Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S149
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: RECUSA DE COOPERAÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
JUSTA CAUSA
FALTA DE PAGAMENTO DA RETRIBUIÇÃO
JUROS DE MORA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
AGRAVO EM SEGUNDA INSTÂNCIA
Nº do Documento: SJ20080417001494
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
1. O facto da ré não ter juntado ao processo os documentos que, a requerimento do autor, fora notificada para juntar, não é suficiente, só por si, para a fazer incorrer nas cominações previstas no art.º 519.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 529.º do mesmo Código, uma vez que tais cominações pressupõe uma recusa e esta implica o dolo.
2. Ainda que dolo existisse por parte da ré, a não junção das cópias dos cheques referentes ao pagamento da retribuição feita ao autor não acarretava a inversão do ónus da prova, relativamente aos factos que o autor pretendia provar com tais documentos, uma vez que as cópias podiam ter sido requisitadas à instituição bancária competente.
3. O não pagamento do trabalho suplementar ocorrido durante anos, sem qualquer reclamação por parte do trabalhador, não constitui, em princípio, justa causa de rescisão do contrato.
4. A retribuição constitui uma obrigação de prazo certo e, mesmo quando seja ilíquida, confere ao trabalhador direito a juros de mora a partir da data do vencimento de cada uma das prestações remuneratórias, salvo se a iliquidez for imputável ao trabalhador.
5. A decisão da Relação relativamente a litigância de má fé, proferida sobre decisão da 1.ª instância, não é passível de recurso para o Supremo.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA propôs, no Tribunal do Trabalho de Évora, a presente acção emergente de contrato de trabalho contra a BB, L.da, pedindo que se reconhecesse que rescindiu com justa causa o contrato de trabalho que mantinha com a ré e que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 37.349,53 ou, subsidiariamente, a quantia de € 27.659,44 (a título de indemnização de antiguidade, de proporcionais de férias e de Natal referentes ao ano de cessação do contrato, de férias e subsídio das férias vencidas em 1.1.2003, de trabalho suplementar e descanso compensatório e de diferenças nos subsídios de férias e de Natal), acrescida da quantia de € 2.500,00, a título de danos não patrimoniais, e dos juros de mora, à taxa legal.
Em resumo, o autor alegou que, em 3.2.2003, rescindiu, com justa causa, o contrato de trabalho que mantinha com ré; que a ré não lhe pagou o trabalho suplementar nem os correspondentes descansos compensatórios, o mesmo acontecendo com a retribuição e o subsídio das férias vencidas em 1.1.2003 e com os proporcionais de férias, de subsídio de férias e de Natal referentes ao ano da cessação do contrato.
A ré contestou impugnando a justa causa e os créditos reclamados pelo autor, com excepção dos referentes a 3 dias de trabalho no mês de Fevereiro de 2003, às férias vencidas em 1.1.2003 e aos proporcionais, e pediu que o autor fosse condenado como litigante de má fé.
No articulado de resposta, o autor também pediu que a ré fosse condenada como litigante de má fé.
Saneada e instruída a causa, procedeu-se a julgamento e, dadas as respostas aos quesitos, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente, excepto no que toca à retribuição e ao subsídio das férias vencidas em 1.1.2003 e aos proporcionais de férias, de subsídio de férias e de subsídio de Natal referentes ao ano da cessação do contrato, tendo a ré sido condenada a pagar ao autor, a esses títulos, a quantia global de € 1.462,50 e, no que concerne à litigância de má fé, a ré foi absolvida e o autor foi condenado em 10 UC de multa e a pagar à ré a indemnização correspondente às despesas por ela efectuadas, incluindo as referentes aos honorários do seu mandatário, em montante a liquidar posteriormente.
O autor apelou da sentença, impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto e a decisão de mérito.
O Tribunal da Relação de Évora julgou parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, alterando as respostas de não provado dadas aos quesitos 16.º e 17.º, julgou improcedente o recurso no que diz respeito à justa causa, revogou a sentença no que toca à condenação do autor como litigante de má fé e condenou a ré a pagar ao autor uma hora de trabalho suplementar por cada dia útil de trabalho, relativamente aos anos de 2000, 2001 e 2002, em montante a liquidar em execução de sentença, e os juros de mora, contados desde a citação, referentes à quantia de € 1.462,50 que, na sentença, a ré fora condenada a pagar.
Mantendo o seu inconformismo, o autor interpôs recurso de revista - (1), concluindo as suas alegações da seguinte forma:
A) O autor, na al. d) das diligências de prova indicadas na parte final da sua petição inicial, em devido tempo e por plúrimas vezes, requereu, no tribunal da 1.ª instância, como diligências probatórias necessárias com vista ao apuramento da verdade material, que a ré fosse notificada para juntar aos autos cópia dos cheques comprovativos do pagamento mensal da retribuição do autor, desde a data da sua admissão, bem como daqueles onde conste os pagamentos efectuados a título de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal ou a identificação das entidades bancárias onde a ré possui e movimenta as contas de onde foram efectuados os pagamentos ao autor, e que esta lhe solicite cópia daqueles recibos, que deverá juntar aos autos.
B) Tal requerimento veio a ser parcialmente deferido pelo tribunal de 1.ª instância, aquando da elaboração do despacho saneador que, após especificação dos factos assentes e elaboração da base instrutória, determinou a notificação da Ré para juntar aos autos cópias dos cheques comprovativos do pagamento mensal da retribuição ao Autor (fls. 124 dos autos).
C) Sustenta o douto acórdão recorrido que “... não podem sobre a Ré recair os efeitos cominatórios previstos no artigo 529.º do C.PC. e, pela remissão que neste é feita, os previstos no artigo 519.º, n.º 2, do CPC ou mesmo a inversão do ónus da prova, nos termos previstos no artigo 344°, n.º 2 do C. C.”, por não se encontrar “em parte alguma dos autos referência a qualquer notificação dirigida à Ré (seja pessoalmente, seja através do respectivo mandatário) com a advertência determinada no despacho de fls. 124 dos autos”, mas tão-só a notificação do despacho saneador à Ré através do respectivo advogado (vide fls. 132 dos autos).
D) Desde que foi citada para contestar, a Ré tinha pleno conhecimento do teor e alcance do requerimento probatório apresentado pelo A. na sua petição inicial.
E) A notificação do despacho saneador à Ré, através do seu mandatário, em 28.4.2005, onde consta, na sua parte final, o despacho que determina a junção aos autos de cópias dos cheques comprovativos do pagamento mensal da retribuição do Autor e respectiva advertência, é suficiente para se poder concluir que esta tinha, desde aquela data, conhecimento efectivo daquele despacho, nos termos do disposto no artigo 253.° do C.P.C., e que não agiu em conformidade com o doutamente ordenado.
F) Por outro lado, a junção de documentos aos autos não consubstancia a prática de um acto pessoal, isto é, de um acto que só pela própria parte possa ser praticado, mas antes a prática de um acto que pode ser praticado por intermédio de mandatário.
G) A notificação ao mandatário da Ré vale como notificação da própria Ré, que deveria ter junto aos autos esses mesmos documentos, tal como fora notificada para o fazer a 22/04/2005; logo, não o fazendo, sobre ela deveriam recair os efeitos cominatórios previstos nos artigos 529.º e, por remissão deste, 519.º, n.º 2, do C.P.C. e os previstos no artigo 344.º, n.º 2, do C. Civil, mais concretamente a inversão do ónus da prova.
