Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2443/14.3T8BRG.G1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
ATROPELAMENTO DE PEÃO
VELOCIDADE EXCESSIVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA E ORDENADA A BAIXA DOS AUTOS
Área Temática:
DIREITO ESTRADAL - TRÂNSITO DE VEÍCULOS / VELOCIDADE - TRÂNSITO DE PEÕES / ATRAVESSAMENTO DE FAIXA DE RODAGEM.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA ESTRADA (CE): - ARTIGOS 24.º, 25.º, 101.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 665.º, 679.º.

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ESTRATÉGIA NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA 2008-2015 (PP. 27 E 28).
PLANO NACIONAL DE SEGURANÇA RODOVIÁRIA DE 2003 (P.22), ACESSÍVEL ATRAVÉS DE WWW.ANSR.PT .
Sumário :
I. O condutor do veículo automóvel deve adoptar velocidade especialmente moderada na passagem por localidades ou em vias marginadas por habitações.

II. Na travessia de vias públicas fora dos locais onde existem passagens para tal especialmente destinadas o peão deve adoptar as cautelas necessárias a evitar o embate com veículos.

III. As Directivas Europeias em matéria de seguro automóvel projectam a tutela especial dos utentes mais vulneráveis, entre os quais se encontram os peões, implicando também com a apreciação da responsabilidade em casos de acidentes de viação com interferência de veículos automóveis e de peões.

IV. Procedendo o peão à travessia de via pública sem atentar na aproximação de um veículo automóvel, mas circulando este numa localidade, em período nocturno, a uma velocidade que excedia em, pelo menos, 10 kms/h a velocidade máxima permitida para o local, o atropelamento do peão é de imputar em partes iguais a este e ao condutor do veículo automóvel.

Decisão Texto Integral:

I - AA intentou acção com processo comum sob a forma ordinária contra BB - Comp. de Seguros, S.A., pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 60.379,85 a título de indemnização pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência de um atropelamento de que foi vítima e que imputa a culpa exclusiva da proprietária e condutora de um veículo automóvel cuja responsabilidade civil se encontrava transferida para a Ré, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

A R. contestou, impugnando a factualidade alegada pela A., quer a atinente ao sinistro, quer aos danos dele resultantes e pugnando, em conformidade, pela improcedência da acção.

No processo apenso, intentado contra a mesma seguradora por CC, S.A., esta reclama a condenação daquela a pagar-lhe a quantia de € 9.75l,15, correspondente ao custo da assistência hospitalar por si prestada à sinistrada, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, importando os primeiros na quantia de €1.018,53.

A R. contestou, pugnando pela improcedência da acção.

Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença que julgou improcedentes a acção e a acção apensa e absolveu a R. dos pedidos.

A A. AA apelou e a Relação confirmou a sentença.

A A. AA interpôs recurso de revista que foi excepcionalmente admitido e no qual são suscitadas as seguintes questões essenciais:

a) Errada apreciação da responsabilidade pela ocorrência do acidente, devendo, ao menos, considerar-se imputado tanto à A. como à condutora do veículo;

b) Subsidiariamente advoga a admissibilidade da concorrência entre a culpa da A. e o risco de circulação do veículo automóvel.

A R. contra-alegou, defendendo a confirmação do acórdão recorrido.

Cumpre decidir.


II - Factos provados:

1 - No dia 30-12-11, cerca das 19 h e 10 m, na EM n° 593, no troço com a identificação toponímica de Av. …, situado dentro do perímetro urbano da P…, a A. foi colhida pelo veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-...-EP, pertencente a DD e por esta conduzido, quando procedia à travessia daquela artéria da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha prosseguido por este veículo;

2 - Momentos antes do sinistro, o EP circulava pela Av. … no sentido P….-L…, a uma velocidade não inferior a 60 kms/h, com as luzes acesas na posição de médios;

3 - Por sua vez, a A. seguia, como passageira, sentada no banco dianteiro do lado direito, num veículo automóvel que circulava em sentido contrário, veículo esse que, quando aquele se encontrava a cerca de 150 m de distância, se imobilizou diante da casa com o nº … para a deixar, retomando imediatamente a seguir a marcha;

