamento de uma eventual situação de necessidade do devedor, ou exploração alguma de qualquer ligeireza, inexperiência ou dependência deste, e, todavia, a pena ser excessiva, em termos de se justificar a sua redução; assim como pode ter sido acordada num montante que se afigurava razoável e, contudo, ao ser exigida, revelar-se manifestamente excessiva. É que o juízo sobre a manifesta excessividade da pena deve fazer-se, não relativamente ao momento em que ela foi estipulada, antes ao ter de cumprir-se e, contudo, ao ser exigida, revelar-se manifestamente excessiva». ([48]).

É certo que, embora o referido mecanismo seja a consagração do princípio da (efectiva) autonomia privada, também visa a assegurar a proteção do devedor, contra a sua própria fraqueza e precipitação, «mas – et pour cause – a este competirá decidir sobre a atitude a tomar». Perante essa ratio, para que o tribunal possa ajuizar do montante excessivo da pena, é necessário que o devedor solicite a sua redução, ainda que tão-só de forma indirecta ou mediata, contestando o seu elevado valor. Se, exigida a pena, o devedor não solicitar a sua redução, nem reclamar ou reagir de algum modo contra a sua manifesta excessividade, isso significará que ele não acha abusiva a atitude do credor, pese embora o eventual montante elevado da mesma, circunstância esta que não basta, de per si, para legitimar a intervenção do juiz ([49]).

Alegam as recorrentes que o requerido não solicitou tal redução ao tribunal arbitral, pelo que nenhum tribunal português, à luz do direito nacional, poderia, sequer, ter reduzido a cláusula estabelecida no convénio.

É indiferente o direito aplicado ao fundo da causa na sentença em questão, já que se trata apenas de saber se o respectivo resultado afronta, pelo seu conteúdo, princípios estruturantes da nossa ordem jurídica, a ponto de esta não poder tolerar que ela constitua solução válida e vinculativa para o litígio sobre que versou ([50]).

No entanto, a argumentação das recorrentes não convence porque, por um lado, tendo em conta, apenas, a solução adoptada na sentença nele proferida – cujo discurso nos limitámos a considerar –, de nada adiantaria que o requerido se tivesse proposto a tomar tal iniciativa, no âmbito do próprio processo arbitral. Por outro lado, e mais relevantemente, o certo é que o requerido se opôs ao montante da pena que lhe foi exigida no processo arbitral contra ele instaurado, e fê-lo não apenas de forma indirecta ou mediata, antes reclamou ou reagiu contra tal exigência do modo mais radical ao seu dispor: após notificação do Tribunal Arbitral, manifestou, inequivocamente, não se conformar com a pretensão das requerentes, rejeitando a designação do árbitro e a competência de “qualquer tribunal arbitral” constituído ao abrigo do acordo invocado por aquelas e não participou, de qualquer outra forma, em tal processo.

Num parêntesis e continuando a atender, apenas, à solução adoptada na sentença em questão – sem cuidar da sua adequação ao direito que teve por aplicável –, observamos que a própria convenção de arbitragem, ao remeter para um enquadramento legal que, supostamente, vedaria o recurso à moderação, com recurso à equidade, do montante declaradamente resultante do acionamento da dita cláusula seria, com tal consequência, intolerável por colidir com o já referenciado princípio fundamental e imperativo da nossa ordem jurídica ([51]).

Na nossa perspectiva, consideramos, pois, já suficientemente assente que o reconhecimento da questionada sentença arbitral conduziria a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português, sendo essa incompatibilidade, não apenas certa e efectiva, mas também patente na própria sentença, para além de que aquele é um resultado chocante, intolerável e inassimilável por tal ordem, dado o atropelo grosseiro, clamoroso e flagrante do sentimento ético-jurídico dominante e de interesses de primeira grandeza da comunidade local.

Por isso, nesta análise, dispensamo-nos de esmiuçar a invocada questão de saber se, no âmbito dum litígio substancialmente confinado ao território nacional, no contexto do legalmente regulamentado exercício da advocacia, seriam invocáveis disposições de cariz estatutário não sujeitas a controlo e a registo pelo organismo a quem o Estado confia tal incumbência. E o mesmo faremos com os demais fundamentos em que se ancorou a decisão recorrida bem como o da violação de normas de concorrência – invocada pelo requerido, nomeadamente, por via da ampliação deste recurso –, até porque, quanto às provindas do direito comunitário, justificaria um mais amplo debate a sua aplicação, encarando, substancialmente, a natureza não transnacional do litígio, como acabámos de o fazer.