H) Os documentos em poder da Ré, e cuja junção o A. requereu e foi ordenada, permitiam de forma inequívoca e bastante concluir que o A. recebia mediante cheque, emitido pela Ré, comissões calculadas sobre o valor das vendas que efectuava, sendo de valor variável, entre e 200 e 300 € por mês.
I) Ao decidir como decidiu, a douto acórdão recorrido interpretou e aplicou incorrectamente as normas dos artigos 529.º, 253.º, 519.º, n.º 2, do CPC e 344.º, n.º 2, do C.C., que igualmente violou.
J) Sendo certo que a Ré (seja pessoalmente seja através do respectivo mandatário) não foi notificada com a advertência determinada no despacho de fls. 124 dos autos, a verdade é que tal circunstância ocorreu única e exclusivamente por culpa da secretaria que, por mero lapso ou erro, não cumpriu o despacho superiormente ordenado, omissão esta que, nos termos do disposto no artigo 161.0 do C.P.C, não pode, em caso algum, prejudicar as partes.
K) Com efeito, as partes têm que contar com a diligência e a eficácia dos serviços judiciais, confiando neles e não desvirtuando – como se salienta no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – o papel que cada agente judiciário tem no processo, idóneo para produzir o resultado que a todos interessa – cooperar com boa fé numa sã administração de justiça.
L) São as secretarias judiciais que asseguram o expediente, autuação e regular tramitação dos processos pendentes, nos termos estabelecidos na respectiva lei orgânica, em conformidade com a lei de processo e na dependência funcional do magistrado competente, que devem operar a realização oficiosa das diligências necessárias para que o fim daqueles despachos possa ser prontamente alcançado (n.os 1 e 2).
M) O autor confiou que, uma vez ordenada a notificação da Ré, para vir juntar aos autos cópias dos cheques comprovativos do pagamento mensal da retribuição do A., a mesma fosse (e tivesse sido) cumprida de forma correcta e diligente, dado que nada no processo fazia duvidar de que assim não fosse.
N) O autor, ora recorrente, sempre agiu com a devida diligência, norteando-se, desde o início, pelo cumprimento da lei, não lhe competindo suprir os erros, lapsos ou omissões da secretaria.
O) O mandatário do autor sempre agiu com a devida diligência, não lhe competindo, até por não ter acesso directo ao processo, suprir os erros da secretaria, sendo certo que também não lhe era exigível que, ao receber a notificação do despacho saneador, se deslocasse ao tribunal regularmente para consultar o processo (tanto mais que este corria os seus termos em Évora e o escritório do Advogado era em Coimbra) e verificar se fora omitido algum acto processual prescrito pela lei, nomeadamente a notificação pessoal da Ré.
P) Hoje em dia, a vida atribulada de um advogado, as dificuldades inerentes aos transportes, com a intensidade de trânsito e as dificuldades de parqueamento, não permitem que se desloque ao tribunal com a única finalidade de verificar se os serviços judiciais não cumpriram cabalmente as suas obrigações, pelo que, não o fazendo, não se pode dizer que não aja com a devida diligência.
Q) Nem tão-pouco é de presumir que, com a realização da audiência de julgamento ou a notificação para a prática de qualquer outro acto, o advogado tomou conhecimento da omissão de notificação de tal despacho, questão esta que só veio a ser suscitada, aliás, no douto acórdão recorrido.
R) O trabalho suplementar concede o direito a um descanso compensatório que, não tendo sido concedido ao autor apelante, deverá ser remunerado.
S) A não remuneração de trabalho suplementar e a não concessão do respectivo descanso compensatório, durante anos a fio, conduzem à existência da justa causa invocada pelo autor apelante dado que tal facto consubstancia um comportamento grave e culposo (doloso mesmo) que, pela sua gravidade e consequências, tornam (e tornaram) imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.
T) Existe a justa causa invocada pelo autor Apelante para a rescisão do vínculo laboral com justa causa, o que importa o pagamento da respectiva indemnização por antiguidade, nos moldes peticionados.
U) Os juros de mora, no caso de prestações de prazo certo, são devidos desde as datas dos respectivos vencimentos.
V) Existe má fé da parte da ré apelada, que obstou à descoberta da verdade.
W) Entende o recorrente que o douto acórdão recorrido interpretou e aplicou incorrectamente, para além dos referidos 529.º, 253.º, 519.º, n.º 2, do C.P.C. e 344°, n.º 2, do C. Civil, os artigos 161°, 201°, 202.º, 203.º, 205.º e 265.º, todos do Código de Processo Civil e o disposto nas als. a), c), d) e e) do art. 21.º da LCT, bem como o art. 9.º e alíneas b), e) e f) todos do n.º 1 do art. 35.º e ainda o art. 36.º da LCCT, nos art. 528.º, n.º 2 do art. 5119.º, ambos do CPC, n.º 1 do art.º 2.º, o art.º 774.º e 806.º do C.C., os artigos 445.º, 446.º e 447.º do Código de Processo Civil, o disposto no n.º 2 do art. 523.º do Código de Processo Civil, o n.º 2 do art. 528.º do CPC, o artigo 532.º do CPC, o n.º 4 do art. 83.º e o n.º 2 do art. 84, ambos do Código de Processo do Trabalho.
A ré contra-alegou, defendendo a confirmação da decisão recorrida e, neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pelo não conhecimento do recurso no que toca às questões suscitadas nas conclusões A) a Q), inclusive, e pela improcedência do mesmo na parte restante, em “parecer” a que a partes responderam.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Os factos
A Relação deu como provados os seguintes factos:
1) CC prosseguia a sua actividade comercial no ramo do Comércio de Produtos Refrigerantes e Bebidas Alcoólicas e veio a explorar várias áreas geográficas localizadas perto de Montemor-o-Novo, através da concessão que lhe era atribuída na qualidade de agente da Central de Cervejas.
2) A referida empresa negociou a zona comercial de Montemor-o-Novo com a firma DD, L.da e o autor transitou para esta referida firma, a 24/11/95.
3) Tendo esta assegurado ao autor todas as regalias que ele já detinha, nomeadamente e entre outras as que decorriam quer das funções que sempre exerceu quer da sua antiguidade.
4) Contudo, aquela firma, a 1/01/2000, fez mudar o A. para a firma ora ré, BB, L.da, dado que o Sr. DD era sócio gerente de ambas e assim acordou.
5) A 1/01/2000, a ré assumiu, perante aquela empresa e o autor, o compromisso de manter todos os direitos e regalias que aquele detinha até à data.
6) O autor auferia, desde Abril de 2001, para além do vencimento base, a quantia de € 100,00, a título de subsídio de alimentação.