4 - Acto contínuo, a A. saiu por detrás do veículo donde acabara de se apear e iniciou a travessia da faixa de rodagem da Av. …, visando alcançar o passeio oposto, sem atentar na aproximação do EP e quando este se encontrava a uma distância de aproximadamente 5 m, cortando-lhe a trajectória;

5 - Surpreendida, a condutora do EP nada pôde fazer para evitar o embate que se deu entre o canto dianteiro esquerdo do veículo e o corpo da A., mal esta, transpondo o eixo da via, invadiu a metade direita da faixa de rodagem da Av. …, conforme o sentido P…-L…;

6 - Imediatamente após o embate, a condutora do EP travou e imobilizou o veículo antes do local onde a A. ficou caída, a cerca de um metro daquele;

7 - No local do sinistro a faixa de rodagem da Av. … apresentava a configuração de uma recta com cerca de 1 km de extensão e com boa visibilidade, tinha 6,30 m de largura e o respectivo piso, em asfalto, encontrava-se seco;

8 - A via era marginada por casas de habitação e dispunha de iluminação pública, proveniente de postes implantados a intervalos regulares, não inferiores a 30 m;

9 - A A. iniciou a travessia da via sob a incidência directa do foco de luz emanado de um poste de iluminação pública existente no local;

10 - Em consequência do embate e subsequente projecção e queda no solo, a A. sofreu traumatismo da coluna dorsal, fractura dos corpos vertebrais de D11 e D12 e dos pratos tibiais e perónio do joelho direito, bem como diversas escoriações;

11 - Do local do embate foi transportada de ambulância para o Serviço de Urgência do Hospital de Braga, onde foi assistida, submetida a cirurgia para tratamento das facturas que apresentava e onde permaneceu internada até ao dia 12-1-12;

12 - Nesse dia foi-lhe concedida alta do internamento e orientada para a Consulta Externa de Ortopedia do mesmo estabelecimento de saúde;

13 - A partir de Fevereiro de 2012 passou a deambular com o auxílio de canadianas;

14 - Submeteu-se a várias sessões de fisioterapia;

15 - Como sequelas de carácter definitivo das lesões sofridas, cuja consolidação médico-legal ocorreu no dia 20-12-12, apresenta:

I - Ao nível da ráquis:

- processos cicatriciais lineares localizados de modo paralelo às coluna dorso-lombar, medindo o maior 2 cm e o menor 1 cm, resultantes da fixação cirúrgica das farturas;

- rigidez da coluna dorso-lombar, sendo visível a cifo-escoliose que apresenta, de maior componente a cifose dorso-lombar;

II - Ao nível do membro inferior direito:

- cicatriz hipocrómica com 16 cm de comprimento localizada ao longo do terço superior da perna, face externa, e prolongando-se para a face externa do joelho;

- cicatriz de orientação transversal àquela, com 8 cm de comprimento;

- cicatriz, também de tipo cirúrgico, localizada na face interna do joelho, com 10 cm de comprimento;

- dismorfia do joelho, relativamente ao contralateral, compatível com gonoartrose;

- desvio em varo do joelho/terço superior da perna inferior a 10°;

- flexão aos 120° e a extensão não se faz nos últimos 5°;

- instabilidade do joelho no sentido transversal (o que também se verifica no contralateral, embora menos acentuada);

- amiotrofia da coxa direita de 1,5 cm;

16 - Essas sequelas determinam-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 16 pontos, compatível com o exercício da sua actividade, embora implique esforços suplementares, bem como um dano estético de grau 4 numa escala de 1 a 7 graus de gravidade crescente;

17 - Sofreu dores intensas quer no momento do sinistro, quer durante a convalescença, fixáveis no grau 5 numa escala de 1 a 7 graus de gravidade crescente;

18 - No futuro, terá de submeter-se a uma nova cirurgia para colocação de uma prótese total no joelho direito;

19 - Nasceu no dia 6-5-56;

20 - À data do sinistro era saudável, fisicamente bem constituída, alegre e dinâmica;

21 - Trabalhava, como …, na agricultura, auferindo um rendimento mensal não concretamente apurado;

22 - Sente desgosto por se ver fisicamente diminuída;

23 - Ainda em consequência do sinistro, despendeu a quantia de € 273,50 em consultas, meios de diagnóstico e medicamentos, bem como a quantia de € 130,50 em transportes de ambulância;

24 - E ficaram inutilizados o vestuário e o calçado que então envergava;

25 - O custo da assistência prestada à A. no Hospital de Braga, gerido por CC, S.A., no período compreendido entre 30-12-11 e 10-4-14 importou na quantia de € 9.75l,15, titulada pelas facturas insertas a fls. 6 a 14 do processo apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, todas com vencimento a trinta dias;

26 - A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel com a matrícula ...-...-EP encontrava-se transferida para a R. mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº 0045….