Tudo visto e com a fundamentação exposta, consideramos o recurso improcedente, pois a decisão recorrida poderia ter recusado – como fez – o pedido reconhecimento da sentença arbitral estrangeira.


*


Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelas recorrentes.


Lisboa, 14/3/2017


Alexandre Reis (Relator)

Lima Gonçalves

Sebastião Póvoas

____________________

[1] Cf. art. 55º, nº 1, da LAV (Lei de Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei 63/201l, de 14/12): «Sem prejuízo do que é imperativamente preceituado pela Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, bem como por outros tratados ou convenções que vinculem o Estado português, as sentenças proferidas em arbitragens localizadas no estrangeiro só têm eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, se forem reconhecidas pelo tribunal estadual português competente, nos termos do disposto no presente capítulo desta lei». Também para a eficácia em Portugal das sentenças judiciais estrangeiras se exige um idêntico requisito (art. 978º do CPC).

[2] Acórdão do TJUE DE 19-02-2002 - Processo C-309/99 - Wouters E O.

[3] Cf. cit. acórdão do TJUE.

[4] Cf. art. 1º do EOA (actualmente vigente, aprovado pela Lei 145/2015, de 9/9.

[5] DL 229/2004 de 10/12.

[6] Ainda o já cit. acórdão do TJUE.

[7] Argumento esgrimido, para a generalidade das situações, por M. Pereira Barrocas, in “A Ordem Pública na Arbitragem”, in Separata da Rev. da Ordem dos Advogados, Ano 74, Jan./Mar.2014, a p. 127, e que, a pp. 132 e s, acrescenta: «E isto é assim por várias razões, de entre as quais salientamos: em primeiro lugar, o objeto das sentenças sujeitas a homologação respeita a questões de direito privado, assumindo natureza comercial que, de certo, pouco impacto terão na idiossincrasia jurídica, económica, social e ética da comunidade nacional onde se pretende obter o seu reconhecimento e execução, quando legitimamente foi outro o direito aplicado ao fundo da causa ou aos procedimentos; em segundo lugar, a preservação do propósito de facilitação, até ao ponto mais longe possível, do comércio internacional e, consequentemente, a previsibilidade, internacionalmente consagrada num instrumento internacional da iniciativa da ONU, do reconhecimento e execução de sentenças arbitrais na matéria noutros estados diferentes daquele onde foi proferida a sentença ou onde se localizou o tribunal arbitral.». Porém, logo adverte (nota 100): «Embora, deve dizer-se, a Convenção não vise a sua aplicação apenas a litígios de natureza comercial tal como resulta do disposto no art. I, número 3, in fine, embora a grande maioria sejam dessa natureza. E, sendo esse o caso, claro que a ordem pública terá de ser vista e ponderada à luz dos interesses e valores não comerciais específicos.».

[8] Já acima transcrito na nota 1.

[9] No nosso país, a Convenção foi aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 37/94 de 10-03-1994 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 52/94 de 8/7, estando em vigor desde 16-01-1995, sendo que, nessa data, o Estado vizinho já se encontrava vinculado à mesma.

[10] Cf. nota 7, parte final.

[11] International Council For Commercial Arbitration, Guia do ICCA sobre a interpretação da Convenção de Nova Iorque de 1958, “Um Texto de Referência para Juízes”, p. 14, 2011, cit. por Gorjão Henriques, “A Extensão da Convenção de Arbitragem no Quadro dos Grupos de Empresas e da Assunção de Dívidas: Um Vislumbre de Conectividade?”.

[12] Para cuja actuação estatui o art. 22º nº 1 do CC que «Não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português».

[13] Paralelamente, quanto à revisão de sentença estrangeira, dispõe também o art. 980º f) do CPC que, para que seja confirmada é necessário que «não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português».

[14] A. P. Pinto Monteiro, “Da Ordem Pública no Processo Arbitral”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, II, Coimbra Editora, p 601-603.

[15] No acórdão desta Secção de 2/12/2013 (p. 306/10.0TCGMR.G1.S1 - Clara Sottomayor), aludindo ao novo paradigma sobre o contrato, resultante da crise do pensamento liberal, escreveu-se: «A moderna teoria dos contratos defende uma mudança de orientação no direito dos contratos, traduzida na passagem do paradigma do liberalismo económico, em que o contrato era visto como o resultado de interesses antagónicos negociados com dureza e egoísmo, para um nova concepção de contrato baseada num princípio de respeito pelos interesses do outro e numa ética de cooperação e de solidariedade».