7) Em 3 de Fevereiro de 2003, o autor comunicou à ré, mediante carta registada com aviso de recepção, que a ré recebeu em 4 de Fevereiro de 2003, que rescindia o seu contrato de trabalho, com efeitos a partir de 3 de Fevereiro de 2003, invocando justa causa, pelos motivos que aí fez constar, conforme documento de fls. 59 a 61 cujo teor aqui se dá por reproduzido, nomeadamente que:
“a) Por ... desde sempre me terem atribuído uma categoria profissional (nomeadamente "motorista") que não corresponde de todo às funções por mim efectivamente exercidas (que era de vendedor comissionista);
b) Por ... desde sempre liquidarem as comissões por mim recebidas pelas vendas que realizei, em cheque, sem as contabilizar nos respectivos recibos de vencimento,
c) prejudicando-me assim nos meus direitos e regalias atribuídos pela segurança social e reforma a que terei direito, e mesmo nos períodos de baixa, já que não foram efectuados descontos sobre esses mesmos montantes;
d) Por … terem, retirado a minha zona de vendas e não me terem atribuído outra;
f) Por ... unilateralmente, contra a minha vontade... me terem reclassificado, atribuindo-me, desde o pretérito dia 31/01/2003, a categoria profissional de Operador Logística;
g) Por ... me terem ordenado que, desde a data referida no artigo supra, iria exercer as funções inerentes à categoria profissional aí referida;
h) Por ... me ordenarem ainda a ir com o distribuidor na camioneta fazer a distribuição e descarregar grades, ver vasilhames e verificar pagamentos;
o) Por ... se recusarem a colocar por escrito quais os fundamentos que levaram a tais alterações.”
8) A ré não pagou a quantia respeitante a férias e subsídios de férias e de Natal proporcionais ao tempo de trabalho prestado no ano de 2003.
9) A ré não pagou a quantia respeitante a férias e subsídio de férias vencidos em 1.1.2003.
10) O autor foi admitido ao serviço de CC, no dia 23 de Março de 1992.
11) O autor conduzia os veículos da empresa.
12) Fazia, na área que lhe estava atribuída, a distribuição e entrega aos clientes das mercadorias transportadas e recolhia junto destes as respectivas notas de encomenda.
13) O A. auferia a quantia mensal de € 550,00, a título de remuneração, € 25,00, a título de prémios, e € 75,00, a título de subsídio de transporte.
14) A Sociedade Central de Cervejas, S.A. procedeu a uma redistribuição das zonas de vendas até aí praticada pelas suas diferentes concessionárias.
15) Donde resultou ter sido atribuída a zona correspondente ao concelho de Montemor-o--Novo, à firma "EE, Sociedade Distribuidora de Produtos Alimentares e Bebidas L.da", passando a R. a fazer a distribuição na Zona de Arraiolos.
16) O A., enquanto trabalhador ao serviço da R., além de residir na cidade de Montemor-o--Novo, era, ao tempo e é ainda, proprietário, na referida cidade, de um estabelecimento comercial de café/cervejaria.
17) O autor, durante o período normal de trabalho em Montemor-o-Novo, ia para o seu estabelecimento, em vez de trabalhar para a ré.
18) O autor encontrava-se ao serviço de EE, Soc. Dist. Prod. Alim. Beb, L.da, cuja sede é em Montemor-o-Novo, no inicio do mês de Fevereiro de 2003.
19) Tendo sido já a referida empresa quem, nesse mês de Fevereiro de 2003, apresentou as competentes contribuições referentes ao A. na Segurança Social.
20) - (2). O horário de trabalho do autor, fixado pela ré, era das 8 às 13 horas e das 14 às 18 horas, de segunda a sexta-feira.

3. O direito
Como decorre das conclusões apresentadas pelo autor, ora recorrente, as questões por ele suscitadas no recurso são as seguintes:
- Saber se o facto da ré não ter junto aos autos cópia dos cheques comprovativos das retribuições pagas ao autor importa a inversão do ónus da prova (conclusões A) a Q) inclusive);
- Saber se a ré deve ser condenada a pagar ao autor a retribuição correspondente aos descansos compensatórios referentes ao trabalho suplementar que prestou (conclusão R);
- Saber se existiu justa causa para o autor rescindir o contrato de trabalho (conclusões R) a T) inclusive);
- Saber desde quando é que os juros de mora são devidos (conclusão U);
- Saber se a ré litigou de má fé (conclusão V)).

3.1 Da inversão do ónus da prova
3.1.1 Os termos da questão
A questão em referência prende-se com o seguinte:
- na petição inicial, o autor requereu que a ré fosse notificada para juntar uma série de documentos, nomeadamente, a cópia dos cheques comprovativos do pagamento mensal da retribuição do A., desde a data da sua admissão, e dos pagamentos efectuados a título de férias, subsídio de férias e de Natal;
- no despacho saneador, a M.ma Juíza, além do mais que ao caso agora não interessa, seleccionou os factos admitidos por acordo, elaborou, admitiu os róis de testemunhas, deferiu a requerida gravação da prova, ordenou que a ré fosse notificada para juntar aos autos “cópias dos cheques comprovativos do pagamento mensal da retribuição do autor” e indeferiu o demais requerido “por irrelevante para a decisão da causa”;
- aquele despacho foi notificado às partes, mas a ré não juntou a cópia dos referidos cheques e nada veio dizer aos autos a esse respeito;
- na decisão da matéria de facto, a M.ma Juíza deu como não provados os quesitos 6.º e 7.º cujo teor era, respectivamente, o seguinte: “O autor auferia, desde Abril de 2001, a título de vencimento base mensal líquido, € 800,00?” “Ao qual acrescia uma quantia variável de Prémios e Comissões a calcular sobre o volume de vendas efectuadas pelo Autor?”;
- no recurso de apelação, o autor impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente as respostas dadas aos quesitos 6.º e 7.º;
- e fundamentou essa impugnação não só na prova testemunhal que havia sido produzida, mas também no facto da ré não ter junto a cópia dos mencionados cheques;
- segundo o autor, aqueles quesitos não deviam ter sido dados como não provados e a M.ma Juíza devia ter dado como provado que ele recebia mensalmente, para além do que constava dos recibos de vencimento, entre € 200 a 300, a título de comissões, resultando daí uma retribuição líquida mensal de € 800, em média, uma vez que a não junção por parte de ré dos ditos documentos implica a inversão do ónus da prova, pois foi essa conduta da ré que o impediu de provar aqueles factos (vide conclusão n.º 6 do recurso de apelação - fls. 353).
Analisando os fundamentos da impugnação produzida pelo autor relativamente às respostas dadas aos quesitos 6.º e 7.º, a Relação entendeu que a prova testemunhal e documental produzida nos autos não era suficiente para alterar as respostas em questão. E, no que toca à não junção da cópia dos cheques, a Relação considerou que a conduta da ré não acarretava a inversão do ónus da prova, com a seguinte fundamentação:
«Embora deslocado da impugnação da decisão de facto, o recorrente invoca ainda outro fundamento para que o tribunal tivesse dado como provado que o Autor auferia um valor médio de € 200/300 a título de comissões (vide ponto 12 das conclusões da respectiva alegação). Tal estaria no facto de a Ré não ter dado cumprimento ao despacho proferido no saneador para a junção de documentos, o que acarretaria a inversão do ónus da prova, o que a sentença recorrida não teria feito operar.
Efectivamente aquando do despacho saneador e após especificação dos factos assentes e elaboração da base instrutória, a Sr.ª Juiz determinou a notificação da Ré para juntar aos autos cópias dos cheques comprovativos do pagamento mensal da retribuição ao Autor (fls. 124 dos autos).
A Ré foi notificada do despacho saneador através do respectivo advogado (vide fls. 132 dos autos). Porém, não encontramos em parte alguma dos autos referência a qualquer notificação dirigida à Ré (seja pessoalmente seja através do respectivo mandatário) com a advertência determinada no despacho de fls. 124 dos autos, notificação essa que se impunha como expressamente resulta do art° 528° do CPC.