III – Decidindo:

1. Questiona-se nesta revista a imputação da responsabilidade pela ocorrência do acidente de viação (atropelamento de peão) de que resultaram danos para a A.

As instâncias consideraram que o acidente é de imputar em exclusivo ao comportamento negligente da A., por ter procedido à travessia da via depois de surgir da parte traseira de um veículo, cortando a linha de marcha do veículo automóvel que se apresentava pela sua direita e dentro da sua hemi-faixa de rodagem, sem dar à respectiva condutora a possibilidade de evitar o embate.

Já a A. defende que, pelo menos, responsabilidade deve ser distribuída por ambos os intervenientes. E ainda que porventura se considere a ausência de culpa da condutora do veículo, advoga que a respectiva Seguradora deve ser responsabilizada pelo risco da circulação, numa operação de concorrência entre a culpa do lesado e o risco da circulação automóvel.


2. As instâncias focaram-se excessivamente no comportamento negligente da A. e não atentaram, como se impunha, noutras circunstâncias que também contribuíram, num grau que não deve ser desprezado, para que ocorresse o acidente.

Pressente-se na linha argumentativa um pré-entendimento que coloca em posição privilegiada o veículo automóvel no confronto quotidiano que se dá com outros utentes das vias públicas - os peões - desconsiderando comportamentos dos condutores, malgrado o nível de diligência que lhes é imposto enquanto tripulantes de máquinas potenciadoras de danos e cuja condução comporta o risco da sua ocorrência.

A pretexto da existência de comportamentos negligentes de outros utentes das vias públicas em situação mais vulnerável, como os peões, ciclistas, menores ou pessoas com as capacidades sensoriais ou de locomoção diminuídas, acabam os tribunais, com frequência, por chancelar uma primazia atribuída aos veículos automóveis em circulação.

Ora, numa linguagem muito simples mas que traduz a necessidade de uma modificação desse pré-entendimento, em benefício da convivência pacífica entre veículos e peões, é bom que se entenda que, em grande parte dos casos, os veículos automóveis não são mais do que a cápsula que transporta pessoas que noutras ocasiões também têm a posição de peões, de tal modo que, na falta de outras indicações que impliquem a atribuição de um relevo relativo a um dos utentes (como ocorre em casos em que existe sinalização semafórica, passadeiras para travessia de peões, sinais de prioridade a algum dos utentes, etc.), devem considerar-se em semelhantes condições quando utilizam as estruturas viárias.

Por outro lado, constituindo a sinistralidade rodoviária um flagelo social, com múltiplas causas, sem embargo das situações em que os acidentes são devidos a comportamentos negligentes dos sinistrados, designadamente dos peões, os comportamentos dos condutores, designadamente no que concerne à velocidade adoptada, também não são alheios aos resultados finais que, por exemplo, ainda marcam a elevada sinistralidade dentro das localidades.

No Plano Nacional de Segurança Rodoviária de 2003 apontava-se como uma das medidas que se destinaria a reduzir a taxa de sinistralidade a de “prevenir o excesso de velocidade e/ou a velocidade excessiva, sobretudo dentro das localidades, pois está associado a um significativo número de acidentes graves envolvendo sobretudo peões” (acessível através de www.ansr.pt, pág. 22).

O problema persistia aquando da elaboração do relatório sobre a Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária 2008-2015 (págs. 27 e 28) onde se refere que “a diminuição da sinistralidade dentro das localidades evoluiu a um ritmo inferior à médis e esse comportamento é mais acentuado no período mais recente, o que deve motivar uma ainda maior atenção no futuro”. E que “a situação mais crítica da sinistralidade dentro das localidade sprende-se com os utentes de ligeiros, e mais objectivamente, no período mais recente, com os condutores”.