[16] «Embora a arbitragem voluntária seja fortemente dominada pelo princípio da autonomia privada, é óbvio que existem limites à autodeterminação das partes. Estas não podem, através do recurso à arbitragem, derrogar, contornar, atenuar e/ou fugir à aplicação de normas e princípios de ordem pública» (A. P. Pinto Monteiro, no cit. artigo “Da Ordem Pública no Processo Arbitral”, p 672).

Até Pereira Barrocas, no artigo acima citado (“A Ordem Pública na Arbitragem”), a pp. 137 e s, exibe as «cautelas a observar na aplicação do critério super restritivo: Deve entender-se que a decisão de não recusa de uma sentença arbitral estrangeira baseada no facto de se ter entendido não competir ao tribunal da homologação a apreciação de matéria que é da competência dos tribunais estaduais do lugar da arbitragem não deve ser entendida demasiado latamente sob pena de se reduzir acentuadamente a relevância da ordem pública internacional do estado da homologação. Atendendo ao estado atual da arbitragem internacional, a ordem pública internacional do estado da homologação impor-se-á sempre que estiverem em causa os valores e interesses essenciais ou fundamentais da comunidade respetiva. O que significa que as questões em que isso não suceda, e sempre em nome da proteção do comércio internacional e, também, tendo em atenção que não compete aos tribunais do reconhecimento e execução a reavaliação do mérito da decisão tomada na sentença arbitral sujeita a homologação, é correta a decisão de remeter para a jurisdição da lex arbitri a competência na matéria.».

[17] «Tende hoje a entender-se que as normas e princípios constitucionais, principalmente os que tutelam direitos fundamentais, não só informam mas também conformam a ordem pública internacional» (Sampaio Caramelo – “O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras”, Almedina, Coimbra, 2016, p. 663).

[18] «Só perante das circunstâncias do caso concreto se pode dizer se uma determinada violação de um princípio ou norma fundamental é intolerável» (Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, I, 2014, p. 659).

[19] “Lições de Direito Internacional Privado”, 3ª ed., 1992, 262 e s.

[20] Neste sentido, o acórdão desta Secção de 19-02-2008 (p. 07A4790 - Paulo Sá).

[21] Cf. Sampaio Caramelo, ob. cit., p. 211.

Neste sentido, os acórdãos deste Tribunal de 28-06-2001 (p. 1846/01 - Quirino Soares), de 8-05-2003 (p. 1123/03 - Ferreira de Almeida) e, aparentemente, o de 8-07-2003 (p. 03B2106 - Oliveira Barros). Também o douto Parecer do Prof. Rui Moura Ramos junto pelo recorrido aponta, sem hesitações, nesse sentido (v., ainda, as referências aduzidas na nota de rodapé 51 desse Parecer a Sampaio Caramelo e a Lima Pinheiro).

Já A. P. Pinto Monteiro, no cit. artigo “Da Ordem Pública no Processo Arbitral”, p 663 e s, e, sobretudo, Assunção Cristas e Mariana França Gouveia, in “A violação da ordem pública como fundamento de anulação de sentenças arbitrais – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.7.2008, Proc. 1698/08”, Cadernos de Direito Privado, n.º 29, Janeiro/Março 2010, p. 41 a 56, sustentam, abertamente, que a apreciação da violação da ordem pública implica a apreciação do mérito, pois só perante a decisão e os seus fundamentos se poderá determinar se houve ou não aplicação de normas fundamentais do nosso ordenamento jurídico, pelo que, a análise deste fundamento implica a análise do mérito da decisão arbitral, embora apenas para aferir se foram postergadas as mais importantes regras do nosso ordenamento jurídico.

[22] É o que, em muito mais felizes termos, explica Baptista Machado (ob. cit., p. 259 e s.): «O problema não se resolve com uma definição, pois a ordem pública é indefinível conceitualmente, como indefinível é o “estilo” ou a “alma” de uma ordem jurídica. Por isso a noção de ordem pública não é unívoca, se bem que o seja a sua função. Por outro lado, todos os conceitos substitutivos valem o mesmo em última análise: eles apenas nos darão, como diz KAHN, “no melhor dos casos, valores aproximados para a grande incógnita: sentido e espírito de uma determinada ordem jurídica”. A ordem pública escapa aos maiores refinamentos da análise, porque transcende sempre, em último termo, as coordenadas analíticas com que a tentamos apreender. É que não se trata de um valor jurídico entre muitos outros, mas – digamos – do lugar geométrico de todos os valores jurídicos. Importaria acordar para a vida, no substracto étíco-jurídico da comunidade, historicamente sedimentado, os radicais ou “étimos” do sistema para nos assegurarmos daquilo que a sua dinâmica interna (o seu “metabolismo”) rejeita como inassimilável».