Omitiu-se, pois, a prática de um acto que a lei exigia e que, dado o fim a que se destinava, influía no exame e decisão da causa, pelo que aquela omissão consubstancia nulidade processual nos termos do nº l do art° 201° do CPC. Trata-se, no entanto, de nulidade que não é de conhecimento oficioso (art° 202° do CPC, à contrário) e também nunca foi arguida, estando há muito ultrapassado o prazo para o efeito (vide art° 205° do CPC), pelo que a mesma tem de considerar-se sanada.
Precisamente porque aquela notificação não ocorreu, não podem sobre a Ré recair os efeitos cominatórios previstos no art° 529° do CPC e, pela remissão que neste é feita, os previstos no art° 519°, nº 2 do CPC ou mesmo a inversão do ónus da prova nos termos previstos no art° 344°, n° 2 do CC.
Assim, não era nem é possível fazer funcionar tal mecanismo processual para dar como provado que o Autor auferia comissões e muito menos que o valor médio das mesmas era de € 200/300 mensais.
Portanto, também quanto à matéria dos quesitos 6° e 7° não é possível reconhecer razão ao Autor.» (fim de transcrição)
Como decorre da referida fundamentação, a Relação reconheceu que, aquando do despacho saneador, a M.ma Juíza tinha ordenado que a ré fosse notificada para juntar as cópias dos cheques comprovativos da retribuição paga ao autor e reconheceu que o despacho saneador tinha sido notificado ao mandatário da ré. Mas, apesar disso, entendeu que a ré não tinha sido expressamente notificada, para juntar as cópias dos ditos cheques, uma vez que nos autos não existia nenhuma notificação dirigida à ré com essa advertência e, que, por isso, não podiam recair sobre ele os efeitos cominatórios previstos no art.º 519.º, n.º 2, do CPC, para que remete o art.º 529.º do mesmo Código. E a Relação entendeu, ainda, que essa falta de notificação constituía uma nulidade processual, mas que tal nulidade tinha de se considerar sanada, por não ter sido arguida e por não ser de conhecimento oficioso.
O autor discorda, pelas razões aduzidas nas conclusões A) a Q) das suas alegações.
Segundo ele, a notificação do despacho saneador ao mandatário da ré incluía a notificação para a ré juntar aos autos as cópias dos aludidos cheques, valendo essa notificação como notificação à própria parte, uma vez que a junção de documentos não consubstancia a prática de um acto pessoal, pelo que, não tendo a ré procedido à junção dos ditos documentos, sobre ela deviam recair os efeitos cominatórios previstos no art.º 519.º, n.º 2, do CPC, por remição do art.º 529.º, e no art.º 344.º, n.º 2, do C.C.. E o facto da ré não ter sido notificada (seja pessoalmente, seja através do seu mandatário), com a advertência de que devia juntar os ditos documentos, constitui um lapso da secretaria, pelo qual ele não pode ser prejudicado, por não ser de presumir que tivesse tomado conhecimento dessa omissão no decurso do processo, sendo que a mesma só veio a ser suscitada no acórdão recorrido.
3.1.2 Questão prévia
Antes de nos debruçarmos sobre a bondade da argumentação produzida pelo autor, importa conhecer da questão prévia suscitada pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, no seu douto “parecer”.
Segundo aquela magistrada, nas conclusões A) a Q), o autor levanta questões que já foram objecto do recurso de agravo por ele interposto para a Relação e levanta uma outra que se prende com uma omissão que teria sido cometida pela secretaria. E, na opinião daquela magistrada, o Supremo não poderia conhecer das primeiras, por não estarem preenchidos os requisitos do art.º 754.º, n.º 2, do CPC, e não poderia conhecer da última, por se tratar de uma questão nova.
Vejamos se a referida questão prévia merece provimento.
Entre a primeira e a segunda sessão de julgamento, o autor requereu a contradita do representante da ré e das quatros testemunhas que tinham sido inquiridas na primeira sessão de julgamento e, com vista a essa contradita, requereu que aquelas testemunhas fossem notificadas para juntar cópia dos seus recibos de vencimento, desde o ano de 2000, e dos respectivos meios de pagamento, nomeadamente dos cheques ou talões de transferência bancária e respectivos depósitos.
A contradita foi indeferida pela M.ma Juíza e o autor interpôs recurso de agravo do respectivo despacho, agravo esse a que a Relação negou provimento.
É este o agravo que a magistrada do M.º P.º invoca, para sustentar o não conhecimento da questão relacionada com a não junção por parte da ré da cópia dos cheques comprovativos dos pagamentos por ela feitos ré ao autor.
Todavia, como é fácil de ver, aquele agravo nada tem a ver com a questão da inversão do ónus da prova suscitada pela ré no recurso de revista. E, além disso, os cheques cuja junção foi requerida no requerimento de contradita também nada têm a ver com os cheques cuja falta de junção constitui o fundamento da pretendida inversão do ónus da prova.
A questão da inversão do ónus da prova não foi objecto de apreciação nem de qualquer decisão na 1.ª instância. Tal questão foi suscitada pela primeira vez no recurso de apelação, a propósito da impugnação da matéria de facto e a primeira e única decisão que sobre ela foi proferida foi a da Relação.
Por isso e embora aquela questão revista natureza processual, nada impede que a decisão sobre ela proferida na Relação seja reapreciada pelo Supremo, uma vez que a figura do chamado agravo continuado não se verifica, pois, como é sabido e decorre do disposto no art.º 754.º, n.º 2, do CPC, tal figura pressupõe que tenha havido duas decisões sobre a mesma questão de natureza processual, uma proferida na 1.ª instância e outra na Relação.
Improcede, por isso, nesta parte, a questão prévia levantada pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta.
E improcede também a questão prévia suscitada por aquela magistrada, no que toca à alegada a omissão por parte da secretaria.
De facto e ao contrário do que aquela magistrada refere, não estamos perante uma questão nova. Com efeito, ao sustentar, no recurso de revista, que a alegada omissão da secretaria não lhe era imputável e que podia não ser prejudicado por essa omissão, o autor limitou-se a impugnar a decisão que a Relação havia proferido a esse respeito. Foi a Relação, e não o autor, que trouxe essa questão para o processo e, como é óbvio, assiste-lhe o direito de recorrer da decisão que sobre ela foi proferida.
3.1.3 Da questão propriamente dita
Decidida a questão prévia suscitada pela magistrada do M.º P.º, passemos, agora, à apreciação da questão da inversão do ónus da prova, começando por recordar os dispositivos legais atinentes ao caso.
Nos termos do art.º 528.º, n.º 1, do CPC, “[q]uando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requererá que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que lhe for designado”.
E, nos termos do art.º 529.º do mesmo Código, “[s]e o notificado não apresentar o documento, é-lhe aplicável o disposto no n.º 2 do art.º 519.º”.
Por sua vez, segundo o disposto no n.º 2 do art.º 519.º “[a]queles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercivos que forem possíveis; [e] se o recusante for parte, o tribunal apreciará livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do art.º 344.º do Código Civil.”

Finalmente, o art.º 344.º, do C.C., estipula, no seu n.º 2, que “[h]á também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações”.
Como já foi referido, no despacho saneador a M.ma Juíza ordenou que a ré fosse notificada para juntar aos autos cópia dos cheques comprovativos dos pagamentos por si feitos ao autor (vide fls. 124). O despacho saneador foi notificado ao mandatário da ré (vide fls. 132) e, como é sabido, as notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários (art.º 253.º, n.º 1, do CPC), o que significa que a notificação ao mandatário vale como notificação à própria parte. Só assim não é quando a notificação se destine a chamar a parte para a prática de acto pessoal. Neste caso, além de ser notificado o mandatário, será também expedido pelo correio um aviso registado à própria parte, indicando a data, o local e o fim da comparência (art.º 253.º, n.º 2, do CPC).
No caso em apreço, o acto a praticar pela ré (junção de documentos) não tinha natureza pessoal, por não se tratar de acto que só por ela própria pudesse ser realizado. Por isso, a ré não tinha de ser pessoalmente notificada do despacho em questão.
É certo que o ofício enviado ao mandatário da ré, para notificação do despacho saneador, não contém qualquer referência expressa à junção de documentos. Limita-se a informar o mandatário de que ficava notificado do despacho saneador, mas acrescenta que se junta cópia desse despacho (vide a fls. 131, cópia do respectivo ofício).
Ora, tendo o mandatário da ré recebido cópia do despacho saneador e constando deste a ordem de notificação para que a ré juntasse as cópias dos cheques comprovativos do pagamento mensal da retribuição do autor, é óbvio que a notificação do despacho saneador incluía a notificação para a junção dos ditos documentos.
E, sendo assim, como se entende que é, a secretaria não cometeu a omissão que na decisão ora recorrida lhe é imputada, devendo, por isso, concluir-se que a ré foi notificada para juntar as cópias dos aludidos cheques.
Como já foi referido, a ré não juntou aqueles documentos e nada disse a tal respeito e, por via disso, a sua conduta passou a ser subsumível ao disposto no art.º 529.º do CPC e, por remissão, ao disposto no n.º 2 do art.º 519.º do mesmo Código.
Todavia, ao contrário do que o autor defende, a não apresentação dos ditos documentos não é suficiente, só por si, para sujeitar a ré às cominações previstas no art.º 519.º, n.º 2. Para que tal sucedesse era necessário que aquela sua conduta pudesse ser considerada como uma atitude de recusa em colaborar para a descoberta da verdade, uma vez que, como inequivocamente decorre da letra do n.º 2 do art.º 519.º do CPC, as cominações aí previstas pressupõem precisamente a existência de uma recusa em colaborar (“Aqueles que recusem a colaboração devida…”).
Ora, como da própria palavra se depreende, a recusa pressupõe que a conduta seja dolosa, não se podendo concluir que a ré actuou com o propósito de se furtar ao dever de colaboração a que estava legalmente obrigada, uma vez que o art.º 529.º não estabelece qualquer presunção nesse sentido, ao contrário do sucedia com o disposto no art.º 553.º do CPC de 1939 - (3). Aquele artigo limita-se a dizer que o disposto no n.º 2 do art.º 519.º é aplicável à parte, quando esta (injustificadamente, leia-se) não apresentar o documento. Não diz que a não apresentação do documento corresponde a uma recusa da parte em colaborar.
A mera falta de junção dos documentos não é suficiente, só por si (repete-se) para concluir pela existência de dolo. Tal incumprimento pode ter resultado de mera negligência ou descuido.
De qualquer modo, ainda que se entendesse que a falta de apresentação dos ditos documentos, acompanhada da falta de apresentação de qualquer justificação, era suficiente, só por si, para concluir que a ré havia recusado a colaboração a que estava obrigada, tal não seria suficiente para fazer operar a inversão do ónus da prova.
Com efeito, para que tal inversão ocorresse era necessário, como decorre do disposto no n.º 2 do art.º 344.º do CC., que a conduta da ré tivesse tornado impossível ao autor fazer a prova os factos que através dos aludidos documentos pretendia demonstrar, impossibilidade essa que, no caso em apreço, não se verifica, dado que as cópias pretendidas podiam ter sido requisitadas à instituição bancária competente.
Improcede, pois, o recurso, no que toca à questão da inversão do ónus da prova.
3.2 Do descanso compensatório
Na petição inicial, o autor alegou que trabalhou sempre, pelo menos uma hora, ao final da tarde de cada dia útil, para além do seu horário normal de trabalho que era das 8 às 13 e das 14 às 17 horas, e que tal aconteceu a solicitação, no interesse, com o conhecimento e sem a oposição a ré.
E pediu que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 6.708,24, a título do trabalho suplementar prestado nos anos de 2000 a 2002, inclusive, e a quantia de € 1.677,06, a título de descanso compensatório referente ao trabalho suplementar em causa, descanso compensatório que nunca lhe foi concedido nem pago.
Na 1.ª instância, a ré foi absolvida daqueles pedidos, com o fundamento de que o autor não tinha conseguido provar a prestação de trabalho suplementar por si alegado. E, de facto, essa prova não fora feita, uma vez que os quesitos referentes a essa matéria (quesitos 16.º, 17.º e 18.º) tinham sido dados como não provados - Os quesitos em questão tinham o seguinte teor:
Quesito 16: “o horário de trabalho do A. era das 8H às 13H e das 14H às 17H?”
Quesito 17.º: “Por ordens da Ré o autor desde sempre prestou trabalho até às 18H?”
Quesito 18.º: “A ré nunca concedeu ao autor qualquer dia de descanso compensatório?”.
No recurso de apelação, o autor impugnou as respostas dadas aos mencionados quesitos, com o objectivo de que a ré fosse condenada a pagar-lhe os montantes peticionados a título de trabalho suplementar e de descanso compensatório.
O Tribunal da Relação de Évora alterou as respostas dadas aos quesitos 16.º e 17.º, dando como provado o que consta do n.º 20 da matéria de facto supra (“O horário de trabalho do autor, fixado pela ré, era das 8 às 13 horas e das 14 às 18 horas, de segunda a sexta-feira.”) e manteve a resposta dada ao quesito 18.º.
E, em consequência da alteração referida, a Relação considerou que o horário de trabalho do autor, sendo de 45 horas semanais, excedia o limite legal de 44 horas por semana fixado na Lei n.º 2/91, de 17/1 e no D.L. n.º 398/91, de 16/10, e o limite legal de 40 horas por semana estabelecido na Lei n.º 21/96, de 23/7, com efeitos a partir de 1.12.97. E mais considerou que o trabalho prestado para além dos referidos limites legais devia ser qualificado de trabalho suplementar e, consequentemente, condenou a ré a pagar ao autor “uma hora de trabalho suplementar por cada dia útil de trabalho, isto é, nos dias de segunda a sexta-feira, descontados os dias de feriado e de faltas e férias do Autor, relativamente aos anos de 2000, 2001 e 2002, a calcular em função da retribuição base horária que o Autor auferia e com o acréscimo de 50%, a liquidar em execução de sentença”, revogando, nessa parte, a sentença da 1.ª instância.
No recurso de revista, o autor sustenta que a ré também devia ter sido condenada a pagar--lhe a retribuição correspondente ao descanso compensatório referente ao trabalho suplementar prestado, que a ré não lhe concedeu.
Trata-se, todavia, de uma questão de que o Supremo não pode conhecer, pelo facto de a decisão recorrida não ter emitido qualquer pronúncia sobre ela e de o recorrente não ter arguido a nulidade do acórdão da Relação, sendo que este era o meio processual adequado para reagir contra a referida omissão de pronúncia em que o acórdão incorreu.
De qualquer modo, sempre se dirá que a pretensão do autor não seria procedente, por ele não ter provado que a ré não lhe havia concedido os descansos compensatórios a que tinha direito devido ao trabalho suplementar que lhe tinha prestado (recorde-se que o quesito 18.º foi dado como não provado e que tal resposta foi mantida pela Relação), sendo que sobre ele recaía a prova desse facto, por se tratar de um facto constitutivo do direito à quantia por ele peticionada a título de descansos compensatórios não gozados (art.º 342.º, n.º 1, do CC).
3.3 Da justa causa para a rescisão do contrato
O autor rescindiu o contrato de trabalho que mantinha com a ré, com invocação de justa causa, através de carta registada com aviso de recepção que lhe enviou em 3 de Fevereiro de 2003 e que por ela foi recebida no dia seguinte (facto n.º 7).
A rescisão ocorreu, pois, antes da publicação da Lei que aprovou o Código do Trabalho, a Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto de 2003, sendo, por isso, aplicável ao caso o regime contido na LCCT - (5).
Nos termos do art.º 34.º da LCCT, ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato de trabalho, mas a rescisão tem de ser feita por escrito, com a indicação sucinta dos factos que a justificam, dentro dos quinze dias subsequentes ao conhecimento desses factos, e só esses factos são atendíveis para justificar judicialmente a rescisão.
Ao contrário, porém, do que sucedia relativamente ao despedimento com justa causa subjectiva promovido pela entidade empregadora, a LCCT era omissa acerca do conceito de justa causa para efeitos de rescisão por iniciativa do trabalhador. Limitava-se a elencar, de forma taxativa, um conjunto de situações que considerava constitutivas de justa causa e a estabelecer que só algumas delas conferiam ao trabalhador direito de indemnização (art.º 35.º, n.os 1 e 2, da LCCT).
Perante aquela omissão, poder-se-ia pensar que a simples ocorrência de alguma daquelas situações era suficiente para que o trabalhador pudesse rescindir o contrato com justa causa, mas esse não foi o entendimento perfilhado na doutrina e na jurisprudência, que, de forma unânime, sempre entenderam que as situações previstas na lei careciam de ser avaliadas, com as devidas adaptações, à luz do conceito de justa causa que, para efeitos do despedimento promovido pela entidade empregadora, constava do art.º 9.º, n.º 1, da LCCT.
E tal entendimento tinha cabal apoio na própria LCCT, uma vez que no n.º 4 do seu art.º 35.º estipulava que “[a] justa causa será apreciada pelo tribunal nos termos do n.º 5 do art.º 12º, com as necessárias adaptações”.
Com efeito, inserindo-se o art.º 12.º, tal como o art.º 9.º, no Capítulo que trata do despedimento promovido pela entidade empregadora e determinando o n.º 5 do art.º 12.º que “[p]ara a apreciação da justa causa deve o tribunal atender, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes”, é óbvio que a remissão para o n.º 5 do art.º 12.º, contida no n.º 4 do art.º 35.º, inclui necessariamente a remissão para o conceito de justa causa vertido no n.º 1 do art.º 9.º.
E, como é sabido, segundo o disposto no n.º 1 do referido art.º 9.º, constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, o que vale por dizer que o conceito de justa causa de despedimento exige a verificação cumulativa de três requisitos: um comportamento ilícito e culposo do trabalhador, que se traduzirá na violação dos seus deveres contratuais (elemento subjectivo); uma impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação laboral (elemento objectivo); um nexo de causalidade entre o referido comportamento e a mencionada impossibilidade (nexo causal).
Assim, para se dar por verificada a justa causa de despedimento, não basta que o trabalhador tenha violado culposamente algum dos seus deveres contratuais. Também é necessário que essa violação, pela sua gravidade e consequências, seja de molde a tornar prática e imediatamente impossível a manutenção do vínculo laboral.
A impossibilidade da manutenção da relação laboral é, pois, a pedra de toque para ajuizar da existência da justa causa de despedimento, mas esse juízo nem sempre constitui tarefa fácil, uma vez que a impossibilidade de manutenção da relação laboral subjacente ao conceito de justa causa não é, evidentemente, uma impossibilidade de ordem material. Trata-se, antes, de uma situação de inexigibilidade que há-de ser determinada, como diz Monteiro Fernandes - (6)., “mediante um balanço in concreto dos interesses em presença – fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo”.
E o balanço desses interesses implica necessariamente, como diz Bernardo Lobo Xavier - (7), um juízo de probabilidade, de prognose, sobre a viabilidade da relação de trabalho, que nem sempre é fácil de fazer, não só porque a inexigibilidade é manifestamente refractária à subsunção, mas também porque o comportamento culposo do trabalhador tem de ser avaliado em concreto, à luz de todas as circunstâncias relevantes, o que implica uma selecção dos factos e circunstâncias a atender e uma série de valorações assentes em critérios de muito diferente natureza – éticos, organizacionais, técnico-económicos, gestionários – e, mesmo não raro, relacionados com pressupostos de ordem sócio-cultural e até afectiva - (8).
Tal juízo deve ser efectuado segundo o entendimento de um bom pai de família, ou seja, de um empregador razoável, devendo o tribunal atender, como se diz no n.º 5 do art.º 12.º da LCCT, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, ao carácter das relações entres as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiro e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.
Mas dizer isto não é suficiente para resolver a questão da inexigibilidade, por nada se ter dito, ainda, sobre o sentido e o significado da mesma. Segundo Monteiro Fernandes - (9)., a inexigibilidade surge apontada ao suporte psicológico e significa que a continuidade da vinculação representaria, objectivamente, uma insuportável e injusta imposição ao empregador, por terem deixado de existir as condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, implicando mais ou menos frequentes e intensos contactos entre os sujeitos.
Deste modo, como diz aquele autor - (10), o juízo de prognose que o tribunal terá de fazer sobre a viabilidade futura da relação laboral passa, em última análise, pelo confronto entre o padrão de resistência psicológica considerado inerente ao comportamento normal de uma pessoa colocada na posição do empregador com o conjunto dos factos e circunstâncias tidos por relevantes no contexto do despedimento.
Por outras palavras, haverá justa causa quando, perante a gravidade da violação dos deveres contratuais por parte do trabalhador e segundo o juízo de um bom pai de família, seja de concluir que o interesse do empregador em obter a desvinculação suplanta os interesses que estão subjacentes ao direito constitucional da segurança no emprego e à inerente proibição dos despedimentos sem justa causa (art.º 53.º da CRP).
Transpondo as considerações expostas para a rescisão do contrato por iniciativa do trabalhador, com invocação de justa causa, vejamos se os factos dados como provados são de molde a concluir que a manutenção da relação laboral por parte do autor implicava para este uma situação psicologicamente insuportável.
E antes de mais importa recordar que foram vários os fundamentos invocados pelo autor para rescindir o contrato com justa causa, como da respectiva carta, junta por cópia a fls. 43-45 dos autos, se alcança.
Concretizando, o autor invocou que a categoria profissional que sempre lhe foi atribuída pela ré (motorista) não correspondia às funções que efectivamente exercia que eram as de vendedor comissionista; que as comissões por si auferidas nunca foram incluídas nos recibos de vencimento, prejudicando-o, assim, nos seus direitos e regalias sociais, já que sobre as comissões não eram efectuados descontos para a segurança social; que a ré o retirou da sua zona de vendas e não lhe atribuiu outra, esvaziando assim o conteúdo funcional da sua categoria profissional; que, em 31.1.2003, unilateralmente e contra sua vontade e em clara violação dos seus direitos legais, a ré reclassificou-o, atribuindo-lhe a categoria de operador de logística e ordenando-lhe que, a partir daquela data, iria exercer as funções inerentes àquela categoria e ordenou-lhe ainda que fosse na camioneta com o distribuidor fazer a distribuição e descarregar grades, ver vasilhame e verificar pagamentos; que a ré recusou informá-lo por escrito sobre as razões que levaram a tais alterações; que a ré promoveu a vendedor um colega que era distribuidor que tinha menor antiguidade na empresa do que ele, ao qual foi atribuída uma área de venda que lhe podia ter sido distribuída a ele, atendendo ao conhecimento que tinha da zona e à sua experiência como vendedor comissionista; que, desde a sua admissão até ao presente, sempre lhe foi ordenado e exigido que prestasse trabalho suplementar em número de dias e horas manifestamente superior ao legalmente estabelecido; que, no sobredito período, a ré nunca diligenciou no sentido de ele beneficiar dos dias de descanso semanal legalmente consagrados nem dos respectivos dias de descanso compensatório pela prática do referido trabalho suplementar; que a ré nunca lhe pagou as inúmeras horas do aludido trabalho suplementar.
Na 1.ª instância entendeu-se que o autor não tinha conseguido provar nenhum dos fundamentos invocados na carta de rescisão, não lhe assistindo, por isso, o direito à reclamada indemnização de antiguidade. E, face aos factos que foram dados como provados na 1.ª instância, a conclusão a que a 1.ª instância chegou não merecia contestação.
Acontece, porém, e como já foi referido, que a Relação alterou as respostas dadas aos quesitos 16.º e 17.º – que a 1.ª instância tinha dado como não provados –, dando como provado que “[o] horário de trabalho do autor, fixado pela ré, era das 8 às 13 horas e das 14 às 18 horas, de segunda a sexta-feira” (vide n.º 20 da matéria de facto supra) - (11), e que, na sequência dessa alteração, a Relação considerou que o autor havia prestado à ré trabalho suplementar, condenando-a no pagamento da respectiva retribuição, nos termos também já referidos.
A Relação, todavia, não considerou a falta de pagamento daquele trabalho suplementar suficientemente grave para constituir justa causa de rescisão imediata do contrato por parte do trabalhador, embora tenha reconhecido que esse foi um dos fundamentos invocados pelo autor na carta de rescisão que enviou à ré.
A fundamentação tecida pela Relação a esse respeito foi a seguinte:
«É manifesto que a Ré ao fixar e manter o horário de trabalho do Autor em 9 horas diárias e 45 horas semanais estava a violar o regime legalmente estabelecido que, nesse domínio, é imperativo.
O Autor na carta de rescisão referia-se de uma forma genérica ao trabalho suplementar que lhe era exigido “em horas e dias” manifestamente superior ao legalmente estabelecido, sem pagamento e sem descanso compensatório. Porém, não invocava concretamente que o horário normal de trabalho que lhe fora estabelecido desrespeitava o legalmente estabelecido. Veja-se que aí, na carta de rescisão, nem sequer faz referência ao horário de trabalho que lhe estava fixado nem pretendeu daí retirar quaisquer consequências.
Mas mesmo que se admita que o Autor, na carta de rescisão se estava a referir ao “excessivo” horário de trabalho que lhe estava fixado, não se vê que tal fosse impeditivo para o Autor da manutenção da relação de trabalho, pois que a essa situação se adequou ao longo dos tempos. Dado o tempo durante o qual o contrato perdurou, o Autor foi “sistematicamente” confrontado com a “imposição” de trabalhar no horário que lhe foi fixado e, que a matéria de facto provada o revele, nunca reagiu ou manifestou à entidade patronal que não poderia tolerar tal procedimento, dando a entender que se tratava de actuação da Ré de tal forma gravosa que impedia a subsistência da relação laboral ou tornava inexigível para o Autor que se mantivesse por mais tempo ligado à empresa.
É precisamente a falta de prova deste requisito que nos leva a concluir que tal fundamento de rescisão – tanto mais que invocado pela forma abstracta como o foi – não pode configurar justa causa de rescisão.
Seja pela falta de prova da generalidade dos fundamentos invocados seja porque não consideramos que a questão do horário de trabalho reveste, nas circunstâncias, gravidade bastante para tornar impossível a subsistência da relação laboral, concluímos não poder reconhecer ao Autor justa causa para rescindir o contrato.» (fim da transcrição).
No recurso de revista, o autor insiste na existência da justa causa. Segundo ele, os factos que deviam ter sido dados como provados por força da por ele invocada inversão do ónus da prova seriam suficientes para concluir pela existência da justa causa e o mesmo sucedia relativamente ao não pagamento do trabalho suplementar e dos descansos compensatórios.
No que toca à inversão do ónus da prova, já vimos que a pretensão do autor não merecia provimento e no que diz respeito aos descansos compensatórios, também já vimos que a mesma nunca poderia ser julgada procedente.
Deste modo, para ajuizar da justa causa, resta-nos apenas o não pagamento do trabalho suplementar. E a este respeito subscrevemos inteiramente a fundamentação aduzida na decisão ora recorrida.
Com efeito, embora o não pagamento do trabalho suplementar se traduza numa violação dos direitos do trabalhador, que se tem de considerar culposa, nos termos do art.º 799.º, n.º 1, do C.C., e embora a falta de pagamento pontual da retribuição faça parte do elenco de situações que a lei considera constitutivas de justa causa de rescisão imediata do contrato por parte do trabalhador (art.º 35.º, n.º 1, al. a), da LCCT), a verdade é que, arrastando-se essa situação há já vários anos, não se compreende por que razão é que o autor só em 3.2.2003 a considerou suficientemente grave para rescindir o contrato de trabalho.
Reconhece-se que o não pagamento pontual da retribuição constitui uma violação grave dos direitos do trabalhador e que, em regra, essa violação é susceptível de integrar o conceito de justa causa, pelas consequências pessoais, familiares e sociais que normalmente lhe são inerentes.
Todavia, no caso em apreço, não está provado que assim tenha acontecido. O lapso de tempo decorrido, sem que o autor tivesse efectuado qualquer reclamação junto da ré (não se provou que tal reclamação tivesse sido feita nem ele alegou nada nesse sentido), demonstra que a falta de pagamento do trabalho suplementar, ao longo dos anos, não foi considerada pelo autor impeditiva da manutenção da relação laboral que mantinha com a ré. Isto é, demonstra que aquela falta de pagamento nunca assumiu, para ele, acentuada gravidade.
Ora, não se tendo provado que tal situação tenha sido alterada, pela ocorrência de algum facto recente, não vemos razões para dar por verificada a justa causa, com base no aludido fundamento, o que implica a improcedência do recurso também nesta parte.
3.3 Dos juros de mora
Na petição inicial, o autor pediu que a ré fosse condenada a pagar juros de mora, à taxa legal, sobre todas as importâncias peticionadas. Na 1.ª instância, a ré foi condenada a pagar ao autor tão-somente a quantia de € 1.462,50 (a título de férias vencidas em 1.1.2003 e de proporcionais de férias, de subsídio de férias e de Natal referentes ao ano de 2003 – ano da cessação do contrato), mas na sentença nada se disse relativamente aos juros de mora. Embora sem arguir a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, no recurso de apelação o autor insurgiu-se contra a sentença por ela não ter condenado a ré nos juros de mora. A Relação conheceu dessa questão e, dando razão ao autor, condenou a ré a pagar-lhe os juros de mora referentes àquela importância, a partir da citação, mas, no que toca aos juros de mora referentes à retribuição que, na 2.ª instância, a ré foi condenada a pagar ao autor, a Relação disse que não havia que fixar juros, uma vez que a liquidação dessa retribuição tinha sido relegada para execução de sentença.
No recurso de revista, o autor insurge-se contra o assim decidido pela Relação, alegando que os juros de mora são devidos em relação a todas as importâncias, a partir da data do vencimento das respectivas prestações, por se tratar de obrigações de prazo certo.
Nos termos do art.º 805.º do C.C., o devedor fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (n.º 1), mas, se a obrigação tiver prazo certo ou se provier de facto ilícito, haverá mora independentemente de interpelação, o mesmo acontecendo se o próprio devedor impedir a interpelação, caso em que se considera interpelado na data em que normalmente o teria sido (n.º 2). Todavia, diz o n.º 3 do referido artigo, se o crédito for ilíquido, não haverá mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor. Tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco (acrescenta o mesmo número), o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja mora, nos termos da primeira parte deste número.
No caso em apreço, estamos perante responsabilidade de natureza contratual, uma vez que a obrigação de pagamento das retribuições que ao autor foram reconhecidas emergem do contrato de trabalho que ele manteve com a ré.
Como ainda recentemente se decidiu no acórdão de 19.12.2007, proferido no processo n.º 3788/07, da 4.ª Secção, subscrito pelo mesmo relator e adjuntos que subscrevem este, “[a]s retribuições laborais são obrigações de prazo certo (art.º 93.º, n.º 1, da LCT) e, por via disso, a entidade patronal fica constituída em mora, se o trabalhador, por facto que lhe não seja imputável, não puder dispor do montante da retribuição, em dinheiro, na data do vencimento, diz o art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 69/85, de 18/3.”
“É certo, [acrescentou-se naquele acórdão] que, se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido (primeira parte do n.º 3 do art.º 805.º do C.C.), mas também é verdade que isso só acontece quando a falta de liquidez não for imputável ao devedor (segunda parte do n.º 3 do art.º 805.º).”

Ora, no caso em apreço e atenta a natureza das retribuições que ao autor são devidas, não há dúvida de que a ré dispunha de todos os elementos necessários para proceder à liquidação dos respectivos créditos, não sendo, por isso, imputável ao autor a eventual iliquidez dos mesmos.

Procede, pois, a pretensão do autor no que concerne aos juros de mora, devendo a ré ser condenada a pagá-los a partir da data em que cada uma das prestações se venceu, ou seja, a partir do final do mês a que diz respeito.
3.4 Da litigância de má fé por parte da ré
Na contestação, a ré pediu que o autor fosse condenado como litigante de má fé e, na resposta à contestação, o autor formulou idêntico pedido contra a ré.
Na sentença da 1.ª instância entendeu-se que não havia razões condenar a ré por litigância de má fé, mas entendeu-se que já havia motivos para condenar o autor como tal, tendo, por isso, sido condenado, a pagar 10 UC de multa e a pagar à ré a indemnização correspondente às despesas por ela efectuadas incluindo os honorários do seu mandatário, a liquidar ulteriormente.
No recurso de apelação, o autor insurgiu-se apenas contra aquela decisão, tendo a Relação revogado a sentença no que toca à condenação do autor como litigante de má fé e mantido o que a esse respeito fora decidido relativamente à ré.
No recurso de revista, o autor continua a pugnar pela condenação da ré como litigante de má fé.
Trata-se, todavia, de questão de que o Supremo não pode conhecer, pelo facto da decisão respectiva contender com matéria de natureza processual. Com efeito, estando em causa a pretensa violação do disposto no art.º 456.º do CPC, o recurso a interpor da decisão proferida sobre a litigância de má fé seria, em princípio, o recurso de agravo, uma vez que, nos termos do art.º 721.º do CPC, o recurso de revista cabe do acórdão da Relação que decida do mérito da causa e o seu fundamento específico é a violação da lei substantiva, podendo, embora acessoriamente, alegar-se algumas das nulidades previstas nos artigos 668.º e 716.º do mesmo Código.
Todavia, o art.º 722.º, n.º 1, do CPC admite que o recorrente, sendo o recurso de revista o próprio, possa alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei do processo, quando desta for admissível o recurso, nos termos do n.º 2 do art.º 754.º, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso.
Ora, nos termos do n.º 2 do art.º 754.º, “[n]ão é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da 1.ª instância [leia-se, que tenha incidido sobre a violação da lei processual], salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, jurisprudência com ele conforme”.
No caso em apreço, a decisão da Relação incidiu sobre decisão da 1.ª instância e o autor não alegou que o acórdão da 2.ª instância estivesse em oposição com outro proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo tribunal de Justiça ou por qualquer Relação e, por outro lado, também no caso não ocorre nenhuma das excepções previstas no n.º 3 do art.º 754.º.
Deste modo, a decisão proferida sobre a litigância de má fé não seria, in casu, susceptível de recurso autónomo, por estarmos perante o chamado agravo continuado, previsto no n.º 2 do art.º 754.º. E não sendo ela susceptível de recurso autónomo, era vedado ao recorrente invocar no recurso de revista a violação da lei processual e, tendo-o feito, o Supremo não poderá conhecer do recurso nesta parte.
4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso e alterar a decisão recorrida apenas no que toca aos juros de mora, os quais serão devidos desde a data do vencimento das respectivas prestações mensais, nos termos acima referidos.
Custas, nas instâncias e no Supremo, pelo autor e pela recorrida, na proporção, respectivamente, de 90% e 10%.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Abril de 2008
Sousa Peixoto (Relator)
Sousa Grandão
Pinto Hespanho

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      (1)-Anote-se que a ré também recorreu, mas, na fase das alegações, veio a desistir do recurso

      (2)-Este facto foi aditado pela Relação e corresponde à resposta que por esta foi dada aos quesitos 16.º e 17.º.

      (3)- Segundo o disposto no art.º 553.º do CPC/1939, quando a parte não apresentasse o documento nem fizesse declaração alguma a esse respeito, “ter-se-ão por exactos os factos que por meio do documento se pretendiam provar”. E, comentando aquele normativo, A. Reis dizia que com essa conduta a parte faltava ao cumprimento do dever de cooperação

      (4) Os quesitos em questão tinham o seguinte teor:

      Quesito 16: “o horário de trabalho do A. era das 8H às 13H e das 14H às 17H?”
      Quesito 17.º: “Por ordens da Ré o autor desde sempre prestou trabalho até às 18H?”
      Quesito 18.º: “A ré nunca concedeu ao autor qualquer dia de descanso compensatório?”
      (5)- Regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27/2.
      (6)-Direito do Trabalho, 12.ª edição. P. 557.
      (7)- Curso de Direito do Trabalho, 2.ª ed., p. 493.
      (8)-Vide Monteiro Fernandes, ob. citada, p. 558-559.
      (9)-Ob. citada, p. 559.
      (10)- Ob. citada, p. 560.
      (11)-Nos quesitos 16.º e 17.º da base instrutória perguntava-se, respectivamente, o seguinte: “O horário de trabalho do A. era das 8H às 13H e das 14H às 17H? e “Por ordens da ré o autor desde sempre prestou trabalho até às 18H?”