E prossegue ainda, como se observa no Plano Estratégico Nacional de Segurança Rodoviária 2020, no qual, com ilustrações grágicas, se refere que “a sinistralidade dentro das localidades é um problema que afecta o nosso país de forma muito particular, sendo o principal factor que contribui poara o desempenho negativo de Portugal na União Europeia …” (pág. 27).


3. No caso concreto, sem dúvida alguma que a A. não foi previdente na travessia da estrada.

A dinâmica do acidente resulta clara da matéria de facto apurada: a A., que se apeara de um veículo que entretanto parara na hemi-faixa direita de rodagem, iniciou a travessia da via para o lado oposto sem atentar no veículo segurado que circulava pela outra hemi-faixa de rodagem a uma velocidade não inferior a 60 km/h. Avançando inopinadamente para essa hemi-faixa de rodagem a partir da traseira do veículo de que saíra, a A. intrometeu-se na linha de marcha do veículo segurado quando este se encontrava a cerca de 5 metros, dando-se o embate a meio da via sem que a condutora tivesse tempo para o evitar.

Em tais circunstâncias, era mister que antes de proceder à travessia da faixa de rodagem a A. tomasse em consideração tanto o tráfego que se apresentava pela sua esquerda como aquele que, como o veículo dos autos, advinha da sua direita, tanto mais que o veículo de que saíra ocultava a sua presença na via pública.

Afinal, como prescreve o art. 101º do Cód. da Estrada, é vedado aos peões “atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”.


4. Mas não podemos ignorar outras circunstâncias que, sendo objectivas, se impunham também à condutora do veículo segurado: o veículo seguia a uma velocidade não inferior a 60 kms/h; era noite (19 h e 10 m de um dia de Dezembro); seguia numa via dentro de uma localidade, a qual, aliás, era marginada por casas de habitação; a A. iniciou a travessia da via sob a incidência directa de um foco de luz emanado de um poste de iluminação pública existente no local; o acidente ocorreu numa recta de cerca de 1 km com boa visibilidade.

Estas circunstâncias revelam que à consumação do acidente também não foi alheia alguma contribuição causal da condutora do veículo.

Com efeito, se aos peões é exigido o referido cuidado na travessia de vias públicas, aos condutores de veículos automóveis é imposto também que regulem a “velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possam, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente” (art. 24º do CE). E, além disso, “sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados”, devem adoptar “velocidade especialmente moderada” quando designadamente  circularem em “localidades ou vias marginadas por edificações” (art. 25º do CE).

Ora, estas circunstâncias verificavam-se no local e na ocasião do acidente e não foram consideradas pelas instâncias para efeitos de co-responsabilização da condutora do veículo segurado.

Tratando-se de uma via dentro de um perímetro urbano, na ausência de dados que nos revelem um limite inferior, a velocidade máxima permitida era de 50 kms/h. Ora o veículo seguia a não menos de 60 kms/h, logo a uma velocidade superior à que era autorizada.

Ao invés do que refere a Relação, o excesso de velocidade não pode ser desconsiderado como factor que também contribuiu para que ocorresse o embate, sob pena de isso se traduzir na atribuição de primazia absoluta aos veículos automóveis e na desconsideração de comportamentos que objectivamente infringem regras estradais, para, ao mesmo tempo, se penalizarem os peões.

Para além da ultrapassagem do limite máximo permitido, importa considerar que se tratava de uma localidade e de uma via pública marginada por habitações, a exigir uma especial atenção aos riscos que acarreta a condução automóvel e que são determinados pela confluência de outros utentes, como ocorre com os peões que, na falta de outras indicações precisas, podem atravessar a via em qualquer dos pontos da rodovia.

Essa especial atenção deveria ter-se traduzido na condução automóvel a uma velocidade que fosse especialmente moderada, bem diferente daquela que se verificava e que, contra a regra objectiva, ultrapassava os 50 kms/hora.


5. É muito frequentemente glosada a frase de que aos condutores de veículos automóveis é inexigível contar com a negligência de outros utentes da via pública, conceito cuja valia está em franca decadência por diversos motivos.