[23] «apenas pela via da sensibilidade valorativa é possível chegar a uma conclusão fundamentada do conteúdo da ordem pública internacional de uma determinada comunidade nacional (…) são valores que importam ao Direito os relativos ao conteúdo e aos princípios da ordem pública» (Pereira Barrocas, no artigo acima citado, “A Ordem Pública na Arbitragem”, p 129 e s).

[24] Cf. nota 17. Também Moura Ramos, no seu douto Parecer junto aos autos, é muito convincente sobre este aspecto, merecendo devido destaque o entendimento que explanou na sua obra “Direito Internacional Privado e Constituição” e que aqui reproduziu, a que aditaríamos os seguintes excertos da mesma obra (a pp 251 e 252, da ed. de 1991): «(…) a tendência para afirmar a validade irrenunciável do direito constitucional nacional, com a correspondente restrição da aplicação do direito estrangeiro (…).  É esta nova imagem, de um DIP em permanente tensão entre a fidelidade aos valores fundamentais de uma ordem jurídica e a necessária flexibilidade e adequação ao serviço e promoção das relações privadas internacionais …». Salientamos também a citação que o mesmo Autor faz de Ferrer Correia (“A revisão do Código Civil e o direito internacional privado”, in Estudos Vários de Direito, Coimbra, 1982, Por Ordem da Universidade, p. 300): «os direitos e liberdades fundamentais garantidos na Constituição figuram indiscutivelmente entre os mais proeminentes do quadro axiológico do Estado português. Logo, eles pertencem indiscutivelmente à esfera em que a chamada ordem pública internacional é solicitada a intervir».

Por fim, evocamos o que escreve Lima Pinheiro (ob. cit., p. 663.): «a ordem pública internacional constitui um reduto de princípios e normas do ordenamento do foro de cuja aplicação esta ordem jurídica não abdica posto que se trate de uma situação transnacional e que seja estrangeiro ou transnacional o Direito chamado a regê-la. Daí que a ordem pública internacional constitua um limite excecional a aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional. Tende hoje a entender-se que as normas e princípios constitucionais, principalmente os que tutelam direitos fundamentais, não só informam mas também conformam a ordem pública internacional». O mesmo Autor, em “Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral – ROA  Ano 2007 - Vol. III - Dez. 2007, expôs: «Na medida em que a ordem pública constitui também um veículo para a actuação dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, o controlo da conformidade da decisão com a ordem pública internacional é imposto pela própria Constituição» (JORGE MIRANDA – Manual de Direito Constitucional, IV – Direitos Fundamentais, 3ª ed., 2000, 263, observa que os tribunais arbitrais não podem “atingir a definição de direitos fundamentais em concreto, sob pena de violação do art. 20.º” da Constituição.)».

[25] Segundo Pereira Barrocas (“Manual da arbitragem”, 2ª ed., LAV de 2011, Almedina, Coimbra, 2013, pp 682 e 687), os grandes princípios gerais de direito aceites pela comunidade internacional praticamente sem discussão, como o pacta sunt servanda, a proibição e o sancionamento do abuso do direito e o princípio da boa-fé objectiva, embora concebidos e aplicados com major ou menor amplitude em diversos países, têm um largo crédito de aceitação generalizada e constituem traves mestras da ordem pública transnacional. O mesmo Autor, no artigo acima citado (“A Ordem Pública na Arbitragem”, a p. 134), informa que «Alguma jurisprudência mais representativa tem afirmado que a ofensa da ordem pública internacional deve ser flagrante, efetiva, real e concreta (jurisprudência francesa); ou constituir ofensa grave (jurisprudência alemã); ou a necessidade de se tratarem de princípios fundamentais ou essenciais da ordem jurídica (jurisprudência suíça); ou a execução da sentença se revelar claramente ofensiva do bem público ou que a sua execução se torna totalmente ofensiva para o senso de um homem comum bem informado (doutrina inglesa de Burrogh J.)».

[26] O TJUE considerou as normas comunitárias disciplinadoras da concorrência integrantes da ordem pública internacional de todos os países comunitários (caso Eco Swiss China Time, Ltd. vs. Benetton).

[27] Segundo Jacob Dolinger, «a ordem pública se afere pela mentalidade e sensibilidade médias de determinada sociedade em determinada época. Aquilo que for considerado chocante a esta média será rejeitado pela doutrina e repelido pelos tribunais. Em nenhum aspecto do direito o fenômeno social é tão determinante como na avaliação do que fere e do que não fere a ordem pública. Compatível ou incompatível com o sistema jurídico de um povo – eis a grande questão medida pela ordem pública – para cuja aferição a Justiça deverá considerar o que vai na mente e no sentimento da sociedade.».

Também Lima Pinheiro (ob. cit., p. 666) esclarece: «Mas nem a cláusula de ordem pública internacional se tem acantonado aos valores ético-juridicos, nem a realidade das normas suscetíveis de aplicação necessária se circunscreve a fins económicos, sociais e políticos. A ordem pública internacional é apta para veicular todos os princípios e normas fundamentais da ordem jurídica do foro que tenham aplicação a situações transnacionais. Não pode fazer-se uma limitação a princípios ético-jurídicos. Também podem ser veiculados, como vem sendo reconhecido pela jurisprudência, princípios e normas que prosseguem finalidades económico-sociais, políticas ou outras».

[28] Neste sentido, embora pronunciando-se a propósito da anulação da decisão, Sampaio Caramelo – “Anulação de sentença arbitral contrária à ordem pública”, R.M.P., 126, ano 32, Abril-Junho 2011, p. 155-198. Também Pereira Barrocas, no artigo já cit., “A ordem pública na arbitragem”, pronunciando-se sobre o art. V da Convenção de Nova Iorque considerou: «a Convenção não visa obter uma harmonização do conceito de ordem pública porque evitou a questão de saber qual o conteúdo da ordem pública universal, pelo que cada ordem pública de cada Estado pode divergir na sua definição ou na caracterização do conceito, conteúdo e sua extensão; porém, resulta dos trabalhos preparatórios que, face à finalidade de protecção e desenvolvimento do comércio internacional, a sua interpretação impõe aos estados subscritores um sentido restritivo da excepção de ordem pública».

[29] Em conformidade, aliás, com sentido que, imediatamente, se extrai do que, paralelamente, se prevê para a confirmação de sentenças estrangeiras no art. 980º, f), do CPC (equivalente ao anterior 1096º, f): «Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português».

[30] Cf. os acs. deste STJ respeitantes exclusivamente, a decisões arbitrais, de 22-09-2011, p. 1772/06.4TVLSB.L1.S1 - Silva Gonçalves, de 14-03-2013, p. 7328/10.0TBOER.L1.S1 - Sérgio Poças e de 23-10-2014, p. 1036/12.4YRLSB.S1 - Granja da Fonseca («manifestamente intolerável»). E os proferidos em decisões relativas a revisões de sentenças: de 23-11-2000 p. 2213/00 - Óscar Catrola («ofenda clamorosa e ostensivamente os mencionados princípios»); de 8-07-2003 p. 03B2106 - Oliveira Barros («O advérbio de modo – “manifestamente” – constante dessa alínea evidencia a exigência do carácter ostensivo da violação e traduz com propriedade o carácter excepcional da intervenção da ordem pública»); de 21-02-2006, p. 05B4168 - Oliveira Barros («contradição flagrante com atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende»); de 19-02-2008, p. 07A4790 - Paulo Sá («resultado intolerável … a que conduziria o seu reconhecimento»).

Também o TJUE, no acórdão de 28-03-2010 (P. C-7/98 - KROMBACH), ponderou: «O recurso à cláusula de ordem pública (…) só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado contratante viole de uma forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por atentar contra um princípio fundamental. A fim de respeitar a proibição de revisão de mérito da decisão estrangeira, esse atentado devia constituir uma violação manifesta de uma regra de direito considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica.». E, mais recentemente, no acórdão de 16-07-2015 (P. C-681/13 - DIAGEO BRANDS) entendeu que «a infração deve constituir uma violação manifesta de uma regra jurídica considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica».

[31] Baptista Machado: «corpo estranho e inassimilável»; «atropele grosseiramente a concepção de justiça de direito material, tal como o Estado do foro a entende»; «comova ou abale os próprios fundamentos da ordem jurídica interna (pondo em causa interesses da maior transcendência e dignidade), que ele seja de molde a “chocar a consciência e provocar uma exclamação”».

A. P. Pinto Monteiro: «intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais da sua ordem jurídica».

[32] Ob. cit. p. 261.

[33] “Direito Internacional Privado - Alguns Problemas”, 1991, p 126.

[34] “Lições de Direito Internacional Privado”, Vol. I.

[35] Parecer publicado na CJ, X, 4º/23 e ss.

[36] “Decisão arbitral e ordem pública” (intervenção no Colóquio “A arbitragem em movimento”, realizado no Porto, em 27-09-2010), disponível em http://arbitragem.pt/noticias/2010/2010-09-27--ordem-publica.pdf.

[37] Na cit. ob. “O reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras”, p. 212 e s.

[38] Pinto Monteiro (“Cláusula Penal e Indemnização”, 1990, p 727) informa que a citada norma do CC espanhol em vigor permite a modificação equitativa da pena, mas somente no caso de a obrigação principal haver sido parcial ou irregularmente cumprida.

[39] Refere-se esta noção (bons costumes) ao “conjunto de regras éticas”, munidas de “peso social relevante”, “aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento”, reconduzindo-se ao conceito de “moral social dominante” (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., Coimbra Editora).

[40] Pinto Monteiro, ibidem, p. 721, aponta a necessidade de ter em conta as situações em que a pena se mostre ofensiva dos bons costumes, designadamente quando o contrato imponha uma pena elevada, em termos tais que contrato deva configurar-se, no seu conjunto, como opressivo ou de sujeição. E acrescenta (na p. seguinte): «Não se trata de atender, somente, ao montante excessivo da pena – circunstância esta que, de per si, relevará apenas para efeitos de redução, nos termos do art. 812.° –, mas de enquadrar a pena no contrato, como um todo, o qual, por força desta, tendo em conta as obrigações que impõe e as demais circunstâncias que o rodeiam, atentaria contra os bons costumes, em virtude de a pena, nessas condições, lhe conferir um carácter draconiano e opressivo. Além desta forma de controlo, sobre a própria cláusula em que se estipula a pena – que mais não traduz, afinal, do que uma aplicação das regras gerais que limitam a liberdade das partes –, e que pode determinar a sua invalidade, outras restrições há, no que concerne ao exercício, pelo credor, do direito à pena. O poder de redução judicial, conferido pelo art. 812.°, insere-se neste segundo tipo de controlo, o qual não prejudica, também neste caso, uma sindicância com base em princípios de alcance geral, como o da boa fé e o da proibição do abuso de direito, que pode levar a ter de se concluir, na circunstância concreta, pela ilegitimidade do exercício do direito a pena, nos termos do art. 334º».

[41] “A ordem pública nas arbitragens: as últimas tendências”, VII Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial, Almedina, Coimbra, Julho de 2014, p. 96.

[42] Pinto Monteiro, ob. cit., p. 725.

[43] Ibidem, p. 728.

[44] Aliás, com assento constitucional (nº 2, 2ª, parte do já cit. art. 18º, da CRP), a par dos arts. 811º-3 e 812º-1 do CC.

[45] Cf. Pinto Monteiro, ob. cit., p. 730 e ss.

[46] Pinto Monteiro, ob. cit., p. 724.

[47] Ibidem, p. 729.

[48] Ibidem, p. 732.

[49] Cf. ibidem, pp. 734 e 736 e s.

[50] Cf. Sampaio Caramelo na cit. ob. “Anulação de sentença arbitral contrária à ordem pública”.

[51] Gorjão Henriques (“A Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais de 1958 na jurisprudência portuguesa”, disponível em http://arbitragem.pt/estudos/convencao-nova-iorque-1958--duarte-gorjao-henriques.pdf), a propósito da análise que fez de uma decisão judicial, em que estava em causa a condenação da parte no cumprimento de uma cláusula penal, e em que se considerou não existir violação da ordem pública internacional, referiu – abstractamente – que não se vê como pode uma cláusula penal, que encontra respaldo no art. 810º do CC, estar em contradição com a ordem pública, mas acrescentou que «Se o exagero do montante fixado ainda pudesse levantar alguma inquietação, ainda se admitiria alguma discussão», que, no entanto, deveria ter lugar no seio da instância na qual é permitida a discussão sobre aspectos do fundo da causa (i.e., na acção arbitral, mas já não na acção de reconhecimento). Discussão que, no caso em apreço, segundo se entendeu na sentença a reconhecer, não teria cabimento naquele concreto processo arbitral.