O primeiro é o de que as vias públicas, mais a mais quando atravessam localidades e não têm características especiais, são locais de convivência entre os diversos utentes, maxime entre os veículos e os peões, cada um dos quais deve utilizá-las tendo em atenção os demais.

O segundo é o de que a condução automóvel, designadamente no que respeita ao factor da velocidade, deve ser exercida de tal modo que permita ao condutor imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, o que, aplicado ao caso, implicaria também a atenção devida a outros possíveis obstáculos que se intrometessem na passagem do veículo.

O terceiro e principal factor é o de que o direito estradal vem avançando, muito por força das Directivas Europeias em matéria de seguro automóvel, no sentido da concessão de maior tutela aos utentes mais vulneráveis das vias públicas. Tal manifesta-se principalmente no regime do seguro obrigatório mas projecta-se igualmente no instituto da responsabilidade civil rodoviária que não pode ficar desfasado do nível de protecção que é projectado pelas Directivas e que se deve traduzir quer em modificações do direito interno, quer numa diversa percepção da problemática da circulação e dos riscos da circulação automóvel.

Ainda que tal não infirme a possibilidade de todos os utentes se harmonizarem, cumprindo as regras que sobre cada um incidem com vista a evitar a ocorrência de acidentes, pede-se aos condutores de veículos que tomem especiais cautelas e que circulem com uma especial atenção aos factores de risco que rodeiam a circulação designadamente quando circulem em localidades.


6. Atentas as circunstâncias essenciais (era de noite e a via situava-se numa localidade), a segurança do tráfego na zona exigia uma condução mais prudente com vista a evitar o embate com outros veículos ou peões. Prudência que necessariamente passaria pela moderação da velocidade e pela atenção às eventuais vicissitudes que são comuns em vias que atravessam localidades.

Quem circula em meios urbanos defronta-se com numerosos utentes da via pública, com especial destaque para os peões ou ciclistas, que nem sempre cumprem as regras. Sem que nos casos de atropelamento de peões tal implique para os condutores de veículos automóveis a afirmação automática de uma conduta que seja susceptível de ser qualificada como culposa, o modo de condução contribuiu, em concreto, numa percentagem não desprezível, para o atropelamento da A.

Por todos estes motivos somos levados a contrariar as decisões das instâncias no que respeita à atribuição da responsabilidade pelo acidente que vitimou a A., parecendo-nos ajustado concluir que a culpa na ocorrência do acidente deve ser distribuída pela A. e pela condutora do veículo na proporção de metade para cada.

Fica deste modo prejudicada a apreciação da questão que subsidiariamente foi suscitada pela recorrente em torno da admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade culposa da lesada e o risco da circulação automóvel.


7. Resta apurar os danos e fixar a indemnização global, depois repartida de acordo com a quota de responsabilidade assacada a cada interveniente.

Ocorre, porém, que tal matéria não foi apreciada pela Relação, tendo ficado naturalmente prejudicada pela resposta que foi dada àquela questão essencial.

A possibilidade de, nestas ocasiões, o tribunal ad quem se substituir ao tribunal recorrido está prevista no art. 665º, nº 2, do CPC de 2013, mas é circunscrita ao recurso de apelação apreciado pela Relação. Já no que respeita ao recurso de revista interposto para o Supremo, ao invés do que resultava do anterior regime, em que o art. 726º do CPC de 1961 excluía apenas o nº 1 do art. 715º, deixando de fora o nº 2 (correspondente ao nº 2 do art. 665º do CPC de 2013), o actual art. 679º excluiu a aplicação de todo o art. 665º.

Por conseguinte, importa que, para o referido efeito, os autos sejam remetidos para a Relação.


IV – Face ao exposto, acorda-se em:

a) Julgar parcialmente procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que concluiu pela verificação de culpa exclusiva da A., declarando-se a responsabilidade conjunta culposa tanto da A. como da condutora do veículo segurado na proporção de metade para cada;

d) Determinar a remessa dos autos à Relação para, de acordo com a anterior decisão, fixar a indemnização devida à A.

Custas da revista a cargo da R.


Notifique.


Lisboa, 30-3-17


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo